Projeto Conte Sua História
Depoimento de Augusta Isabel de Oliveira
Entrevistada por Karen Worcman e Inácio Neves
Fazenda Grotão, Mogol
Realização Museu da Pessoa
PCSH _ HV 849
Em 24 de janeiro de 2020
Transcrito por Selma Paiva
Revisto por Rosali Henriques
P/1 – Então, como eu tinha explicado, o que a gente vai fazer é uma entrevista com a sua história, da sua vida. Então para a gente pensar assim, com a história da sua vida, a gente tem que dar uma respirada, ficar um pouquinho parado, porque já começou há muito tempo. E pensar e pedir para a senhora fechar o olho um pouco, respirar um pouquinho, ouvir os passarinhos, e esse silêncio levar sua imaginação, assim, para as primeiras imagens da sua vida.
R – As imagens da minha vida.
P/1 – Lá atrás, assim. Prestar atenção na respiração. E a respiração vai tranquilizar você, o nosso coração um pouco, e aí vai pensar na primeira imagem que lhe ocorre, a lembrança - às vezes pode ser só um cheiro da infância, pode ser a voz da mãe, pode ser a luz do quarto, o gosto de uma comida, às vezes a sensação... Quando a gente volta lá...
R – Ai, voltei lá no meu tempo de criança!
P/1 – Então vai me contando o que tem nesse tempo. Quando você chegou lá, o que é. Não precisa abrir nem o olho. O que você vê? Onde você está? Vai contando para mim. Que lugar é esse para o qual você voltou?
R – Lá onde eu fui criada, lá na tapera. Lembrei de quando eu ia dormir com a minha avó, saía de casa anoitecendo. Minha avó era ‘veinha’, ia dormir com ela.
P/1 – Como assim?
R – Ela morava sozinha. Aí, um dia, minha irmã falou assim... O meu cunhado falou para minha irmã... Estava indo dormir com minha avó - eu e minha irmã, que já era uma moça grande e eu era bem criança - meu cunhado falou assim: “Ô, Didi, você não fica com medo de dormir com aquela ‘véia’, não? Se ela morrer lá, só com você e a Isabel?”
P/1 – Você lembra dele falando isso?
R – Eu lembro. Aí, minha irmã falou assim: “Deus o livre! Eu não fico lá com ela morta. Eu não saio só com a Isabel, acho que até morro de medo”. Aí, desse dia em diante, comecei a ter medo. Falei: “Se ela não pode ficar comigo, se a ‘véia’, nossa avó, morrer lá só com nós duas, ela fica com medo. E o dia que eu vou sozinha, só eu?”
P/1 – E aí você continuou indo?
R – Continuei.
P/1 – Como era esse medo, você se lembra da sensação que dava?
R – Sei lá, eu tinha medo de ficar no escuro. Lá não tinha luz, minha avó alumiava com a luzinha com óleo, que ela punha na lamparina; outra hora com pedaço de candeia, pedaço de pau, que ela acendia o fogo. Acendia aquele pedaço de madeira lá, de candeia, dava para a gente alumiar.
P/1 – Vocês dormiam aonde? Na cama?
R – Nós dormíamos no quarto, lá no quarto dos fundos de um ‘bruta’ de um casarão. E a minha avó dormia no outro quarto. Nós dormíamos num quarto... A minha avó dormia no quarto da frente e nós, no quarto dos fundos.
P/1 – E ela apagava a luz?
R – Apagava a luz, mas tinha que apagar. Como é que ia dormir com a luz com aquele fedor de óleo? A gente amanhecia o dia com o nariz cheio de cinza, assim. Fumaça de querosene, fumaça de óleo...
P/1 – E aí ficava tudo, tudo, tudo, tudo, tudo escuro?
R – Tudo escuro.
P/1 – E você ficava com o olho aberto ou fechava para dormir?
R – Eu ficava lá, fechava o olho, ficava lá, o sono vinha naquela caminha ruinzinha, coitada da minha avó.
P/1 – Ela era muito pobrinha? Como é que era?
R – Era. Não, a minha avó tecia, ela fazia colcha para vender. Ela não era muito pobrinha, não. Ela tinha uns animais, ela tinha uns carneiros, mas ela era assim... Ela tinha terra, tinha umas vacas. Ainda lembro um pouco, ainda.
P/1 – Como ela chamava?
R – Minha avó chamava-se Maria da Conceição. Mas todo mundo a tratava como Maria Rosário, por causa do marido dela.
P/1 – Por quê?
R – O marido dela também chamava Joaquim Rosário. Aí o pessoal a tratava de Maria Rosário, por causa do marido dela. Mas o nome dela era Conceição.
P/1 – Ela era mãe do seu pai ou mãe da sua mãe?
R – Ela era mãe do meu pai. E a mãe da minha mãe, que se chamava Augusta, mas essa eu não conheci, não. Das minhas avós, só conheci a mãe do meu pai. E lembro de umas irmãs da minha avó, que eram tias do meu pai.
P/1 – Como elas chamavam? Você lembra?
R – Eu lembro da Nazaré, lembro da Sinhana - chamava Ana Maria e a tratavam de Sinhana. E o tio Ziquinha, um ‘veinho’. Desses eu lembro.
P/1 – Eles moravam todos ali na tapera?
R – Não. Moravam lá num lugar que se chama Bananal, lá perto da tapera. Aqueles, sim, era uma pobreza triste.
P/1 – Era muito pobre lá?
R – Eles eram bem pobres.
P/1 – Você sabia, quando era criança, que eles eram pobres?
R – Eu sabia, pois a gente ia na casa deles. A gente via lá as camas deles. As ‘vasiinhas’ deles. A gente via a pobreza da casa. A gente chegava lá e sentia a pobreza.
P/1 – Como você sente a pobreza? Me conta. Pela panela, pelo cheiro da casa? Onde você via isso? Você, criança.
R - Eu, quando criança, eu sentia. A gente era pobre também, né? Faltava muita coisa em casa. Não tinha... Para você ter uma noção, antes, no meu tempo, quando a gente foi criada, lá não tinha luz, as casas não tinham banheiro, tomava banho de bacia. Nem prato a gente tinha.
P/1 – Vocês comiam como?
R – Comia na cuia. Deixa eu ver, as minhas cuias estão lá no terreiro, senão ia te mostrar. Cuias são essas coisas do mato, que a gente serra, faz cabaços, essas cuias.
P/1 – Sim.
R – Mas na casa da minha mãe, nós éramos uma turma de crianças.
P/1 – Você me conta quantas eram? Mas me conta assim... Primeiro me conta... Agora vamos voltar e você me conta o nome inteiro da sua mãe e do seu pai.
R – Então... Na casa da minha mãe, quando nós nos criamos lá, no meu tempo de criança, tínhamos eu, mais abaixo de mim tinha minha irmã Leda; o Adelino foi criado também junto; o Paulinho; Geraldo e Nilva. E acima de mim, os outros já eram maiores. Já eram grandes.
P/1 – Então esses vieram depois de você?
R – Depois de mim tinha mais... Quer ver? Mais cinco: a Leda; Paulo; Geraldo e a Nilva. Eram quatro depois de mim.
P/1 – E antes de você?
R – Antes de mim tinha uns seis mais. E tinha o Adelino, que se criou junto com a gente. Antes de mim... Vou começar pela mais velha: a mais velha era Maria Joaquina; depois tinha a Maria de Lourdes- a chamavam, a tratavam de Ninha; depois a Deronice; depois a Dalva; depois a minha irmã Conceição, que a gente trata dela de Didi; e depois o meu irmão Juca, que já é falecido; depois a Francisca; depois chego eu; depois a minha irmã Leda, que já morreu também; depois vem Paulo. Já tem dez, né? Depois o Geraldo e depois a Nilva. Uma dúzia. E depois o Adelino, que a minha mãe criou. E ainda tinha uma, que era gêmea comigo, essa morreu com três anos. Minha mãe teve 13 filhos, 12 partos, 13 filhos e um adotivo; e a minha mãe sempre cuidou de criança dos outros. Teve uma irmã dela que morreu e deixou a nenê pequena, ela ficou com ela um bom tempo. Depois deu para outra pessoa cuidar. Minha mãe criou uma porção de filhos e a casa dela vivia cheia: eram sobrinhos, afilhados, netos...
P/1 – Nessa casa em que você nasceu é que era assim?
R – Na casa em que eu nasci. E a casa era pequena, viu?
P/1 – Então me explica como é que era essa casa.
R – Nós dormíamos igual... Como é que eu vou falar?... Igual gato, porque dormia lá, quatro numa cama que hoje, se dormir um, já não pode ter outro. Ninguém gosta de dormir junto, mais. Nós dormíamos numa caminha tão pequena!
P/1 – A cama era de solteiro?
R – Cama de solteiro, dormia um punhado de gente ali, dormia quatro naquela cama.
P/1 – E isso um quarto? Num quarto dormiam quatro...
R – E no outro quarto dormiam quatro.
P/1 – No outro quarto mais quatro?
R – No outro quarto mais quatro.
P/1 – E seu pai e sua mãe dormiam onde?
R – Tinha o quarto deles, nós tínhamos o nosso. Nós tínhamos dois quartos para nós. Aí, num quarto, tinha duas camas.
P/1 – E só menina com menina e menino com menino, ou...
R – Ah, não, tinha o quarto dos meninos. Aí dormia separado. Tinha o quarto dos meninos e o das meninas, dois. Dois quartos para as meninas...
P/1 – E como era, assim... Por causa disso que ela emprestava vocês para ir dormir com sua avó?
R – Não. Ela mandava a gente ir dormir com a nossa avó porque a nossa avó morava sozinha e ela já era de idade. Aí já era uma senhorinha bem velha, já, então ela mandava a gente dormir com a avó, para fazer companhia para a avó. Mas no dia em que não foi ninguém, justamente no dia em que não foi ninguém dormir com a avó, a avó morreu. Queimada.
