Entrevista de Rita Silveira Cintra Moreira
Entrevistada por Lucas Torigoe e Alex Avelino
São Paulo, 29 de agosto de 2022
Projeto Conte sua História
Entrevista número PCSH_HV1296
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:14) P1 – Rita, a gente sempre começa perguntando, então, pra registrar, só o seu nome completo, onde você nasceu, que dia que foi.
R1 – Eu só sou chamada de Rita Moreira. Eu [me] chamo Rita Silveira Cintra Moreira, nasci em São Paulo, 1º de novembro de 1944. Em 1º de novembro, eu faço 78 anos.
(00:44) P1 – Você nasceu em que hospital, Rita, qual foi?
R1 – Eu acho que foi num daqueles dois grandes que tinha, na Avenida Paulista: ou Matarazzo, ou São Paulo. Hospital São Paulo ou Hospital Matarazzo. Eu não lembro, porque eu era tão pequenininha! (risos) Era um bebê.
(03:51) P1 – Os seus pais, quem eles são? Como é o nome deles?
R1 – Meu pai foi um dos fundadores da televisão, chamava Eduardo Moreira, era diretor artístico da Record, depois ele foi ser diretor artístico da TV Cultura. Quando a Record era... ele foi quem trouxe a Maysa, uma cantora que vocês não devem conhecer. Conhecem? Então, ele trouxe a Maysa do Rio, e um dos primeiros programas de televisão com a Maysa, ele que fez a Maysa. Ele também foi produtor da Inezita Barroso. Ele também era procurador do estado e um campeão de salto a cavalo. Meu pai era o máximo! Minha mãe também era extraordinariamente inteligente, chamava Marília Moreira [e] ela fez o primeiro programa infantil na televisão. Às vezes os parentes dizem que ela foi a primeira Xuxa, mas era muito diferente da Xuxa. Chamava Pullman Junior o programa, porque era patrocinado pela Pullman. Então, as crianças iam... pergunta pros seus avós, talvez pai, acho que não, quem sabe algum deles já foi ao Pullman Junior. Era um programa na TV Record. E meu pai passou... eu segui um pouco... segui bastante os dois, mas o meu pai foi escolhido pelos Carvalhos...
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Entrevistada por Lucas Torigoe e Alex Avelino
São Paulo, 29 de agosto de 2022
Projeto Conte sua História
Entrevista número PCSH_HV1296
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:14) P1 – Rita, a gente sempre começa perguntando, então, pra registrar, só o seu nome completo, onde você nasceu, que dia que foi.
R1 – Eu só sou chamada de Rita Moreira. Eu [me] chamo Rita Silveira Cintra Moreira, nasci em São Paulo, 1º de novembro de 1944. Em 1º de novembro, eu faço 78 anos.
(00:44) P1 – Você nasceu em que hospital, Rita, qual foi?
R1 – Eu acho que foi num daqueles dois grandes que tinha, na Avenida Paulista: ou Matarazzo, ou São Paulo. Hospital São Paulo ou Hospital Matarazzo. Eu não lembro, porque eu era tão pequenininha! (risos) Era um bebê.
(03:51) P1 – Os seus pais, quem eles são? Como é o nome deles?
R1 – Meu pai foi um dos fundadores da televisão, chamava Eduardo Moreira, era diretor artístico da Record, depois ele foi ser diretor artístico da TV Cultura. Quando a Record era... ele foi quem trouxe a Maysa, uma cantora que vocês não devem conhecer. Conhecem? Então, ele trouxe a Maysa do Rio, e um dos primeiros programas de televisão com a Maysa, ele que fez a Maysa. Ele também foi produtor da Inezita Barroso. Ele também era procurador do estado e um campeão de salto a cavalo. Meu pai era o máximo! Minha mãe também era extraordinariamente inteligente, chamava Marília Moreira [e] ela fez o primeiro programa infantil na televisão. Às vezes os parentes dizem que ela foi a primeira Xuxa, mas era muito diferente da Xuxa. Chamava Pullman Junior o programa, porque era patrocinado pela Pullman. Então, as crianças iam... pergunta pros seus avós, talvez pai, acho que não, quem sabe algum deles já foi ao Pullman Junior. Era um programa na TV Record. E meu pai passou... eu segui um pouco... segui bastante os dois, mas o meu pai foi escolhido pelos Carvalhos lá, donos da Record, ganhou uma bolsa pra ir estudar televisão nos Estados Unidos e ele ficou seis meses lá. Era televisão ao vivo. Ao vivo é incrível! Então, eu descendo deles dois, do meu pai, que trabalhava muitíssimo, porque, imagina, pra saltar a cavalo, ser procurador e diretor de televisão, ele era tudo ao mesmo tempo. E os dois ‘batiam à máquina’ muito rapidamente. A gente ‘batia’ assim. E eu também ‘batia à máquina’ muito rapidamente. (risos)
(09:37) P1 – E vocês cresceram onde, Rita? Foi em que lugar?
R1 – São Paulo. A família do meu pai é originária de Higienópolis. Eu tenho... eu sou... quer dizer: não tenho direito de dizer que sou judia porque sou cristã nova, porque a família antiga dos dois lados… e sabe o que é cristão novo? São aquele pessoal que veio... que eles dizem que foram extraditados de Portugal. Não eram bandidos, eram judeus fugidos, porque houve até Inquisição aqui também, veio pro Brasil. E esses judeus fugidos mudavam de nome - ‘botavam’ nome... tinham que esconder que eram judeus – e de acordo com a Anita Novinsky, que é uma grande - já ouviram falar, ou não? Então tá bom, que eu estou contando coisas importantes – professora da USP e, entre outras coisas, nomeou todas essas pessoas, com esses nomes Silveira, mas mais do que isso, Fonseca, Rodrigues também são todos cristãos novos. Então, eu descendo, do lado do meu pai, de uma grande avenida, que vai pra USP, chama Avenida Professor Fonseca Rodrigues. Aquele é meu bisavô. E ele veio do Ceará. E o meu avô, o pai do meu pai... esse Fonseca Rodrigues era o pai da minha avó, como eu te falei, muito heroico, porque ele tinha só dez anos e veio lá daquele lugar interessante, pedregoso... Cariri! Ele veio do Cariri com dez anos e ele foi - como não havia escola boa – estudar na Bahia. Depois de formar a primeira parte na Bahia, ele foi estudar no Rio de Janeiro, depois ele veio pra São Paulo e em São Paulo ele foi pra USP, virou o Professor Fonseca Rodrigues, engenheiro. Tem um outro filho dele que [se] chama Arquiteto Jaime Fonseca Rodrigues, que tem uma avenida grande aqui, que sobe aqui atrás. Vocês já viram essa avenida? Esse é meu tio-avô. Do lado da minha mãe, o que eu acho uma qualidade: não era uma família católica. Eu sempre acho isso uma boa qualidade. A minha bisavó tinha uma fazenda em Ribeirão Preto e ela, por sua vez, quer dizer, eu também, descendemos... acho que é muito tolo falar isso... de Amparo, que era a maior fazenda de café de Amparo. Então, como Dom Pedro se hospedava na casa dos mais ricos, ele ‘botou’ a espada no ombro do meu tataravô e o tornou o Barão de Campinas. Então, tem uma coisa interessante: quando dizem os barões do café, pensam que todos os ricos que tinham café eram barões. Eu tenho certeza do ridículo dessa informação, mas o meu antepassado era realmente barão, porque precisa da ridícula espada no ombro (risos) e o meu teve. Mas eu não sou uma herdeira. Meu avô e minha avó eram uns gastadores e eu não herdei nada. Mas do lado da minha mãe, a minha bisavó não era católica e, por causa disso... ela tinha uma fazenda pequena, mas muito frutífera. Ela, com trinta anos… também é bastante heroica a história dela... com trinta anos ela ficou viúva, tinha seis filhas e ela ‘tocou’ a fazenda. Depois ouvi dizer que em muitas fazendas eram as mulheres que comandavam, mais tarde eu vim a saber, mas ela era uma dessas. Ela tinha trinta anos. Isso eu cheguei a conhecer. Não ela, mas por causa das filhas dela, eu sou bisneta dela, então eu frequentei essa fazenda. As partes mais felizes da minha vida foram nessa fazenda, chamava Olhos D’Água e é onde eu mais fui feliz e depois veio mais tarde, em Nova Iorque, os dois momentos de real me sentindo eu, me sentindo bem, foi na fazenda Olhos D’Água e em Nova Iorque, onde eu passei vários anos. Bem, então ela tinha trinta anos, ‘tocava’ a fazenda e era uma época - quando eu conheci, que já era com as filhas dela, minha avó - muito interessante que eu peguei, porque era uma das mudanças. Eu gosto muito de mudança. O meu signo é escorpião e o meu negócio é a transformação. Então, naquela época, nós tínhamos a colônia de baixo, que eram os negros, todos pagos, eu frequentava. Nós, crianças, frequentávamos, até comíamos ovo frito com eles, cada um tinha um quintal com galinha, com plantação. Nada comparável a sem-terra. O mundo só piora. E tinham salário e eram levados no carroção, pra escolinha, as crianças dessa colônia.
