Entrevista de Cícero José Constantino da Silva
Entrevistado por Sofia Tapajós
Caetés, 12/06/2025
Projeto: Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista número: PCSH_HV1458
Realizado por Museu da Pessoa
P/1 - Entrevista de Cícero José Constantino da Silva, entrevistado por Sofia Tapajós, Buíque, 13 de junho de 2025. Projeto Vida, Vozes e Saberes em Um Mundo em Chamas, entrevista número PCSH_1458. Cícero, mais uma vez obrigada por estar aqui com a gente hoje. E aí eu queria começar te perguntando o seu nome, local e data de nascimento.
R - Bom, meu nome é Cícero José Constantino da Silva, nasci em 26 do dois de 1982, sou residente e moro aqui na Vila do Catimbau, às margens do Parque Nacional do Catimbau.
P/1 - Qual o nome dos seus pais?
R - O nome da minha mãe é José Felzira Maria da Silva e o nome do meu pai é Pedro Constantino Filho.
P/1 - Você sabe como eles se conheceram?
R - Meu pai morava num sítio chamado Baixa Funda e minha mãe morava no quilombo em cima dessa serra que está aqui atrás da gente, e eles plantavam roça de mandioca e sempre se reuniam para fazer a farinha. Quando era para fazer a farinha era sempre uma festa, eles matavam porcos e iam comer a carne com a farinha que estava sendo aprontada ali. Aí nessas farras eles se conheceram e resolveram se juntar e casaram.
P/1 - E você sabe descrever um pouco como que é fazer essa farinha?
R - É difícil, é um trabalho árduo. A farinha, a mandioca é arrancada dos roçados, levada em jegues, na época, em cima de jumentos, até o ponto da casa de farinha, do local onde tinha o forno e as prensas, aí se juntavam muitas mulheres, aliás, as duas famílias, para retirar a casca da mandioca, raspar a mandioca, e ali começava todo o processo de trituração da mandioca para transformar na massa para fazer a farinha. Aí dividiam em três turmas, um ia buscar lenha pra colocar no forno, já tinha outros ali que iam fazer a mexida da farinha, outros ficavam...
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Entrevistado por Sofia Tapajós
Caetés, 12/06/2025
Projeto: Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista número: PCSH_HV1458
Realizado por Museu da Pessoa
P/1 - Entrevista de Cícero José Constantino da Silva, entrevistado por Sofia Tapajós, Buíque, 13 de junho de 2025. Projeto Vida, Vozes e Saberes em Um Mundo em Chamas, entrevista número PCSH_1458. Cícero, mais uma vez obrigada por estar aqui com a gente hoje. E aí eu queria começar te perguntando o seu nome, local e data de nascimento.
R - Bom, meu nome é Cícero José Constantino da Silva, nasci em 26 do dois de 1982, sou residente e moro aqui na Vila do Catimbau, às margens do Parque Nacional do Catimbau.
P/1 - Qual o nome dos seus pais?
R - O nome da minha mãe é José Felzira Maria da Silva e o nome do meu pai é Pedro Constantino Filho.
P/1 - Você sabe como eles se conheceram?
R - Meu pai morava num sítio chamado Baixa Funda e minha mãe morava no quilombo em cima dessa serra que está aqui atrás da gente, e eles plantavam roça de mandioca e sempre se reuniam para fazer a farinha. Quando era para fazer a farinha era sempre uma festa, eles matavam porcos e iam comer a carne com a farinha que estava sendo aprontada ali. Aí nessas farras eles se conheceram e resolveram se juntar e casaram.
P/1 - E você sabe descrever um pouco como que é fazer essa farinha?
R - É difícil, é um trabalho árduo. A farinha, a mandioca é arrancada dos roçados, levada em jegues, na época, em cima de jumentos, até o ponto da casa de farinha, do local onde tinha o forno e as prensas, aí se juntavam muitas mulheres, aliás, as duas famílias, para retirar a casca da mandioca, raspar a mandioca, e ali começava todo o processo de trituração da mandioca para transformar na massa para fazer a farinha. Aí dividiam em três turmas, um ia buscar lenha pra colocar no forno, já tinha outros ali que iam fazer a mexida da farinha, outros ficavam triturando a farinha, a mandioca, e outros “rapando” e outros prensando na prensa para tirar o líquido que a gente chama de manipueira, que é a parte tóxica da mandioca. Ali começavam a fazer a farinha. Sempre, na minha mente, sempre foi um momento muito divertido, eu sempre gostei de ir pra farinhada.
P/1 - Tem alguma história de farinhada que você viveu, que você lembra?
R - Tem, tem umas duas. Tem duas. Tem uma que a casa de farinha era aqui próximo da vila, aí o nome do dono era Seu... Daqui a pouquinho eu lembro o nome dele, e ele era bem ruim, eu não gostava muito dele não que ele era um senhor bem carrasquento assim, mas cedia a casa de farinha pra todo mundo fazer a farinhada lá na casa de farinha dele. E outra casa de farinha era no sítio Serrinha, que era seu Edivá, e era sempre uma festa que aí se reunia mais gente e matavam porcos, e passavam dois, três dias ali fazendo a farinha...
P/1 - E Cícero, você tem irmãos?
R - Temos. Eu tenho cinco irmãos, somos três homens e duas mulheres. Um deles, o mais velho, foi embora muito cedo, com 17 anos, devido à situação das nossas vidas naquela época, a casa estava cheia e aí ele precisou ter que se desligar, bater a asa, ele foi embora para São Paulo, até hoje não voltou mais. E tem uma irmã que morava aqui, hoje não mora mais, está na Bahia, tem a outra irmã, que é encostada a mim, que tá morando em Porto de Galinhas, e tem o meu irmão, que mora aqui comigo, que nunca saiu, sempre ficou por aqui, e tem eu.
P/1 - E quando vocês eram criança, vocês brincavam juntos? Como que era?
R - Bom, como eu fui sempre o caçula, eu só me lembro deles contando o que faziam comigo, que me carregavam até chegar onde a gente morava, eu nas costas, e caía pelas areias, no meio do caminho. Às vezes eu doente eles traziam eu nas costas até chegar aqui na vila pra poder ir até Buíque, para o médico. Eu não tenho muita lembrança dos mais velhos, porque eles saíram cedo de casa, mas da Judoelma e do Genivaldo, que é os que ficaram mais tempo, eu tenho mais lembrança deles. A Judoelma principalmente, porque ela é encostada a mim, e teve uma época que a gente foi, devido à situação de vida, a gente foi criado, uma parte pelos avós. Aí a gente ia pra um sítio chamado Cocão, morar com as nossas avós. Lá o que a gente fazia era catar castanha, mamona, algodão, melancia, a gente fazia essas atividades lá.
P/1 - E como que eram os seus avós? Você lembra deles?
R - Eu não lembro dos avós paternos. Agora, materno…não, eu não lembro dos avós maternos, dó da avó materna. O avô materno eu não conheci. E os avós paternos só conheci a avó, o meu avô também não conheci. E era bem tranquilo, a minha avó, Dona Quitéria, era bem tranquila, era raizeira. Ela fazia bastante remédio com raízes, e o senhor que morava com ela, que eu chamava de padrinho, considerava, eu considero até hoje, faleceu, mas eu considero até hoje como meu vô. Ele fazia bainha de facão e de faca, de couro de boi. Eu sempre tive um bom respeito por ele, ele nos ensinou muita coisa. Ele era criador de vaca e eu era quem, pequenininho, era quem fechava de manhãzinha, ele que me botava pra ir atrás das vacas pra fechar no curral pra tirar o leite.
P/1 - E sua avó já te contou com quem ela aprendeu a ser raizeira?