P/1 – Como assim? Me conta essa história.
R – Ela andava com uma mulambada de panos nas costas, e ela foi para a beira do fogão, pegou fogo lá na roupa dela, ela saiu correndo pela casa afora - ela morava num casarão grande, a casa dela era grande - e foi caindo pedaço de pano queimado pela casa afora. Tamanco, um ficou em cima do fogão, outro ficou lá no chão, tinha um pedaço de pano queimado dentro da vasilha de água, porque ela não tinha água encanada, tinha aqueles baldes, e enchia de água.
P/1 – Nossa!
R – Acho que ela foi pegar água para jogar, caiu pedaço de pano lá na vasilha de água dela. Pano queimado.
P/1 – Quem a encontrou assim, queimada?
R – Todo dia de manhã eu ia lá aguar as plantas para ela. Mas antes de eu ir, foi um outro neto dela lá, chegou lá, viu que a casa estava aberta, tinha as janelas, dormiu com os janelões abertos. Aí, achou estranho. Era cedinho, o dia estava nem clareado direito, aí ele olhou lá na chave, no buraco da chave, a viu caída embaixo de um monte de pano. Ela andava com uma porção de roupa, não é? Aí ela estava lá queimada, ele voltou, falou com a mãe dele, foi na casa da minha mãe. Quando chegou na casa da minha mãe eu tinha levantado, estava lavando o rosto na bica - porque lá em casa também não tinha água encanada - para eu ir lá aguar a horta, que ela gostava que aguasse as plantas dela antes do sol bater na horta. Aí, o meu primo chegou e falou assim comigo: “O tio Joaquim” – tio Joaquim que ele diz era meu pai – “já levantou?” Eu falei: “Não, meu pai está deitado ainda. Por quê?” “Olha, eu vim falar com ele que nossa avó, a Dinha – nós falávamos Dinha – está lá, morta”.
P/1 – Nossa, e você?
R – Aí eu levei um susto, saí correndo: “Mãe, a Dinha morreu”. Aí meu pai levou um susto. Meu pai estava deitado ainda e escutou eu gritando: “Mãe, a Dinha morreu”. “Morreu como, menina?” Aí eu falei: “O Roberto falou que a Dinha está lá morta, toda queimada”.
P/1 – Nossa!
R – E estava, mesmo. Aí minha mãe me chamou. Naquele tempo não era como hoje, que tinha que levar no IML, que tinha que fazer um monte de exame. Estava queimada, não é?
P/1 – O que fizeram com ela?
R – Arrumou. Fez caixão. Naquele tempo, o povo fazia caixão, ficava batendo a noite inteira, fazendo aquelas marmotas daqueles caixões de tábua, forrava de pano. Até hoje eu lembro do caixão da minha avó, com pano estampado de roxo. Ai, que coisa feia! Cruz credo! (risos) Nossa, quando eu morrer, não quero um caixão daquela cor para mim, nunca!
P/1 – Que cor você quer?
R – Quero uma urna que seja não preta e não roxa. O povo usava muito fazer caixão roxo e preto. Quando era uma pessoa idosa, fazia aquele caixão roxo. Se morria um mais novo, fazia com o caixão preto ou então branco. Se morria um nenê, fazia branco, talvez.
P/1 – Morria muito nenê naquela época?
R – Ah, há tempos atrás, né? Porque não havia muitos recursos. A minha irmã, que era gêmea comigo, quando morreu, ela tinha acho que dois anos. Deu... Naquele tempo dava muito bronco, não é? Aquela doença que o pessoal fala bronco. Bronquite. Não sei por que eles falam bronco. Aliás, eu falei mentira. Ela deu foi negócio da cabeça. Aquela dor que mata rápido, meningite. Que deu bronco foi outra criança.
P/1 – Mas me conta o fim da história da sua avó. Pegaram...
R – Enterrou. Trouxe e enterrou lá na rua no outro dia, ainda ficou velório.
P/1 – Na rua, assim?
R – É, lá no cemitério, ainda fez velório dela, aí foi atrás de parente. Naquele tempo, não tinha telefone, nem estrada direito não tinha. A vida do pessoal da roça já foi muito sofrida. Muito sofrida.
P/1 – E vocês iam andando. E você lembra o que sentiu, assim? Porque você dormia com ela toda noite.
R – Na época eu fiquei assim... Todo dia eu rezava para ela. Todo dia tinha que rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria e oferecia para a alma da minha avó. Eu fiquei, assim, não é? A gente não deixa de ficar triste. Mas naquele tempo, eu deveria ter o quê? Uns oito anos, por aí. Oito, dez anos. Uma média assim que eu devia ter. Porque quando eu ia dormir com ela eu já estava na escola, tinha entrado na escola, estava no primeiro ano. Eu era muito criança. Eu ia dormir com ela, eu não tinha medo de nada. Depois que eu ouvi minha irmã falar: “Se a minha avó morrer lá só comigo e a Isabel, não sei o que eu faço, não. Eu não fico lá, só, com ela morta. Eu não saio só com a Isabel, de noite. Acho que até morro de medo”. Quando eu ouvi minha irmã falando isso com meu cunhado, aí comecei a ficar com medo: “E se ela morrer só comigo, como é que eu vou fazer?” Mas, criança, às vezes, não tem muita noção. Eu fiquei pensando isso, mas eu não tinha... Não sei nem se eu tinha medo era dela morrer lá só comigo, mas eu fiquei preocupada: “Ela não pode morrer só comigo e a minha irmã aqui, que já é uma moça, e se ela morrer só comigo?”
P/1 – Agora me conta um pouquinho quem mandava você ir lá? Você ia porque queria ou porque sua mãe e seu pai falavam?
R – Minha mãe e meu pai mandavam, para nossa avó não ficar sozinha.
P/1 – E por que eles escolheram você, Isabel?
R – Porque as outras, às vezes, tinham que sair para o serviço, para ir para a roça, para a lavoura, de manhã cedo. Quando estavam em casa, as outras iam também. Ia eu o dia que não tinha outra pessoa para ir. Mas quando as minhas irmãs estavam em casa, que podia ir uma das outras, que eram maiores, ia uma das maiores. Aí eu ia junto, para fazer companhia.
P/1 – Me conta um pouquinho como eram seus pais. Quem era bravo? Como era a organização? Quem mandava em quem na sua casa?
R – A minha mãe era mais brava. Meu pai era mais calmo. Mas minha mãe tinha que ser brava, mesmo, aquela filharada... Se ela não fosse brava, como ela ia dar conta?
P/1 – Mas como ela era brava? Ela batia em vocês?
R – Se fizesse de boba, batia. Mas papai não batia, não, ele saía fora. Ele não gostava de bater, não.
P/1 – Seu pai?
R – É. Não sei se ele ficava com dó. Ele não era muito de bater, não. Mas se ele falasse alguma coisa com a gente, a gente morria de vergonha. Nossa Senhora! Se meu pai falasse uma palavrinha qualquer, a gente ficava com vergonha e acho que por isso é que a gente nem dava motivo para ele bater.
P/1 – Se ele falasse o quê? “Fica quieto, menina”? Uma coisa assim?
R – Se chegasse uma pessoa e ele não quisesse que a gente ficasse perto escutando o assunto, só dele olhar assim para a gente, a gente sabia que era para sair para lá, que não tinha que ficar perto escutando os assuntos dos mais velhos, não. Minha mãe também. Minha mãe só olhava para a gente e a gente já sabia que não podia, que era para a gente ficar só... Se a gente estivesse fazendo alguma coisa errada também e ela olhasse assim, a gente já sabia que ela estava brava.
P/1 – Vocês comiam todos os dias todo mundo junto?
R – Todo mundo junto. Isso a gente sentava na cozinha, cada um com uma cuia na mão. (risos)
P/1 – E comia o quê?
R – Ah, meu Deus! (risos) Comia a janta que ela fazia, o almoço lá: feijão, arroz, angu, abóbora. Eu passei muito trabalho, porque eu não gostava de comer abóbora. Eu era difícil. Tinha uma porção de coisa que eu não comia. Hoje eu fico pensando: “Meu Deus, como é que eu era chata!” Até hoje eu não gosto de comer abobrinha nova. Eu como, mas... Sei fazer, garanto que fica gostosa, mas eu não sou muito chegada, não.
P/1 - Carne não? Não tinha?
R – Comia carne só no dia em que matava porco. Aí, quando tinha carne, a gente comia. O dia em que matava frango. Não comprava carne. Só comia quando tinha em casa. E também, comprar em compras, só comprava o sal.
P/1 – Só?
R – Comia tudo colhido na roça. Também, tudo que era de colher na roça, nós plantávamos, não é? Plantava arroz... Eu sofri muito limpando arroz no pilão. Cruz credo! Se eu, hoje em dia, se for para eu limpar arroz, como eu já limpei na minha vida, eu saio andando pelo mundo. Ponho uma roupa numa sacola e saio andando pelo mundo, mas não vou limpar arroz mais como eu já limpei, não. Também, eu não aguento. A gente limpava arroz no pilão para fazer a janta. Limpava arroz para fazer o almoço. Limpava no pilão. Tinha que moer cana para fazer o café.
P/1 - Moer cana para fazer o café?
R - Moía para fazer a garapa, tirar o caldo da cana para fazer o café, para fazer a broa. A vida nossa foi bem sofrida.
P/1 – E o café, vocês também é que limpavam?
R – Limpava o café, colhia, limpava, torrava.
P/1 – E quem cuidava dos bichos? Porco, galinha...
R – Nós. Minha mãe, nós, não é? Todo mundo cuidava. Todo mundo tinha serviço. Minha mãe punha todo mundo para trabalhar.
