Identificação Meu nome é Roque Alberto Malatesta, eu nasci no dia 29 de outubro de 1911 aqui em São Paulo, na Avenida São João, que naquele tempo era Rua São João. Pai charmoso e boêmio Meu pai, Mauro Malatesta, veio de Ravello, no sul da Itália, perto da Calábria. Ele veio para o Brasil porque tinha um irmão, que tem o mesmo nome que eu, só que em italiano é Rocco, que estava muito bem aqui, era mais ou menos sócio da fábrica de Calçados Scatamaquia. Então ele chamou meu pai, que não veio como imigrante, veio com ofício. Ele tinha ofício de barbeiro e abriu um salão de barbeiro na Rua São João, perto da Rua Vitória. Minha mãe veio bem moça com os pais como imigrante, como mostra naquela novela, Terra Nostra, parece que eu estou vendo tudo de novo. Ela foi trabalhar naquela fazenda de café dos Vergueiros, em Espírito Santo do Pinhal. Meu pai começou a viajar pela fábrica de Calçados Scatamaquia, como viajante, e em Pinhal conheceu minha mãe. Meu pai não era um homem bonito, mas era meio charmoso, era boêmio, viajava... E minha mãe ficou apaixonada, louca por ele. Então, contra a vontade da família da minha mãe, eles se casaram. Meus avós não queriam que minha mãe casasse, ela tinha 17 anos, e eles nunca apreciaram meu pai, porque ele ia jogar baralho com a colônia italiana e vinha meio tocado. Ela, com uma santa paciência, tirava a roupa e punha ele na cama. Ele era zeloso pela família, mas era nervoso, muito bravo, como todo italiano do sul da Itália. Casa em São Paulo Meus pais vieram morar no cento de São Paulo, na Rua São João, que naquele tempo era uma rua pequenininha, estreita. Eram umas casinhas pequenas, e tinha o prédio da Light. Ao lado tinha uma confeitaria muito famosa chamada Brasserie Fasano. Lá passavam dois bondes que iam até o Parque Antártica, na Praça Antonio Prado, onde era o campo de futebol do Palestra Itália, hoje Palmeiras, que continua lá mesmo.e dava a volta onde está o...
Continuar leituraIdentificação Meu nome é Roque Alberto Malatesta, eu nasci no dia 29 de outubro de 1911 aqui em São Paulo, na Avenida São João, que naquele tempo era Rua São João. Pai charmoso e boêmio Meu pai, Mauro Malatesta, veio de Ravello, no sul da Itália, perto da Calábria. Ele veio para o Brasil porque tinha um irmão, que tem o mesmo nome que eu, só que em italiano é Rocco, que estava muito bem aqui, era mais ou menos sócio da fábrica de Calçados Scatamaquia. Então ele chamou meu pai, que não veio como imigrante, veio com ofício. Ele tinha ofício de barbeiro e abriu um salão de barbeiro na Rua São João, perto da Rua Vitória. Minha mãe veio bem moça com os pais como imigrante, como mostra naquela novela, Terra Nostra, parece que eu estou vendo tudo de novo. Ela foi trabalhar naquela fazenda de café dos Vergueiros, em Espírito Santo do Pinhal. Meu pai começou a viajar pela fábrica de Calçados Scatamaquia, como viajante, e em Pinhal conheceu minha mãe. Meu pai não era um homem bonito, mas era meio charmoso, era boêmio, viajava... E minha mãe ficou apaixonada, louca por ele. Então, contra a vontade da família da minha mãe, eles se casaram. Meus avós não queriam que minha mãe casasse, ela tinha 17 anos, e eles nunca apreciaram meu pai, porque ele ia jogar baralho com a colônia italiana e vinha meio tocado. Ela, com uma santa paciência, tirava a roupa e punha ele na cama. Ele era zeloso pela família, mas era nervoso, muito bravo, como todo italiano do sul da Itália. Casa em São Paulo Meus pais vieram morar no cento de São Paulo, na Rua São João, que naquele tempo era uma rua pequenininha, estreita. Eram umas casinhas pequenas, e tinha o prédio da Light. Ao lado tinha uma confeitaria muito famosa chamada Brasserie Fasano. Lá passavam dois bondes que iam até o Parque Antártica, na Praça Antonio Prado, onde era o campo de futebol do Palestra Itália, hoje Palmeiras, que continua lá mesmo.e dava a volta onde está o Banco do Estado. Minha avó materna morava no número 277 da Rua São João, e nós morávamos no189 A morte da mãe durante a Gripe Espanhola Sempre vi minha mãe grávida, esperando criança, eu nasci em 1911 e ela morreu em 