R - Ela aprendeu com a mãe dela, a mãe dela era indígena dos Kapinauá, a parte materna era indígena. A parte paterna era indígena. E a materna é negro. E ela aprendeu com os índios mesmo dentro da Caatinga a fazer as suas raizadas. Eles faziam muita da experiência. O meu padrinho, que era o Zé Bastião, ele pegava um sal, que ele queria saber se ia chover, ele pegava sal, fazia uns círculos, uns rascunhos, uns riscos num papel e colocava essas porções de sal divididas, e colocava na telha, no dia seguinte ele sabia se ia chover ou não. Essas experiências ele sempre... Hoje eu sei fazer, aprendi com ele. E minha avó, ela fazia um remédio pra matar a verme da batata de purga, ou batata de porco, tem esses dois nomes. Ela cortava as fatiazinhas, colocava à noite também na telha e no dia seguinte começava a dar pra gente tomar o liquidozinho da batata de purga.
P/1 - Tem alguma outra experiência, conhecimento que se lembra deles?
R - Tem, tem o de... Glaucoma. Glaucoma, dos olhos, né? Tinha muito antigamente, muita criança, de manhã, acordava com o olho todo remelado, sem conseguir olhar pro sol, aquela coisa toda. Ela ia lá no coquinho ouricuri, que é um coco que a gente tem aqui da Caatinga, tirava o líquido num estágio onde ele tá o líquido, onde tá amêndoa, aí colocava nos nossos olhos, no dia seguinte, a gente amanhecia bom de primeira. Ela também pegava o fruto do juazeiro, colocava dentro de uma garrafa pet, enterrava, depois de uma semana ali, ele desmanchava o fruto e ficava um líquido, ela dava também para as nossas tosses, para curar a tosse também. Depois de um tempo, começou a aparecer as farmácias, esses remédios farmacêuticos, e a gente começou a tomar remédio farmacêutico. Aí quando eu chegava na minha avó, já não conseguia dizer que eu tava doente, porque ela, quando você dissesse, tô com dor de barriga, aparecia 10 remédios diferentes para tomar. Aí eu digo, não vou tomar mais não, fazia isso.
P/1 - E na sua infância, que paisagens você lembra? Lugares você lembra?
R - Eu lembro da minha infância, eu lembro dessa paisagem que está atrás da gente. Eu lembro da paisagem do sítio Dois Irmãos, onde a gente morava, os Pés de Imbu, que eu amava ficar debaixo dos Pés de Imbu, dos riachos que, na época de trovoadas, descia muita água, aí trazia de outros sítios. Os donos não se preocupavam muito e deixavam sempre um carro de boi próximo ao rio, mas dava cheia, aí a cheia trazia os carros de boi de outros sítios. E peixe também, vinha muito peixinho, os piaba, e a gente coletava ali. E nessa época também eu tenho o apelido de mata-sapo, porque enchia a lagoa, quando era meu outro dia, tava cheia de sapo. Aí meu vô pedia pra fazer a exterminação dos sapinhos, porque era água que a gente bebia, né? Aí, nessa época, quando eu vim, bem nesse momento, aí eu vim morar na vila, voltei pra casa de mãe. Aí eu vim com o hábito de matar sapo. Aí todo sapo que aparecia na rua, eu ia lá e tava no sapinho.
P/1 - E como que era a vila?
R - A vila era bem pequena, bem pacata, não tinha tantos calçamentos, eu me lembro que eu gosto muito de tanajura. Eu me lembro quando dava trovoadas, eu saía correndo, catando tanajuras assim, no meio da rua, que chovia. Às vezes tem um momento que a gente chama de casamento da raposa, que é quando tá serenando e o sol também, nesse momento as tanajuras começavam a cair, eu saía correndo no meio da rua pra colher tanajura junto com os amigos. Era bem tranquilo, as portas dormiam abertas, as janelas dormiam abertas, todo mundo sentava nas calçadas. Eu me lembro também que foi a primeira vez que eu vi um fogo corredor. Eu... Só tinha uma pessoa na vila que tinha TV, era a dona Laura. Durante o dia ela não queria ninguém na porta dela, a gente brincava por ali, ela era braba perdida. À noite ela se sentia só e chamava a gente pra ir assistir com ela, na época passava o Chaves, uma coisa desse tipo. Aí a gente tava tudo lá, seis horas da tarde assistindo junto com ela. Os que deram para entrar ficaram tudo na frente da TV, os que não deram ficaram na janela e nas portas. Aí teve um que disse, olha o fogo corredor, e eu estava lá dentro. Quando eu olhei para fora, para esse paredão aqui, foi onde eu vi pela primeira vez também um fogo corredor.
P/1 - O que é o fogo corredor?
R - O fogo corredor é um fenômeno que existia antigamente nesses sítios, nessas regiões de Caatinga, que eram dois fogos que apareciam. Nesse dia foi dois, geralmente era um que aparecia, mas nesse dia foi dois. É uma tocha de fogo que surge do nada e essa tocha se movimenta assim, do nada também. Um estava na ponta da serra aqui e o outro estava nessa outra ponta da serra, aqui, eles se cruzavam assim, num piscar de olhos eles se cruzavam entre si. O meu irmão teve uma experiência com... Quando a gente morava aqui no sítio Serra Branca, a nossa casa era de palha e não podia acender o fogo dentro ou acender outra palha dentro para acender o fogo porque senão pegava fogo na casa toda. Aí ele tinha que acender a palhinha lá fora para depois levar ela acesa para acender o foguinho lá dentro. Nesse momento ele não viu que tinha um fogo próximo, e ele acendeu e não pode acender outro fogo quando o fogo corredor tá próximo. Aí o fogo corredor veio pra cima dele, queimou ele, circulou ele assim e queimou. Rapidamente ele também jogou terra na palha que ele tava acendendo e apagou. Mas ele conseguiu ver o que tinha dentro, ele viu um esqueleto em chamas. Foi o que ele me falou, que conseguiu ver.
P/1 - E tem alguma outra história desse tipo, assim, por aqui?
R - Bom, tem dos encantados, né? Eu me lembro que, às vezes, quando eu aprontava, minha mãe pegava a chinela, aí eu corria pra cima dessa serra. Eu já tinha tudo esquematizado lá. Tinha um pé de árvore, onde eu fazia um fogo e assava a carne que eu levava, quando ela brigava comigo, eu pegava um pedaço de carne e um pouco de farinha e... Corria pra lá, pra cima da serra, passava o dia todinho até ela passar a água. Aí eu voltava pra lá. Eu sempre tive medo de quando eu começava a subir a serra, porque lá tem um monte de cemitério indígena. Eu tinha medo de caipora, de comadre florzinha e dos caboclos que tem por ali. Aí eu sempre tive medo dessas coisas lá.
P/1 - E quando você subia na serra, o que você via lá?
R - Aí quando eu subia na serra, tem a paisagem linda lá de cima, e algumas formações que tem a Pedra do Dragão, morria de medo de passar pela Pedra do Dragão, a Pedra do Descanso. Lá em cima tem uns poços de água que se vai juntando, aí quando ele transborda, aí começa a descer a cachoeira pro lado de cá. Eu ficava por ali, é uma parte bem linda, também era um caminho, esse caminho que eu subia pra cima da serra, era um caminho que dá acesso à casa da minha avó paterna, materna, que morava lá em cima.
P/1 - E tem algum cheiro, sabor dessa época aqui?