P/1 – Então me conta assim: você acordava... Desde que idade você foi para a terra, saía para trabalhar?
R – Desde que a gente aguentava. Começava a trabalhar com uns dez anos. Ou até antes. Eu comecei a trabalhar mais velha, porque eu era aniquilada, não é? (risos)
P/1 – O que quer dizer isso?
R – Aniquilada quer dizer que era mais fraquinha, não é?
P/1 – Você era aniquilada?
R – Eu era. Tanto é que eu nem cresci, não é? (risos) Mas a gente ajudava meu pai na lavoura. Desde quando começava a arrumar a terra para plantar o milho. Eu tinha uma irmã que trabalhava tanto na roça! Capinava mandioca, milho. Eu era tão criança quando ela foi para a roça... Eu lembro de uma vez em que ela foi capinar no mandiocal, lá numa ladeira, e ela me levou como companhia. Para não ficar lá, sozinha, trabalhando. Eu fui como companhia para ela e aí eu fiquei lá, sentada num pano que ela levou, um saco de linhagem, forrou lá no chão para me sentar, para eu ficar lá esperando ela trabalhar. Toda hora chamava para ir embora. Falava: “Dininha, vamos embora”. E ela: “Espera, daqui a pouco nós vamos”. Enquanto o sol não acabou, não foi embora mesmo, não tinha nada mais do sol, ela não ia embora. Bateu enxada o dia inteiro. Eu dormia lá, mosquito me mordendo, acordava, chamava para ir embora. “Não, fica quieta aí, espera acabar de capinar primeiro”. Mas ela não acabou naquele dia, não.
P/1 – Depois voltou?
R – No outro dia, voltou. Essa trabalhou tanto na roça, que depois ela deu uma... Não sei nem te explicar, só sei que... Acho que foi derrame. Eu lembro, eu era criança, mas eu lembro. Ela falou que estava com dor de cabeça e eu acordei de noite, que ela falou: “Mãe, eu estou com dor de cabeça. Traz um chá para mim”. Minha mãe levantou correndo e foi fazer o chá para ela e foi nos tirando lá da cama. Eu estava dormindo do lado dos pés da cama dela, a outra irmã minha no canto dela. Lembro da mamãe nos tirando e ela passando mal e minha mãe pelejando um chá na boca dela e era só sangue que saía pelo nariz e pela boca.
P/1 – Nossa!
R – Durou umas duas horas e morreu.
P/1 – Morreu?
R – Morreu. Até depois de morta estava saindo aquela sangueira. A vida era tão... Como eu vou falar?
P/1 – Me conta aí. Ela morreu, o que aconteceu? Você lembra desse dia?
R – Eu lembro do dia em que ela morreu. Eu lembro do pessoal lá. Minha mãe gritou, que a tia dela, que morava perto... Para ir lá em casa. Aí, toda hora chegando gente, chegando gente, depois eles a arrumaram, puseram no banco da sala. Tudo isso eu lembro. Mas eu era bem criança. Mas a minha irmã tinha... Nessa época, acho que ela tinha uns 18 anos. E aí, a minha mãe falou: “Será que a Dininha morreu de tanto tomar sol na roça?”
P/1 – Ela pensava assim?
R – Minha mãe que falava: “Será que a Dininha morreu de tanto ir para a roça? A semana inteira pegando sol”. Mas não sei se era, não é por isso, porque as outras irmãs minhas também iam. Eu também ia para a roça, mas eu não gostava de ir. E nem aguentava muito. Eu ia para fazer número, porque chegava lá, eu morcegava bem. (risos)
P/1 – Mas alguém dava bronca em você ou batia em você, às vezes?
R – Batia, não, mas dava bronca. Meu pai falava: “Ô menina mole, você não vai trabalhar, não?” Aí eu escorava no cabo da enxada assim, e ele falava: “Ah lá, já está dando nó no cabo da enxada na hora de trabalhar”. Aí começava de novo a dar mais umas enxadadinhas e parava. Tinha uma irmã minha que falava: “Anda, Isabel, deixa de ser mole”. Eu olhava para o céu, assim: “Meu Deus, uma chuva, nem uma nuvem. Devia arrumar uma chuva para nós irmos embora”.
P/1 – Você detestava aquilo?
R – Detestava. Aí, quando nós começamos a estudar, para fazer a quarta série, eu já ia fazer 16 anos. Tinha 15, ia fazer 16. Aí, nós, de manhã cedo... A escola era de manhã, eu levantava cedinho para sair até escondido do meu pai, porque ele falava: “Hoje não vai à escola, não. Hoje nós vamos capinar milho”. Aí eu vazava. A outra irmã minha era mais obediente e ficava com medo de desobedecer o papai, ia para a roça. Ela faltava na escola. Aí, eu não faltava não, saía escondido. Quando era de noite, eu ficava escondendo do meu pai, de medo dele me bater. Mas ele não batia, não, só ameaçava.
P/1 – Quando você voltava da escola, ele olhava para você e falava...
R – “Amanhã você vai ver se você não vai para a roça”. Ele falava comigo: “Amanhã você vai, sim”. No outro dia, eu saía cedinho de novo, escondia dele. Depois ele viu que a outra parou de estudar para continuar indo na roça, aí um dia minha mãe falou assim: “A Isabel não gosta de ir na roça, mas também não ataca nada ela na roça. Já que ela está desobedecendo para estudar - a Leda parou de estudar, deixa a Isabel estudar”. Aí eu fiz a quarta série naquele ano. Aí, ele desacorçoou comigo, de tanto dar bronca em mim, que ele gostava assim: eu podia estudar, mas queria que eu fosse ajudar na lavoura também.
P/1 – Me conta, mas isso já é a quarta série. A primeira, você tinha quantos anos?
R - Quando eu entrei na escola eu tinha sete anos.
P/1 – Daí você ia andando também para a escola?
R – Andando. Nós andávamos distância longe. A gente, naquele tempo, via um pé de goiaba longe, umas folhas amarelas, pensava que era fruta, lá ia correndo pegar para comer. (risos) Não tinha merenda na escola, a gente passava uma fome! Mas não era só eu, não. A criançada toda. E tinha muita criança, viu?
P/1 – Vocês iam juntos, os irmãos todos? Ou alguns, só?
R – Alguns, não é? Tinha os irmãos, tinha primos...
P/1 – Vocês iam andando? Demorava quanto tempo para chegar nessa escola?
R – Uma meia hora.
P/1 – É lá em Mogol, aquela escola? Aquela que está lá?
R – Aquela escola, aquela que está lá.
P/1 – E quem era o professor ou professora?
R – Quando eu comecei a estudar, eu comecei a estudar numa escola que era da Prefeitura, mas era lá na rua mesmo. A professora chamava Rita. Era até minha madrinha. Depois uniu as escolas, a escola da Prefeitura com a escola do estado e nós fomos para a escola do estado.
P/1 – Mudou?
R – Aí o nome ficou Escolas Combinadas de Mogol, porque uma era da Prefeitura e a outra do estado. Depois passou tudo para o estado. Aí ficou Escola Estadual de Mogol.
P/1 – E esse não era o Nicanor?
R – Não. ‘Seu’ Nicanor aposentou, foi embora para Lima Duarte. Mas eu comecei a estudar na escola dele.
P/1 – Na época em que você entrou, o professor batia em vocês também?
R – Era “brava pra raio”, mas não batia, não. Nunca apanhei de professor. De professor nenhum, nunca me bateu.
P/1 – Batia nos outros, ou não batia em ninguém?
R – Às vezes batia em outros lá, dava uma varada, não é? Mas eu dei sorte. Nunca apanhei de professor nenhum. Às vezes até mesmo zangar de professor, eu não tomava não.
P/1 – Por quê? Você gostava de estudar? Você era boa aluna?
R – Acho que é porque eu gostava de estudar, sei lá. Não sei se era porque eu era boa aluna, não, porque eu não gostava de estudar Matemática.
P/1 – Você gostava do quê, Isabel?
R – Eu copiava dos alunos mais próximos, assim. Matemática, eu copiava, mas outras matérias, não. Eu gostava. Eu gostava de Português, Linguagem, História, Geografia, de todas essas matérias eu gostava. Mas de Matemática eu não gostava, mesmo. Não gostava, e não me esmerei em aprender. Eu ficava colando dos alunos, aí eu fiquei no prejuízo. Até hoje sou ruim em Matemática.
P/1 – Mas isso foi o primeiro, o segundo... Você ia direto ou você largava no outro ano, ia para a roça, não ia... Como é que foi?
R – Não. Quando eu entrei na escola, direto do primeiro ano até o terceiro. Só que no terceiro ano eu não repeti ano, não. Nenhum. No terceiro ano nós paramos porque não tinha quarta série. Só ia até a terceira.
P/1 – Aí você parou?
R – Aí eu parei. Quando uma professora, que se formou e veio para cá dar aula... Ela era daqui do Mogol, agora ela mora em Juiz de Fora, ela se formou, era daqui, morava aqui, a mãe dela era professora, aí ela estudou, formou, foi lá para Lima Duarte, e quando ela veio dar o primeiro ano... Que ela veio dar aula, veio dar aula para o Mogol. Quarta série. Aí eu voltei. Aí eu estudei. Voltamos eu, minha irmã e uns primos. Uma porção de gente voltou. Só que alguns pararam e eu não parei, não. Minha irmã parou. Também ela não gostava muito de estudar, não, não é? A verdade é essa. Porque, se ela gostasse, ela teria insistido.
P/1 – Me conta essa história da fome. Vocês saíam a que horas? E aí...
R – A gente almoçava em casa e vinha para a escola. E voltava depois... A escola começava às 11 horas, a gente almoçava na nossa casa e vinha. E não tinha merenda, a gente ia comer em casa, quando chegasse.
