IDENTIFICAÇÃO O meu nome artístico é Guti Fraga mas o nome mesmo é Gotschalk da Silva Fraga. Eu nasci no dia 15 de março de 1952, em Alto Garças, Mato Grosso, na beira do rio Araguaia, divisa entre Goiás e Mato Grosso. NÓS DO MORRO / INÍCIO O Nós do Morro nasceu em 1986, na favela do Vidigal, Zona Sul do Rio de Janeiro. Eu fazia jornalismo desde 1977 e convivia dentro da comunidade, percebendo muita gente talentosa que não tinha oportunidade. TRAJETÓRIA PROFISSIONAL A questão da oportunidade me incomodou durante a vida toda, talvez por eu ter sido muito pobre, mas sempre com boas oportunidades. Por isso, tem sido inquietante perceber pessoas sem caminhos por onde encontrar essas oportunidades. Dentro do Vidigal, eu já tinha experimentado outras coisas que eu tinha curiosidade, por exemplo, dar aulas de apoio voluntariamente para as crianças. Normalmente, é uma comunidade onde os pais saem muito cedo e voltam muito tarde, então, as crianças ficam sem acompanhamento escolar; não tem aquela história do filho chegar em casa e o pai dar atenção. Isso faz uma falta muito grande Eu sempre tive também um problema com a questão metodológica: como ensinar um aluno a escrever algo do tipo “o carro do papai é vermelho”. Que carro? O garoto nunca entrou num carro, ele é pobre e tem no máximo um carrinho de mão. O caminho do Paulo Freire me instigou muito: a questão de se buscar algo muito próximo do universo da pessoa para que ela construa o conhecimento. Eu trabalhei uma época com isso, numa Igreja. Depois a Igreja acabou e eu parei. JORNALISMO Terminei o curso de jornalismo na UFRJ em 1980. Um pouco antes de terminar, eu tive uma vontade grande de fazer uma imprensa que acreditasse num tipo de mídia com a linguagem coloquial da rua. Eu vivia ali no morro, eu me apossei daquela cultura, daquela forma de vida. Então, eu chamei uns amigos que eu já conhecia e montei um jornal chamado Mural. Era...
Continuar leituraIDENTIFICAÇÃO O meu nome artístico é Guti Fraga mas o nome mesmo é Gotschalk da Silva Fraga. Eu nasci no dia 15 de março de 1952, em Alto Garças, Mato Grosso, na beira do rio Araguaia, divisa entre Goiás e Mato Grosso. NÓS DO MORRO / INÍCIO O Nós do Morro nasceu em 1986, na favela do Vidigal, Zona Sul do Rio de Janeiro. Eu fazia jornalismo desde 1977 e convivia dentro da comunidade, percebendo muita gente talentosa que não tinha oportunidade. TRAJETÓRIA PROFISSIONAL A questão da oportunidade me incomodou durante a vida toda, talvez por eu ter sido muito pobre, mas sempre com boas oportunidades. Por isso, tem sido inquietante perceber pessoas sem caminhos por onde encontrar essas oportunidades. Dentro do Vidigal, eu já tinha experimentado outras coisas que eu tinha curiosidade, por exemplo, dar aulas de apoio voluntariamente para as crianças. Normalmente, é uma comunidade onde os pais saem muito cedo e voltam muito tarde, então, as crianças ficam sem acompanhamento escolar; não tem aquela história do filho chegar em casa e o pai dar atenção. Isso faz uma falta muito grande Eu sempre tive também um problema com a questão metodológica: como ensinar um aluno a escrever algo do tipo “o carro do papai é vermelho”. Que carro? O garoto nunca entrou num carro, ele é pobre e tem no máximo um carrinho de mão. O caminho do Paulo Freire me instigou muito: a questão de se buscar algo muito próximo do universo da pessoa para que ela construa o conhecimento. Eu trabalhei uma época com isso, numa Igreja. Depois a Igreja acabou e eu parei. JORNALISMO Terminei o curso de jornalismo na UFRJ em 1980. Um pouco antes de terminar, eu tive uma vontade grande de fazer uma imprensa que acreditasse num tipo de mídia com a linguagem coloquial da rua. Eu vivia ali no morro, eu me apossei daquela cultura, daquela forma de vida. Então, eu chamei uns amigos que eu já conhecia e montei um jornal chamado Mural. Era feito com aquela velha maquininha de escrever, com carbono. Tinha três cópias e colocávamos essas cópias em pontos estratégicos dentro da comunidade. O Jornal Mural era importantíssimo, porque todo mundo tinha a oportunidade de ler e ver opiniões. É muito importante as pessoas terem opiniões e refletir. Eu nunca censurei: lançava as idéias, as pessoas escreviam e eu inseria como elas escreviam as suas próprias opiniões. Até que em 1980, houve um problema comigo. O Papa veio ao Brasil pela primeira vez, aquela história toda. Eu fiz uma matéria de capa para o Pasquim – foi o único trabalho que eu fiz como jornalista – e eu juntei com uma matéria que eu