(16:04) P1 – Você era criança, nessa época?
R1 – Eu, mais ou menos. Oito, nove, dez anos. E eu posso testemunhar, porque eu frequentava essas casas deles e via o quintal e eles faziam... tinha Quelé - ai, eu estou me lembrando! - Quelezinho e Quelezão. Eram os três Clementes. Eles faziam as espadas pra nós, sabe? De madeira, eram muito talentosos. E tinha também o Zacarias. Era um que não trabalhava mais. Menino, é muito parecido... vocês assistiram Downton - ai, meu Deus, que comparação louca que eu vou fazer! – Abbey, a nobreza inglesa? Quem trabalhava lá no Downton Abbey, quando ficava velho, tinha uma casa onde morava e era sustentado o resto da vida. O Zacarias tinha trabalhado na fazenda, era um velho interessantíssimo e ele morava... nós íamos sempre ver o presépio do Zacarias. Ele fazia um presépio incrível e tinha a casa dele, casinha de tijolo e tudo e nós frequentávamos. As minhas memórias da fazenda, é um presépio incrível... hannnnnn, sabe o que me lembrou? O melhor espetáculo que eu vi recentemente, que é do Bispo do Rosário. Vocês sabem quem é? É um grande artista. Eu já conhecia alguma coisa, mas eu fui nessa mostra, não sei se ainda está, de três andares, e fiquei besta. Me lembrei muito do Zacarias, porque o Zacarias fazia o presépio onde entrava tudo, muitas coisas. Então, eu descendo dessa fazenda de café e, nesse período, era justamente de transição. As minhas avós, em certa hora do preparo do café, eram contratados os italianos. Eram um tipo de colono já diferentes. Era o começo da transição. Eles eram os camaradas. A gente chamava [de] os camaradas. E os italianos, lembro de eu passeando naquele maravilhoso pomar com a minha avó, onde tinha aquela quantidade de mangas, mangueiras e coisas, tinha também as abelhas, tinha uma caixa d’água fantástica! Ai, que delícia! Não pensei que eu ia poder falar essas coisas deliciosas. Aí tinha umas frutas e aí a minha avó: “Não, aquelas frutas não pode pegar, são dos italianos”. Compreendeu? Era o momento em que os italianos já estavam começando... eles alugavam a terra e depois cresceram e vocês sabem, talvez algum de vocês até descenda desses italianos. Ninguém tem sobrenome italiano? Alex? Entendeu? Era o momento da transição.
(19:20) P1 – A senhora me desculpa te interromper, mas como era essa casa? Pode descrever pra gente?
R - Uma casa simples, com uma grande varanda em volta, uma espécie de pontilhão e chamava Olhos D’Água, porque era uma maravilha: córregos que não acabavam mais. Atrás tinha um rio grande, que era ao lado - um rio largo – do pomar, enorme, onde viviam lá, mais pra longe, os misteriosos italianos. Eram misteriosos acho que por causa disso, porque eles ficavam lá, fazendo as coisas deles, as plantações deles. Olhos D’Água foi a felicidade da minha vida. Eu tinha dois primos: o Zé e o João. O Zé já morreu, tadinho. Ele não deu muito certo, coitado. Também, ele tinha uma mãe tão doida! Eu dominava o Zé e o João. E lá íamos nós, a cavalo. Aí não eram cavalos da hípica, eram normais. A fazenda tinha, naquele tempo, uma meia dúzia de cavalos e vacas. Memórias maravilhosas eu tenho com essa que era minha vó. Na verdade, não era vó, era tia-avó. Adivinha que dois conselhos que ela me deu, os melhores da minha vida e que eu segui? Nunca tenha filhos. Nunca faça empréstimo em banco. Eu segui. Nunca quis ter filhos. Nunca. É um mito essa história das mulheres gostarem de ter filhos, vamos ter filhos. É um mito que as mães adoram os filhos. Bem, Olhos D’Água era isso. Essa minha avó era a felicidade da minha vida. Elas tinham o hábito de andar no terreirão, tchon, tchon, tchon. Eram todas muito... essa era especialmente germânica. Caminhar no terreirão depois do almoço e tal. Isso elas já velhas, né? (risos) E eu lembro uma outra memória, essa foi muito terrível, porque eu chefiava o Zé e o João. Eles eram uns amores. Eu mandava nos dois. E eu inventava coisa, tadinhos. Eu dizia que tinha um bicho, acho que eu dei o nome de Mongagá, eu dava um nome, que nós íamos a cavalo e eu dizia, só pra exercitar minha ‘mandonice’, olha que coisa! A gente ia a cavalo, lept, lept, lept e eu dizia: “Vocês lembrem que depois daquela esquina tem Mongagá. Vocês não podem”. Eles ficavam apavorados. (risos) E eles acreditavam no bicho que eu inventei. (risos) Era muito divertida aquelas minhas férias com o Zé e com o João. Enfim, Olhos D’Água, né? Aí teve uma ocasião... mas essa história interessa, não interessa? Qualquer história interessa, né? Quando a minha mãe não estava... aí a questão do patriarcado, que é a minha principal luta é anti patriarcado. A minha avó adorada, Vovó Lu, eu dormia no quarto, com ela, em outra cama e tal. E quando minha mãe não estava lá, ela não permitia que eu fizesse certas coisas. Mas o Zé e o João tinham combinado que iam na Invernada. Era um lugar longe, onde eles iam de carroção, os que cuidavam das vacas, (risos) mas não é passar a boiada, que nem esse cara fala ‘passar a boiada’. Aquele horroroso, monstruoso, que fala ‘passar a boiada’. Era pra levar a boiada pra lá, porque era lá que a boiada comia melhor. E essa aventura maravilhosa, pra mim estava proibida, porque minha mãe e meu pai não estavam na fazenda, minha avó não queria deixar que eu fosse. Aí combinamos, eu, com o Zé e com o João... não, o Zé e o João combinaram que eu fugiria. Então, quando chegou à noite, de madrugada, antes da hora da minha avó acordar, no mesmo quarto, imagina que emoção! Quietinha, eu abri a janela, saí pela janela, sem ela acordar, me juntei com o Zé e com o João e fomos no carroção com... meu Deus do céu, Quelezinho ou Quelezão, um dos Quelés. Eram nossos amigos. E estou eu lá feliz, em cima do carroção, os vendo tratar dos bois, empurra boi pra cá, empurra boi pra lá, quando eu vejo, ao longe... nós fomos de carroção, sabe o que é carroção? Uma carroça assim, de coisa de madeira e eu não sei se era puxada por boi, acho que era puxada por cavalo. Realmente eu não sei se era boi ou cavalo. Puxa, não tem como descobrir [como era], e agora? Morreu todo mundo. Aí, quando eu vejo, quem está lá, com chapéu de caçadora, no fundo do caminho, vindo furiosa? Pepepepepepe. Vovó Lu. Aquela que eu deixei dormindo e fugi. Ai, que vexame eu passei diante do Quelé... vexame não, porque eles, o Zé e o João continuavam me respeitando. Não era vexame, era ‘que tristeza’. Sabe o que ela fez? Ela disse: “Desça já. Agora você vai voltar a pé comigo”. Eu tive que voltar, porque ela era lépida, ela fazia ginástica sueca e eu tive que voltar - com a minha avó, que é tia-avó, lembra? – quilômetros da Invernada, a pé, com a minha avó. Por quê? Porque eu era menina e não podia. Se meu pai e minha mãe estivessem lá, sim. Não era exclusivamente porque eu era menina, mas será que se eu fosse menino, ela não deixava?
(35:18) P1 – E você tinha quantos anos, mais ou menos?
R1 – Uns dez, uns oito. Acho que uns oito. Mas a felicidade da fazenda era isso.
(35:37) P2 – Posso fazer uma pergunta, rapidinho? Ela tinha falado sobre a questão do patriarcado, que esse foi um exemplo de que te ‘bateu’ ali, que era uma questão pra você, a luta contra o patriarcado.
R1 – Sempre, sempre. Apesar…
(35:54) P2 – Você poderia contar um pouco mais?
R1 – Quando eu tinha onze anos - eu publiquei alguns livros de poesia, mais tarde e esse daí até está no meu primeiro livro – eu escrevi um poema assim:
“Quem sou eu?
Eu, ora, eu sou eu
Não sou cara, nem coroa,
Nem pistilo, ou gineceu,
Nem criada, nem patroa
Eu, ora, eu sou eu”.
Então, ao longo da vida, eu também frequentei, desde os doze anos, psicólogos e a investigação do quem sou eu, né? Mas claro que... isso eu tinha onze anos, mas o meu pai era magnífico e eu não tive opressões, assim, como menina. Quer dizer: eu não descobri o patriarcado com onze anos. Não. É isso que você (risos) perguntou. Não. Foi muito depois, mas não, eu tinha... o meu pai me achava fantástica… e foi mais tarde, foi meio gradual… quando, a questão do patriarcado?