P/1 – No fim do dia? Quanto tempo durava? Você ficava sem comer até que horas?
R – Até a hora em que chegasse em casa de novo, porque a duração da escola era de quatro horas de aula. Aí, a gente comia na hora em que voltava. A não ser que a gente achasse alguma fruta pelo caminho. (risos)
P/1 – E você, quando chegava em casa, ia trabalhar?
R – Quando a gente chegava em casa, que chegava da escola, a gente comia alguma coisa, a mamãe deixava lá uma broa feita para nós comermos quando chegava, né? A gente comia e ia trabalhar. Ia buscar uma lenha ou limpar um café ou varrer ou cascar um milho. A gente tinha obrigação. Todo mundo tinha. A gente não tinha muito tempo de brincar, não.
P/1 – Você não tinha brincadeira? Ou vocês tinham também brincadeira?
R – Às vezes a gente brincava, quando as meninas brincavam de pular corda, brincava de rolar na areia. (risos)
P/1 – Boneca?
R – Ah, nem boneca a gente tinha não. Brincava de boneca, nada. Brincava de rolar na areia lá, brincava na areia, de pular corda. Mesmo na escola, a gente não tinha brincadeiras. Brincadeira era assim... Aliás, na escola, brincava de roda, não é? Fazia roda e ficava lá cantando.
P/1 – Você lembra de alguma música dessas de escola?
R – Lembro. Algumas ainda lembro.
P/1 – Gosta de cantar?
R – Ah, não, não gosto de cantar mais, não.
P/1 – Mas gostava?
R – Gostava.
P/1 – Não quer me contar alguma dessas músicas, que você gostava mais de cantar? Das cirandas.
R – Ciranda, cirandinha. Nós cantávamos ciranda.
P/1 – Você lembra de alguma? Ou você não quer cantar?
R – Eu lembro, mas não vou cantar, não. Depois vocês vão rir de mim.
P/1 – Não, não vamos rir, não. Pode cantar. Eu juro que não mostro, vai.
R – Não, não vai. Não. Não vou cantar, não. “Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar...”. Esqueci o resto. “Vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar”. Eu esqueci. Não lembro mais, não. Esqueci. Mas a vida era boa, a gente que, às vezes... Apesar da pobreza, não tinha muita maldade. O pessoal era mais sem maldade. Hoje em dia tem muito conforto, mas o povo é maldoso. Eu acho. Não sei se é porque para a gente não sobrava tempo de pensar o lado bobo, essas coisas bobas.
P1 – Agora, você lembra disso com sentimento bom no coração?
R – Eu lembro com bom sentimento, sabe? Eu não tenho sentimento ruim, não. Mesmo vou falar assim: “Era muito triste, porque era pobre”. Era pobre, mas a gente era feliz. O mundo que a gente conhecia era aquele. A gente não conhecia outros mundos, diferentes.
P/1 – Não ficava falando: “Quero ir embora daqui”, não é?
R – Não. Não falava, não. Tem dia que eu fico lembrando das minhas irmãs que são mais velhas do que eu, tem uma que mora lá no estado de São Paulo, e às vezes a gente achava... Até pouco tempo estava rindo delas, porque uma irmã minha falava assim: “Eu quero que elas vão embora pra longe daqui, não quero morar aqui”.
P/1 – Ela falava isso?
R – Falava. E a outra falava: “Eu não, quero ir embora daqui, não. Quero casar aqui e ficar por aqui”. Mas a que falava isso foi para São Paulo e casou por lá. Foi ficar na casa de uma tia e conheceu um moço e casou por lá, ficou morando, até hoje mora lá. E a outra, não. A outra morreu, mas ela casou aqui e viveu a vida dela aí e morreu. Deu trombose, ela morreu tinha 55 anos.
P/1 – Nossa!
R – Nós achávamos graça, porque ela falava: “Eu falava que queria ir embora, não fui. A Nice que não queria ir, foi”.
P/1 – Que coisa, não? Me conta essa parte de casamento. A ideia das meninas, todas, era casar? Como é que vocês pensavam nisso?
R – Antigamente, os pais já criavam aquelas filhas pensando que todas tinham que casar, tinha que namorar e casar; o primeiro namorado que arrumassem, já queria que casassem. Ah, era. Os pais eram severos.
P/1 – Com que idade as meninas costumavam casar?
R – As minhas irmãs mais velhas do que eu casaram-se, todas elas, com 17 anos.
P/1 – E como você conheceu? Como você decidia assim, sabe: “Vou casar com aquele”?
R – Ah, não, minha mãe era muito brava. A gente arrumava uns namorados, ela não aceitava, arrumava outro, não aceitava. Ih, para isso ela era bem brava.
P/1 – Me conta primeiro: onde vocês arrumavam os namorados?
R – Arrumava os namorados nos bailes. A gente ia aos bailes, às festas. Apesar deles serem bravos, mas eles deixavam a gente sair, a gente ia às festas. Só que nova, eu não conheci... Não cheguei a ir em carnaval. Mas a gente ia em festa, festa que tinha, de igreja, baile. Às vezes, a gente trabalhava o dia inteiro na lavoura, chegava em casa, tomava banho - aqueles banhos de bacia - daí ia para os bailes ainda.
P/1 – E a roupa para ir para o baile, qual era?
R – A gente tinha vestido. A gente não tinha muita roupa, mas a gente tinha. A roupa de sair, não é? Usava vestido.
P/1 – Botava um vestido e ia para o baile?
R – Uma saia, um vestido...
P/1 - E podia ir sem irmãos para o baile?
R – Não, não podia ir, nada. Tinha que ir com alguém responsável, com uma pessoa mais velha, responsável. Ou o pai levava ou a mãe levava ou a tia levava. Não existia aquela coisa de sair com o namorado, passear com o namorado, não.
P/1 – Se seu pai e sua mãe iam ao baile, como é que você começava a conversar com alguém?
R – Hein?
P/1 – Como você começava a namorar com alguém?
R – Namorando, uai, o que é isso? Para namorar, não faltava jeito, não, ué! O pessoal namorava. Só não agarrava, como hoje o pessoal namora: agarrado, beijando, passeando junto. Quando a minha mãe estava viva, que ela estava já bem idosa, morava na rua ali, no arraial, aí eu ficava brincando com a minha mãe, falava: “Ê, mãe, ‘nós perdeu’. Eu tinha que estar solteira era hoje, para namorar sentada aqui no alpendre, na porta da igreja. Por que eu casei nova, mãe? Podia estar solteira hoje, sentada na porta da igreja, para namorar”. Ela falava assim: “De jeito nenhum. Se você estivesse solteira, estava morando lá atrás do morro”. Falei: “Mas mesmo morando lá atrás do morro, eu já perdi, mãe. Porque eu tinha que estar passeando com meus namorados”. Mas falava isso para enchê-la, para zuar ela, porque ela era brava. Deus me livre se minha mãe catasse uma filha dela beijando um namorado! Parece que ela fazia casar na mesma hora.
P/1 – Ah, é? Então me conta como foi que você conheceu seu primeiro marido. Ele foi seu primeiro namorado?
R – Não, tive outros namorados, além dele. Nem sei explicar direito essa situação. Só sei que eu casei com ele, não era minha intenção de casar com ele, não. Queria casar com outro, mas minha mãe não deixava.
P/1 – Então me conta um pouco como é que foi isso.
R – Mas ele gostava muito de mim, pois é com esse que eu vou casar. Ele é velho, mas, pelo menos, eu não vou bater enxada para o resto da vida sofrida, de ir para a roça bater enxada.
P/1 – Foi isso que você pensou?
R – Pensei. Mas eu falei com ele: “Eu gosto de você como amigo, acho que não gosto de você para casamento, não”. Mas aí casei assim mesmo. E a gente se acostumou. A gente viveu, graças a Deus, sete anos, até bem.
P/1 – Me conta de novo: você casou ou você fugiu?
R – Eu fugi, acompanhei ele, mas a gente casou logo uns três dias depois. Fugi com ele.
P/1 – Posso lhe perguntar direito como é que foi? Como você sabia que ele gostava de você?
R – Ele era doido por mim. Me via todo dia, ia lá em casa. Mesmo se ele soubesse que eu tinha outro namorado, ele ficava triste, mas continuava insistindo.
P/1 – Ele disse que queria ficar com você?
R – Ele falava isso, dizia que queria ficar comigo. Um dia eu briguei com ele: “Mas tu vai morrer rápido, eu vou ficar viúva cedo, que eu sou nova, tu já é velho”. Nem assim ele desistiu. (risos)
P/1 – Você namorava quem antes, Isabel?
R – Namorava um outro moço, que ele agora nem mora aqui, não. Mora lá para Juiz de Fora. Nem sei se ele é vivo. Ah, tive bem uns outros namorados.
P/1 – Você era bonitona, pelo jeito. Estou vendo de hoje.
R – Era. Bem atentadinha também (risos). Por isso que minha mãe era brava, tinha que ser.
P/1 – Ela tinha preocupação com você?
R – Com nós todos, não é? Às vezes eu falo assim, até costumo comentar com as minhas irmãs: “Minha mãe era brava, mas ela tinha que ser. Uma porção de filha mulher para ela dar conta. Tinha que ser”. Mas naquele tempo, também, não era só a minha mãe. Todas as mães da região eram assim, mais severas com as filhas.
P/1 – Tinha caso de menina que saía, ia para o baile, perdia a virgindade, não casava e ficava todo mundo sabendo? Como é que acontecia?
R – É, mas isso... Não chegou muito... Eu não cheguei a ver essa situação, não.
P/1 – Não? Não teve ninguém que tenha passado por essa situação?