coordenara no Jornal Mural, onde as pessoas não concordavam com algumas situações da vinda do Papa, como calçar um caminho para o Papa passar, enquanto uma senhora no seu dia-a-dia passava com seus filhos por aquele lugar. Isso incomodava, mas não era a minha opinião de jornalista, e sim de um morador que escrevia no jornal. Foi suficiente para criar um desafeto comigo. O sistema, um dia antes do Papa chegar, tirou todas as coisas, os murais e levaram tudo. Ainda me pegaram na rua e me deram um soco. Isso foi em 1980 e eu falei: “Não quero mais saber disso, não quero mais saber. Esqueço que eu sei escrever” – e na verdade eu nunca soube escrever muito, porque a minha linguagem era outra. Claro que tinha nessa decisão um pouco do excesso de irreverência natural do jovem, mas eu resolvi largar tudo e me imbuí somente do teatro. TEATRO Eu comecei a trabalhar profissionalmente com teatro. Trabalhei com Domingos de Oliveira, num grupo de pesquisa. Posteriormente, trabalhei com a Marília Pêra e com ela foi um casamento de vida: trabalhamos juntos durante seis anos ininterruptos, nos quais eu não sabia fazer outra coisa que não fosse trabalhar com ela. Era maravilhoso poder viver de teatro Quem sempre sonhou com seus mitos, de repente se perceber vivendo no eixo Rio - São Paulo, o sonho de qualquer artista: ter um apartamento em cada uma dessas cidades, viver esse glamour dos grandes artistas... Quando me vi no meio de tudo isso, falei: “Que coisa maravilhosa É isso que eu quero Isso é o que todo artista quer” Essa história foi rendendo, só que chegou a um determinado momento, em que algo dentro de mim pulsava estranho: pulsava estar com as pessoas na rua e seus talentos estarem soltos, sem oportunidade. Sempre a questão da oportunidade Acho que quanto mais oportunidade eu tinha, mais me incomodava a falta de oportunidade das pessoas. MARÍLIA PÊRA Eu morava no Vidigal. A Marília Pêra foi uma pessoa muito importante na minha vida, porque ela me deu algo chamado auto-estima. Talvez seja uma palavra chula de dizer, mas para mim – que não tinha certeza da minha capacidade e de várias coisas na minha vida social mesmo – era muito importante. A Marília me resgatou da minha capacidade, da minha possibilidade, da minha responsabilidade, do meu talento, pois até então eu tinha dúvidas. Quando não se tem auto-estima, aparecem as dúvidas. Ela me deu tudo isso, ela foi a pessoa responsável por eu ter tido a coragem de transformar isso. O DESEJO DE EXPERIMENTAR Um dia, quando trabalhava com a Marília Pêra, eu estava em Nova York e, enquanto todo mundo ia para a Broadway, eu que morava no morro, queria ir para o Brooklin. O pessoal com quem eu estava falava assim: “Não vai, não vai que é perigoso. Não anda de metrô à noite porque é perigoso.” Eu falei: “Pô, cara, eu sou de morro Gringo é gringo, em qualquer lugar, a malandragem é universal.” Então, eu só não podia falar, porque se eu abrisse a boca, falaria besteira, todo mundo ia sacar que eu era gringo. Eu saia, ia às peças da off Broadway e nos lugares mais absurdos. Eu fazia a linha mudo, a linha “garganta doendo” para não abrir a boca e não falar nada, porque nesses lugares como o Brooklin fazem umas coisas punks com gringos. Eu era um gringão, um idiota que nem falava inglês, como não falo até hoje, infelizmente. Lá eu assistia a alguns espetáculos em salinhas que cabiam 10 pessoas, mas tinha qualidade, figurino bem acabado, uma luz bem feita, atores ótimos, geniais. Eu fui tomado por essa sedução de qualidade, de desejo de experimentar. O Brasil, estava no momento de experimentação do teatro, a fase Bia Lessa, Gerald Thomas chegando, essa galera que começou a experimentar. Eu falei: “Éisso que eu quero” Então, quando eu voltei de Nova York, eu já estava determinado a largar tudo o que eu tinha construído, inclusive o glamour. Eu sabia que tudo ia ter que mudar na minha vida se eu tivesse coragem de fazer o que queria: não poderia mais comer no Antiquarius – um restaurante cinco estrelas – e teria que voltar para um balcão de botequim; não poderia mais pegar táxi, e sim voltaria de buzum, um ônibus e olhe lá, e de vez em quando ainda tendo que dar calote. Eu voltei determinado, fosse como tivesse de ser, era algo determinante dentro de mim e ninguém entendia como eu tinha coragem de largar tudo. INÍCIO DO NÓS DO MORRO Claro que eu absorvi, e primeiro juntei meus companheiros técnicos: o Fred Pinheiro, um garoto que escrevia comigo no Jornal Mural e que acabou se formando em jornalismo e literatura, caminhou