(37:19) P2 – É. Que você sentiu que você descobriu, que ‘bateu’ isso, assim?
R1 – Já antes. Eu trabalhei na Abril [por] muitos anos. Eu trabalhei em muitas, muitas publicações. Eu era redatora, editora e depois eu consegui, com a minha falta total de qualquer universidade e tudo, eu contratei um advogado, mas depois foi de um outro jeito. Na minha - agora, meus orgulhos, né? – carteira de trabalho, que eu guardei muitos anos, claro, eu atingi o nível universitário. Inclusive, outro orgulho, claro que eu me orgulho, porque eu estudei, não é que eu não estudei, eu escolhia, eu tenho muitos ‘buracos’ nos meus conhecimentos, agora estou melhor, mas Geografia, por exemplo, História, porque eu escolhia o que eu ia estudar, então eu tive aulas com uma grande linguista, chamada Claudia Lemos, de português e escrita. Particular. Eu ia duas vezes por semana, eu tinha aulas com ela. E tive aula de inglês e francês, com uma prima. E depois, no trabalho que eu aprendi tudo. Eu fui editora da Nova Cultural, da Editora Abril, então eu era editora de Gênios da Pintura, de Arte do Século, eram fascículos que a Abril publicava. E também fui editora de dicionários, enciclopédias. Eu fui editora de uma que chamava Conhecer. Esses fascículos Conhecer eram uma enciclopédia, dicionário. Claro que tudo isso é o que eu juntei, pra conseguir, na minha carteira de trabalho... talvez, não sei se isso era necessário, talvez fosse uma questão de vaidade, eu não sei se seria vaidade, porque não era possível, com tudo que eu sabia, eu não ter curso superior. Quando perguntavam o curso, o nível. Porque o meu nível era super superior. Então, modéstia inclusa. Eu trabalhei no Gênios da Pintura. Então, eu escrevi tanto! Um dos meus orgulhos, que eu repito, é que eu tenho esse problema, talvez vocês tenham percebido, de uma certa agitação. Ciclotímica, eu sou. Essa agitação, é até bom, pras pessoas saberem: quando as pessoas têm algum problema, aquele problema tem um outro lado e o outro lado pode ser positivo. Então, com essa minha agitação, eu era muito conhecida, na Editora Abril, pela rapidez, eu fazia tudo muito rapidamente. E uma vez, lá no Gênios da Pintura, onde eu conheci tudo que era pintor, pois eu tinha que escrever sobre eles, a editora-chefe, não sei nem se era a Carolina, disse: “Vamos ter férias coletivas”. Então, ela distribuiu, sei lá, três, quatro pintores nas baias pra cada um dos redatores. Quem acabar primeiro, já entra em férias. Eu entrei quinze dias antes de todo mundo. Esse é um dos maiores orgulhos da minha vida! (risos) E sempre que precisavam de alguma pessoa rápida, em rapidez era eu. Eu traduzi até uma série de - mas isso foi um fenômeno - italiano. (risos)
(41:58) P2 – Quantos anos você tinha, nessa época?
R1 – Nessa época, eu tinha acho que menos que trinta, um pouco menos que trinta.
(42:05) P1 – Nessa época, você não filmava ainda? Você não tinha entrado nessa área, ou você já...
R1 – Não, ainda não. Foi depois, com a Norma, que é uma grande... acho que é a mulher mais inteligente que eu já conheci e ela era do Cinema Novo, mas aí, devido ao patriarcado, ela não aparecia. Ela tinha estudado no Idhec, da França e já tinha escrito um livro junto com o Glauber e aí, com ela, nós fomos pra Nova Iorque e aí ela ganhou uma bolsa da Guggenheim, mais tarde eu também ganhei, bem mais tarde, do Rockfeller. Era quinze mil dólares. Hoje em dia até que é alguma coisa, né? Na época nem deu pra eu fazer o projeto inteiro. Mas quinze mil dólares não era ruim, né? A dela era bem mais. E aí ela ganhou a bolsa da Guggenheim, nós estávamos em Nova Iorque, porque a Ditadura era insuportável, absolutamente insuportável. Eu acho que eu podia contar outra história de Ditadura, mas é chato. Eu tenho três amigas que foram muito torturadas. É muito chato. Acho que tem muita gente lembrando da Ditadura. E é preciso lembrar, porque nós estamos com um ‘pé’, já, no ‘lamaçal’. Eu acho.
(43:42) P1 – Você conheceu como a Norma, Rita, então?
R1 – Eu estava na Abril e ela morava, naquela época, com uma figura muito interessante também, que [se] chamava Irede Cardoso, que já morreu. Todo mundo já morreu. Eu estou aqui sobrando, mas eu não estou sobrando ainda, porque tem muitas coisas interessantes que eu vou fazer. Mas eu não vou sobrar. Eu também sou pela eutanásia, pelo aborto, o corpo é meu e pronto. Mas eu conheci a Norma assim: eu frequentava muito a casa da Irede… ela já morreu, então eu posso contar. Era um lugar em que as... é melhor não falar isso. No tempo da Ditadura, muita gente vivia escondida, fugida. Eu conheci a Norma na casa da Irede. E foi lá que eu vi o primeiro... eu nunca tinha visto um documentário desse jeito. E foi lá que um dia teve uma reunião e a Norma estava mostrando um documentário que ela tinha feito em Paris e chamava Les Antillais, Os Antilhenses. Era uma coisa impressionante, porque era tudo gente de verdade e mostrava de um jeito, como ela... bem, ela estudou naquela escola que o Resnais estudou. Vocês sabem o que é o Idhec. Bem, aí eu fiquei impressionadíssima com aquele documentário, Os Antilhenses. A Lívia, aliás, o digitalizou. E ela fez outros documentários também. E era a história... tinha três ou quatro negros, no filme dela eram todos homens e ela seguia a história de cada um. É desses filmes... porque tem poucos filmes que eu lembro, assim, uma cena. Como aquele carro de bebê do Potemkin, tem uns filmes que a gente tem uma coisa, que a gente não esquece. Nesse filme dela, eu lembro que tinha um negro que estava hospitalizado no lugar de problemas psiquiátricos. Ele disse que ele começou - o racismo era tão impressionante, isso era em Paris, os antilhenses morando em Paris, antiquíssimo, esse filme – a se coçar. Quando ele se coçou, porque o mosquito mordeu, ele viu que ficava branco onde ele... aí, ele, desesperadamente, começou a se coçar o corpo inteiro, na tentativa de ficar branco. Eu nunca esqueci desse trecho. E tinha um outro, também, personagem, nesse filme dela, da Norma, que andava de óculos e de pastinha e esse era jovem, magro, eu me lembro dele subindo e descendo do ônibus, de óculos e pastinha. Ele nem tinha problemas nos olhos, nem tinha nada naquela pastinha. Era pra ganhar uma existência. Então, eu fiquei muito impressionada com a Norma, nós já não aguentávamos mais. Ela era diretora, ganhava muito bem, acho que das duas, não sei se era da McCann Erickson ou daquela outra, tinha duas grandes agências de publicidade, ela trabalhou pras duas, mas eu não me lembro por qual. E através dela eu conheci umas pessoas, aqui no Brasil também, já, incríveis. Sabe quem... ela tinha uns amigos extraordinários. Ela tratava exatamente igual uma pessoa sentada na calçada ou uma princesa russa, porque eu conheci a princesa russa, até. E ela foi do PCdoB, no Rio de Janeiro, tinha nome falso e tudo. Com ela que eu soube das bolinhas de gude. Vocês sabem? Coitados dos cavalos! Pra escrever as coisas contra a Ditadura, na parede, sair fazendo coisas, sempre que saíam fazendo coisas contra a Ditadura elas levavam bolinhas de gude, pros cavalos, coitados, tropeçarem, quando virem em cima delas. Vocês não podem imaginar o que é a Ditadura. Embora a gente viva... a gente, não, os que estão na cadeia, os negros da periferia. Ahhhhhh, continuam fazendo coisas horríveis. A polícia. Minha mãe sempre me falou pra nunca confiar na polícia. (risos)
(49:01) P1 – Queria te perguntar justamente sobre isso, porque...
R1 – Aí nós fomos pra Nova Iorque, porque a Norma trabalhava como diretora de filmes. Naquele tempo, tinha um filme... ela era favorita da Nestlé, sabe a fábrica Nestlé? Ela era a diretora favorita da Nestlé e na publicidade, o diretor dos filmes era importante. Hoje em dia, acho que a mesma pessoa ali faz tudo, vai pro computador. Eu lembro um filme dela que era bonito, acho que era do Molico. Como o Molico é antigo! Era pra saúde e tal. E ela tinha uns amigos muito interessantes. Ela era muito amiga de um que se apaixonou por ela. Tão engraçado! Sabe quem?
(50:20) P1 – Quem?