R – Eu sei de uma moça que era vizinha nossa, que teve uma filha sem casar. Ela, coitada, sofreu tanto! Que o pessoal apedrejava. As mães que arrumavam filha sem casar eram muito sofridas. Mas, graças a Deus, que não aconteceu lá em casa, não. Mas era muito sofrido. As mães, mesmo, excluíam.
P/1 – A própria mãe?
R – Muitas vezes. Tinha uma prima minha que também arrumou um filho sem casar, a mãe dela era tão brava com ela, não dava liberdade dela nem tirar o café na garrafa para tomar. Ficava excluída. As moças que arrumavam filho sem casar... Era muito sofrido! Porque o próprio lugar, o pessoal discriminava. Achava que a pessoa, só porque teve uma filha, teve um filho sem casar, não podia mais estar no meio das outras.
P/1 – Não podia mais ir ao baile?
R – Não podia mais sair de casa, não podia mais ter contato com as outras moças.
P/1 – Era assim?
R – Ah, isso era muito severo, mesmo. Elas eram muito excluídas, as mães solteiras. Porque eu conheço casos de algumas da nossa região. Parente minha que teve filho sem casar. Aí ficava excluída.
P/1 – E o filho, ficava excluído também?
R – Às vezes, ficava. Eu lembro que tinha umas crianças que estudavam e os outros alunos ficavam: “Ah lá, o fulano não tem pai, não. Ah lá, fulano filho de fulano”. Acaba excluindo. Quer ver? Eram excluídos filhos de mães solteiras, a mãe solteira era excluída, os pretos eram excluídos. Às vezes tinha as pessoas que gostavam muito do serviço do pobre, mas às vezes nem gostava do pobre. Hoje mudou muito, o racismo acabou muito, mas ainda agora existe, só não é tanto como antigamente.
P/1 – Então me conta como era essa história do preto com o branco. Como é que funcionava, assim? De racismo, que você falou.
R – Porque as pessoas brancas achavam que não podia uma filha casar com um preto. Eu conheci uma moça, que era branca, só porque ela casou com um preto, a família dela a excluiu. Não a aceitava em casa. Para ela ir à casa da mãe, tinha que ser escondido do pai. Ou seja, no dia em que o pai não estivesse em casa. Porque a mãe queria que ela fosse, mas ela não podia ir, porque o pai era bravo, não aceitava.
P/1 – Que ela casasse com o preto?
R – Porque tinha casado com preto. Aí não podia ir mais em casa. Mas essas mudanças que hoje em dia teve... Bom, muita coisa melhorou, porque o racismo, apesar de ainda existir, mas acabou muito o racismo.
P/1 – Mas me conta essa do preto. Por exemplo: o Benevides é branco, você diz que é parda. É isso? Já dá racismo ou a pessoa tem que ser preta, preta, preta?
R – É. Já eu tive. Quantas vezes já teve pessoas - não vou falar o nome de quem - que falava que eu era a nega do Bené. A nega do Benevides. Ainda falei... Um dia uma veio me contar: “Fulana falou que só fala você, a ‘nega do Benevides’”. Falei: “Mas eu sou nega com orgulho. Não me troco a troco de qualquer branca, não. Fala para ela. (risos) Ela vai ver que eu sou nega mesmo, mas sou nega enjoada”. Aí a pessoa, também, nem veio me contar mais, não.
P/1 – Mas, por exemplo, seu pai era branco?
R – Meu pai era mulato, mas ele era bem claro, do olho azul. Porque a mãe dele também era clara.
P/1 – E a sua mãe?
R – A minha mãe era da minha cor. A minha avó, mãe da minha mãe, era preta, pretinha, e o meu avô era claro, do cabelo castanho, cabelo ruinzinho, mas era castanho e o olho claro. Aí fez aquela mistura, não é? Minha mãe saiu morena. Da minha cor.
P/1 – Mas mesmo assim, ela saindo assim, ela não era racista? Ou mesmo assim era?
R – Quem?
P/1 – Sua mãe.
R – Ah, não aceitava nós namorar branco, não.
P/1 – Branco? Ela queria que vocês namorassem branco?
R – Tinha que ser namorado preto. Ou mulato, como ela falava. Não podia namorar branco, não.
P/1 – Ela dizia o quê? O que ela falava?
R – Ela falava assim: “Branco que namora mulata é só para aproveitar. Vocês têm que conhecer o lugar de vocês. Vocês têm que namorar uns pretinhos, uns mulatinhos iguais a vocês. Vocês não têm que namorar branco, não”.
P/1 – Mas ela achava que o branco era melhor ou não, pior?
R – Não. O branco não podia misturar. Ela achava assim, falava para nós que nós tínhamos que procurar o nosso lugar, namorar gente da nossa cor. Nós não podíamos namorar branco. Achava que o branco ia só aproveitar, que ele ia só usar, talvez, assim.
P/1 – Agora vamos voltar ao seu primeiro marido. Ele era branco, preto ou pardo?
R – Ele era branco.
P/1 – E aí? Como é que resolveu esse assunto? Além de branco, mais velho. Me conta como é que virou essa história aí.
R – Mas isso aí ela não queria, meu pai também falava: “Isabel, vai casar com compadre Mané?” - eles eram compadres – “aquele homem velho? O que você está pensando? Não faz uma coisa dessas, não”. Meu pai não importava, não implicava com namorado da gente, não. Minha mãe é que era mais severa com isso aí. Mas aí meu pai: “Tu vai casar com aquele homem velho? Não faz uma coisa dessas, não”. Aí eu falava: “Quem está falando que eu estou casando? Não estou casando, não”. Mas aí casei, fugi, não é? Apanhei ele.
P/1 – Ele te chamou? Como é que foi? Conta.
R – Ele me convidou para fugir, aí eu topei.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Eu ia fazer 18 anos. Tinha 17 anos e meio.
P/1 – Você topou? Você foi com ele para onde?
R – Fui para a casa dele. Ele morava lá no casarão, no Palmonão.
P/1 – Ele tinha dinheiro? Que você falou que não queria ir para a enxada. Por quê? Ele não...
R – Ele não tinha dinheiro, mas tinha condição de tratar de mim sem precisar de eu ir para a roça. Não era rico, mas ele tinha condições de tratar de mim sem precisar de eu ir bater enxada. Se eu casasse com um rapaz que me levasse para a roça, para ajudar a bater enxada, eu acho que eu o largava no mesmo dia. Eu queria era sair daquela vida de bater enxada. Queria sair de casa.
P/1 – Você pensou nisso?
R – Pensei nisso.
P/1 – Você era apaixonada por ele ou não?
R – Não. Eu não era apaixonada por ele, não, mas a gente acostuma, né? Eu gostava dele, mas não era aquela paixão. Nem sei te falar a verdade, o que é paixão.
P/1 – Você nunca sentiu isso, Isabel? Olha no meu olho agora.
R – (risos) Ai, Jesus! Eu já fui apaixonada por uma pessoa que nem deve existir mais. Nem sei se ainda vive.
P/1 – Você foi, de verdade? Aquela que o coração fica assim?
R – Não, mas eu gostava dele, sabe?
P/1 – Mas essa outra pessoa, quem era?
R – Não vou falar quem era, não.
P/1 – Tá, mas quando foi?
R – Isso aí quando eu era nova, não é? Nem sabia se isso era verdade. Não sabia nem o que era gostar. Estou falando isso, mas a gente, quando é mais novo, pensa que gosta. A gente se ilude ali, não é? Pensa que gosta, mas o gostar é bem diferente. Quando a pessoa é nova, o primeiro namorado que arruma, fica naquela ilusão de ser feliz.
P/1 – Você chegou a namorar com ele?
R – A outra pessoa? Cheguei a namorar. Namorei, sim. Mas ele foi na minha casa, minha mãe nem me deixou recebê-lo.
P/1 – E assim acabou? Ou você ficou escondido, namorando?
R – Namorei escondido por um tempo, mas ele não queria namorar escondido. Ele queria namorar para todo mundo saber.
P/1 – E foi assim que acabou?
R – E assim acabou.
P/1 – Sofreu muito?
R – Se eu sofri? Nem sei. Acho que não. Não, acho que não sofri, não.
P/1 – Vamos contar agora: você chegou nessa casa com esse marido e aí, como é que foi a vida, o que aconteceu?
R – Uai, foi normal, ué! Fui viver com ele, aí a gente cuidou de arrumar os papéis do casamento e casou. Ele era mais velho, não podia mais casar em comunhão de bens do que ele tinha, aí nós casamos com regime de separação parcial de bens. A partir daquele dia, as coisas que ele comprou, aí eu tinha direito. Aí, quando ele morreu, eu mandei fazer o inventário e a parte que me tocava, que ele comprou umas partes de terras depois que nós casamos, a parte de terra que ele comprou... Mas eu já sabia antes que eu ia casar com separação de bens.
P/1 – Mas ele tinha sido casado antes?
R – Hein?
P/1 – Ele era viúvo?
R – Ele era solteirão. Aí, depois, quando ele morreu, que eu mandei inventariar as terras, a parte que me tocava eu já mandei colocar no nome das meninas. Só reservei a casa.
P/1 – E a parte que não te tocava ficou para quem?
R – Para as meninas. Eu tinha as filhas. Tenho as filhas, que eram filhas dele.
P/1 – Então me conta o nascimento das suas filhas, Isabel. Como é que foi?
R – Quando eu engravidava, que chegava a época de ganhar, eu ia lá para a cidade, para a maternidade.
P/1- Você teve quantas?
R – Com ele eu tive cinco: quatro meninas e um menino. Só uma que eu não fui, não deu tempo de eu ir, aí eu ganhei ela em casa.
P/1 – E você ficou trabalhando em casa, então?