por esse lado. Me juntei também com o cenógrafo Fernando Mello da Costa e, na seqüência, a Zezé. Nós formamos essa equipe de base do Nós do Morro, que não se chamava Nós do Morro ainda. Eu os chamei e disse: “Quero montar um projeto de teatro no Vidigal, mas não simplesmente montar um grupo de teatro, e sim um grupo de teatro com filosofia de vida”. Eu não queria trabalhar com a piedade, com o coitadinho. Queria passar para os outros tudo o que estava trabalhando nos grandes momentos, nos grandes lugares. Queria estar ali vivendo inteiramente tudo o que eu aprendi, tentando passar essa filosofia de vida. Primeiro, o grupo foi batizado de “Nós”. A idéia era de coletivo, para que as pessoas pudessem ter pensamento coletivo. Isso é a base de tudo e, até hoje, é batido rigidamente na organização. Ter idéias multiplicadoras: repassar as oportunidades para quem necessita, não como uma obrigação, mas como necessidade da alma. VALORES ORGANIZACIONAIS A solidariedade verdadeira não é essa solidariedade de mídia que se vê por aí. A solidariedade é muito mais simples: é olhar nos olhos de alguém e perceber dentro dessa alma, como ela está. É ir no abrigo dos idosos, mesmo sem tempo, porque basta ir, ficar um segundo e tocá-los com solidariedade. Então, há um leque de possibilidades de ser solidário, e tem que estar imbuído na pessoa, nesse projeto. Junta-se a isso, a questão profissional: a disciplina, a organização, a responsabilidade, que são a única forma das coisas funcionarem. Isso não é caretice porque é compravado que quando nós desejamos, nos inserimos facilmente em normas estabelecidas. Junta-se a isso, evidentemente, o “com licença”, o “por favor”, o “muito obrigado”, o não jogar papel no chão, enfim, ser um cidadão bacana, para ser um artista bacana. Nunca focamos a questão do ator, mas sim do artista. O artista é aquela pessoa que emana a arte de dentro para fora de verdade. Não é aquele que quer protagonizar e ponto, mas aquele que hoje pode estar protagonizando uma história e amanhã estar na portaria sendo porteiro, depois de amanhã fazendo assistência, ou cuidando do banheiro, do camarim, de contra-regragem. Isso tudo é digno. Eu tinha que abrir um leque de possibilidades, porque seria hipocrisia falar que alguém ia viver como ator. É uma mentira. Eu até hoje falo: “Se você vem para cá para viver como ator, desce, vai jogar na mega-sena. É mais possível.” Esse caminho é uma realidade. INÍCIO DO NÓS DO MORRO O Nós do Morro começou com essa idéia filosófica, visando evidentemente, com tudo isso uma coisa: a qualidade. Desde o começo, eu sabia que a única possibilidade de caminho era a qualidade, senão não justificava ter largado tudo e entrar num projeto desse porte, querendo quebrar estereótipos e barreiras. Há 20 anos atrás, a cidade já era partida, mas não era como hoje. Agora, eu fico imaginando se não tivessem esses projetos que fazem os links nessa cidade tão partida? Não sei o que seria, seria pior do que já é a vida aqui. VALORES E QUALIDADE ARTÍSTICA Quando se junta profissionalismo com valores sociais e artísticos, já estamos fazendo um link. O grande problema que se enfrenta e que cada dia fica mais claro para o Nós do Morro é como costurar essas idéias quando se trabalha numa situação alternativa, como fazer esse link. Eu sempre falo do triângulo família, escola e teatro. Por quê? O teatro te dá um universo. Você começa a ter viagens inimagináveis e descobre a vida, descobre o seu eu, porque, acima de tudo, é terápico. Você se descobre de todas as maneiras e se insere nas regras estabelecidas, porque você deseja. A única opção que o pobre tem, e que o pai impõe, é que ele termine, pelo menos, o primeiro grau – e numa escola de péssima qualidade, porque ele cursa a escola pública. Infelizmente, eu tenho que dizer isso. É uma pena, porque é a relação num todo e se nos aprofundarmos nisso, vai ser uma outra história. Falar sobre a educação pública no Brasil é uma outra história. Não generalizo, mas em 90%, temos problemas. Nós achamos que a questão da família é muito importante, porque esse universo novo do Teatro tem que estar imbuído na família, e também na escola. Não justifica você ter uma transformação na sua vida, ser uma menina maneira no teatro e não ser maneira em casa nem na escola. Quando a família começa a vir ao teatro, ela está se transformando também. Ela está transformando sua própria linguagem e seu universo: ela passa a saber o que é iluminação, o que é cenografia, etc. A linguagem começa a