R1 – Tantararã! (risos) Paulo Freire. Aí ela teve que: “Não, somos só amigos e tal”. Ela era muito chegada, o Paulo Freire era muito chegado. Outra criatura... é um assunto que mais me interessa, hoje em dia, na verdade, esse. É o negócio da alma. Alma. O que é alma? É que eu me lembrei de outro amigo dela, que era um cara interessantíssimo, chamado Mário Schenberg. Aí o Mário Schenberg disse isso - eu vim a saber recentemente, sou eu recentemente – uma coisa óbvia, que a gente não pensava: quando a gente morre, o que acontece? Quer dizer... porque ela explicou assim: quando a gente morre, aquele calor, que é a energia, sai, porque nada acaba, não é? Tudo se transforma. E realmente você já deve ter visto algum defunto, fica gelado. Morre, esse fogo que a gente tem sai, mas ele não deixa de existir. Isso é alma. (risos) Por outro lado, eu passei sete anos com a Monja Coen. Ela é famosa agora. Eu passei sete anos no zen. No zen Deus realmente sumiu. Como pra Sartre, vocês lembram como Deus sumiu? Sartre estava numa esquina e PUM, sumiu Deus! Pra mim foi mais interessante. Não foi assim, PUM, foi com o zen, porque não tem Deus. Isso que não tem Deus é óbvio, porém tem uma quantidade de deuses e entidades e coisas. Então, esse é o meu estado atual.
(55:06) P2 – Você tinha falado, estava falando de Nova Iorque, quando você foi pra Nova Iorque, conhecendo a Norma e você tinha mencionado antes que Nova Iorque foi, além de Olhos D’Água, foi um dos momentos mais...
R1 – É, porque eu estive em Nova Iorque na segunda ‘onda’ do feminismo. Nós fomos pra lá em 1972. E era um outro mundo. Uma vez ouvimos uns gritos - nós morávamos na Rua Dois, Segunda Avenida. Não, na Nine Street com a Segunda Avenida. Ouvimos uns gritos nos basement e era uma voz de velha assim: “Aqui, aqui! No basement!”. Aí eu fiz esse vídeo, mas depois eu não levei adiante. Não, não levei adiante, não, não distribuí, por causa de um detalhe. Aí chamava “Just Another Crime, Next Door This Time”. Aí, imediatamente, quando ouvimos os gritos, eu, Norma e mais duas vizinhas do mesmo prédio, descemos pra socorrer a mulher. Eu não conhecia isso no Brasil. Aliás, eu continuo não conhecendo. Quem é que socorre quem, onde? Não existe isso. E aí era a velha dizendo que tinha um cara querendo estuprá-la e quando nós descemos, falando: “Ei, estamos indo, estamos indo”, o cara fugiu. Essa era Nova Iorque. Era um feminismo em todo lugar. As mulheres acontecendo. Nós tínhamos um coffee house na Sexta Avenida, bem lá embaixo e eu lembro de eu caminhando - nós morávamos no East Side – encontrar minhas amigas lá no coffee house. Pra ter uma ideia, essa vocês devem ter ouvido falar, porque ela publicou livros, ficou conhecida, Kate Millet, escreveu Sexual Politics, publicado em todas as línguas. Nesse coffee house lá estava a Kate Millet, com uma namorada dela, que era uma brasileira, com um sobrenome que eu nunca vi no Brasil, chamava Guaraná o sobrenome dela. Vocês conheceram família Guaraná? Engraçado, ela chamava Guaraná. Coitada, a Kate Millet já morreu e essa Guaraná se matou, mas era uma maravilha Nova Iorque! Eu vou contar a história do dente. Eu tinha um dente aqui e o dente estava com problema e eu fui num lugar que o governo oferecia.... E eu fui com a Norma num dentista que atendia mulheres e velhas. Eu não era velha. Aí era um jovem, com um cabelão até aqui, acho que eram estudantes de dentista. E ele fazendo o meu canal, faz o canal, faz o canal, faz o canal, quebrou a agulha lá dentro. E agora? Era um lugar simples. Não era uma tenda, mas era um lugar simples, quase como uma barraca. Aí ele disse: “Então, não tem jeito, não consigo”. Ficou tentando tirar, tentando tirar, não conseguia. Era um lugar que atendia lésbicas e velhas. Nós estamos - “Então tá bom, depois eu volto e vamos ver o que fazer” – saindo, tem na porta uma criatura, uma mulher de cabeça raspada, pé no chão - hippie legítima – aquela saia comprida, careca e que diz: “O que foi que aconteceu aí com vocês?". Eu digo: “Ele quebrou a agulha aqui” e aí ela disse: “Vocês sabiam que isso é uma organização do governo, que o governo permite e que nós temos um grupo, existe o grupo de controle do atendimento?". Em resumo, eu fui tratada desse dente lá pelos professores. Lá, quero dizer Uptown. E foi umas seis ou sete sessões. É de arrepiar. Em cada sessão que eu ia, na porta estava uma mulher que eu jamais vi na vida e que dizia: “Eu sou sua testemunha”. Está me arrepiando todos os cabelos aqui de cima. Aqui de cima ficou um pouco indecente. Da cabeça. “Eu sou sua testemunha de hoje”. E esse meu dente foi tratado com testemunhas e foi da outra vez, uma outra desconhecida dizendo: “Eu sou fulana”. Isso era um movimento, a gente chamava... ninguém nunca chamou de Women’s Lib, essas coisas, chamava The Movement. A cidade vivia um movimento e eu lembro que uma das vezes a infeliz estava de muletas, porque estava com a perna quebrada e estava lá na porta do dentista o professor do outro: “Eu sou a sua testemunha de hoje”. Não tinha dinheiro envolvido, tinha política. Ai, que emoção! E depois eu vim pro Brasil, onde tem ótimos dentistas e eu tinha meios e eu mantive esse dente até o ano passado, quando fiz a bobagem de mudar de dentista.
(01:02:43) P2 – Você sentia que tinha... quais eram as diferenças, ou como era a cena cultural Lgbt, que você mencionou, lá em Nova Iorque, em comparação com o Brasil, naquele período?
R1 – Aqui não tinha.
(01:02:56) P2 – Não?
R1 – Não.
(01:02:58) P2 – Anos setenta era mais...
R1 – Não. Era Nova Iorque. Era o feminismo. Aliás, eu comecei misturado com o movimento gay, um pouco e depois feminista, mesmo. Só feminista. E tinha o Lesbian Feminism. Vocês sabem, viram meus vídeos antigos? Então, tem um que chama... como chama? Lesbian Mothers. Lesbian Feminism. Aí nós, então, em Nova Iorque, nos inscrevemos pra um curso da New School for Social Research, essa escola famosa até hoje, mas era um curso curto e era pra pessoas já formadas em áreas semelhantes. E primeiro fazia uma entrevista, pra ver se nós íamos pra vídeo arte ou pra vídeo documentário. Claro que com a história da Norma e eu jornalista, nós fomos pra documentário. E aí, eu também, mesmo lá, eu não gostava de escola, eu fiquei... tinha alguém lá que nos mostrava como mexer com as câmeras. A Norma, com o prêmio da Guggenheim, que era anterior, comprou o equipamento e a gente dormia com o equipamento ao lado da cama, assim, tudo que havia e pra escola era pra gente ter um tema que depois, eu, aliás, dei vários cursos de vídeo, pela Secretaria da Cultura e pelo Sesc e o meu curso era parecido com o que eu tive lá, que chama Aprenda Fazendo, aprender fazendo. Então, o prêmio que ela ganhou da Guggenheim ela gastou tudo comprando equipamento, eu escrevi umas matérias pra Abril, de lá mesmo e nós ficamos procurando um tema, qual seria o tema que nós íamos tratar. E aí, naquela época, o Village Voice era um jornal legal. Hoje em dia é uma coisa horrorosa, mas era um jornalzinho bacana. E no Village Voice nós vimos um anúncio: encontro de mães lésbicas na Firehouse. Eu disse: “Meu Deus!” - as duas brasileiras abobadas – “Mães lésbicas, o que é isso? O que vem a ser isso?”. E aí a Norma disse: “Esse que é o nosso tema”. Aí chegamos lá e vimos aquela multidão. Uma multidão, mesmo. Sei lá, umas duzentas, trezentas mulheres e aquele barulho de criança lá em cima. E lá em cima as crianças estavam sendo tomadas conta por pais e amigos, por homens. Os homens lá em cima, cuidando das crianças e elas lá, reunidas. Aí eu disse: “É isso que nós vamos fazer: mães lésbicas”. Aí fizemos esse vídeo, eu editei fisicamente também. Vocês sabem como é? Não? Era uma televisão aqui, uma televisão aqui e tinha aquele problema do Generation, porque a fita... eu podia ter trazido, pra mostrar a fita. É uma fita (open will?), né, e essa fita são várias, muitas fitas que a gente usava, ‘botava’ numa máquina aqui e aqui uma fita virgem e a fita ia passando as imagens daqui pra lá. Aqui ficavam duas máquinas, então, e aqui o editor, com um botão duro e a gente ‘botava’ cinco números pra trás e ficava olhando nas duas telas. Quando fosse a hora do corte, praaaaaaa, apertar o botão. E como a gente caprichava muito - eu lembro de uma noite eu ficar a noite inteira pra fazer um corte – é claro que o nosso vídeo foi considerado o melhor de todos no curso e foi representar a New School e esse curso, que chamava Global Village, no primeiro festival de vídeo, ever, em Tóquio. Então, eu tenho uma quantidade de catálogos. Nós mostramos não só esse vídeo, mas muitos outros também e depois eu mesma, quando a Norma morreu, continuei fazendo vídeos. Mesmo antes dela morrer, fiz muitos e muitos vídeos, que foram apresentados no mundo inteiro. Várias vezes em Tóquio. Um lugar que eu gostava dele era na Hungria, na Alemanha, na França, fora todas as universidades nos Estados Unidos, porque havia uma coisa chamada Women’s studies, que faziam reuniões. Pra você ter ideia, a Norma, uma vez, eu e ela, ela sempre era um pouco mais importante que eu, porque eu era jornalista começando a fazer vídeos e ela já tinha feito filmes, né? Pra você ter ideia... como era o nome daquela universidade tão famosa? Nós fazíamos, às vezes, palestras em universidades. Uma palestra era pra nós falarmos das amazonas. Foi na Rutgers. Então, havia uma grande distribuição e havia também uma distribuição underground. Eu, até hoje, apesar da internet, qualquer um abre e eu tenho canal na internet e tudo, mas eu estou mudando do Youtube pro Vimeo, porque o Youtube censura. Aí havia dois canais, que chamava de cabo: o Manhattan TV e um outro que passava esses vídeos extraordinários. Que dizer, undergrounds. Eu me sinto... aliás, hoje em dia então eu me sinto mais underground ainda. Aqui no Brasil, quase clandestina. Ai, mas Deus queira que o Lula ganhe! Meu Deus, se ele não ganhar... o pior de tudo é que agora não tem pra onde ir, eu estou com 78 anos, vou fazer 78, eu não tenho dinheiro pra morar... talvez, um lugar que eu penso, às vezes, é o Uruguai. O que vocês acham?