R - Bom, o sabor da época era uma batata chamada de cafofa que ela só dá em cima, lá, do paredão e teve uma seca nos anos 70 que meus primos e minha família que mora lá em cima não passaram fome por conta dessa batata. E uma vez eu indo lá com minha mãe, pra casa da minha avó, meus primos estavam tudo colhendo essa batata que surge do nada, assim, no meio do mato, no meio das pedras, colhendo. Eu disse “que é isso?”, “é cafofo, come”. Ele já tirou ali, já tirou a casquinha e nós já foi comendo, eu lembro até hoje. E outro estava com um ralozinho que ele fez de... de lata de óleo, furou com uns preguinhos e tava ralando pra fazer uma farinhazinha também. E essa batata salvou um bocado de criança nessa época, e eu provei também. Até hoje, quando eu subo, eu provo dela ainda. Eu não tiro muito pra não acabar, né? Mas até hoje tem ainda, até hoje eu provo.
P/1 - E aí, na sua infância, juventude, fora e na serra, tinha mais alguma coisa que você fazia no seu tempo livre? Como que era?
R - Bom, eu sempre gostei de artesanato. Aí, começou os primeiros turistas a aparecer, eu lembro que a primeira vez que eu saí, levei um visitante em um local, que era um sítio arqueológico chamado Pedra da Concha, é umas pinturas rupestres, o meu primeiro pagamento foi um sanduíche. Eu nunca mais provei um sanduíche igual àquele, até hoje eu procuro, quando fala em sanduíche, aquele pãozinho quadradinho, não é o mesmo sabor, não. Eita, que sanduíche gostoso, danado, viu? Não sei o que era que tinha envolvido, estava enrolado em um papel alumínio. Aí cheguei em casa, mostrei para os meus irmãos, para a minha mãe, comi o danado, o meu pagamento. O segundo pagamento com turista foi R$12,00, em nota de um, era um bolinho mesmo assim, de nota de um real. Eita, quase um gasto. Era muito dinheiro, era muito dinheiro na época. E eu gostava muito de comer pão com mortadela, e era 25 centavos, o pão com mortadela e a cajuína, que é um refrigerante. Ixi, eu comi que... explodi de tanto comer.
P/1 - E como foi essa história do primeiro guia? A primeira vez que você foi guia, né?
R - Foi isso mesmo, foi a primeira vez. E nos tempos vagos, eu ia pra cá, pra esse paredão, tem essa areia colorida, essa vermelha. Eu recolhia várias tonalidades de cor e enchia umas garrafinhas que eu tinha visto, não sei se era em Ceará ou em Fortaleza, que tem alguma coisa com areia colorida em garrafas. Aí eu comecei a fazer essas garrafinhas também, comecei a vender para os visitantes que chegavam aqui. Depois eu disse, não, a areia não vai dar certo, não. Eu também abandonei, porque eu tinha que ir lá no cemitério, que é lá no cemitério que pegava areia, eu morria de medo, eu ia devagar, perdão, ia devagarinho, subindo as pedras, olhando pra todo canto, com medo da caipora. Às vezes eu levava um pouco de fumo e deixava assim, em cima das pedras, pra ela poder deixar eu voltar sossegado. Mas uma vez que eu já escutei o assobio dela que eu fiquei “poxa, vou levar uma surra de urtiga aqui, já, já .
P/1 - E levou?
R - Não, não levei.
P/1 - Legal. E do artesanato, quem te ensinou? Você foi aprendendo?
R - Eu fui aprendendo sozinho. Aí eu fazia pequenos colares de semente, chaveirinho do coco ouricuri, fazia prendedor de cabelo com a pena de pássaros, de galinha. Sempre foi sozinho, o que eu via, eu digo, “vou reproduzir”. Até hoje, eu sou fascinado com artesanato, gosto muito de fazer. Estou um pouco sem tempo, mas eu gosto muito de fazer artesanato.
P/1 - E aqui na Vila, você chegou aí na escola, como que era essa fase?
R - Bom, a fase da escola foi um pouco conturbada. Eu terminei os estudos, mas nessa fase de que eu ia pra casa da minha avó eu não ia pra escola, precisava trabalhar, e eu tinha muita vontade de ir pra escola, mas mãe não tinha condições de me dar um sandálio. Aí eu chorava muito, porque via todo mundo indo de sandálio e eu não queria ir de sandálio. Teve uma época que eu me lembro que eu chorei muito na porta de casa querendo ir, e tava descalço, e ela pegou um sandálio do meu pai, o tamanho dos sandálios, eu fiquei com vergonha de ir para a escola. Mas sempre fui estudioso, sempre gostei de ir para a escola. E eu também tinha vergonha porque levava os cadernos dentro de uma mochila plástica. Aí os outros coleguinhas tudo de mochilinha e eu… e isso também me impedia, às vezes, de eu ir. Mas sempre fui pontual nas aulas, estudei sempre aqui até a oitava série. Não, até a sétima, até a sétima série, aí minha mãe me botou pra cidade porque começou a menina querendo me paquerar, e ela disse que a menina ia me tirar o foco, me botou pra cidade, e eu fui terminar os estudos lá na cidade, em Buíque.
P/1 - E como foi essa mudança?
R - Foi tranquila, mas também foi muito sofrida, porque na época não tinha pista, e pra chegar na cidade, hoje eu gasto sete minutos, cinco minutos pra chegar na cidade, nós gastava uma hora pra chegar na cidade, e era de pau-de-arara. Aí nessa época nossa, nós sofríamos muito, porque o pau-de-arara não tem uma estrutura para proteção de água, nós chegava tudo molhado na sala, eu perdi várias vezes a aula lá, porque chegava molhado, frio danado e eu não conseguia... me concentrar na aula porque estava todo molhado. Eu ia para o banheiro, enxugar, enxugar, e só ia para a sala depois das últimas aulas, que era quando eu estava mais tranquilo. Mas sempre foi sofrido. A gente já botou o prefeito na justiça para ele colocar ônibus, na época, e tudo mais, se juntou um monte de alunos para colocar… Ele não acabou nem colocando. Hoje em dia todo mundo está bem, todo mundo tem ônibus para tudo quanto é canto.
P/1 - E como que era esse caminho, assim, além da chuva, paisagem?
R - Era estrada de chão, buraco por tudo quanto é canto, lama por tudo quanto é canto na época de inverno, no verão era poeira por tudo quanto é canto. E a paisagem sempre foi assim, com paredão aqui do lado, a vegetação da Caatinga também do outro lado. Sempre foi tranquilo, E nesse trajeto o caminhão sempre estava parando para um subir para a escola, você ia pegando vários alunos até lá.
P/1 - E depois que você terminou a escola, o que você fez?