fazer parte do seu cotidiano sem nem mesmo perceber que está mudando. Quando falamos em acesso, pensamos sempre no acesso financeiro, mas a pior falta de acesso é a cultural. METODOLOGIA DA SIMPLICIDADE O que fazemos o tempo inteiro é tentar buscar um processo de atuar da forma mais grandiosa possível. Todas as metodologias que utilizamos, pegamos do Stanislavski ao Brecht, Boal, Grotowski... Pegamos essas metodologias todas e tivemos que transformá-las numa metodologia própria, a metodologia da simplicidade. Hoje eu dou cursos fora e tenho uma dificuldade enorme de trabalhar com ator profissional, porque ele não tem simplicidade. Você tem que desmonta-lo por inteiro para pegar uma coisa simples. Um simples ato de pegar uma caneta: simplesmente pegar uma caneta e não interpretar pegar uma caneta. Os nosso atores têm esse diferencial. São atores que têm realmente um diferencial num set de gravação, pela atitude, mas também pela espontaneidade da interpretação. Tentar ter a verdade de estar te olhando e estar te olhando; de estar observando e estar observando. Então, nós encontramos uma metodologia em que buscamos caminhar através dela, só que trabalhamos fazendo e o caminho é trilhado nesse caminhar. ARTISTAS CIDADÃOS Formamos artistas-cidadãos e hoje somos uma família. Eu sou muito envolvido, nós somos todos muito envolvidos com o dia-a-dia e com a vida de todos. Porque se resolvemos ter um tipo de vida dessa, não dá para ter dez reais no bolso e ver alguém com fome. Eu não consigo, é o tipo de vida mesmo. Se eu tenho ovo e arroz na minha casa e você só tem arroz, eu vou dividir esse ovo na sua casa. Essa coisa de dividir o pão de cada dia, no sentido real, é uma atuação que o Nós do Morro tem. Nós nos orgulhamos muito dos filhos que hoje têm visibilidade, que têm uma situação financeira mais equilibrada. Eu fico tão feliz quando eu vejo esses meninos que têm mais recursos indo à boutique, ganhando roupas e ao invés de ficarem com todas as roupas, dividem com os colegas deles. Eu acho isso de uma grandiosidade que não tem palavras. É um privilégio doar, porque não existe só o doar: tem o receber também, porque poder viver a transição de vida de tantas pessoas, e poder ser um elo de possibilidades, é um privilégio que não se tem idéia É algo que te engrandece como ser humano. Em vários momentos da minha vida, eu pensei assim: “Meu Deus – às vezes, eu me questiono –, será que nessa vida eu vivi?” Sabe? Porque se você tem uma vida simplesmente vivida sem te dizer nada, você não viveu, você deu uma vegetada. Agora, o que é viver? Viver é realizar cada minuto da sua vida. Sabe a pulsação que temos? COTIDIANO DE TRABALHO Há 20 anos eu não sei o que é férias na minha vida. Atualmente nem tenho folga. Agora, existem formas diferentes, por exemplo, existe o trabalho alternativo, porque você também não quer ficar no misere. Óbvio, porque as coisas crescem, as coisas evoluíram, o mundo mudou, a globalização desordenada aconteceu, o ser humano se perdeu. APOIO DA PETROBRAS Nós ficamos 15 anos sem apoio nenhum. Até que aconteceu essa possibilidade da Petrobras nos patrocinar. Isso eu digo com muito orgulho e não é caretice, eu falo com verdade essa história. Meus amigos até brincam: “Você é o único patrocinado que não tira a camisa” Ouço de montão Eu visto mesmo, e visto com um orgulho enorme O apoio começou há seis anos atrás. Foi o primeiro apoio que nós tivemos. Nós tivemos um pequeno apoio, na verdade, da Prefeitura numa época em que a Vanda Bonelli era secretária. Era um apoio por seis meses, algo irrisório, mas que foi importante também, não posso dizer que não. Essa fase da Petrobras nos deixou com mais dignidade. Chega uma hora em que você fica bolado de estar fazendo a tarefa do Estado Eu acho que você não tem que preparar a cama para os outros dormirem. Nós nunca vendemos miséria. Nós sempre tivemos problema com patrocínio porque nunca vendemos miséria. Somos um projetos social? Claro que é social Se você está dando oportunidade a quem não tem, se está dando uma alternativa de vida, se está possibilitando ao ser humano sonhar num lugar totalmente caótico, espremido entre duas forças – o sistema local e o sistema externo – é óbvio que é social Se você é um garoto que normalmente passa fome e 70% das crianças é criada por mães solteiras, é óbvio que é social Agora, não precisa ficar carregando esse estigma nas costas Hoje, talvez nós até sejamos mais relaxados em relação a isso, mas nunca gostamos de ficar carregando essa bandeira da