(01:10:33) P1 – É mais perto.
R1 – É mais perto e tá legal o Uruguai. Vocês já pensaram em fugir, não?
(01:10:45) P2 – Posso perguntar uma coisa?
R1 – Pode.
(01:10:47) P2 – Ia perguntar que você tinha falado que você exibiu o filme em vários lugares...
R1 – Universidades, muitas...
(01:10:53) P2 – O tema era de mulheres lésbicas, né?
R1 – É.
(01:10:56) P2 – Era, assim, específico. E você sentiu que havia resistência em alguns lugares, por leis contra esse _______…
R1 – Não! Havia feminismo na Inglaterra, movimentos. Não. Nós fomos pra Paris algumas vezes. Eu tenho sempre essa sensação de Paris. Tenho umas amigas que continuam adorando Paris. Eu estive, nós viajamos umas três vezes pra Paris, ficamos lá também. Lá, em Paris, tinha aquela coisa: _______ dois passos pra frente, um pra trás. Marchas. Chamava MLF. Eu também participei. Mouvement de Libération des Femmes. E começando no movimento gay, fui cada vez mais ficando mais feminista. Em Paris, foi umas duas vezes ou três que, de Nova Iorque, a gente ia pra Paris. Paris era o lugar das minhas avós. (risos) Era o sonho da minha mãe. Nova Iorque era incomparavelmente mais... agora está um terror, mas eu vou pra Nova Iorque agora em outubro. Cada vez que eu vou à Nova Iorque está pior, mas tenho um amigo também que vive indo à Paris e cada vez, em Paris, também está terrível.
(01:12:19) P1 – Mas em São Paulo, nessa época, a coisa que o Alex estava perguntando, tudo bem, aí o cenário era assim em Paris e Nova Iorque, mas em São Paulo, por exemplo?
R1 – Eu não estava em São Paulo, eu fiquei muitos anos em Nova Iorque, eu fugi de São Paulo. São Paulo era um horror, eles estavam pegando as pessoas e torturando. O Brasil era horrível. O Brasil é tão lindo, tem gente tão maravilhosa e vocês sentiram o dia que a fumaça da Amazônia chegou até aqui? Vocês sabem o que significa isso? São os ventos. Eu já estive na Amazônia. Estive bem lá, com os Nhambiquaras. A Amazônia é longe ‘pra burro’ daqui! Que fogo é esse? Não tem escapatória. Tem umas pessoas que acham que vai sobrar algumas pessoinhas. Que pessoinhas vão sobrar? Vocês já viram documentários sobre os bunkers? Vocês já viram o que esses ricos pensam? Que eles vão ficar nos bunkers - tem bunker enorme, só falta ter piscina no bunker – aí eles vão sair aqui e aí? Não, estão indo, agora, eu acho uma estupidez...
(01:17:08) P1 – Agora, antes de você ir pra Nova Iorque, o Alex estava perguntando: na Ditadura existia repressão e perseguição especificamente a...
R1 – A repressão era geral e total. O grande xingo é comunista. Enfim, eu nunca fui comunista, muito menos de ‘direita’. Uma vez a minha mãe estava ajudando lá na Ditadura, ela trabalhava com aquela... minha mãe misturava Mao Tsé-Tung e Jesus Cristo. Naquele tempo, dava pra misturar, era mais ou menos os ideais e ela trabalhava lá com aquelas freiras libertárias e tal e o trabalho que elas faziam, isso é interessante: nas peças de teatro tinha aquele primeiro ato, segundo ato, no intervalo entravam as duas correndo no palco e falavam o que estava acontecendo. Eu lembro de uma das coisas: “As meninas de Ibiúna estão sendo estupradas sem parar, elas pedem anticoncepcional. Vamos conseguir anticoncepcional” e saíam correndo, no intervalo das peças. Vocês conheciam, sabiam que tinha isso? Minha mãe fazia isso. Ibiúna, famoso caso de Ibiúna. Vocês sabem o que era?
(01:19:19) P1 – Da UNE? Não.
R1 – A bomba que estourou no próprio militar, vocês sabem? Só ele. Eu não vou lembrar essas coisas, mas vocês procurem saber sobre a Ditadura. Um horror! A gente, no restaurante, não conversava, falava baixo. No café da esquina você falava assim. (sussurra) Entendeu? ‘Entregavam’, as pessoas ‘entregavam’. E aí... vocês sabem o que é ‘pau de arara’?
(01:22:25) P1 – Mas a questão acho que é justamente...
R1 – Temporada de Caça foi o seguinte: qual é o assunto? Eu já tinha voltado. Qual é o assunto? O assunto foi um grande diretor de teatro, o...
(01:22:43) P1 – Zé Celso?
R1 – O Zé Celso. Mataram o irmão do Zé Celso e começaram a avisar que estavam matando. Era o Jânio, nossa, com aquela tarântula, matava travesti. E começaram a ‘pipocar’, estavam matando os ‘viados’. Então, eu tinha um amigo que já morreu também, de Aids, naquele tempo morria muito de Aids. E aí ele disse: “Vamos, então, fazer isso”. Eu sei que eu não mostrei _____: “Mas por que esse filme só tem homem?". Porque naquele tempo estavam matando os homens e eu estava focalizada, o foco era nisso. E foi isso, fizemos Temporada de Caça e esse daí ganhou quinze prêmios. Fiz com o Dorian, que morreu, Dorian Castello Miguel e com ajuda geral e foi isso. Então, depois eu fiz Dias de Euforia, quando o Lula perdeu para o Collor. É legal até vocês três verem, porque ele mostra mesmo... quem tem trinta?
(01:24:32) P1 – Mas Dias de Euforia, o que foi? Era um filme em 1989?
R1 – É. Ah, e tem um que eu ‘botei’ legenda agora, que é impressionante, porque é de oitenta e pouco, que chama As Sibilas, que são videntes variadas e disseram tudo que ia acontecer, que está acontecendo. Então, eu recomendo, a quem for assistir a esse meu palavrório, que assistam Dias de Euforia e As Sibilas, eu acho que tem no meu canal do Youtube ainda, que chama Rita Moreira Vídeos e tem uma sigla lá, mas procurando Rita Moreira Vídeos vai acabar achando, que são muitos, mais de trinta videos. As Sibilas e Dias de Euforia, porque Dias de Euforia vão ver quando o Lula perdeu pra Collor e os generais... ai, que medo! A gente vive com medo. Vocês não têm medo?
(01:25:45) P2 – Posso te perguntar uma coisa também?
R1 – Pode.
(01:25:48) P2 – Você estava falando de quando você voltou pro Brasil, quando você fez _____ e tal, foi nessa época que você escreveu pro jornal Opinião, também? Pode falar um pouquinho? Você escreveu um pouco ou fez parte...