R - Aí quando eu terminei a escola, eu consegui meu primeiro trabalho. Engraçado, às vezes eu fico analisando a minha vida e sempre foi mulheres que me deram as primeiras oportunidades. Teve Ana Vasconcelos, foi quem me deu o primeiro emprego, eu trabalhei três anos com horta orgânica. Ela era uma senhora de Recife, ela veio morar aqui, próximo, e montou um centro de alimentação crudista, alimentação vegetariana, e precisava produzir esses alimentos. Aí eu fui cuidar da propriedade e da horta dela, trabalhei por três anos lá. Nesses três anos, ela recebia gente de fora. Aí chegou a Margarida, é uma senhora também, que me levou pra Gravatá, foi uma das primeiras cidades que eu conheci, depois me levou pra Paraíba, nesse negócio de artesanato, nesse momento, eu comecei a pintar camisetas, chapéu, com as artes rupestres, eu sempre fui fascinado pelas artes rupestres. Eu comecei a pintar camiseta e ela gostava das pinturas. Aí ela disse assim, “eu vou te levar em Caruaru pra tu comprar camiseta de outras cores”, que eu só usava branca. “Tá certo, Margarida, eu vou”. Ela foi lá, nessa época ela também me levou pra fazer um seminário, eu fiz um seminário, era da Sukyo Mahikari. Eu fiz esse seminário, é a transmissão de luz pela mão. Nesse momento, o dono da loja que vendia as camisetas era meio... sem querer dar um menos, sem querer... Aí era ela conversando, fazendo a exposição da mão, transmissão da luz pra ele, pra ele baixar o preço, tranquilo, e eu lá escolhendo a camiseta. Escolhi, foi quando eu trouxe camiseta com cores pra cá, pra vila, foi um sucesso, vendi bastante. E ela me apresentou muita coisa lá na cidade. Depois disso, eu fui ser brigadista, consegui fazer o curso de brigadista de incêndios florestais e trabalhei seis meses pro Parque de brigadista. Só que era um contrato, depois finalizou o contrato, isso de guia eu já tava mais evoluído, já tava conduzindo com grupo, o dinheirinho já era uma coisinha, na época era 50 reais, eu acho, o passeio era 50 reais, já dava pra ajudar bastante. Depois que terminou o contrato eu continuei como guia. Aí em 2000 e... Acho que foi em 2010. Em 2010, eu fiz um curso de vigilante e trabalhei, com esse curso eu fui contratado por uma empresa terceirizada para fazer o serviço para o Parque e trabalhei por seis anos de vigilante noturno em um sítio arqueológico. Depois, o contrato se encerrou. Como era uma empresa terceirizada, eu tive que passar mais cinco anos em um banco, de vigilante bancário. Pronto, há cinco anos atrás, eu não estava aguentando mais. Eu fui ali... Eu via um cara com uma carroça vendendo banana, e eu agoniado lá dentro, meu Deus, eu olhava pra cá, pro lado do Vale, lá da cidade, e via o sol descendo, digo, “eu quero viver isso al, eu não aguento ver o entardecer daqui, eu quero ver o entardecer lá”. Aí fui dando um jeito, dando um jeito, dando um jeito, e acabei sendo demitido. Mas antes disso, eu perguntei a Luciano, o nome dele, “Ô Luciano, quantas carroças de banana tu vem aqui pra rua, vendendo?” “Eu desço cinco, todo dia. Eu desço cinco carroças de banana”. “Aí tu apura quanto em cada carroça?” “Eu apuro 300, 350”. Eu fui fazer as contas. Não acredito com o cara que tá vendendo banana aqui, na hora que ele quer, está ganhando mais do que eu, que estou aqui, correndo o risco de levar um tiro no olho. Aí eu digo, não, eu vou dar um jeito aí. Dei um jeito e consegui sair do banco. Nesse contexto todo, a minha vida, ela se entra dentro da vida da minha mãe, que minha mãe, ela foi a primeira pessoa a botar uma pousada lá na vila. Ela começou... Eles tinham um barzinho, meu pai e minha mãe tinham um barzinho lá na vila, e naquela época não tinha negócio de bife, de frango, não tinha, era caça do mato, era o que ela assava pra ter gosto, lá no barzinho. E ela se arretou, porque para assar preá, para assar lambu, essas coisas, voa muito óleo nos braços, e ela se cansou daquela vida e disse, “eu não quero mais essa vida pra mim”. Foi no vizinho, do seu Manoel, que tinha uma mercearia, e aí comprou 200 gramas de mortadela, uma lata de óleo e um quilo de massa de trigo, comprou fiado, não tinha dinheiro, aí foi lá e fez uns pasteizinhos. Aí, nesses pasteizinhos ela vendeu, eu me lembro que na época ela me levou pra escola, eu me lembro, eu dormindo na calçada da escola e ela vendendo uns pasteizinhos. Vendeu, vendeu, vendeu, foi lá no outro dia, pagou, comprou a vista, outras coisas, e começou vendendo. Aqui atrás de mim tem um local chamado Paraíso Selvagem, onde tem umas piscinas, umas bicas, que foi, assim, onde tudo começou do Vale, os primeiros turistas a virem, visitas, foi pra esse local. O dono dessa propriedade, desse local, soube que tinha uma mulher na vila que estava fazendo pastel, era a única pessoa que fazia pastel, e lá ele precisava fornecer esses produtos para o pessoal que ia tomar banho, e convidou ela e ela foi vender lá. Aí Genivaldo, que é meu irmão, um dos guias mais velhos aqui do parque, vinha descendo o paredão com duas pesquisadoras. Na verdade, não eram mais nem duas, eram quatro, ele estava com duas, que eles tinham subido por outro caminho e estavam descendo por aquele, e encontrou as duas que estavam doentes, porque tinha recebido uma chuva de noite, a barraca não era impermeável, e estavam doentes, adoeceram, e nessa manhã elas foram desmontar a barraca para descer a serra novamente, que na época não tinha onde ninguém ficar. A barraca voou, o vento derrubou embaixo e elas saíram correndo atrás pra tentar pegar, acabaram se perdendo no meio do mato de cima, meu irmão encontrou elas e desceu com elas. Elas chegaram em casa, nós cedemos o nosso quarto, elas dormiram, no dia seguinte ela disse, “Dona Zefinha, por que você não constrói um quarto aqui no fundo do quintal pra gente dormir quando a gente vir?” Ela, “tá bom, é mesmo, né?” Aí ficou com essa ideia na cabeça, eu e meu irmão também... nem fiquemos conhecendo a cabeça, mas ela ficou. E assim ela começou a trabalhar, vender muita coisa lá no Paraíso Selvagem. Refrigerante, coxinha, pastéis, enroladinho, depois começou com bode guisado, com sarapatel, com fígado, com cuscuz, e foi vendendo e juntando o dinheirinho. Aí, na Praça da Vila, tinha um quiosquezinho, que a gente chamava de lanchonete, eram quatro aguazinhos, era o ponto mais caro da vila, ela conseguiu comprar na época, foi tipo três mil reais. Ela comprou esse quiosque, aí ela arrochou. Vendeu, vendeu, vendeu, vendeu bebida. Na época tinha missa de vaqueiro, o padre vinha fazer a missa, aí se juntava vaqueiros de todas as regiões, lotava a vila de vaqueiros e de cavalos, e a galera bebe muito. Aí minha mãe vendia muita cachaça, muita cerveja, muita comida, e não tinha esquecido do quartinho. Ela comprou, onde hoje é a pousada, ela comprou um pedacinho de cinco metros de largura, ficou lá, o chãozinho. Ela trabalhou mais, aí comprou outro pedacinho também de três metros. E foi comprando os pedacinhos e depois começou a construir uma casa grande. Foi aí onde eu aprendi a mexer massa, meu pai me ensinou a mexer massa, para eu aprender, carregar os tijolos. Nessa época eu me lembro que eu tava bravo, “mas rapaz, nós já temos uma casa. Para que a mãe tá fazendo uma casa com três quartos dentro? Danou-se, ela vai desertar de casa e vai construir outra família”. Aí construiu três quartos e uma sala e uma cozinha, e essas pesquisadoras começaram a vir, depois vem pesquisador, vem pesquisador... Hoje tem pesquisador que chama ela de mãe, hoje são doutores, eram alunos na época. E começou a vir pesquisadores, pesquisador, pesquisador, pesquisador, encheu de