R – Eu era dona de casa, não é? Só trabalhava em casa. Fazia comida, arrumava a casa, tratava de galinha, tratava de porco, apanhava café, só serviço de casa.
P/1 – E criança.
R – E criança, eu cuidava de criança.
P/1 – O que você achava isso bom ou você foi ficando de saco cheio disso?
R – Não deu tempo, não é? (risos) Uma que não deu tempo. Ele morreu, não deu tempo de eu perder a paciência, não. Até que eu não reclamo, não, sabe? Eu não arrependi. Se eu, hoje, voltasse àquele tempo, acho que casava com ele de novo. Ainda mais se eu voltasse àquela vida sofrida que eu tinha! Casava, investia no velho de novo.
P/1 – Me conta assim: quando foi que ele morreu? Você lembra do dia em que ele morreu?
R – Lembro.
P/1 – Conta para mim como é que foi essa história.
R – Ele morreu... Eu tinha saído. Assim que eu saí, ele caiu e morreu. Eu tinha ido à casa da minha mãe. Quando eu voltei, cheguei, ele estava morto. Essa menina aí: “Mãe, meu pai está caído no chão”. Caído no chão, êê, aí cheguei lá, estava morto. As outras estavam lá brincando com ele.
P/1 – As crianças?
R – Estavam lá em roda dele, brincando, passavam, pegavam a mão no rosto dele, assim: “Levanta, Mané. Levanta” – meu marido chamava Mané - pai, não vai levantar, não?” Outra montada nas pernas dele, fazendo de cavalo. Eu falei: “Menina, ele está morto, não faz isso, não”.
P/1 – Falou assim?
R – Aí eu voltei e fui chamar o meu pessoal, os meus parentes na rua, morava muita gente, aí voltei lá no arraial. O pessoal ainda mora na casa cheia de gente. Aí o sobrinho dele foi à cidade comprar a urna, dar baixa. Aí o enterrou no outro dia, lá no Mogol. Minha mãe não quis deixar eu morar lá, só com as minhas crianças, porque lá era meio deserto, onde ficava, e minhas crianças eram todas pequenas. Aí, tanto fez até me levar lá para a casa dela.
P/1 – Onde ela morava, nesse momento?
R – Lá atrás do morro, lá na tal tapera.
P/1 – Ela tinha ficado lá. Você voltou para sua casa de infância?
R – Voltei para a minha casa de novo. Aí, sim, aí foi horrível. Aí foi difícil.
P/1 – O que aconteceu?
R – Com cinco crianças pequenas, morar com pai e mãe, e os irmãos! Aí, minhas crianças não sabiam se tinham que me obedecer, se era meu pai, se era minha mãe, ou se eram os tios. Aí, foi complicado. Para mim, aquelas crianças todas pequenas, foi difícil para eles. Aí eu peguei, comecei a namorar e aí, quando eu comecei a namorar, aí que o bicho pegou! Nossa Senhora! Aí a minha mãe ficou brava: “Mulher viúva não namora”. “Que não namora o quê? Eu estou nova, com 25 anos. Agora que eu vou viver a minha vida, que não vivi quando era mais nova”.
P/1 – E aí vocês brigaram muito por isso?
R – Não, a gente não brigava. Só escondia, eles iam fazer o quê comigo? Eles não iam me bater, mas aí eu respondia, não é? “Não, vou namorar, sim. Vou namorar. Viver o que eu não vivi quando era nova”.
P/1 – E você namorava quem?
R – O único namorado, quando eu fiquei viúva, que eu arrumei, foi o Bené. Namorei mais ninguém, não.
P/1 – Você já foi direto ficar com o Bené?
R – Fui direto ficar com ele, pintou na área.
P/1 – Muito tempo depois ou logo, já em seguida?
R – Não. Aí eu demorei o quê? Uns oito meses depois comecei a namorar. Aí eles acharam que estava muito recente, que eu não podia namorar. Eu não podia o quê! Falava: “Não vai”. Aí, quando alguém falava alguma coisa comigo: “Eu não matei. Meu marido morreu, mas não foi eu quem matou. Eu não nasci sozinha, vou ficar sozinha? Vou, não”.
P/1 – E as crianças?
R – Até que as crianças se deram bem com o Bené. Ele não os maltratou, não.
P/1 – Então você me conta: aí você casou com ele e foi para...
R – Daí, eu e o Benevides fomos morar juntos lá no Palmonão. Aí eu levei. Dessa vez foi eu quem levou o Bené para morar comigo. (risos)
P/1 – Naquela casa?
R – Lá naquela casa.
P/1 – E o povo, dizia o quê?
R – Ah, o povo falava um monte de coisa, mas eu não estava nem aí para o que aquele povo falava, não.
P/1 – Falava o quê de você?
R – Ah, falava que eu era viúva, cheia de filho, que o Bené era um bobo de apanhar mulher viúva. Era mulher viúva, mas eu era uma pessoa, não é? Ele gostou de mim.
P/1 – E do Bené você gostava? Como é que era?
R – Eu gostava. Eu gostava do Bené.
P/1 – Apaixonada, assim?
R – Gostava e gosto. Porque ainda estou junto até hoje, é porque gosto. Não deu tempo de apaixonar por outra pessoa.
P/1 – Depois você começou a trabalhar, você falou para mim. Como é que foi que você decidiu trabalhar? O que aconteceu?
R – Aí, quando surgiu uma vaga aqui na escola... Porque tinha uma serviçal que trabalhava lá e ela mudou para a cidade. Assim que eu fiquei sabendo que ela ia embora, fui lá e conversei com a inspetora - a inspetora era conhecida minha - falei: “A fulana vai para Lima Duarte e eu quero que a senhora me dê uma força, me dê apoio para eu trabalhar no lugar dela”. Ela falou assim: “Então, você tem que se inscrever, tem que fazer uma inscrição”. Aí, naquele dia mesmo eu fiz, porque estava na época de fazer. Quando a outra foi, ela me chamou e aí, eu comecei a trabalhar. Benevides achou ruim quando eu comecei a trabalhar, ele não queria de jeito nenhum. Porque eu tinha a pensão de viúva. Tenho até hoje a pensão do outro marido. Mas a pensão é um salário-mínimo, tem que fazer mais alguma coisa.
P/1 – Mas o Bené não lhe dava dinheiro, nada? Como é que é a história de dinheiro, assim, quando a gente casa? Junta tudo?
R – Ele não me dava dinheiro na minha mão, mas ele ajudava em casa. Comprava, assim, por exemplo, as coisas que era de colher na roça; tudo era colhido lá por intermédio dele, não é? Porque ele plantava.
P1 – Mas e as suas crianças, por exemplo? Você precisava de dinheiro para comprar...
R – Eu tinha o meu dinheiro, eu comprava. Nunca precisei do dinheiro do Bené para comprar nada, não. Eu sempre me virei. Só pedia dinheiro a ele se fosse de última hora, mesmo, uma coisa que não tinha jeito. Mas eu nunca fui de pedir dinheiro a ele, não. E nem eu nunca quis, sabe? Não sei se era porque ele era miserável, nem sou eu, é porque eu nunca quis, eu sou pobre soberba, sabe? Eu gosto de ter o meu dinheiro.
P/1 – Mas é que o Bené chegou a ter bastante dinheiro, não é? Pelo que eu soube.
R – Ah, ele trabalhava, era boiadeiro, negociava muito, ganhava o dinheirinho dele.
P/1 – E aí, qual o luxo que ele te ofereceu? Alguma coisa boa, um presente...
R – Se ele me ofereceu?
P/1 – É. Mudou alguma coisa na sua vida, quando ele começou a ter mais dinheiro, assim?
R – Ah, mudou. Porque aí, quando ele começou a ter mais dinheiro, ele logo comprou uma casa lá em Lima Duarte. Depois ele vendeu lá e aí comprou as partes das minhas filhas, pagou direitinho. As terras lá no Palmonão eram das minhas filhas, ele comprou, pagou. Aí depois ele comprou lá em Lima Duarte.
P/1 – Isabel, então, em todo esse tempo que você ficou aqui, trabalhou, o que mudou aqui nessa vida de Mogol, de Lima Duarte, até a chegada do Renato, que fez parte? Me conta um pouco o que mudou aqui.
R – Eu acho que a vinda do Renato para cá mudou para muita gente, porque deu serviço para muita gente. Quando nós morávamos lá no Palmonão, lá em cima, eu era doida para mudar de lá. Tinha vontade de mudar de lá, mas não é que lá fosse ruim, é que lá era de difícil acesso. Para a gente sair - eu, minhas meninas - a gente saía de Lima Duarte, vinha cansada, quando olhava lá para cima, pensava: “Ô, tristeza”. Até chegar lá naquela distância...
P/1 – Tinha que fazer a pé?
R – Depois de estar lá, lá era bom. Eu gostava de lá. Mas eu não me arrependi nem um pouquinho, até agora, de ter deixado o Benevides vender lá. Eu que quis vender. Antes do Benevides comprar, eu era doida para vender. Cheguei a ir até atrás do pessoal do parque para ver se eu conseguia vender lá. Meus filhos eram ‘de menor’, eu podia assinar por eles. Tinha vontade de vender lá e comprar em outro lugar.
P/1 – Você queria ir para onde?
R – Eu queria sair de lá, por causa da distância que lá era, por lá ser um lugar deserto, de difícil acesso. Não é que lá era ruim, mas quando a gente precisava sair, era uma tortura. Era difícil. Mas lá era bom. Lá é bom até hoje, mas se me der para morar lá também, não quero, não. A não ser que me dê um carro para eu sair a hora que quiser. Mas eu não quero morar lá, não. Não quero. Não tenho arrependimento nenhum de ter vendido lá. Só que assim... Morar na cidade também não é o meu perfil. Eu gosto da cidade, sim, para eu ir lá, fazer o que eu tenho que fazer, ir lá para passear, ir para uma festa e voltar. Eu gosto da vida de roça. Só que lá no Palmonão eu achava muito difícil. Não tinha estrada, não tinha luz.