R1 - Não, eu escrevia pro Opinião lá de Nova Iorque. Eu escrevia... não, não escrevia pro Opinião. Eu fazia outra coisa... como que é o nome disso? Esqueci o nome dessa atividade. Eu lia os jornais americanos: Washington Post, New York Times e eu fazia o recorte das coisas importantes, pra mandar pro Opinião. Tem nome isso, esqueci o nome. Como é? Esqueci o nome. Mas era isso que eu fazia. E a Norma escrevia pra uma outra revista, do Gasparian também. E eu estive com o John e a Yoko e a Norma organizou isso, porque nós tínhamos feito um vídeo em cima de uma música da Yoko e fomos lá entrevistá-la, como você vai fazer comigo, pra ela ver o vídeo, se ela concordava. Foi uma coisa maravilhosa e muito louca, porque por causa do feminismo, o nosso negócio era a Yoko. Imagina! Os Beatles marcaram, cada pedaço da minha vida tinha um música. Quando saí da casa da minha mãe, eu ‘botei’ ‘She is leaving home, after living alone, for so many years’ e claro que eu adorava, mas como a nossa Helena era a Yoko, teve umas cenas muito engraçadas: no que a gente chega, estava o John descalço, com o filhinho dele, meio que pendurado nele e a Norma diz: “Hi, i am Norma”. Eu juro por Deus que aconteceu isso, ele disse: “Hi, i’m John”. (risos) Era o John Lennon! (risos) Aí o nosso foco era a Yoko e aí, passeando lá naquele apartamento deles, andando naquele corredor, olhando aquelas máscaras, ela tinha umas máscaras antigas, sabe? E aí a entrevista eu posso falar pra vocês, mas está em algum basement lá, perdido. Aí que eu vim a saber, porque aqui, com o negócio do meu pai saltar a cavalo e tudo, eu conheci muita gente rica, mas eu nunca conheci aquele tipo de riqueza. Talvez você saiba. Quando eu perguntei, ela nunca tinha andado de metrô. Eu falei: “Mas o metrô...” ela disse: “Eu nunca andei de metrô na vida", "E teve amigos?”, “Não, eu nunca tive amigos na infância”. Eu falei: “Mas por quê?”. Porque ela morava em Tóquio, ela disse: “Porque eu nunca tinha certeza se as amigas gostavam de mim ou se queriam andar a cavalo ou nadar no lago”, da casa dela. O pai dela, você sabe quem era? Banco de Tóquio. É a mulher mais rica que eu já conheci na vida! E assim mesmo - aí que eu comecei a saber do patriarcado – ela perdeu a guarda da filha, ela tinha um música que chama Don’t Cry Kyoko, ela fica só gritando daquele jeito maravilhoso. Ela é adorável. Ela ficava só gritando: “Don’t Cry Kyoko”, naquelas coisas japonesas. E era o pai poderoso. Quando ela [se] separou do magnata, que era o pai da Kyoko, ela perdeu a filha, a filha foi ficar com o pai. E aí que eu soube dessa riqueza dela. Eu lembro também de uma empregada dela, negra, na cozinha, nós comendo bolo de chocolate e eu lembro que a empregada nos olhava com certo ‘ar’ superior, a mim e à Norma. (risos) Vocês podem imaginar por que Nova Iorque foi o lugar mais divertido, interessante e adorável da minha vida? Aí eu pedi pro John... eu não estou inventando essas histórias. (risos) Ninguém ia acreditar, se eu inventasse. Como o som do nosso vídeo - aquela fita, assim, rolo aberto e tal – era baixo, (risos) eu pedi pro John: “Será que você não consegue aumentar um pouco o volume do seu equipamento?". (risos) Pro John Lennon! E aí ele respondeu... eu até hoje acho o John Lennon maravilhoso. Aí ele disse - parece eu, hoje em dia, (risos) olha que metida! – “Não, eu não entendo nada disso, (risos) não sei mexer nessas coisas”. Ai, a vida não era divertida lá? Meu dente salvo por sete testemunhas que eu nunca vi na minha vida. Política. Cadê a nossa política? Bem...
(01:32:20) P1 – E você voltou em que ano pra lá?
R1 – Eu voltei pelo seguinte: eu não sei nem onde que eu estava lá. Eu morei em muitos lugares. Morei numa casa incrível, acho que eu estava numa casa, éramos umas oito... aquelas casas que têm muitos andares, no Brooklyn, e cada uma num quarto e tinha vários banheiros também, mas eram só mulheres. E cada uma de uma linha: uma comunista, outra mais feminista, uma trabalhava pro governo, porque acho que tinha... era o Carter, naquela época, foi o melhor presidente que teve. Acho que tinha o Carter, no meu tempo. Nossa, o melhor presidente ever dos Estados Unidos. Aliás, foi ele... é, sim, era o Carter, porque foi ele que influenciou pra que terminasse a Ditadura aqui. Alguém outro dia me mandou e-mail dizendo: “Não, os Estados Unidos vão nos ajudar”. Eu estava achando que os Estados Unidos não estavam dando a ‘menor bola’ pro Brasil. O Brasil virou uma ‘caca’ e quando aquela besta, ontem, diz: “Porque o Brasil alimenta o mundo”. O agro, o agro, o agro, o agro do Brasil alimenta o mundo e a gente destrói a Amazônia, tudo, e o povo morrendo de fome. Agora, estou falando obviedades, mas precisa, né? Não é isso? Vocês, mais ou menos, concordam? Mas tinha uma pergunta.
(01:34:15) P1 – Quando foi que você veio pro Brasil?
R1 – Em oitenta. Por quê? Pelo seguinte: eu acho que o último político honesto, tem uma história interessante também, com ele: o Franco Montoro tinha sido eleito alguma coisa e ele era muito amigo do meu pai e aí eu falei: “Bem...”, acho que ainda não tinha acabado a Ditadura, ou tinha? Não sei. Oitenta, eu voltei em oitenta. Quando que...
(01:34:48) P1 – Oitenta e cinco.
R1 – Ah, então não tinha. Foi em oitenta que eu voltei? Não, acho que eu voltei e voltei pra lá de novo. Teve uma hora que eu vim pra cá, fiquei seis meses e voltei. Mas aí eu falei: “O Montoro vai ser governador e agora eu não estou conseguindo mais nada” e voltei. Eu lembro [de] uma cena, será que foi nessa época? Eu lembro eu na casa da minha mãe, eu e a Norma, diante da lareira, que nós voltamos e ficamos aqui uns quatro meses. Eu lembro de nós duas chorando, por causa do Brasil. Agora eu estou um pouco melhor, embora ainda um pouco agitada, mas há um tempinho falava a palavra Brasil, eu começava a chorar. Aqui, agora. Muito medo. Eu vi cada coisa! Eu vi na Avenida Paulista, recentemente, um homem dando um tiro. Tinha uma daquelas manifestações, em que houve... é uma coisa horrível. Mesmo agora, lá no Largo São Francisco, eu não tive coragem. Também, eu já estou velha. Aí, uma amiga minha que vive em Berlim, disse: “Não, Rita, deixa agora os jovens irem, não vai”. Eu tenho medo. Porque, quando eu voltei, então, estava o Montoro e aí eu pensei: “Talvez as coisas fiquem um pouco melhores” e eu voltei. Mas esse negócio de voltar eu não gosto. Agora eu estou aqui. (risos)
(01:36:45) P1 – Naquela época, nesse período, não sei, tinha a Augusta também, alguns... o Ferro’s Bar, se você frequentava...
R1 – Ah, o Ferro’s Bar, eu frequentei e a Irede Cardoso subiu numa cadeira, porque aqueles cretinos dos donos do Ferro’s Bar, que só tinha lésbica, a maior frequência era de lésbicas e eles começaram a resolver que eles iam ‘purificar’ o Ferro’s Bar, então não queriam mais lésbicas. Aí eu lembro da Irede Cardoso, subiu numa cadeira e nem lésbica ela era, aliás eu não acho que lesbianismo nem viadagem, nem nada disso, não é isso que salva o mundo, mesmo porque o mundo não tem salvação. Podemos quase chegar ao fim e eu falar sobre o que eu acho da humanidade? Mas pergunta mais alguma coisa. Você quer saber alguma coisa?
(01:37:49) P1 – Se você puder terminar essa história que você falou do Ferro’s Bar...
R1 – Mas é só isso. Eu não ia muito lá, porque era um lugar mais modesto economicamente. Era um... vamos falar... não era um lugar muito de boa comida, nem muito bacana. Era um lugar de classe média baixa e eu não tenho vergonha nenhuma de dizer que eu nunca fui classe média baixa, eu era classe média.
(01:38:21) P1 – Tinha algum outro lugar que você chegou a frequentar, que tinha...
R1 – Ah, não, tinha uma boate. Eu me lembrei que eu era tão feliz, mas quase só tinha preta, ou mulata. Era na Rua Santo Antônio, mas eu lembro de eu ir lá sozinha, porque a música era ótima. Mas eu nem sei o nome da boate. Em Nova Iorque, sim, havia vedetes, que são citadas em muitos livros. Lá no The Dutchess, a gente dançava, dançava. Ai, outra coisa boa que eu fiz na vida - ainda bem, até hoje eu ainda danço, sozinha mesmo - é dançar. Quase toda noite a gente ia pro The Dutchess e a gente dançava, dançava, dançava e organizava as próximas passeatas e marchas etc. Era o máximo!