1918 com 37 anos, depois de ter 12 filhos, não é brincadeira. Foi no tempo da gripe espanhola, uma coisa horrível. Não havia esses antibióticos, essas coisas todas, porque se tivesse, minha mãe não teria morrido. Nós íamos na farmácia e nos enchiam uma garrafa com limonada purgativa. Minha mãe estava grávida de seis meses da última filha, a Margarida, que morreu logo, ela estava de dieta. Nessa época meu pai viajava com a Scatamaquia e minha mãe ficou doente, pegou a gripe. Nós morávamos na Rua São João, numa vila chamada Maria Flora. Nessa vila tinha 15 casas de cada lado, e em todas elas tinha um caixão de morto com vela. Eu era criança naquele tempo, mas me lembro perfeitamente bem que à noite vinha um carro da Prefeitura, um carroção com cavalos, pegava os cadáveres e punha num caixão. Numa dessas ocasiões não puseram o braço de um morto e o braço veio balançando o tempo todo. Foi uma coisa horrível. Morreu muita gente na vila. Minha mãe morreu pedindo pelo amor de Deus que os médicos a curassem porque tinha muitos filhos pra criar. Só eu e dois irmãos não ficamos doentes. Fomos à sede do Palestra Itália, na Praça da República, embaixo do Cinema República e ficamos lá. Minha mãe teve a Margarida em agosto e, em novembro, morreu. Então meus avós contrataram uma ama e a menina ia muito bem. Mas depois eles resolveram colocá-la numa creche, na Creche Baronesa de Limeira, que ficava na Rua Paraíso. Acho que a menina foi muito maltratada lá e acabou morrendo. Nessa época, outra irmã morreu. Conclusão: nós ficamos em 10 filhos. Dedo macetado Meu pai ficou viúvo muito tempo. A minha irmã, que já está morta, tinha 17 anos e ficou tomando conta da família toda. Ela cozinhava, fazia tudo. Naquele tempo não havia fogão a gás, não havia nada. Os fogareiros eram feitos numa lata de gasolina com quatro tijolos e barras de ferro. Toda semana nós comprávamos um saco de carvão para acender o fogo. Não tinha vantagem, nem conforto. Era uma coisa medonha, primitiva. E nos criamos nesse ambiente. Eu não tive muita infância, porque tive que trabalhar logo. Freqüentava o Grupo Escolar de São João, que ficava na esquina da Rua Duque de Caxias com a Rua São João, perto de onde é hoje o cinema. Lá, onde é o cinema, era um cortiço que só morava a italianada. Então eu, com nove anos, ia à escola de manhã e trabalhava de tarde na fábrica de calçados Scatamaquia. Para alcançar a máquina, punha um caixãozinho. E numa dessas vezes macetei o dedo (risos). Um dos sócios da fábrica ficou bravo comigo. Eu ia fazer curativo no Hospital Humberto Primo e fiquei com o dedo defeituoso. Lembrança de lá. Eu logo saí da fábrica. Procurava sempre algo melhor e nunca achava o que queria. Então pulava de emprego em emprego. Trabalhei em uma das lojas da fábrica de camas, Cama Patente, que ficava na Praça José Roberto, no Bom Retiro. Era pequenininho e tinha que entregar cama, punha no ombro e carregava. Naquele tempo não tinha condução. Alarme falso na Revolução de 24 Lembro da Revolução de 24, do Isidoro Dias Lopes, que ameaçou bombardear São Paulo. Nós morávamos na Rua São João, e a casa em cima tinha um porão. Como meu pai não tinha condições de ir para o interior, onde todos meus parentes foram, ele nos abrigou naquele porão. Quase todo mundo saiu de São Paulo porque diziam que a cidade ia ser bombardeada pelos “vermelhinhos”, que era como chamavam os aviões do Isidoro Dias Lopes. Nessa época eu tinha uma tia que morava no Bixiga, na Rua Santo Antônio. Tanto ela amolou meu pai que nós fomos morar na Rua Santo Antônio, número 189, numa casa que ele alugou, nós já estávamos um pouquinho melhor de vida. Mas no fim não houve bombardeio coisa nenhuma. Uma nova casa A casa tinha um porão embaixo, uma cozinha e, em cima, tinha três quartos: em um dormiam as meninas e no outro dormiam os meninos, meu pai sempre viajou. Éramos em sete mulheres e quatro homens. Depois ficaram seis mulheres, porque morreram duas irmãs, a Iolanda e a Margarida. A Rua Santo Antônio era a única rua ali embaixo. Onde hoje é a Avenida Nove de Julho só tinha mato, e pra ir à Rua Augusta, nós