pesquisadores. Eu me lembro que, na época, eu saía no quintal assim, aí tinha rato, tinha cobra dentro de frasco, tudo aberto, assim, e rato cheio de coisa dentro, eita, meu Deus do céu. Eu tive também contato com os pesquisadores, comecei a andar com os pesquisadores também, dentro dos matos, identificar com eles as plantas e algumas vegetações, animais também, comecei também a andar com pesquisadores. E até hoje, esses pesquisadores, que hoje é a Universidade Federal, nunca abandonaram ela, até hoje. Inclusive, hoje mesmo tem o curso de campo da Caatinga, que eles ficam hospedados lá. E depois disso, a lanchonete, ela saiu da lanchonete... Não, ela saiu do Paraíso e me jogou lá dentro, foi onde eu fui roubado pela primeira vez. Quando eu assumi lá, depois do final da tarde, eu disse, agora é hora de tomar um banho, falei, agora é hora de tomar um banho na piscina, aí deixei a carteira lá. Pra que eu fiz isso? Um cara tardeou e roubou o dinheiro todinho. Eu cheguei em casa chorando, chorando, chorando mesmo e sem coragem de dizer que tinha sido roubado. Aí ela me jogou lá. Na lanchonete ela também saiu e me jogou lá. Eu movimentei a lanchonete só que eu não queria botar bebida, e o que dava dinheiro na época era bebida, eu fui só com lanche e refrigerante, não rolou muito, aí fiquei por um tempo e falei, não dá certo não. Aí ela alugou pra outra pessoa, deu a passar do tempo, a prefeitura veio e teve que remover, indenizou a gente e ficou sem a lanchonete. Ela tava lá na pousada, mãe não tem leitura, ela não sabe escrever, não sei como foi que ela dava de conta de tudo. Mas ela fazia a comidinha e atendia o pessoal que vinha, na época eram pesquisadores, mas já começou a vir… E aí, nesses cinco anos pra cá, ela se cansou. Os irmãos já estavam todos espalhados, ela disse, “o que eu faço? Vou fechar ou entregar pra outra pessoa”. E nós tudo “Não, não pode deixar o nome de mãe morrer, não pode deixar o nome de mãe morrer”. Cadê os irmãos pra tomar de conta? Aí foi aí o negócio do banco que eu saí, ele disse, “ó, toma de conta”, ela disse, “toma de conta”, eu disse, “eita mãe, é, né? Tá certo”. Foi a terceira missão que ela me botou. Eu entrei na pousada com gás mesmo, reformei logo toda. Nesses 24 anos que tem a pousada, nenhum dos quatro irmãos colocou a mão assim pra fazer alguma coisa, toda pintura que deu na pousada até hoje foi sempre eu. Parece que é uma coisa que liguei com ela, por isso que eu digo, eu não carrego a minha história, eu carrego a história da minha mãe, né? Ela se cansou, teve que fazer algumas cirurgias e tudo mais, não aguentou mais, se aposentou, “ou tomam mão de conta ou vou fechar”. Não, mãe, eu tomei de conta. Tomei de conta por uns dois anos lá, e a gente tava procurando água. Veio o processo, tem que ter água, tem que ter água, tem que ter água, e comprei um pedacinho de terra aqui de oito metros de frente. E tinha duas nascentes já dentro. A gente foi e furou o poço, e a água só deu dois mil e duzentos litros por hora.A gente, vamos usar, a pouca água que tem, vamos usar, e encanamos… da oitocentos metros do poço até a pousada. Aí começou a manchar os vasos sanitários, a gente, “não, não vai dar certo”, vamos comprar outro terreno pra comprar outro poço, esso aqui nós perdeu. Compramos o terreno, foi 30 mil reais o terreno, ixi foi... Acho que foi quatro anos de juntar esse dinheiro pra comprar esse terreno, e compramos esse terreno. Fomos buscar um cara lá no sertão para marcar o... Porque esse cara aqui faz com a varinha, né, pra marcar o poço. Fomos lá buscar o cara, o cara veio e marcou o local do poço: “ó, vai dar água com 80 metros”. “Tá certo, vamos lá”. Contratamos o cara da máquina e foi lá, já foi um sacrifício, a máquina já atolou antes de chegar no local, tivemos que chamar um trator pra desatolar a máquina, mesmo assim a gente conseguiu chegar. Aí começou a cavar. Quando chegou a 80 metros, cadê a água? Nada de água. Quando eu olhei pra trás, cadê mãe? Cadê pai? Correram tudinho e me deixaram sozinho. Agora deu certinho pra eu, porque ficaram tristes, né? Aí o cara disse, “olha, Cícero, vamos fazer o seguinte, eu vou te dar 30 metros e tu vai pagar mais 20. Vamos tentar chegar em 150 metros de profundidade”. Eu digo, “cara, e agora? Pra tomar essa decisão sozinho? Vai, é o jeito”. O cara foi, 150 metros. Cadê a água? Oxi, nada de água. Perdemos R$30 mil e mais R$12 mil da perfuração do poço. Agora, para ir pagar esses R$12 mil para esse cara, foi ouvir a minha mãe quase dando um infarto lá na Caixa Econômica para tirar esse dinheiro. Mas teve que pagar, aí ficou R$42 mil, assim, sem... Poxa, o que é que a gente vai fazer? Ficamos tristes pelos quatro anos, depois apareceu um senhor e disse, vocês querem R$100 mil no terreno? Oxi, nós não pensamos duas vezes, nós ficamos recebendo esse dinheiro em 5, 5 mil por mês. Foi juntando, juntando, juntando, juntando, juntando, quando ele disse, quando disse, “mãe, e aí terminou de pagar?”, disse, “terminou, agora nós não sabemos o que faz com esse dinheiro”. Eu disse, “me dê pra cá que eu sei o que eu faço”. “Tu vai fazer o que, rapaz?” Eu disse, “eu sei, peraí que agora eu sei”. Existia um problema na pousada, porque foi feito tudo da cabeça dela, não teve um engenheiro, e chegou um momento que a pousada não dava mais para crescer, ou derrubava tudo para tentar renová-la, ou construía em outro canto. E ela tinha um apego, todo mundo tem apego, nós todos tínhamos apego pela primeira pousadinha dela, que foi o jeitinho que ela fez, o jeitinho que ela fez, mesmo sendo simples, nós estávamos com medo de derrubar. Aí eu lhe disse, “não mãe, eu vou contratar um engenheiro, e vou fazer uma planta e vou construir lá embaixo no terreno da gente”. Foi o que aconteceu. Nesses quatro anos, eu assumi lá a pousada e assumi aqui. Construí, construí, construí e aqui foi aumentando, aumentando, aumentando, aumentando, eu disse, “mãe, agora eu não dou mais conta dos dois. Eu tô muito carregado. Pra tá lá e cá, lá e cá eu tô da grossura de um palito de fósforo, não tô conseguindo nem me alimentar direito. Quem é que vai tomar conta dessa pousada?” Ela disse “não tem ninguém, vai ter que fechar”. Convidamos um irmão, não veio, convidamos uma irmã, não veio, convidamos outra irmã, não veio. Aí tinha uma sobrinha em Santa Catarina, que também não tava legal lá, a gente convidou ela. Ela veio e tá tomando conta de lá, da pousada da vila e eu tô tomando, tô botando o barco aqui, no chalé.
P/1 - Agora eu vou voltar bastante, porque você falou das artes rupestres. Você lembra a primeira vez que viu as artes rupestres daqui?
R - Lembro. Foi um impacto, tive um impacto de ver aqueles desenhos. Na época nós não chamávamos de pintura rupestre, chamávamos de pedra pintada mesmo, e foi onde eu fui com o primeiro visitante lá, eu não expliquei nada, não sabia de nada do que era o sítio arqueológico, só mostrei as pinturas. Eles viram, tiraram foto. Mas foi bem impactante, assim, olhar, se identificar e tudo mais. Ao longo do tempo, veio cursos, especializações, a gente foi fazendo curso, foi conseguindo olhar com outro olho, com outro olhar, para o parque, para a vegetação, para a Caatinga e para a riqueza arqueológica que tem aqui. Meu pai mesmo, hoje, ele dizia que ele conhece um, na verdade ele conhece todos os sítios arqueológicos, só que às vezes ele passava e nem olhava. Ele conhece o local, digamos, o sítio arqueológico Loca da Cinza, ele conhece o local Loca da Cinza, por ser um abrigo onde ele criava os bode, mas não pelo sítio arqueológico, ele dizia, “eu nem vi aquilo, não dava importância”.