P/1 – Ele vendeu para o Renato. Mais gente vendeu coisas para o Renato? Como é que foi essa chegada, assim, do Renato, mudando a cidade?
R – Ah, ele foi comprando de outras pessoas por perto, não é? Aí eu falei: “Vai chegar a vez de nós sair daqui também. Vai chegar nossa vez”. Aí, quando chegou a oportunidade de nós vendermos para ele, nós vendemos. Eu não tenho remorso nenhum. Tenho aqui, meu lugar aqui. Se um dia eu achar um outro lugar, uma outra roça para nós comprarmos, eu vendo aqui também, deixo vender aqui. Eu não sou apegada às coisas materiais. Não adianta ser apegada, a gente vai morrer e vai ficar tudo por aí, mesmo. Gosto aqui do Mogol, eu gosto, mas parece que quando eu tinha minha mãe, eu tinha mais entusiasmo, porque ela gostava muito. Eu tinha mais entusiasmo de morar aqui. Eu tinha onde ir. Minha mãe, quando morava lá no arraial, nada me segurava. Nem essa chuva, nem a noite, nada. Eu ia. Nem sol quente. Todo dia eu ia. Só se eu não estivesse aqui. Se eu estivesse lá para Lima Duarte não tinha como, mas se eu estivesse aqui, eu ia lá. Todo dia. Era muito difícil eu ficar um dia sem ir lá. Era mais fácil eu ir duas vezes ao dia do que ficar sem ir.
P/1 – E aí a sua mãe morreu quando?
R – A minha mãe morreu em 2012. Faz sete anos.
P/1 – E isso mudou sua vida?
R – Mudou porque... Mudou assim: eu, agora, não tenho muito apego de ir lá no arraial. Ainda defendo. Claro, se for preciso defender o arraial, a rua, a igreja, ainda defendo, mas não tem mais aquele apego que eu tinha.
P/1 – Isabel, eu ouvi dizer que você era uma pessoa importante aqui na região, uma líder. Me conta como foi isso. Que o pessoal seguia suas opiniões, que você falava pelas pessoas. É verdade isso?
R – Às vezes. Até hoje, às vezes eu vejo que tem uma coisa que há possibilidade de eu dar uma opinião e aquilo servir, e às vezes as pessoas escutam, alguns.
P/1 – A maior parte das pessoas te seguem?
R – Alguns seguem.
P/1 - Me explica melhor isso, vai!
R – Ah, mas às vezes não, não é? Às vezes, na época de festa, eu ajudo nas festas aqui, quando tem festa de igreja, a festa do padroeiro, eu ajudo na organização. Um tempo eu já coordenei o patrimônio da igreja, mas depois não deu para mim porque eu tinha que ficar lá para a cidade, ir para lá trabalhar, aí passei para outras pessoas. Mas aquilo que está ao meu alcance, eu ajudo.
P/1 – Agora essa parte... Assim... A parte boa do Renato, que todo mundo vendeu e qual foi a parte, assim, que não deu certo? Também ouvi dizer que muita coisa não foi boa. O que é? Muita gente já me disse isso. O que mudou da parte não boa, na sua opinião?
R – Eu não tenho nada contra nada. Porque foi bom, porque tirou muita gente da miséria. Deu serviço para muita gente. Tinha gente que tinha terra e não tinha condições de movimentar nela. Às vezes, as pessoas ficam vendo assim umas picuinhas tão bobas que o pessoal coloca.
P/1 – Tipo o quê? Eu só estou querendo entender.
R – O que eu acho que não é legal, às vezes... O Renato, se ver que eu estou falando, vai assim, ficar magoado comigo. Eu não gosto de magoar ninguém.
P/1 – Não vai ver, não. Não vou mostrar para ele, não.
R – Aquelas plantações de árvores perto da igreja, eu acho aquilo errado, mas eu não moro lá. O que eu vou fazer?
P/1 – Você acha errado plantar aquele jardim?
R – Eu gosto do jardim de flor, plantar flor lá na rua está certo. Eu acho bacana, acho legal, mas eu não acho justo plantar árvore, que fica lá a 50 metros de altura ou até mais, perto da rede elétrica, perto da igreja, porque a raiz vai ofender a parede. Dá um vento, pode causar algum dano no dia de amanhã, mas plantar as árvores lá mais para cima, mais retirado ou cá para baixo, dentro do patrimônio, que não seja lá perto da igreja, não acho que está errado, não.
P/1 – Foi isso a coisa que mais lhe incomodou? Isso foi a coisa que você achou mais...
R – Isso aí me incomodou. Aquelas plantas de árvores perto da igreja, aquilo me incomodou. Mas nem falei nada. Me incomoda, mas eu não falei nada. Estou falando hoje.
P/1 - E aquele restaurante lá? Essa parte não te incomoda?
R – Não. Aquilo não me incomodou nada. Nada, nada.
P/1 – E o fato dos moradores irem embora e a comunidade ficar, assim, com menos gente daqui mesmo?
R – As pessoas, antes do Renato, muita gente já estava indo embora. Antes do Renato, muita gente estava cansada da vida sofrida. Escola fechou, fez com que muita gente perdesse o entusiasmo de morar aqui, porque tinha que colocar os filhos em carro aí de madrugada para ir para a escola. Antes do Renato, o pessoal já estava saindo daqui. O Renato comprou casa em que não morava ninguém.
P/1 – Entendi.
R – Ele não comprou só a casa que a pessoa vendeu e foi embora. Ele comprou casa que não tinha morador. A primeira casa que foi vendida para o Renato aqui foi por intermédio meu.
P/1 – Ah, foi?
R – Aquela casa lá, que tem lá perto do Zé Dica - não sei se é lá que chama Flora - era da minha irmã. Minha irmã morreu, aí o marido dela, na partilha, deu lá para um filho dele, meu sobrinho, e eles ofereceram para nós. Nós não compramos. Nós não tínhamos o dinheiro para comprar. Nós queríamos comprar, mas querer é uma coisa e ter o dinheiro para comprar é outra. O que adiantava nós querer? Nós não tínhamos o dinheiro. Aí, um dia, por acaso, eu falei com o Nílton - o Nílton era corretor, trabalhava para o Renato - e eu falei com ele: “Ô, Nílton, você não quer comprar a casa tal, não?” Aí ele interessou, encaminhou e comprou. E aí foi assim por diante, as outras, ele foi comprando mais. Não tenho nada contra ele ter comprado as casas aí, não. Agora, eu tenho, assim, coisas que não são agradáveis, mas eu não moro lá, eu não posso ficar falando. É só aquelas árvores que eu achei que não devia ter plantado, mas nunca falei nada com eles. Aquelas árvores grandes que plantou lá atrás da igreja. Plantasse, enchesse lá de flor, ia ficar chique, eu ia gostar, mas as árvores grandes eu sou contra. Isso aí, um dia da reunião, se tiver oportunidade, eu vou falar com a Cláudia ou o Marinho, sei lá com quem eu tenho que falar. E eles quererem comprar o terreno da igreja, eu acho que também não é justo, não. Comprar lá as casas paroquiais, comprar o terreno da igreja, eu acho que não está correto, não, mas não posso falar nada, eu não moro lá, não é meu também.
P/1 – Ah, mas eles querem comprar da igreja, porque aquilo é da igreja.
R – É da igreja, mas a Cláudia estava vendo uma proposta lá com o padre e o padre veio e fez uma reunião com a gente. Falar para fazerem as propostas deles, que eles queriam comprar as casas paroquiais e o terreno, mas o terreno da igreja foi doado para a igreja, para as pessoas que não tivessem onde morar naquele tempo, não é? Há cem anos. Eu não era nascida, mas é a história que eu conheço, por intermédio dos mais antigos, que era assim: a terra era de um senhor, Francisco Marcolino, doou o terreno para fazer a igreja. E aí, um tal de Zé Capanga, que até era avô do Benevides, ele e mais outros - tinha o meu bisavô, tinha meu avô e outros - reuniram-se e fizeram a igreja. E o terreno era para construção, para pessoas que não tivessem onde fazer casa. Aí construíram o terreno da igreja.
P/1 – Acho que foi o Heleno quem me falou que ele construiu no terreno da igreja. Foi isso.
R – O Heleno construiu dentro da igreja, o padre autorizou. Aí, as pessoas que venderam, há uns anos, era assim: se a pessoa tinha casa ali, se essa casa caiu, a pessoa não construísse outra, a pessoa perderia o direito. Até dois anos a pessoa tinha que construir outra. Se não construísse, a partir de dois anos outra pessoa podia ir lá e construir. Essa era a ordem. E assim foi adiante. Muitas pessoas foram morrendo, foram ficando os herdeiros, outros construíram mais e foi assim acabando. As pessoas foram mudando, começaram a vender e o que a gente vai fazer? As pessoas venderam porque acharam o Renato para comprar. Tinha mais era que vender, mesmo. Porque aí, eles compraram noutro lugar para eles.
P/1 – Isabel, qual é o seu sonho ainda? O que você quer que aconteça na sua vida?
R – Que aconteça na minha vida? Eu não tenho mais nada para sonhar, não.
P/1 – Não, mas todo mundo tem um sonho. Para fechar, qual é? Não precisa ser real. O que você gostaria que te acontecesse?
R – Que acontecesse? No Mogol?
P/1 – Na sua vida.
R – Na minha vida? Sei lá. Eu quero ter saúde, andar, passear, trabalhar, ajudar meus filhos naquilo que eles precisarem, ajudar quem precisar, o que estiver ao meu alcance. Se uma pessoa precisar de um favor meu e estiver ao meu alcance. Isso é o que eu penso da minha vida. Ser uma pessoa assim. De ter poder de ajudar quem precisar de mim.