miséria. Com o patrocínio mudou tudo. Já tínhamos uma metodologia na cabeça e a procura, sempre foi incalculável a quantidade de pessoas que nos buscam. Nós criamos uma grade. Hoje nós temos uma grade que eu digo, sinceramente, é uma grade invejável. Nenhuma escola profissionalizante, e eu já fui diretor de uma aqui no Rio, tem a grade que nós temos. Nós temos história do teatro, história do cinema, literatura dramática, apoio escolar – que precisamos melhorar porque ainda é deficiente – artes plásticas, capoeira, interpretação, improvisação, música. Quer dizer, é uma grade invejável que não havia antes do patrocínio da Petrobras. Antes era tudo em cima da interpretação e da improvisação. Tem uma hora que tem que abrir, porque a sociedade de hoje é séria e foi após esse apoio que ampliamos culturalmente, aumentamos a nossa visão de vida através dessas aulas todas. O Nós do Morro não é um curso, é uma vida: você faz aula agora, você continua, fica a vida toda. Eu falo sempre que essa oportunidade que aconteceu, é revolucionária, porque o que nos diferencia hoje da classe média é simplesmente o financeiro e não o intelecto. Isso é a pura verdade. E por quê? Porque teve esse acesso ao possibilitar uma grade mais digna. Ainda temos tantas coisas para alcançar como, por exemplo, a gravidez precoce, que atualmente tem nos incomodado muito e outros trabalhos preventivos. O leque não pára de se abrir. PÚBLICO-ALVO Até três anos atrás o público era da comunidade para a comunidade. Há três anos nós mudamos, abrimos porque a busca era muito grande e as pessoas chegavam questionando muito porque precisavam de oportunidades. Porque é uma escola de teatro e cinema que tem essa grade e que não pára. Nas outras, você faz um ano e acabou. Aqui não, por isso eu falo: é uma vida que se vive continuamente. Hoje em dia, nós temos uma abertura para que venham pessoas de outras comunidades e até da própria classe média. Dentro da nossa avaliação, acho que essa fusão social é muito importante para que não fiquem guetos. Lutamos contra esses guetos a vida toda, então tem que haver fusão. Agora, é claro, essa fusão tem que vir com pessoas que a gente avalie que vão somar, porque elas vão receber essa filosofia de vida, essa forma de viver dividindo a vida com o acesso do pobre poder estar em qualquer circunstância social. Tem que ter uma contra partida. Por exemplo, esse último teste que nós fizemos foi surpreendente. Ficamos deprimidos por não poder classificar todos os concorrentes, porque tínhamos 100 vagas e 880 candidatos. Sem divulgação Quer dizer, o que te leva a classificar uma pessoa num teste? Não podemos pegar só pela qualidade, absolutamente. Não é qualidade, nós não estamos escolhendo os melhores. Acho que tem várias pessoas ali que têm uma cota que é social mesmo. Tem outros valores, não é para o palco, é para a vida. INTEGRAÇÃO COM A COMUNIDADE Quando falamos em acesso e oportunidade, não estamos falando só dos artistas. Também temos a função de trazer a comunidade para dentro do teatro. Então, o primeiro espetáculo, particularmente, foi muito corpo a corpo. Nós divulgamos na comunidade – divulgamos até hoje – mas na época, íamos de casa em casa, batíamos na porta e falávamos: “O senhor é nosso convidado, com a sua família, para ir ao teatro. O senhor gostaria de ir quando?” “Ah, tal dia.” “Aqui está o convite.” Quando ele recebia aquele convite e dizia que ia, ele se sentia ótimo por ser convidado, por ser prestigiado e ia com a família. Quando chegava lá, ele ia na bilheteria, trocava o convite pelo ingresso para entregar na porta. Esse é o acesso que eu falo: “Eu sei o que é um teatro porque já fui.” No primeiro espetáculo, nós ficamos seis meses em temporada, foi o tempo para levar a comunidade inteira lá. Quando o público todo chegava, sempre antes de começar, eu entrava: “Boa noite Eu queria dizer a vocês que essa luz foi criada pelo iluminador tal. A cenografia..., a sonoplastia, o figurino...” Eu começava a falar a linguagem teatral para eles se acostumarem e terem essa aculturação da comunidade também como público. Eu era sempre um bedel dentro das salas: “psiu, não pode falar” Tem a identificação, porque nós começávamos com um texto que falava sobre o cotidiano da comunidade e intercalava com clássicos da literatura brasileira. Também foi uma forma de ter a comunidade ali dentro e ela se ver quando vai ao teatro. Isso seduz, a questão dramatúrgica é muito importante para seduzir um público. Sempre trabalhamos com essa