P/1 - E como você se sente morando próximo deles?
R - Ah, eu me sinto... eu fico orgulhoso demais. Ave Maria! Eu fico muito gratificante mesmo, morar num lugar desse, com essa riqueza toda arqueológica, geológica, fauna, flora. Eu me sinto muito orgulhoso, muito orgulhoso mesmo de morar no Catimbau. Muito orgulhoso mesmo. Eu até às vezes me apelido de Catimbau. Eu sou feliz demais aqui, muito feliz mesmo. Nunca tive vontade de mudar. E cada vez mais eu estou saindo de dentro da vila também. Porque eu quero ficar mais próximo do Parque, mais próximo da Caatinga, do sítio arqueológico.
P/1 - E o seu trabalho com o turismo, como ele se relaciona com a Caatinga?
R - Se relaciona muito, muito bem, muito bem mesmo, assim. Eu fico muito feliz, às vezes, de estar apresentando cada plantinha, cada buraquinho ali de um besouro, de um inseto que fez sua toquinha ali, de mostrar para o pessoal os cactos, mostrar a riqueza de medicamentos que tem a Caatinga para o pessoal, cada plantinha serve para aquilo, vou explicando. Acho fantástico demais, eu gosto demais de fazer isso. Apesar que hoje, devido aos chalés, eu estou fazendo menos, tenho que me dedicar mais aqui aos chalés do que às visitas turísticas. Porque, assim, eu fui um dos primeiros guias. Meu irmão, eu, são nove guias mais velhos, e a gente pegou a pior parte, a pior fase, que foi quando não tinha nada. Assim, quando ninguém era pelo parque, ninguém era por a gente. E hoje já tem uma quantidade de guia maior, já tem várias entidades que estão protegendo o parque, tentando cuidar do parque, fazendo com que aconteça mesmo o parque, eu estou mais tranquilo, mas por um bom tempo eu me sentia como um guerreiro mesmo para proteger e cuidar do parque. Hoje eu estou mais tranquilo porque eu estou vendo que tem muitas coisas assim para proteger o parque hoje. Mas por um bom tempo nós éramos guerreiros mesmo assim, para cuidar e proteger, para não haver depredação, desmatamento, essas coisas.
P/1 - E você foi brigadista? Você tem alguma história desse momento?
R - Tem bastante, bastante histórias, né? Também foi um momento difícil, onde o parque não tinha viaturas. A gente, para se deslocar para um incêndio, às vezes foco de incêndio, era a pé. Para carregar uma bomba de 20 litros de água nas costas também não tinha veículo. Hoje tem, mas não tinha veículo para chegar nesses pontos com a bomba. Eu me lembro que a gente dormia dentro das casas de farinha, dentro do parque lá, porque a gente não dava pra voltar pra cá pra começar o serviço de manhã. Porque a gente fazia manutenções. Como não tinha incêndios, focos de incêndios, mas a gente precisava manter a estrada com a largura para se acontecesse um incêndio, o incêndio não ultrapassasse para outra região, seria uma barreira natural, a própria estrada. E a gente dava manutenção nessas estradas para o fogo não passar. Mas aí cada vez mais o serviço ia ficando mais distante, mais distante, mais distante, não dava pra gente voltar e a gente passava muito frio. Era um frio do caramba pra dentro dessa casa de farinha. E toda a casa de farinha era meio assombrada, daí dava um medo também de... Eu ficava olhando assim pro telhado. E outro dia eu fui assistir aquele filme, O Homem que Desafiou o Diabo, que tem uma cena de uma casinha antiga que o diabo cai de cima, menina, eu olhava assim pro telhado do... Vai cair, o diabo vai cair. Um mal-assombro. Mas sempre foi bom, sempre fiz com todo prazer, mesmo as dificuldades. Hoje tá bom, hoje a gente tá dividindo o bolo com outras pessoas, né? Mas hoje tá muito bom.
P/1 - E teve algum incêndio nesse período que você lembra com mais intensidade?
R - Não, não teve incêndios, mas teve os moradores que botam suas roças, eles não têm o conhecimento de fazer os aceiros das cercas, e acaba não tocando fogo corretamente, o fogo acaba perdendo o controle e entrando dentro da Caatinga. Teve um momento desse, quando a gente foi, nós até fomos ajudar ele a tocar fogo na roça dele, mas como a gente tem que chegar com respeito e não dizer, “não, você está errado”, eu nunca gostei de dizer que você está errado, mais gostei de mostrar outra forma de fazer. Aí a gente não quis dizer que estava errado. Ele começou a tocar fogo, aí tocou fogo nos quatro cantos, de uma vez só, o fogo foi queimando, foi queimando, foi queimando, quando chegou assim, deu uma explosão grande. E aí voou um pedaço de pau pegando fogo pra dentro da Caatinga. Caramba, quando a gente olhou assim pra trás, fumaça por tudo quanto é canto, foco. Aí foi difícil. Foi difícil porque nós estávamos despreparados, não sabíamos que isso ia acontecer, e a vegetação era urtiga. Caramba, nós chegamos em casa todo... inchado, assim, de urtiga, e não levamos material para apagar fogo, tinha que apagar com palha e areia, jogar areia assim. Isso foi muito dificultoso porque a gente tinha que sentar praticamente, se agachar dentro da vegetação para apagar o foguinho que vinha devagarinho queimando as folhagens debaixo. Foi muito difícil, foi o momento mais difícil que eu vi. Mas o resto foi bem tranquilo. Depois as coisas foram andando, outros diretores de parque foram entrando, aí conseguiu viatura. Na época a minha brigada era só de sete, hoje a brigada tá de catorze pessoas, hoje tá um pouco tudo mais fácil, mas antes era mais difícil as coisas.
P/1 - E você foi casado?
R - Aí eu fui casado, vivi por 11 anos com a pessoa, aí tive um filho, eu tenho um filho de 13 anos, é o Tauã, que eu amo muito ele, e a Janeide, que é a mãe dele, hoje tá com a vida sozinha. Aí eu ensinei ela a pintar, aí na época a gente montou uma lojazinha de artesanato, na separação ela ficou com a lojinha, tá lá com a lojinha, tocando a vida dela, e eu tô por aqui.
P/1 - E como você se sentiu quando você virou pai?
R - Bom, eu me senti muito feliz, eu chorei muito, mas eu não estava aqui. Tem um danado de um artista chamado Zé Bezerra, e ele não tem leitura, mas ele sempre precisou de uma pessoa para ir com ele para as exposições de arte. Aí nessa época de nascimento, como eu estava precisando de dinheiro, e não estava achando que meu filho ia nascer naquela semana, eu fui com ele para São Paulo. Foram dois dias só. Nesse intervalo de dois dias, meu filho nasceu. Quando eu voltei, ele já estava em casa. Mas foi assim, fiquei muito feliz. No primeiro momento, tive um impacto, quando eu olhei para ele, a criança... novinho, aí eu sempre fui meio assim, eu chamo gasturado, eu não gosto de ver sangue e nem gosto de ver bebezinhos novinhos demais. Aí eu tive um impacto assim, não, mas meu filho, aí eu peguei. Mas foi bom, hoje eu sou realizado como pai, sou realizado mesmo.
P/1 - E aí voltando um pouco para a Caatinga, você já estranhou a Caatinga, viu ela muito diferente do que você está acostumado?
