Apesar da baixa estatura, muitas vezes agigantei minha insatisfação, tal qual Golias. Mas como sustentar um gigante, eu tão pequena? Descendentes de italianos, numerosos, barulhentos e falastrões, somos a típica família interiorana, talvez não tão típica assim, mas excêntrica como toda família deve ser. Aos estranhos é comum confundir nossas conversas com brigas, risadas com choros e diálogos com sermões. No entanto, temos uma peculiaridade ímpar, também somos descentes de uma longa linhagem de surdos. Bisavôs, avôs, tios, até minha mãe, cada qual com sua surdez, uns mais, outros menos.
Quando menina costumava observar com certa zombaria as conversas entre meu avô e meus tios. Misturados aos muitos “Não entendi”, “O quê?”, “Como? saiam às respostas mais absurdas e hilárias possíveis. Diálogos abafados pelas mãos em forma de conchinhas, lembro-me nitidamente. Achava graça e ria. Eu ria deles, de graça. Garota barulhenta e travessa costumava falar muito mais do que ouvir, mais por hábito do que por deficiência, até vir esse silêncio morno e manso. Percebi aos poucos, nas conversas truncadas, entrava eu nessa grande roda.
Um amigo perguntava: E aí, como vai o Erivaldo? Respondia convicta: Quem? O Ricardo, não o vi, não. Falou com o Maziero? Obrigada, não preciso de marceneiro! Por favor, onde fica o "bathroom"? Ah, A Bete fica lá do outro lado... Sons imaginários. Campainhas? Não as ouço. Assovios, tampouco. Sussurros são incógnitas, romântico é falar alto e claro.
Tropeço, ora ou outra, em algumas frases secas: - “Ela tem audição seletiva”, “Surda nada, é distraída”. Crescia Golias, mas era para ser Davi. Eis como um fato, quase matemático, principiou a metamorfosear meu gigante. Já adulta, cursando a Universidade, no primeiro ano, decidi colocar aparelhos auditivos para experimentar outra vez o “Ouvir”. Nossa, que descoberta, que...
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Apesar da baixa estatura, muitas vezes agigantei minha insatisfação, tal qual Golias. Mas como sustentar um gigante, eu tão pequena? Descendentes de italianos, numerosos, barulhentos e falastrões, somos a típica família interiorana, talvez não tão típica assim, mas excêntrica como toda família deve ser. Aos estranhos é comum confundir nossas conversas com brigas, risadas com choros e diálogos com sermões. No entanto, temos uma peculiaridade ímpar, também somos descentes de uma longa linhagem de surdos. Bisavôs, avôs, tios, até minha mãe, cada qual com sua surdez, uns mais, outros menos.
Quando menina costumava observar com certa zombaria as conversas entre meu avô e meus tios. Misturados aos muitos “Não entendi”, “O quê?”, “Como? saiam às respostas mais absurdas e hilárias possíveis. Diálogos abafados pelas mãos em forma de conchinhas, lembro-me nitidamente. Achava graça e ria. Eu ria deles, de graça. Garota barulhenta e travessa costumava falar muito mais do que ouvir, mais por hábito do que por deficiência, até vir esse silêncio morno e manso. Percebi aos poucos, nas conversas truncadas, entrava eu nessa grande roda.
Um amigo perguntava: E aí, como vai o Erivaldo? Respondia convicta: Quem? O Ricardo, não o vi, não. Falou com o Maziero? Obrigada, não preciso de marceneiro! Por favor, onde fica o "bathroom"? Ah, A Bete fica lá do outro lado... Sons imaginários. Campainhas? Não as ouço. Assovios, tampouco. Sussurros são incógnitas, romântico é falar alto e claro.
Tropeço, ora ou outra, em algumas frases secas: - “Ela tem audição seletiva”, “Surda nada, é distraída”. Crescia Golias, mas era para ser Davi. Eis como um fato, quase matemático, principiou a metamorfosear meu gigante. Já adulta, cursando a Universidade, no primeiro ano, decidi colocar aparelhos auditivos para experimentar outra vez o “Ouvir”. Nossa, que descoberta, que revolução! Quando amassado o plástico: trac, trac, trac. O trem parando: - FIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIUUUUUUUUUUUUUUUUUUU (ou algo assim). E mais, e mais sons, até a cabeça explodir, girar com tanto barulho.
Confesso, já nos primórdios das minhas descobertas, timidamente nasceu uma saudade frouxa daquele silêncio morno. Zum, zuns afora, supunha finalmente estar fora da roda. Num dia qualquer de aula, no avesso da história, lembro-me da matéria: Matemática financeira (meu calcanhar de Aquiles), começou a “pitar” um som inquietante e incessante, era um tal de PI, PI, PI, PI, PIPIIIIIIII. Mais um PI, procurava angustiada a causa à direita, outro PI, olhava à esquerda e nada. Até que não aguentei e explodi: - Alguém está ouvindo esse som irritante? Meus colegas entreolharam-se e descobriram: Sentada, atrás da minha carteira, uma amiga digitava no celular. Eis aí o meu desassossego. Um deles comentou: Amiga seu celular está dando interferência no aparelho dela. Vamos testar 1, 2, 3... Câmbio:1, 2, 3... Testando…
De súbito houve uma explosão de gargalhadas, gargalhamos. Obviamente interrompemos a aula e tivemos que explicar a causa à classe, mais gargalhadas, agora coletivas, que renderam quatro anos de gozações. Câmbio, testando: 1, 2, 3... Testando... Ah, eram engodos os aparelhos, eis minha conclusão. Serviu de lição, concluí a faculdade e deixei de usá-los. Hoje, apesar de manter o jeito risonho, matreiro e falante, presto atenção nas histórias que estão me contando, aprendi a ouvir de outras formas.
Adormecido está o Golias, e volto serena, todos os dias, para o silêncio sagrado da criação.
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