dobradinha. Desenvolvemos, evidentemente, uma dramaturgia, já há 20 anos. PRIMEIRO ESPAÇO Esse espaço que nós trabalhávamos, era um espaço muito louco. Quando eu comecei a trabalhar, tinha um padre austríaco-alemão que tinha construído um pequeno prédio lá no Vidigal com o apoio da Áustria e da Alemanha, mas a Associação de Moradores não gostava dele, porque ele era padre da Igreja Católica e morava com uma mulata. Esse padre tinha uma capela na comunidade e não podia celebrar missas porque era renegado pela Diocese. Nós ensaiávamos do lado de fora e quando ele soube do projeto, me convidou para ensaiar ali. Quando preparei o espetáculo, tentei negociar na capelinha, se não podíamos ensaiar lá dentro e, conversando com jeitinho, fomos transformando essa capelinha que não celebrava missa e começamos a fazer o teatro lá dentro. Fomos ampliando, pedindo: “Padre, dá para fazer só um puxadinho aqui no altar? É pequenininho, só para dar um puxadinho aqui.” Ele: “Olha, quando for liberado...” E fomos transformando, na verdade, essa capela num teatro e ficamos durante quatro anos nesse espaço até que dançamos. Na época, teve uma secretária de cultura muito importante aqui que quis acabar com o projeto. Ela me convidou para participar, para transformar na melhor escola de teatro do Brasil e quando eu topei, a primeira coisa que ela fez foi tentar tirar eu e a minha equipe. Eu falei: “Pô, tá maluca” Aí eu fiz uma loucura, tirei minhas coisas todas e quis queimar. Falei: “Vou chamar a imprensa e vou falar que a cultura queima a cultura, bota fogo na cultura” E eles: “Não faz isso não. Deixa disso, a galera quer te acompanhar, larga eles, não faz isso.” Então, começamos a buscar espaço até chegar à Escola Almirante Tamandaré, cuja diretora gentilmente nos deixou trabalhar lá, e onde hoje temos um teatrinho. APOIO DA PETROBRAS Eu acho que o apoio da Petrobras muda tudo: dignidade, possibilidade, e isso chega na comunidade também, obviamente. Se você tem um filho que faz parte de um projeto e sai imbuído de possibilidades, de informações, é claro que é transformador, mexe com as famílias. Mas acima de tudo é o seguinte: eu acho que as empresas tinham que ter essa relação, esse comprometimento. Quando eu falo de mobilização da sociedade, basicamente, é isso. Se as empresas tivessem essa ótica da Petrobras – eu falo isso não só pelo Nós do Morro, mas por vários projetos que eu conheço e se transformaram através desses patrocínios sociais que a Petrobras tem. Então, mudou tudo. A relação com a Petrobras sempre foi muito bacana. Sempre temos ouvidos para sugestões, quando falam isso ou aquilo, tentamos cumprir e o legal é que não é imposição. Quando eu falo que eu visto a camisa da Petrobras, eu visto por orgulho, como você quer ter orgulho da sua pátria, da sua família, da sua vida. Eu acho que a Petrobras tem essa característica e não é rasgação de seda. Falo isso sempre, dou muitas palestras e eu nunca deixo de dizer. A mídia é conturbada em relação a você falar com tanto empenho e às vezes eles não veiculam, eu até compreendo, mas a verdade tem que ser dita. Eu adoro quando eu vou a programas ao vivo e que eu posso falar com dignidade dessa parceria e de como casa, equilibra e faz parte do Nós do Morro. O link social que eu falava antes da cidade partida, se não houvesse, por exemplo, um patrocínio desses, seria difícil estarmos costurando tão fortemente. Eu não seguraria a onda, com certeza. Se você me perguntasse: “Guti, você faria tudo de novo?” Eu te responderia: “Não, eu não faria”. Eu não faria tudo de novo de trabalhar 15 anos sem um apoio. Eu não faria porque fico bolado com a história de perceber que estamos fazendo a tarefa do Estado. Quando começamos, podíamos contar nos dedos o número de ONGs na cidade, eu não conhecia nenhuma. Nós fomos um dos pioneiros e um dos últimos a ter um patrocínio. LINHAS DE AÇÃO Hoje, o Nós do Morro tem 20 anos de teatro e 10 de cinema. O cinema é muito importante também porque foi criado por Rosane Svartman e Vinícius Reis que são dois cineastas maravilhosos, éticos demais e não saem da questão filosófica do Nós do Morro; são parceiros que com grana ou sem grana trabalham com o Nós do Morro. Isso é muito importante. Hoje, temos uma parceria também com o Ministério da Cultura, diretamente com o cinema, no nosso Ponto de Cultura. Essa parceria é muito boa porque amplia a questão da qualificação. Até então, só tínhamos na grade a historia do cinema e roteiro. Agora temos uma grade mais completa: fotografia, edição... É