precisávamos atravessar todo o mato. Onde hoje fica uma escadaria, tinha uma lagoa onde eu ia brincar e nadar (risos). Entre as matinês e a vizinhança boemia Minha avó e meus tios moravam na Rua São João, 435, e todo domingo eu ia para lá e saía com meu primo. Saía muito com meu primo para a matinê do Cinema São Pedro, que hoje é o Teatro São Pedro, na Rua Barra Funda. Tinha semanalmente uma série: O Conde de Monte Cristo, depois teve Os Três Mosqueteiros, e nós acompanhávamos. E quando tinha, nós íamos num baileco aí, qualquer. Perto da casa de minha avó tinha uma casa de tolerância, o quintal era pegado nela. Mas eles respeitavam a família, porque minha irmã era mocinha, estava fazendo a Escola Normal da Praça, e tinha criançada. Mas eu e meu primo, como éramos malandros, nos tempos de calor a mulherada ficava quase nua, fumando ali pros homens, e nós subíamos no muro pra espiar (risos). A cocaína soltava forte e ninguém se incomodava. E pegado à casa da minha tia, perto da minha casa, tinha um bar chamado Bar Luxúria e lá fumavam cocaína à vontade. Aquela zona, onde morávamos, ficava entre a Rua Vitória e a Rua Aurora, e esse quarteirão todo, Rua dos Gusmões, Rua dos Timbiras, era da boemia de São Paulo. Nós estávamos naquele meio. Graças a Deus nunca ninguém se perverteu. Minhas irmãs foram formidáveis, trabalharam e conquistaram muita coisa à custa de costura. Minha irmã Maria costurava muito bem. Ela trabalhava para a mulher do Miguel Colasuonno, Neide Colasuonno. Prisão na Ilha das Flores Em 1932 não tinha emprego, não tinha nada, era uma miséria louca aqui em São Paulo. Eu estava desempregado, então vi que estava sendo um estorvo pra família e me alistei. Ficamos uma porção de tempo na Serra Quebra Cangalha, perto de Taubaté, sem ter o que comer, porque o pessoal do Getúlio estava avançando. Tinha umas fazendas muito bonitas na região e nós comemos muita jabuticaba por lá. Daí o Governo se entregou e nós fomos presos para o Rio de Janeiro, na Ilha das Flores. Eu estava muito doente, porque como não comíamos há três ou quatro dias, eu comi muita jabuticaba. (risos) Quando cheguei na Ilha das Flores, tomei quase meio litro de óleo de ricino (risos). Depois fui melhorando. A ilha era muito fechada, as grades eram todas eletrocutadas, não se podia consumir nada. A comida lá era uma coisa horrível, intragável. Então algumas famílias de São Paulo que moravam no Rio traziam alguns pacotinhos para nós comermos. Passei três meses na ilha, julho, agosto e setembro. Em julho fazia um frio que só vendo. Nós não tínhamos agasalho, nada. O tratamento lá era péssimo. Os guardas eram muito estúpidos, muito brutos. Qualquer coisa que fizéssemos, nós apanhávamos. Ficávamos totalmente isolados. Eu não tinha amigos, porque era um pessoal muito revoltado, nós não ríamos. Até tinha um verso muito bonito que dizia: “Era a Ilha das Flores dos meus amores Eras tão linda Outrora, então Hoje tão triste somente existe O resto de uma prisão “ Quando me soltaram eu voltei para São Paulo. Do DER para a Loteria Esportiva Depois que voltei, andei de emprego em emprego. Nunca quis estudar, mas entrei numa escola de datilografia. Minha irmã Maria era uma ótima costureira, costurava para toda essa granfinagem, filhos de governador, essa turma toda. Tinha muitas amizades. Então ela conseguiu com o doutor Souza Lima de eu entrar no DER [Departamento de Estradas de Rodagem]. Entrei em 1935, dia primeiro de julho, e fui até 1970. Cumpri 35 anos e saí aposentado, como chefe de sessão de materiais. Me aposentei muito jovem e desde então estou levando a vida. Naquele tempo tinha aquela loteria esportiva, então chegou um cara meio vigarista e disse: “Não, vamos abrir uma casa, e tal...” Minhas irmãs estavam muito bem, elas tinham comprado umas propriedades e alugaram uma loja na Avenida Nove de Julho e eu comecei a trabalhar com loteria esportiva. Como nunca gostei de jogo, não gosto de futebol, nunca apreciei jogo nenhum, só dava prejuízo.