(01:39:11) P1 – Em São Paulo, você dançava onde, mais, aqui, nessa época?
R1 – Nesse lugar, eu não fui muitas vezes, mas eu nem sei o nome. Ahhh, olha que lembrança! Tinha um lugar ali, sabe onde? Avenida Ipiranga, tinha uma esquina, era conhecida essa boate. Como era o nome? O pior é que eu esqueço o nome. Ainda era Ditadura, nós estávamos lá dançando, mulheres, acho que era só mulheres... como chamava? Talvez tivesse um ou outro homem. A gente estava dançando no... era grande, lá. Como que era o nome? Olha, talvez vocês descubram o nome. Ficava, sabe a Avenida Ipiranga? E tem uma ruazinha do lado de lá, perto do bar... daquele Redondo, do Redondo. Eu frequentava o Redondo. Ah, uma coisa gostosa da minha vida foi que eu convivi também, muito, com a Bethânia e o Caetano, no comecinho. Eu sempre era dos começos. Quando ela estava lá no Teatro Ruth Escobar, fazendo Carcará. E o Caetano... eu tinha um programa na televisão, também, de entrevistas e era ótimo, porque eu entrevistava - mas era São Paulo, né? Não era Nova Iorque – Caetano, eu lembro dele com um monte de cartinhas, assim, que ele vivia com saudade da Bahia. E aí eu nem sei se ele lembraria de mim. E a Bethânia eu acho fantástico, porque ela é mesmo muito honesta e ela merece ter virado essa rainha. Uma vez eu estava ensinando-a a guiar no meu Fusquinha e estava chovendo e eu falei: “Não, agora diminui, diminui”, porque era entrando ali na Brigadeiro, vindo lá da Liberdade. “Diminui, diminui, diminui” e ela não diminuiu e pá, bateu o meu Fusquinha na parede. No dia seguinte ela veio com aquela ‘montanha de dinheiro’: “Quanto é que é o conserto do Fusquinha?". Coisas que a gente não esquece, né? Mas ela não deve lembrar nada disso, porque tudo que eles viveram e viraram e são magníficos.
(01:41:31) P1 – Mas como que é esse bar que você falou que era perto da Ipiranga?
R1 – É o Redondo. A gente ia, todo mundo, pro Redondo. Em frente ao Teatro de Arena. A gente ia muito ao Teatro de Arena. E tinha um bar, Redondo, todo mundo ia pro Redondo.
(01:41:50) P1 - E aquela casa de dança que você estava falando, você ia contar uma história sobre...
R1 – Como é o nome? Ahhhhhh, é. Olha! Nós dançando, dançando, dançando, dançando, aí entram eles, porque a qualquer hora, em qualquer minuto, podiam entrar ‘eles’. Espero que eles não estejam aí, na porta. A polícia. (sussurra) Aí entram os militares, menino, uns quinze. E dão a volta. Era grande, lá, sabe? Como era o nome, lá? Era famoso esse lugar. Era grande, bem grande. Crocodilo? Não, era um nome, assim... que pena que eu esqueci o nome! Eu acho que lembrar... mas não é bar, é de dança.
(01:42:44) P1 – Boate?
R1 – Boate lésbica perto da Avenida Ipiranga. Aí eles, aqueles militares todos dão a volta com aqueles revólveres, assim, em volta e sabe o que nós fizemos? Ai, me arrepia! Continuamos dançando, dançando, dançando e dançando. E era Ditadura, ainda. E eles dando a volta, dando a volta, dando a volta e nós, olhando umas pras outras, assim e dançando, dançando, dançando. Foi muito emocionante isso que eu vivi. Não sei se a descrição… vocês podem imaginar. Era grande o tablado e aquele pessoal nosso.
(01:43:38) P1 – Vocês estavam no meio, dançando, você e suas amigas? Vocês achavam que ia acontecer isso?
R1 – Não só as amigas. Eu e toda... era grande esse lugar. Ia muita mulher. Muita.
(01:43:52) P1 – E isso era uma coisa que vocês, toda vez que saíam, esperavam que podia acontecer, ou não?
R1 – Não, pra mim foi só essa vez, mas eu não dançava tanto aqui no Brasil, em São Paulo, como em Nova Iorque. Nova Iorque era uma maravilha!
(01:45:00) P1 – Rita, posso voltar uma coisa só? Essas rondas policiais eram normais nas boates? Eles ficavam na porta?
R1 – Não só nas boates. Como eu falei, na Abril, em cada corredor tinha um espião. Eu participei de uma... pelo menos eu salvei uma vida. Na Abril, de vez em quando, iam... eu tinha um amigo, na Abril, o Paulo Patarra e mais de uma vez nós fomos pra Campos do Jordão, tipo fugindo, porque eles ficavam olhando: “Comunista, comunista, comunista” e iam atrás, anos atrás, quem era comunista há não sei quanto tempo e resolviam chamar, ‘pra conversar’. Chamar ‘pra conversar’ era torturar e às vezes matar. Então, uma vez pegaram uma... esqueci o nome dela, agora. Tinha uma que era de um grupo e os caras estavam lá, pra buscá-la, na Nova Cultural não, no segundo andar, eu acho. Eu trabalhava onde? Na, sei lá, Capricho, sei lá. Mas é meio... ‘botamos’ a moça, os amigos dela a ‘botaram’ no banheiro e ficaram convencendo o diretor dela, que era o... também esqueci o nome dele, porque ele ficava: “Não, por que ela não vai? Eles só querem fazer perguntas”. A Irede Cardoso, que era do Dedoc, sabia que não era assim e dizia: “Mas como você a manda ir? Eles não vão só fazer perguntas!”. E o dia inteiro foi aquela emoção dela escondida no banheiro, o corredor, o banheiro no fundo, o cara querendo que ela se entregasse e a gente organizando por onde que ela foge. Eu não era como a minha mãe. Quando minha mãe fazia aquelas coisas, perguntaram pra minha mãe: “E a sua filha, não está no movimento contra a Ditadura?". A minha mãe disse: “A minha filha está na revolução dos costumes”. Olha como a minha mãe ‘sacava’ de mim! A minha mãe, naquelas ocasiões, dizia: “Se eu não chegar até tal hora, você ligue pro telefone tal”. Eu ficava só na ‘cobertura’, de longe, mas eu não estava na luta contra a Ditadura, eu gostava mais era de ir embora. Mas nesse caso eu estava trabalhando na Abril, acho que foi antes de eu viajar. Não lembro se foi antes ou depois. E ela no banheiro, o tempo inteiro. Aí organiza, que organiza como ela vai fugir, uma outra amiga, a Inês, ficou decidido que o jeito era fugir na hora que todo mundo sai da empresa, todo mundo aglomerado e quem ia guiar o carro era a Inês. A certa altura vem a Inês na minha mesa - é isso, a minha vida é assim. Tem uma coisa: “Vamos?”, “Vamos” – e disse: “Olha, Rita...”, porque a gente dava um nome pra ‘eles’, sei lá. Era uns homens ridículos, enormes, que se vestiam de jornalista, com aqueles revolveres enormes embaixo do suéter. Tinha um lá, já na entrada; tinha outro antes da entrada, no nosso corredor, com grandes fotografias delas. Eles não sabiam a cara dela. E aí a Inês chegou na minha mesa e disse: “Olha, Rita, eles já me pararam, porque o meu carro não estava no estacionamento, eles já pegaram o número do meu carro”. Então, nós resolvemos, porque eu era muito louca, eu sempre dirigi muito bem, imagina que eu apostava corrida com o Paulo, na Marginal, de carro. Eu levei tanta ‘trombada’! Dei tanta ‘trombada”, mas eu guiava muito bem. Aí a Inês veio na minha mesa e disse: “Olha, ficou resolvido, porque eles já pegaram meu carro, que quem vai dirigir é você. Nós vamos ‘botar’ um monte de mulher no meu carro, lá embaixo nós vamos juntar um grupo e vamos todo mundo em cima dela e nós vamos sair na frente deles, fazendo um burburinho, como se fosse umas mulheres malucas: ‘Tarará, tarará, tarará, tarará’”. Pois assim foi. E eu me lembro de ver aquela mão, com aquela fotografia no alto e nós. Agora, na hora – rapazes, vocês me desculpem – da organização havia uns dois rapazes tentando fazê-la fugir por outro lugar e tal. Na hora de ir pro carro, a cobrindo, sabe quem foi? A diretora de Manequim, de arte e a diretora de moda de Claudia, duas outras jornalistas, só tinha mulher, ‘sacou’? E mulheres assim, era uma francesa a diretora de Manequim. Era uma revista que tinha, não sei se ainda tem. A diretora de Claudia, pra fazer a ‘montanha’ em volta dela. Aí nós fomos naquele berreiro, berreiro, ela abaixando, assim, nós naquele berreiro, isso às seis da tarde, na hora da saída. Eu lembro de ver aquela mão, com a fotografia. Entramos no meu carro. Agora parece que eu estou contando vantagem, mas não é vantagem, é verdade. Vocês queriam saber da Ditadura, lá na Abril havia um hábito muito feio que, quando as pessoas iam fazer freelancer, levavam a máquina de escrever pra casa e às vezes... às vezes, não, muitas vezes não devolviam a máquina, surrupiavam a máquina. Por causa disso a saída do estacionamento tinha uma corrente, porque eles tinham que revistar o carro, pra ver se não estavam levando máquina de escrever, que era grande assim, aquela Olivetti, sabe? Pois a ordem que eu tinha era não parar. Ai, que parece tanto que eu estou contando uma vantagem! Mas não é vantagem. Era uma... me puseram nessa função, eu fiz. E eu guiava muito bem. Pá. Não parei pra inspeção do carro. Claro, aquele monte de mulher abafando a outra, que estava deitada no chão, quebrei a corrente, pruuuuuuuuu e lembrei da minha mãe, né? Aí eu disse: “Olha, se você quiser, a gente te manda pra Campos do Jordão”, porque toda hora, eu mesma, com o Paulo, vinham avisar: “Olha, foram na sua casa, Paulo”. Aí o Paulo: “Então, vamos ‘sumir’ um pouco”, mas a gente ia continuar trabalhando, então ficava três dias em Campos do Jordão e voltava. Isso era a Ditadura. Aí: “Não, não, porque eu vou passar pra outro carro”. Muito bem. Essa mulher foi salva, parece que depois estava trabalhando na ONU e toda a turma... como é que chamava? Do grupo dela, tinha um nome isso, quando tem um... esqueci o nome. É porque é o nome que usam, assim. Todos foram mortos.