bem bacana porque o cinema é um fato muito importante. Agora nós precisamos focar na música, e em várias áreas para tentar buscar uma auto-sustentabilidade por áreas. SUSTENTABILIDADE Nós buscamos e falamos da auto-sustentabilidade, mas o problema é que cada vez se cresce mais. A questão da sustentabilidade é importante porque tem muita gente que pára com o teatro porque precisa trabalhar e não concilia. Nós exigimos, pelo nosso critério básico, que o nosso público esteja estudando porque a escola é muito importante. Sobre a auto-sustentabilidade, eu não acho que cobrar dos mais ricos seria boa idéia porque estaríamos diferenciando uma pessoa da outra. Na verdade, no começo eu tinha uma forma – eu até gostaria de voltar, não sei como ainda – que era meio socialista, ou sei lá que palavra se dá a isso, que era todo mundo colaborar com cinco reais por mês para esse dinheiro virar tipo um banco da casa. Se num determinado mês uma família não tivesse dinheiro para comprar gás, então pegaria emprestado nessa caixinha. Seria para ninguém passar dificuldades básicas mesmo. Eu tenho esse desejo. MULTIPLICAÇÃO Como tivemos essa possibilidade de ganhar espaço, o Nós do Morro cresceu muito e estamos hoje com uma multiplicação em Nova Iguaçu; é algo diferente, trabalhamos com a educação. Se o projeto alcançar o longo prazo, será revolucionário porque eu vejo a grande revolução assim: você começa com uma criança de sete ou oito anos; quando ela estiver com 15 ou 16, aí sim, nós temos uma geração diferente, em que ela estará vivendo a possibilidade e a vida social que leva a uma transformação. Em Nova Iguaçu, nós trabalhamos com educação e nós somos patrocinados pela Petrobras em parceria com a Prefeitura local. Em Itaocara, Japeri e Saquarema, nós temos o apoio de um projeto chamado Tempo Livre do SESC, mas ele só apóia as oficinas durante um período de oito meses, que acaba agora. Nesses dois anos, nós conseguimos montar uma base em cada local dessas cidades e estamos agora começando a buscar essa possibilidade de sustentabilidade, porque lá não é tão grande como aqui. Aqui, parece que as pessoas pensam que a busca da sustentabilidade é através da televisão e isso é um grande engano. Eu sempre digo que precisamos ter sustentabilidade para fazer teatro. Esse é o grande barato. No interior, nós estamos buscando coisas do tipo artesanato em várias áreas. Começamos em Saquarema, porque nós fizemos uma pesquisa. Esse nosso novo espetáculo que estamos fazendo lá, veio de uma pesquisa e eu não sabia, por exemplo, que Saquarema era a cidade do barro. O que nós estamos fazendo? Estamos levando oficinas de artesanato de barro e de tecidos para tentar criar uma possibilidade – teria que criar mais parcerias, com Sebrae, sei lá – para se ter algo alternativo e que permita ao nosso público sobreviver para fazer teatro. No interior é muito mais punk você encontrar um trabalho, e quando consegue o jovem tem, no máximo três opções: pedreiro, mecânico ou trabalhar em supermercado e isso consome o tempo inteiro. O legal é que o artesanato valoriza o lado artístico do jovem também e abre esse leque de possibilidades, ao mesmo tempo que ele organiza o seu tempo, faz o próprio horário, possibilitando experimentar. Com essa multiplicação que estamos fazendo, nós queremos trilhar caminhos. QUEBRANDO ESTERIÓTIPOS O Nós do Morro ficou 15 anos para quebrar estereótipos através da qualidade. Só quando você começa a ganhar prêmios é que se torna um cidadão comum. Até então, você é um cidadão anônimo, como se não tivesse documento. O interior não é diferente, é a mesma coisa. Há cinco anos atrás, as pessoas olhavam: “Oi, Guti, tudo bem? Como é que vai o teatrinho lá no morro. Há 15 anos que você não faz outra coisa se não pesquisar profundamente a arte de interpretar, profissionalmente mesmo, e perguntam como é que está o teatrinho No interior não é diferente. Lá, além do problema de classe social, tem o problema do estereótipo do interior: “Ah, você faz teatro no interior? Ah, que legal” Nós queremos tentar criar uma possibilidade de que no interior possa ter a mesma qualificação, experimentalismo que temos aqui na capital. Ter uma cultural mais off, esse é um dos nossos objetivos. ENVOLVIMENTO DA COMUNIDADE O envolvimento da comunidade é total. Eu acho ela que respira teatro, respira cinema, respira cultura. É tão legal o que se vê no Vidigal hoje: primeiro, as pessoas vão ao teatro e sabem se comportar no teatro; as pessoas vêem um ídolo de televisão e ninguém