P/1 – É isso que você quer para você, para sua existência?
R – É, eu quero ser uma pessoa que eu possa fazer alguma coisa boa para aqueles que precisarem de mim. Quero ter saúde e paz, alegria, amizade com as pessoas.
P/2 – Isabel, você fazia... Você ninava as suas filhas?
R – Eu? Se eu ninava as minhas filhas? Às vezes.
P/2 – Quando bebezinho.
R – Quando bebezinho, eu as ninava. Mas quando foi crescendo, eu passei a fazer como minha mãe: punha para trabalhar.
P/2 – Como você as ninava?
R – Ah, como qualquer uma mãe nina os filhos.
P/2 – Cantando?
R – Cantando.
P/2 – Deixa eu ver qual é a sua cantiga de ninar? Quero ver se eu conheço.
R – Não, eu não vou cantar para ninguém agora, para vocês verem, não. Vocês vão rir de mim.
P/2 – Então eu vou pedir: não cante, nine para mim.
R – Ninar? Para fazer dormir? (risos) Maria Helena, me ajuda aí. Para fazer dormir...
P/2 – Fecha os olhos.
R - Deitada na cama com elas, começava a cantar, e eu dormia primeiro que elas. (risos) Ai, ai. Mas eu não vou ninar ninguém, não. Já não tenho mais dom para isso, não.
P/2 – Por favor, feche os olhos e então vá lá para aquela época. Quero ver se eu conheço essa canção. É importante para mim.
R – (pausa) Ahhhhh, já esqueci. (pausa) Não lembrei mais, não. Já caduquei, já.
P/1 – Nem uma só? A ciranda.
R – Hein?
P/1 – A ciranda. Você lembra, Maria Helena, a música que ela cantava?
R – Para vocês dormirem.
R/2 – Eu lembro quando ela cantava para o meu irmão mais novo. Para mim não lembro, não.
P/2 – Como ela cantava para o seu irmão mais novo?
R – “Dorme, nenê, (risos) que o bicho vem, ele te carrega e dá para mais alguém...”
R/2 – É isso aí. Lembrei. Ela cantava isso. Para o meu irmão eu lembro, mas para mim...
R – Para ti também eu cantava, mas tu não vais lembrar, porque coisa que tu passastes quando era nenê, tu não vais lembrar.
P/2 – Era só esse versinho? Não tinha mais?
R – Tinha mais, mas aí é o que eu lembrei agora.
P/1 – E a do boi que você cantava?
R – “Boi da cara preta, pega essa criança que tem medo de careta”. Acho que é isso.
P/2 – Cantavam essa para mim.
R – Hein?
P/2 – A minha babá cantava essa para mim.
R – Cantava para você?
P/2 – Cantava.
R – Ahhhhhh.
P/2 - Mais uma.
R – Se eu lembrar mais uma? Agora chega, não precisa lembrar mais, não.
P/2 – Agora, já que já liberou, você está mais confortável e tudo, uma roda, para a gente encerrar.
R – Uma roda?
P/2 – É.
R – Vou fazer uma roda sozinha?
P/1 – Só cantar.
P/2 – Uma cantiga de roda.
R – Ah, tá! Uma cantiga de roda. Ah, tinha aquela cantiga que nós cantávamos: “Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar, vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar”.
P/1 – “O amor que tu me destes...”
R – “O amor que tu me destes era pouco e acabou...” Fugiu o resto. Esqueci o resto.
R/2 – Eu lembro dessa também.
R – É. Nossa, mas a gente cantava, sim. Mas só que tem tanto tempo, que a gente esquece. Ah, que você estava me perguntando da minha vida, o que eu sonho, em si. Então... Daqui para frente, o que eu penso, é isso aí: fazer o bem, sem olhar a quem.
P/1 – Isso é o que você pensa, mesmo?
R – E quero, se Deus quiser! Que Deus há de me ajudar para eu ter saúde e ajudar quem precisar de mim. Quero ter um coração grande e forte para eu amar a todos, servir a todos, sofrer por todos.
P/1 – E você, olhando a sua vida daqui para trás, como você acha que foi? O que você mudaria nela?
R – Sabe que eu não sei? Acho que eu não tenho nada para mudar. Eu não tenho arrependimento de nada do que eu já fiz, acho que se eu arrependi de alguma coisa, só se for do que eu não fiz, mas do que eu já fiz...
P/1 – Você se arrepende de coisa que você deixou de fazer?
R – Às vezes, a gente se arrepende daquilo que a gente não faz, mas daquilo que a gente faz, a gente não se arrepende, não. Não tenho nada a reclamar da minha vida, não. Graças a Deus, eu tenho saúde. Os meus filhos, todo mundo tem saúde. Eu tenho mais é que agradecer. Tenho muito que agradecer a Deus. Muito que agradecer. E a respeito do Renato vir para o Mogol, foi bom o Renato ter aparecido aí, ajudou muita gente, tirou muita gente da pobreza.
P/2 – Posso fazer uma pergunta para você?
R – Pode.
P2 – Você, quando era criança, você de criança passou a ser uma moça, teve alguma orientação da sua mãe, de alguém? Ou para você foi um susto? Como é que foi?
R – Que nada! Não, eu tive orientações, sim, das minhas irmãs mais velhas. Eu tive orientações das minhas irmãs, as que eram mais velhas que eu, me orientavam.
P/2 – Mas você teve algum... Que sentimento você teve, algum medo?
R – Não, não tive medo nenhum, não.
P/2 – E o que é ser mulher aqui nessa região?
R – Ser mulher. Ser mulher é ser mulher. Ué!
P/1 – É melhor ser homem ou ser mulher?
R – Se for para eu nascer mulher de novo, eu quero nascer novamente mulher. Ai, a vida do homem também é bem sofrida. Ainda mais que hoje em dia não está tendo muita separação. A mulher tem poder de fazer muitas coisas que o homem faz. A gente vê. Tem mulher na política, no volante, trabalhando até no posto de gasolina. Ihhh, as mulheres, hoje, fazem tudo. O homem que devia pensar: se você for mulher, você vai querer? Inácio o teu nome, né? Inácio, e você? Se você for nascer mais uma vez, você quer nascer homem ou mulher?
P/2 – Homem.
R – Então!
P/2 – Eu posso até nascer mulher, mas como eu conheço a vida de homem, então eu prefiro nascer homem.
R – Então, como eu conheço a vida de mulher, eu prefiro nascer mulher. Eu não me arrependi nunca de ser mulher na minha vida. Graças a Deus. E defendo a mulherada. Defendo as mulheres. Olha, sou mulher, tenho quatro filhas mulheres, sou filha de uma mulher, então eu não vou defender as mulheres? Mas não estou discriminando os homens, não estou jogando, atirando pedras nos homens, não. As mulheres também precisam dos homens.
P/2 – O que a mulher tem que os homens não têm, para ter esse poder todo?
R – Os homens não podem parir, as mulheres podem. (risos) Homem, se for parir, morre na primeira dor. O que eu sei é isso.
P/2 – Você acha que mulher suporta mais a dor do que o homem?
R – A mulher suporta. Se fosse o caso de um homem ganhar um filho, ele morreria na primeira dor. Às vezes, a dor vem lá no homem, está ameaçando, o homem já está gemendo. (risos)
P/1 – Estou contigo e não abro, Isabel. Agora, a última coisa assim, mesmo sendo essa coisa da mulher, tinha muito caso do homem bater na mulher, sabe?
R – Eu já vi contar muito. Mas eu, graças a Deus, nunca tomei um tapa. Homem nunca me bateu. Graças a Deus. Mas também, se me bater, vai me bater uma vez só. Eu sumia no mundo, Deus que me perdoe. Esperar mais coro? Você acha que se marido meu me batesse eu ia esperar ele me bater mais uma vez? Na primeira vez que ele me batesse, eu me mandava.
P/1 – O seu pai não batia na sua mãe?
R – Não. Graças a Deus.
P/1 – Nenhum marido bateu em uma irmã sua?
R – Eu tenho uma irmã que apanhava do marido. Mas também ela provocava, ela implicava muito com ele. Tenho, não é? Ela ainda é viva. Ela está lá no albergue. Aquela lá apanhava do marido.
P/1 – Mas ela nunca separou?
R – Nunca separou. E gostava de apanhar. Porque eu, se apanhasse do marido, eu ia esperar mais coro? É ruim. Ia me bater uma vez só, eu ia embora. Eu dei essa sorte: casei com um homem velho, mas ele nunca me bateu, não. Porque já pensou se eu fosse casar com um homem novo, só porque é novo, bonitão, e ele fosse me bater!? Isso aí eu sou muito revoltada com isso.
P/1 – Você não se arrependeu de ter casado com homem mais velho?
R – Não. Não arrependi. Se voltar de novo, eu caso de novo. (risos) Se ele morrer, eu passo o enterro...
P/1 – Foi.
P/2 - Vamos terminar?
R – Vamos.
P/2 – Tem uma perguntinha antes de terminar, mesmo: você gostaria de falar mais alguma coisa?
R – Não. Acho que não.
P/2 – Tem algo na sua vida, no seu passado, que nós não perguntamos e lhe veio à lembrança no decorrer da entrevista, que você gostaria de falar?
R – Deixa eu ver se tem... (pausa) ah, acho que não. Assim... Se eu gosto do que faço, acho que já perguntou...
P/2 – Então, seu nome completo de novo?
R – Meu nome completo é Augusta Isabel de Oliveira.
P/2 – Muito obrigado!
P/2 – Obrigada! E a gente vai, depois, dar um jeito da cópia chegar para você também.
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