R - Já. Teve uma época que não teve chuva, eu olhava pra esse paradão aqui, eu via uma macambira amarela. Dava uma certa tristeza, naquela época me dava uma certa tristeza. Hoje não, hoje eu consigo, assim, eu sei que é uma proteção dela, ver ela seca é uma proteção que ela tá tendo ali pra poder passar aquele período de estiagem. Mas eu já fiquei muito triste, assim, de olhar para o horizonte e ver tudo sem folha, tudo seco, meu Deus, que tristeza. Porque, às vezes, é triste ver a seca. Mas hoje eu consigo ver que é uma defesa dela, é uma riqueza que ela mesmo tem, de se proteger. E eu aprendo muito com isso. Eu aprendo muito, muito, muito. Às vezes eu tô falando sobre uma planta chamada erva de passarinho, que é um parasita, aí eu trago isso... Eu olho pra Caatinga e trago pra minha vida aqui, né? Várias espécies ali se convivendo juntas. Eu trago pra minha vida aqui, “não, eu tenho que aprender a conviver com várias pessoas de diferentes formas, com diferentes ideias”. E assim é a Caatinga, são várias vidas ali que estão vivendo juntos. Um está apoiando o outro, uma espécie está ajudando a outra. Por que não? A gente, ser humano, não podemos fazer dessa forma. Hoje eu aprendo muito com a caatinga. Tem a erva de passarinho, que é um parasita, que ela nasce, o passarinho vem, come a sementinha dela, faz cocô no galho, ela nasce ali no galho e consegue entrar, suas raízes, dentro da outra árvore, e vai matando a árvore. Eu também trago esse exemplo pra nossa vida, que às vezes tem os parasitas que entram na nossa vida pra, às vezes, nos destruir, nos matar. Eu dou muito essas falas para os visitantes que vêm aqui para o Vale. Faço esse contexto da relação da Caatinga com a relação... com as nossas relações, assim, interpessoais, de vivência com as pessoas.
P/1 - Tem mais alguma coisa que você acha que a Caatinga ensina?
R - Ela ensina também a gente... É... Sobreviver, né? É... Tem momentos a Caatinga igual mesmo, ela seca, ela recua ali. Eu trago pra nossa vida. Tem momentos que a gente tem que recuar, para uma fasezinha, a gente tem que se recolher para depois retornar novamente. Eu vejo isso muito na caatinga, essas coisas. Esses dias eu tava com o pessoal lá, lá na trilha do santuário. Era um... Três, cinco mulheres. Mulheres, assim, daquelas que viajam sozinhas, fortes, que não temem nada. E nós lá, fomos pro santuário, demos as mãos, pra fazer uma pequena oração. Aí passou um acauã, é um pássaro. Ela não fez o canto contínuo dela, ela só deu só um canto, passou pela gente. E acauã, pra mim, pra gente aqui, na verdade, é um pássaro que traz morte, anuncia morte e traz seca, anuncia seca. Eu digo, não, nesse momento eu não vou pegar esse negócio da acauã que tá trazendo a morte e tá trazendo seca. Mas tudo na vida tem que morrer pra começar, eu falei isso, pra que eu falei isso? A galera todinha, parece que eu toquei, tudinho, assim, de uma vez só, cada uma começou a falar as dores que tava sentindo, assim, foi bem mágico, bem mágico mesmo. A mulher principal, que tava grandona, influencer, rodou o mundo todinho, e a palavra dela foi dizer que estava perdida no mundo, sem conseguir achar uma porta, essa palavra encaixou muito no que todo mundo estava vivendo. Foi bem mágico mesmo. E eu venho aprendendo. Aos poucos, não sei como é, a natureza vai me mostrando aqui. Aí tem o negócio das gravuras. Eu fiz um desenho antigo, que eu coloquei o nome O Tiro e a Carreira, que foi quando a gente era pequenininho, do lado do morro do cachorro, a gente tava de baleadeira matando uns passarozinhos. Aí apareceu uma cobra e a cobra tava comendo o pássaro. Um amigo disse, um dos meus colegas disse, “vou ter uma espingarda, vamos matar a cobra”. Aí vamos, ele foi lá, pegou a espingarda. Só que era daquelas soca-soca com pólvora, que a gente chama de soca-soca, se ela tiver fria, não vai atirar, e tava fria. Aí a espingarda só fez [ruído]... A pólvora queimou e não saiu o tiro. Aí ele teve medo e soltou a espingarda, na hora, todo mundo correu, que foi a carreira que a gente deu, soltou a espingarda lá. Quando a gente foi procurar a cobra, a cobra também sumiu. Não tinha mais nem cobra. Aí eu fiz esse desenho, que era pra fazer a gravura. Hoje eu tenho a gravura aí dessa cena, que é O Tiro e a Carreira. Só que o professor disse, Cícero, se tu botar toda essa cena, tu não vai conseguir cavar tudo certinho. Aí eu só fiz só uma pequena imagem só desse momento que a gente viveu antigamente.
P/1 - Com quem que você aprendeu a fazer xilogravura?
R - Eu aprendi em uma vivência artística, onde veio vários artistas que já têm uma habilidade de gravura, e eu me fascinei pela gravura. Caramba! E agora, quando eu vou pro curso de agroecologia, que passo na Caatinga, eu sinto uma coisa me chamando pra dentro da Caatinga pra mim fazer a gravura. Às vezes eu chego atrasado lá na aula porque eu paro na Caatinga e fico admirando aquele emaranhado de... de graveto e de cactos junto ali, e algo está me dizendo para me revelar alguma coisa que está ali dentro. Eu ainda não consegui ainda fazer essa interação para poder revelar, mas algo está me chamando mesmo para mim ir para dentro da Caatinga e começar a desenhar e gravar em gravura.
P/1 - Você falou do curso de agroecologia. Como que você chegou lá?
R - Eu sempre tive vontade de fazer. Eu sempre vi muitos vídeos, eu sempre gostei de plantar. Por conta da época que eu trabalhei com a horta orgânica, eu sempre gostei muito de plantar, de estar na terra. Aqui mesmo, como eram nossas roças, na época que não estava plantando roças, eu estava sempre mexendo em um canteiro, ajeitando uma plantinha, sempre por aqui. Aí eu comecei a ver uns vídeos de Ernest, Ernest Götsch, uma coisa assim, que é um estrangeiro que veio pra Bahia e transformou toda uma área lá. Eu sempre gostei da história dele. Eu digo pois então um dia eu vou fazer um curso desse, e tinha o SERTA (Serviço de Tecnologia Alternativa). Uma vez, minha mãe, com um guia daqui, foi lá no SERTA, e chegou com um monte de novidade, “Eita que eu vi um fogo, um fogo solar”. Eu digo “Um fogo solar? Como é essa história?” “Eita que eu vi um negócio que defuma carne”. “Defuma carne?”. Eu fiquei com essas coisas na cabeça…de repente, “é esse senhor aqui, ó, que faz” Aí mostrou assim, e eu vi o Tião, e digo oxente. Não conhecia ela ainda, mas me simpatizei com a imagem dele assim e fiquei na cabeça muito tempo, muito tempo, muito tempo. Veio a pandemia, não tinha mais curso por conta da pandemia, o SERTA sumiu, o que aconteceu com o SERTA? Fechou? Aí uma vez eu tava ali na rede, o ano passado, tava ali na rede passando o celular. inscrição para o curso Técnico de Agroecologia do SERTA. Faltava meia hora para finalizar as inscrições, eu digo oxe, é o meu momento. Fiz a inscrição e fui fazer o curso de agroecologia, estou fazendo o curso de agroecologia e está me enriquecendo muito. Aí foi lá, onde eu já tinha conhecido pela foto, onde eu conheci o Tião, Tião já tinha vindo aqui, tomado café, eu digo eu tenho que fazer um curso com esse danado. Fui fazer curso com ele. Aí tô lá, tô muito feliz de estar fazendo, tá me enriquecendo muito, muita novidade, muitas coisas, interação com outras pessoas. É onde eu digo, a Caatinga, faz essa interação com a vegetação, com aquelas espécies ali. E lá eu tô aprendendo assim também. Essa interação com as pessoas, com as comunidades, com os territórios diferentes, isso está me fortalecendo muito.