fica “Ahhhhhhh”, não tem isso; Só falam: “Olha o fulano de tal”, porque isso é cotidiano para nós. Quando se tem essa fusão social, temos parcerias com pessoas como Luana Piovani, Caco Ciocler, Caio Blat, Maria Flor, uma galera que tem visibilidade e freqüenta de uma forma normal a comunidade e ela se acostumou com isso. Então, não tem mais isso de ir ao teatro e: “Ai, meu Deus, como é que eu vou fazer, como vou me comportar, que roupa eu tenho que colocar...” Isso é revolucionário, mas a gente não pára para ficar percebendo; hoje é normal. Queremos ainda ampliar mais, eu acho que a comunidade cresce se não ficar só no nosso espaço, queremos ganhar mais a comunidade, indo ainda mais longe, na comunidade que parece pequena, mas tem 30 mil habitantes. RECONHECIMENTO Eu volto a falar da Petrobras, ainda com muito orgulho, porque a Petrobras percebeu que hoje não é só o social que o Nós do Morro envolve. Nós ganhamos o mundo através da nossa qualidade de trabalho. Houve, na verdade, um divisor de águas na vida do Nós do Morro, a partir da Cidade de Deus, por exemplo, fora os prêmios que já tínhamos ganhado: o Prêmio Shell, o Prêmio Coca-Cola, Mambembe, Missão Honrosa da ONU, Unesco. São coisas que te fortalecem e que te deixam mais firme, com a auto-estima melhor. O Cidade de Deus foi um divisor de águas muito grande, foi um privilégio porque 50 % do elenco é do Nós do Morro. Eu tive o privilégio de ser o preparador da base toda do Cidade de Deus, trabalhando em cima dessas pessoas a mesma filosofia do Nós do Morro, porque quase 99 % era de não atores, fora os do Nós do Morro. Então, esses ganhos foram muito importantes. Hoje, nós temos uma parceria, por exemplo, com o Royal Shakespeare Company, o maior grupo sobre Shakespeare no mundo, em Stratford-up-Avon, onde ele nasceu. Esse ano que passou, por exemplo, o Nós do Morro foi em Stratford numa mostra completa de Shakespeare. Fomos e, pela primeira vez, nós tivemos um patrocínio cultural. A Petrobras Cultural patrocinou o nosso espetáculo Cavalheiros de Verona e Carmem de Tal, que está em temporada no Teatro Villa-Lobos. Os Cavalheiros de Verona vai agora para Curitiba, para o Sesi. Já fizemos temporada no Planetário, no Senac, aqui na cidade. Hoje, tem esse ganho maior que além do social, temos o cultural. É um privilégio estar envolvido com a Petrobras e ter este resultado do cultural – estou falando uma coisa muito séria – foi graças a esse link do social. Se não tivéssemos tido essa base no social, nós não poderíamos hoje estar nos aportando no cultural, pelo menos nessa companhia. Hoje, são duas companhias que o Nós do Morro tem. Tem um crescimento, um ganho muito grande. PLANOS FUTUROS O nosso plano para o futuro é continuar multiplicando, continuar sendo elo de possibilidades; continuar ampliando circuitos de cinema, ampliando circuito cultural, ampliando circuito social. Como eu falei, queremos entrar com mais afinco na questão da gravidez precoce, no apoio escolar, seguir mais para as universidades, queremos um ganho maior. Esse ano, vamos ver se começamos a galgar mais possibilidades em relação a isso. Queremos montar também uma equipe, um dream team, uma companhia de criança, de adolescente, para não ficar só o adulto, se temos tantas crianças talentosas. Eu tenho crianças de 10 ou 11 anos que estão no teatro desde os seis. Elas têm imaginação e são atores maravilhosos. Então, criar uma companhia de crianças, de adolescentes e manter essas companhias de adulto e ganhar mesmo, ampliar. Acho que o sonho é esse: poder somar sempre, e sempre acreditar que a vida levada através da arte é mais bonita de ser vivida, ela é muito mais possível. É isso aí, gente MEMÓRIA PETROBRAS Hoje em dia, eu sou muito seletivo em termos de entrevistas. Em 20 anos de vida profissional, quando você faz uma entrevista, tem uma técnica que você responde o que quiser. Eu comparo com o jogador de futebol, que às vezes enrola, enrola... Se você não quer responder, você parte por outro lado. Aqui, eu estive com o meu coração aberto. Eu já cheguei com meu coração aberto talvez pela recepção que eu tive ali também, isso te engrandece e te deixa muito a vontade, muito feliz. Quando me falaram que era para a Petrobras, eu vim com a alma aberta e feliz. É essa liberdade que deixa emocionar, se não, fica na técnica. É bom quando a gente pode se emocionar assim, significa que estamos renascendo, revivendo, alimenta a nossa vida. Obrigado a vocês pelo carinho.
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