(risos) Nunca gostei de jogo, nem tômbola, nem nada. Namoro rápido e casamento Conheci a minha esposa, Helena, quando fui passar férias da DER em Guarujá e ela estava lá. Foi na colônia de férias da Associação dos Funcionários Público. Ela estava com uma infecção no dente e eu comecei a conversar com ela. Ela era funcionária, muito inteligente, tinha um tino pra negócio, que só vendo. Hoje ela está doente, coitada. Está com Alzheimer. Quando voltamos para São Paulo, começamos a namorar. Comecei a namorar em outubro de 1940, e casei em 22 de maio de 1941, em seis meses nos casamos. O namoro naquele tempo tinha muito, muito respeito. Eu ia à casa dela e minha sogra estava sempre por perto. Meu sogro era médico e minha sogra farmacêutica. Eles estavam bem de vida, moravam na Rua Doutor Clementino, 608, uma casa muito bonita, grande, enorme. Nós ficávamos lá sempre. Nós fomos na estréia do Cinema Metro. Foi a primeira vez que eu fui com ela, era a estréia do filme E o Vento Levou. O cinema era caro, quatro mil réis. A tia dela, meio maluquinha, foi junto. Ela se enfiou lá no meio (risos) e entrou de graça. Quando eu olho, a tia já está lá dentro da sala de espera. Depois nós íamos sempre ao cinema, a minha mulher nunca gostou de baile. Estou casado com ela vai fazer 60 anos. Nós tivemos quatro filhos. Tem a menor, a caçula, depois a Maria Marta, que é assistente social, o Mauro, médico, e a Maria Zélia que é professora. Ela estudou na escola São José. Antes de casar, meu sogro perguntou pra minha mulher, eles estavam bem de finanças: “O que você quer de presente casamento: um bom enxoval, festa e tudo ou uma casa?” Ela disse: “Não, eu quero uma casa”. E achamos uma casa na Liberdade. Naquele tempo ainda não existia a Nove de Julho. Então, as crianças que eram pequenas, pegavam uns papelões e escorregavam em um barranco. Ficamos naquela casa uma porção de tempo e depois nós fomos morar na casa da minha sogra. A casa era muito boa, grande, muito bonita e nós morávamos em baixo. Foi depois da mudança que nasceu o Mauro, na maternidade dos funcionários, na Prefeitura. A Maria Zélia nasceu na Cruz Vermelha e a Marcia nasceu também na Prefeitura e a caçula na Pro Matre. Festividades em São Paulo Eu lembro da comemoração do Quarto Centenário, em 54, foi muito bonito. Tiveram paradas, muita festa. Naquele tempo eu tinha já os quatro filhos e precisava tratar da vida. Quer dizer, não participei de nenhum festejo. Sabia o que saía nos jornais. Agora, do Centenário da Independência, em 1922, eu me lembro bem, eu era criança. Naquele tempo eu já trabalhava, meu pai arranjou um emprego numa ourivesaria e relojoaria que ficava na Rua São João, esquina da Rua Vitória. Meu pai era muito severo. Então, quando arrumava algum trabalho para mim, dizia: “Castiga. Pode bater”. E o pessoal aproveitava. Meus irmãos ficavam revoltados com isso: “Por que me bater?”. Mas era assim se não andássemos direito. Trabalho noturno Eu fui caixa da primeira boate de São Paulo, o Jequitibar, na Rua 24 de Maio. Esse Jequitibar pertencia a Jorge da Silva Prado, cuja mulher era Marjorie, uma norte-americana. Eu ainda trabalhava no DER, na Repartição de Águas, dentro da Secretaria de Viação e Obras Públicas, mas precisava ganhar mais. Então saía do DER e ia para a boate, entrava às seis horas. Comia uma comida qualquer lá do bar e depois ficava no caixa. Às nove e meia, dez horas, começava a chegar o pessoal, só a alta sociedade de São Paulo, essa turma do Jardim Paulista. Dançavam, cantavam. Eu ficava até o último freguês, que às vezes saía quatro e meia, cinco horas. Depois tinha que prestar as contas e se faltava algum tostão descontavam do meu salário. Quando saía da boate, tomava o bonde, que ia pro Belém, a casa de minha sogra ficava lá. Chegava cansado, tomava um banho, comia qualquer coisa e ia pra Repartição. No DER os meus colegas eram muito bons pra mim, sabiam que eu tinha que trabalhar. O meu chefe era um homem ruim pra burro e eles me protegiam. As escrivaninhas tinham um pau no meio, então eles armavam, punham um tapete, e eu dormia lá umas duas, três horas, ou não agüentava. Muitas vezes eu pegava o trem na Central do Brasil, dormia e ia parar no ponto final. Para