Como qualquer grande cidade, São Paulo viveu, durante a década de 60, um período de grande especulação imobiliária. Aos olhos de uma criança era um pouco assustador ver surgir, quase da noite para o dia, um prédio gigantesco onde, até então, havia apenas uma casa. “Novos tempos...“era o que ouvíamos quando nos surpreendiam em nosso espanto. Acompanhei a abertura de ruas onde existia apenas mato e aproveitávamos, temporariamente, esses novos espaços urbanos que surgiam, como locais de passeio e laser. Meus pais montavam uma bela cesta guarnecida com frutas e pão francês com mortadela. Uma Coca-Cola em uma garrafa de vidro, completava o pacote. Tudo muito improvisado e simples e, talvez por isso mesmo, delicioso. Era, portanto, com muita expectativa e prazer que, frequentemente íamos visitar uma tia da minha mãe que morava em um sítio no bairro de Santana, zona norte de São Paulo. Uma área verde que resistia bravamente ao crescimento da cidade. Muito idosa, tia Menina morava praticamente só, assistida em poucos momentos, por uma fiel ajudante que logo aprendemos também a chamar de tia. Além da grande e bela casa de fazenda incrustada em uma reserva de mata original, o terreno possuía uma fonte natural que me intrigava. De onde vinha aquela água? Como está sempre gelada? Não tem nenhum gosto ou cheiro? Ainda por cima corria sem cessar, 24 horas por dia, em um lindo e cuidadosamente construído chafariz. Apesar de não haver nenhuma criança no local, a propriedade parecia perfeita para crianças. Muita natureza, pouco calor, água constante e fresca, grandes espaços para correr, andar de bicicleta, brincar de esconde-esconde ou jogar bolinha de gude. Quando íamos visitar tia Menina, chamávamos os primos para passar o dia e, dessa forma, qualquer possibilidade de falta de quórum para brincadeiras estava resolvida. A casa, construída no século XIX, parecia ter saído de um conto. A varanda rodeada de janelas com vidros bisotés, onde...
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Como qualquer grande cidade, São Paulo viveu, durante a década de 60, um período de grande especulação imobiliária. Aos olhos de uma criança era um pouco assustador ver surgir, quase da noite para o dia, um prédio gigantesco onde, até então, havia apenas uma casa. “Novos tempos...“era o que ouvíamos quando nos surpreendiam em nosso espanto. Acompanhei a abertura de ruas onde existia apenas mato e aproveitávamos, temporariamente, esses novos espaços urbanos que surgiam, como locais de passeio e laser. Meus pais montavam uma bela cesta guarnecida com frutas e pão francês com mortadela. Uma Coca-Cola em uma garrafa de vidro, completava o pacote. Tudo muito improvisado e simples e, talvez por isso mesmo, delicioso. Era, portanto, com muita expectativa e prazer que, frequentemente íamos visitar uma tia da minha mãe que morava em um sítio no bairro de Santana, zona norte de São Paulo. Uma área verde que resistia bravamente ao crescimento da cidade. Muito idosa, tia Menina morava praticamente só, assistida em poucos momentos, por uma fiel ajudante que logo aprendemos também a chamar de tia. Além da grande e bela casa de fazenda incrustada em uma reserva de mata original, o terreno possuía uma fonte natural que me intrigava. De onde vinha aquela água? Como está sempre gelada? Não tem nenhum gosto ou cheiro? Ainda por cima corria sem cessar, 24 horas por dia, em um lindo e cuidadosamente construído chafariz. Apesar de não haver nenhuma criança no local, a propriedade parecia perfeita para crianças. Muita natureza, pouco calor, água constante e fresca, grandes espaços para correr, andar de bicicleta, brincar de esconde-esconde ou jogar bolinha de gude. Quando íamos visitar tia Menina, chamávamos os primos para passar o dia e, dessa forma, qualquer possibilidade de falta de quórum para brincadeiras estava resolvida. A casa, construída no século XIX, parecia ter saído de um conto. A varanda rodeada de janelas com vidros bisotés, onde ficávamos longas horas, jogando ou apenas assistindo a coreografia das árvores causada pela ação do vento. As altas portas, de pinho de Riga, de todos os cômodos, davam para a sala e faziam dela o principal ambiente da casa. Seus impecáveis lustres de cristal eram testemunhas silenciosas da intensa vida social que outrora ali aconteceu.
Em uma quente noite de verão, nesse ambiente de paz, sonho e tranquilidade todos saímos para apreciar a noite e a belíssima vista que tínhamos da cidade logo abaixo. Seguimos até o chafariz para apreciar o céu e nos refrescar naquela água tão especial. Para meu assombro fiquei, mais uma vez, assustado ao ouvir alguns adultos maculando aquele lugar e aquele momento com um assunto tão aterrador. Incrédulo, ouvi pela primeira vez a expressão – ESQUADRÃO DA MORTE. O terrível nome não poderia suscitar em mim nada de bom, porém, foi muito mais difícil de entender o significado daquele termo e, em poucas palavras entendi... um grupo armado que, em nome de uma forma de pensar, fazia “justiça” assassinando pessoas que, segundo eles, prejudicavam o sistema vigente. Para piorar, tive tempo de entender também que esses grupos, capazes de jogar alguém vivo de dentro de um helicóptero em pleno voo, eram grupos criados pelo próprio governo. Isso definiu para mim o que realmente era a ditadura.
Não por esse fato em si, voltamos poucas vezes mais a casa de Tia Menina que adoecera. Não muito tempo depois, o processo inevitável se desenvolveu. Ela faleceu e o sítio foi vendido. Hoje existe um condomínio no local. Nunca mais soube se a vista ainda é linda ou se a fonte secou.
Triste fim.
Triste DITADURA.
Augusto Citrangulo
março 2024
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