P/1 - E mudou o jeito que você vê a Caatinga?
R - Oxi! De, sei lá, porcentagem aí, muito, muito, muito, muito, muito mesmo. Muito mesmo. Enriqueceu, me enriqueceu muito mesmo assim. Muito mesmo.
P/1 - Como? Você consegue falar um pouco?
R - Sim. Hoje, depois do curso, eu tenho um outro olhar. Eu posso dizer que eu tenho um outro olhar para a Caatinga, para os pequenos seres que estão ali convivendo. Nossa! Eu fico até sem palavras, assim, e sem saber por onde começar. O que mudou, falar assim, o que mudou, não só com a Caatinga, mas com todo esse cenário, com todo esse contexto aqui. Hoje, pronto, as pinturas rupestres mesmo, eu já consigo ver com outros olhos, contar a história. Antes a gente falava, são grupos nômades que viviam aqui mas..O contextozinho que está ali da vivência deles, desses povos com a natureza, eu já consigo acrescentar isso, que eles tinham também um convívio com a natureza, o uso de materiais da natureza, eu já consigo agregar isso dentro das minhas falas para os visitantes do sítio arqueológicos. Antes eu só via algumas coisinhas ali, mas hoje eu consigo ver toda a interação que eles tinham com a fauna, com a flora, com a Caatinga, eu consigo ver isso. Interpretar bem mais ali aquela cena dos sítios arqueológicos, que não só era caça, eles não só matavam animais, mas eles tinham o uso da vegetação, das espécies com plantas medicinais, usavam escadas de madeira para subir até as colmeias. Isso eu consigo identificar nos sítios arqueológicos.
P/1 - Legal. E esse seu conhecimento dos sítios arqueológicos, da vegetação e tal, você transmite ele para alguém?
R - Transmito. Você fala, assim, transmitir informações para o visitante ou para futuras gerações que possam... Transmito. Tem meu filho que eu estou encaminhando ele, de uma certa forma, estou deixando ele à vontade para ele escolher, mas ele gosta muito também de fazer trilha, eu já transmito para ele. Já levei ele lá no SERTA para conhecer também, ele gostou muito. Fica perguntando, “pai, quando é que a gente vai lá? Tem tua aula, né?”. Mas transmito, transmito para o visitante. E antes eu falava muito de todo o parque, muito técnico, hoje eu consigo falar com sentimento, tem esse sentimento. Se eu falar muito até vou ter que querer chorar, porque o sentimento cresceu muito em respeito à Caatinga, em respeito ao parque. De uma certa forma, aflorou algo que não estava aparecendo, que é o respeito e o sentimento de pertencimento de tudo isso. Eu fiquei com isso aí, se pertencendo mais àquilo ali, fazendo parte de todo esse ecossistema.
P/1 - E você falou que estranhou já a Caatinga, queria te perguntar um pouco sobre mudanças climáticas, se você já sentiu alguma diferença nesse ambiente.
R - Já, já comecei a sentir as mudanças. Algumas espécies, por exemplo, poções de Caatinga, poções de vegetações que, na minha época de criança, que tinha, hoje não tem, isso vem sendo reduzido aos poucos. Antes eu brincava em algumas matazinhas, ia matar passarinho junto com os colegas, e hoje não tem mais essa matazinha. Eu percebo muito isso, muito isso. E também pessoas que moravam lá dentro, que devido à escassez de vegetação, escassez de água, estão vindo para a vila e acaba que aquele sítio onde eles moravam se transformou assim de uma forma que, poxa, não estou reconhecendo mais nem esse lugar.
P/1 - Qual é o sentimento?
R - Dá um pouco de tristeza, né? Dá um pouco de tristeza de ver essas coisas, de um homem sertanejo que tem que sair do seu local. Às vezes, por não ter um conhecimento de sobrevivência, com aquele local ali, tem que vir para a cidade, morar na cidade, porque ficou impossibilitado de morar naquele local.
P/1 - E aí, já estamos encaminhando, mas como você vê o futuro, o horizonte do futuro da Caatinga nos próximos anos?
R - É um desafio para todos nós que amamos a Caatinga, que gostamos da Caatinga, vai ser um desafio, porque o processo está indo, e para reverter isso, vai ser um trabalhão, né? Um trabalhão pra todo mundo reverter o que a Caatinga já tá sofrendo, o que o semiárido já tá sofrendo, vai ser um trabalhão, para conseguir reverter, para que possa ter um... Lá no futuro, tudo que a gente fazer hoje possa ter um impacto lá no futuro. Mas vai depender de nós hoje, a gente vai lutar por isso, né? Mas, assim, dá um certo medo, porque o processo já começou, o processo de desertificação. Até as pessoas mesmo que moravam nos seus cantos estão saindo. Dá uma tristeza, mas a gente não pode abaixar a cabeça, temos que tentar reverter toda essa situação.
P/1 - E como dá pra ser essa luta?
R - Só com amor mesmo, viu? Só com amor. com amor e disseminar o máximo possível de informações para esses povos, para essas comunidades, tentar o máximo possível reverter essa situação.
P/1 - E como que você acha que a sua história pode ajudar nisso?
R - Como que eu acho que a minha história pode ajudar? Pode, pode ajudar bastante, de uma certa forma, falando de tudo que já passei, para aquelas pessoas que às vezes estão desacreditadas, e tudo é possível. O que eu tenho para passar é que tudo é possível. Se a pessoa tem amor no coração, sabe o caminho que tem que ser percorrido, então isso pode ser transformado, pode ser passado para outras pessoas e começar a fazer também a mesma coisa e transformar.
P/1 - E como você vê o seu futuro?
R - Eita, o meu futuro, eu vejo um futuro feliz, eu vejo um futuro feliz, porque pior já estava, pior já foi, pior minha mãe já passou, então eu vejo um futuro mais tranquilo para todo mundo, para todos nós. Uma pessoa me disse outro dia que eu sou a pessoa que estou furando a bolha, uma barreira que tinha antes da minha família e eu estou conseguindo atravessar essa barreira. Então já é uma história boa, um exemplo bom para ser passado.
P/1 - Qual barreira que é essa?
R - É a barreira da falta de conhecimento, é a barreira da falta do financeiro. Essas barreiras que minha família nunca conseguiu passar. E hoje eu tô conseguindo, claro, com a ajuda de minha mãe, que é a guerreira principal, eu tô conseguindo vencer junto com ela e vou conseguir proporcionar para meu filho, para meus sobrinhos, futuramente meus netos, vou conseguir dar uma estrutura melhor para eles poderem melhorar suas vidas.
P/1 - Você tem algum sonho?
R - Eu tenho, assim, eu tenho. Eu tenho um sonho de fazer arqueologia. Não sei se vou conseguir fazer arqueologia, mas eu tenho esse sonho de fazer arqueologia.
P/1 - Por quê?
R - Por conta de tudo isso aqui que eu vivo, né? Está impregnado em mim, está enraizado em mim. E eu quero saber como é a história do meu povo. Como eles chegaram aqui, o que eles viviam, como eles comiam, o que eles comiam. Eu tenho muita vontade.
P/1 - Cícero, o que você achou de contar a sua história hoje?
R - Achei legal. Eu sempre gosto de contar a história da minha mãe. É, eu sempre gosto. Eu acho fantástico a história dela, o que ela proporcionou pra mim, né? Acho fantástico.
P/1 - Tem mais alguma coisa que você queira falar?
R - Não, tá tranquilo.
P/1 - A gente pode finalizar.
R - Obrigado.
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