voltar, tinha que pagar outra vez. Mas fiquei muito tempo fazendo essa dobradinha. Briga com a irmã do Governador Depois de um tempo, para aumentar um pouco a nossa renda, nós alugamos a casa da minha sogra pra uma irmã do Governador do Estado, Lucas Nogueira Garcez. Quando eu já tinha guardado um dinheiro, quisemos voltar. Mas ela não queria sair da casa. E tivemos que gastar com advogado, que foi o Franco Montoro, pra pôr ela pra fora. E com isso ficamos outra vez numa dureza danada. Nós ficamos nessa casa até acabarmos de criar as crianças. Meu filho Mauro freqüentava o Colégio Santo Alberto, na Rua Martiniano de Carvalho, e as meninas o Colégio São José, na Rua da Glória. Eu levava a caçula para escola quando ia trabalhar. Ela tinha uns oito, nove anos e eu a deixava na esquina da Rua Liberdade e ia pra Repartição, porque se eu chegasse tarde, o chefe cortava o ponto, ele era severo. E ela atravessava sozinha, coitadinha... Brigas com o vizinho Depois fomos morar na Liberdade, na Rua Barão de Ijuí. A nossa casa era geminada com a do seu Pedro, um camarada que fazia contrabando de jóias. Era um casal sem filhos e ele era muito revoltado. Nós tínhamos uma empregada, a Rosa, que ficou 18 anos conosco, e ela gostava muito de bicho. Eu não gostava, porque ela tinha uma pomba rola que fazia: “Uum, uum...” E o homem achava ruim. No fim ele ficou nosso inimigo. Muitas vezes nós chegamos a brigar na rua. Era uma bobagem, porque eu podia ter mudado, mas pensava: “Porque que eu hei de mudar?” E ele tinha um gênio desgraçado, uma coisa medonha. Era provocador, fazia sessão de macumba na casa... A coisa ficou tão ruim que um dia a Helena disse: “Olha, eu vou pegar as crianças e vou morar na casa da minha mãe. Se quiser vem, senão fique aí brigando com o homem”. Foi aí que resolvemos vender a casa na Liberdade e mudamos pro Jardim Paulista. Minha mulher tinha um tino para negócio que só vendo. Ela trabalhava na Prefeitura, era pesquisadora, mas como as crianças eram muito pequenas, eu fazia a maior parte das pesquisas para ela para ajudar. Ela ficava em casa e eu fazia as pesquisas, via preço disso, preço daquilo, ia a feiras... E assim a gente criou os meninos... Foi uma colega dela, da Prefeitura, que nos falou da casa no Jardim Paulista. “Porque vocês não vão... Tem uma casa assim, assim...” Era uma casa de vila, com seis casas, a nossa era a número cinco. Estamos nessa casa desde a década de 60. Mudanças no bairro O bairro mudou pouco. Só lá embaixo, a Avenida 23 de Maio não existia. Antes era um barranco. As crianças pegavam um papelão, punham embaixo do traseiro e desciam, sujavam toda a roupa. Eu chegava do DER e ficava louco da vida porque eles estavam imundos. Não tinha também o viaduto. Era uma rua estreita, a Rua Major Diogo. Família atual Eu tenho nove netos e dois bisnetos. A nossa família se reúne sempre. A Helena, coitada, está doente, mas eu quero festejar o Dia das Mães. Já encomendei uns doces. Ela tem uns momentinhos de lucidez. Mas ela grita muito: “Me ajude, me ajude”. Eu também estou doente. Às vezes perco a paciência e grito com ela, mas me arrependo imediatamente. Sabe como é sangue de calabrês, sangue de italiano. Cotidiano Meu dia-a-dia hoje é ficar sentado, vendo televisão, ouvindo música... Eu gosto muito de música boa. Tenho uma porção de discos de Beethoven, Liszt, Chopin. Não agüento a televisão de agora, essa coisa toda de Sílvio Santos. Assisto quando não tem outra coisa. Sou católico, rezo todo dia, mas nunca freqüentei a igreja. Minha mulher sim, ela é católica. Reflexões e perspectivas Não mudaria nada na minha via. Porque, quem nasce pé rapado, pé rapado fica (risos). Pra que mudar? Esses meninos, meus filhos, são bacanas, Nossa Senhora, como são bons Como são pacientes com a gente. Não tenho mais sonho nenhum. Meu sonho é com a morte. Já vivi muito tempo. Com 88 anos já era tempo de alguém lá em cima lembrar: “Oh. Venha pra cá que já acabou sua época”. Essa é a minha vida. Não tenho mais ilusão, não tenho mais nada (choro). Só tenho meus filhos.
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