(01:53:05) P1 – Da república dela?
R1 – Não é república, não. Era um nome... eles eram... a minha mãe apoiava o pessoal que roubava banco, pra sustentar.
(01:53:14) P1 – Da célula?
R1 – Sei lá. Todos os companheiros dela foram mortos. Quer dizer: eu salvei uma vida, mas por acaso, porque aquela era a situação habitual. Quem quer viver desse jeito? Mas hoje em dia, as pessoas que eu conheço todas têm medo, lá, com o zelador, quando ele disse: “Eu distribuí o vídeo pra minha turma do grupo deles, o vídeo, mas não vamos falar aqui. No prédio a gente não pode falar”. Mas à noite, eu não conheço muito o porteiro da noite, que fica lá na guarita, aí eu falei: “Oi, o senhor que já chegou?". Ele disse: “É. Com Lula, hein?!”. Então, todos os meus porteiros são Lula, mas é só entre nós que a gente fala e tem duas outras do meu prédio também. A gente não está podendo falar às claras as coisas. Isso era como era. Voltamos ao presente, que está um horror. Eu rezo, nunca pensei que eu ia rezar, eu rezo pelo Brasil, pro Lula, não matarem o Lula. Aumentou 400% o número de pessoas com arma e eu estou aqui, confiando em vocês, porque eu acho que vocês são jovens e se fazem o Museu da Pessoa é porque gostam das pessoas, mas a humanidade não tem jeito, é isso que era a minha... vou finalizar aqui: eu acho que a humanidade, o ser humano foi um desastre na evolução. Essa coisa da cabeça crescer, de ficar esse baita cabeção, que ao mesmo tempo que inventa esses foguetes, que vão à lua e que fazem coisas extraordinárias, poesia, literatura, é um desastre, se é que foi do peixe que virou macaco, macaco é melhor, qualquer bicho é melhor que gente. Não foi legal o crescimento desse cabeção. E eu acho que não tem jeito e que é o apocalipse e tem umas pessoas que: “Não, vão sobrar alguns”. Sobrar alguns o quê? Com a Terra em cinzas? Ou tem esses milionários, que acha que vão pra outro planeta, ou vão sair do bunker? Então, eu acho que gente... vocês fazem o Museu da Pessoa, mas pessoas são a pior coisa que existe em relação aos animais. E eu também sou uma.
(01:56:11) P1 – Essa que você falou do cabeção, o que é?
R1 – Esse cérebro ter ficado enorme foi um desastre. Apesar das grandes obras de arte, música...
(01:57:14) P1 – Então, tá bom.
R1 – Esse nosso cabeção magnífico é um horror. Eu tenho gatos, eu vejo que as coisas ruins que os meus gatos têm são coisas humanas. Eu tenho um amigo muito querido que diz: “Não, o nosso lado ruim é o lado animal”. Não, o nosso lado ruim é o humano. E podem dizer, não, eu já fiz dois testes de Alzheimer, não estou com Alzheimer, estou perfeitamente ok. Velha, esqueço às vezes do nome daquela boate que eu ia há séculos, né? Tá bom? Muitas felicidades.
(01:57:58:) P1 – Posso perguntar mais uma coisa pra você?
R1 – Pode.
(01:58:00) P1 - Tem alguma coisa que você espera do futuro, talvez, não sei, que você pensa...
R1 – Eu espero poder praticar minha própria eutanásia, eu espero não sobrar, eu espero não durar demais, mesmo porque o dinheiro não vai dar. Esse é o futuro que eu espero. Não tenho a menor esperança na humanidade.
(01:58:30) P1 – Mas você falou que tem algumas coisas que você gostaria de fazer ainda. É o quê? São projetos?
R1 – Não, acabei de desistir de um projeto que eu ia fazer uma entrevista que ia ser tão trabalhosa. Agora ela... nós discutimos, discutimos por e-mail, é uma mulher genial, mas tem muitas mulheres geniais e que eu ia entrevistar e fazer um longo... pra que ela fosse conhecida aqui, mas não adianta nada ela ser conhecida aqui. Não adianta nada. Ela escreveu um best-seller há anos, escreveu uns vinte livros e agora, depois de muitas discussões, ela me disse pra eu visitá-la, só, sem câmera, sem nada. E os melhores momentos da minha vida não foram ver o produto da minha câmera, foram coisas que eu vivi, foi naquele apartamento da Yoko Ono, onde eu entendi o que era arte conceptual. Eu achava uma maluquice, mas aí nós estamos no corredor e ela tem uma caixinha ali e eu falei: “O que é essa caixinha?”, num corredor que tinha as máscaras. Ela disse: “Essa é minha smile in box”. Eu falei: “Smiling box?” Aí eu abri a caixinha, ahhhhhhhhhh e eu fiz assim. O que tinha lá dentro da caixinha era só um espelho. Ai, me arrepia. Você entendeu? Você entendeu. Você é meio japonês, você entendeu. Tem umas coisas de japonês que são incríveis! Aí, quando eu vi, eu vi o smile lá. Isso é arte conceptual. Entendeu? Entenderam? Então, o que eu espero, nesse tempo que eu tenha que viver ainda, eu aprenda mais algumas coisas, porque eu aprendi recentemente essa questão da alma. Porque o Schenberg diz. Eu vou até o negócio do calor. O calor saiu de mim. Em algum lugar está. Foi para o espaço. Até aí tudo bem. Mas aí ele diz que o calor guardaria nossas características e, conforme as nossas características, a gente se grudaria em alguma coisa legal. Ou senão, se fosse uma coisa pesada, se grudaria numa coisa pesada. Mas aí já são possibilidades, invenções, porque ele era um físico, porque aí está falando de uma continuidade, que seria até o negócio das vidas, apesar que eu tive comprovações de umas vidas passadas, minhas. Li muito Shirley MacLaine. Também, à essa altura, o que eu já li! Então, eu acredito até só na questão do calor, esse calor que saiu, como a Yoko Ono disse, quando John morreu. Eu falei: “E agora?". Não fui eu. Isso aí eu não estava lá, quando ele morreu, ela disse pra o mundo: “Agora ele faz parte do Todo”. Eu acho mais isso. Que o calor vai e faz parte do Todo. Agora, outra coisa é sobre a consciência, isso que eu tenho certeza, por causa do zen: a consciência não está aqui dentro do cérebro, está fora, porque o que aconteceu de milagre na minha vida, não é milagre de curar doença, não. Milagre, coisas extraordinárias. Minha mãe tinha uma telepatia que era uma coisa extraordinária. Essas histórias ficam pra outra vez, porque são várias: os milagres da minha vida.
(02:02:37) P1 – Passa pra próxima?
R1 – É, porque tem um que não é ninguém que curou de câncer, nem que eu sarei de nada. Não, são fatos extraordinários. Eu li muito Jung. Você gosta de Jung? Quais são suas profissões? Deixa eu fazer um pouco de pergunta. Formação, sei lá. Interesse, sei lá.
(02:03:07) P1 – Eu fiz História, professor de História.
(02:03:11) P2 - Eu fiz Artes Plásticas. Eu faço animação, audiovisual, mas também gosto muito de poesia.
R1 – Ahhhhh, então:
“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que às vezes finge que é dor
A dor que deveras sente
E, assim, pelas calhas de roda,
Gira a entreter a razão
Esse comboio de corda
Que se chama coração”.
(02:03:41) P1 – Isso é Pessoa…
R1 – Pessoa. Tá bom?
(02:03:46) P1 – Está ótimo.
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