Vidas em Cordel - Museu da Língua Portuguesa
Entrevista de Rubén Darío
Entrevistado por Cecília Farias (P/1) e Janaina Lopes (P/2)
São Paulo, 5 de novembro de 2024
Código da entrevista: PCSH_HV1411
Revisão: Nataniel Torres
P/1 - Meu bem, começa se apresentando pra gente, por favor! Com o nome completo, onde nasceu? Quando nasceu?
R - Sim! Olá, eu sou o Rubén Darío Manrique Mora. Eu nasci em Cali, na Colômbia. Eu nasci no dia 8 de novembro de 1967. Um pouco velhinho, já. Nasci numa casa. Meu pai não deu para chegar na hora do parto de minha mãe. Nasci numa casa, uma quarta feira à tarde, duas da tarde, segundo minha mãe relata.
P/1 - Como era essa casa? Quem vivia nela?
R - Nessa casa que eu nasci, morava minha madrinha, mas eu não morava ali. Eu morava noutra casa. Não sei porque minha mãe estava aquele dia ali, não me lembro se ela me contou, relatou. Mas eu me lembro da minha casa, onde morava, porque assim, os primeiros três anos, talvez a gente não lembra muito. Mas eu me lembro que a casa que eu morava em Cali era uma casa num bairro muito pobre, chamado La Isla. Parece até que o nome é proposital, porque é um bairro periférico onde passava o rio Cali. E é bem lá no final, era um bairro onde tinha famílias muito humildes, e por incrível que pareça… Eu falei que a história inicial é chata, né! Porque por incrível que pareça eu me lembro quando caminhões iam despejar desperdícios de grandes fábricas, tomates, laranjas, jogava no rio. E muito dos que moravam lá no bairro, era a maior alegria, porque você está jogando comida, em estado ruim, porém dava pra resgatar muita coisa, né! Mas a gente era criança, ia brincar, pegar, comer, levar para casa. Então, eu morei nesse bairro até mais ou menos meus oito anos de idade. Mas eu morava nessa casa, era uma casa comprida, eu me lembro que era uma casa muito simples, de madeira, e no fundo era comprida. Então, eu me lembro que morava outra família no fundo, e...
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Entrevista de Rubén Darío
Entrevistado por Cecília Farias (P/1) e Janaina Lopes (P/2)
São Paulo, 5 de novembro de 2024
Código da entrevista: PCSH_HV1411
Revisão: Nataniel Torres
P/1 - Meu bem, começa se apresentando pra gente, por favor! Com o nome completo, onde nasceu? Quando nasceu?
R - Sim! Olá, eu sou o Rubén Darío Manrique Mora. Eu nasci em Cali, na Colômbia. Eu nasci no dia 8 de novembro de 1967. Um pouco velhinho, já. Nasci numa casa. Meu pai não deu para chegar na hora do parto de minha mãe. Nasci numa casa, uma quarta feira à tarde, duas da tarde, segundo minha mãe relata.
P/1 - Como era essa casa? Quem vivia nela?
R - Nessa casa que eu nasci, morava minha madrinha, mas eu não morava ali. Eu morava noutra casa. Não sei porque minha mãe estava aquele dia ali, não me lembro se ela me contou, relatou. Mas eu me lembro da minha casa, onde morava, porque assim, os primeiros três anos, talvez a gente não lembra muito. Mas eu me lembro que a casa que eu morava em Cali era uma casa num bairro muito pobre, chamado La Isla. Parece até que o nome é proposital, porque é um bairro periférico onde passava o rio Cali. E é bem lá no final, era um bairro onde tinha famílias muito humildes, e por incrível que pareça… Eu falei que a história inicial é chata, né! Porque por incrível que pareça eu me lembro quando caminhões iam despejar desperdícios de grandes fábricas, tomates, laranjas, jogava no rio. E muito dos que moravam lá no bairro, era a maior alegria, porque você está jogando comida, em estado ruim, porém dava pra resgatar muita coisa, né! Mas a gente era criança, ia brincar, pegar, comer, levar para casa. Então, eu morei nesse bairro até mais ou menos meus oito anos de idade. Mas eu morava nessa casa, era uma casa comprida, eu me lembro que era uma casa muito simples, de madeira, e no fundo era comprida. Então, eu me lembro que morava outra família no fundo, e eu ia para a escola… Não me lembro muito bem, Piedra Ita, acho que era o nome da escola, mas como eu fiquei os primeiros… Acho que um par de anos só nela. Mas as lembranças não são muito fortes assim. Logo depois meu pai disse que comprou, mas eu não sei se ele comprou realmente, eu acho que foi meio invadido, um terreno em outro bairro, e aí ficamos muitos anos. Então, eu morei muitos anos em Melendez, ao Sul… Era ao sul, na parte sul da cidade, Cali. Onde era um bairro que começava a nascer, então a gente… Eu me lembro que tinha enchente, eu me lembro até que os vizinhos se encontravam aos domingos para limpar, porque não tinha esgoto encanado, né! Então, aos domingos os vizinhos… Que é uma coisa que eu lembro até com alegria também, porque era o momento que as crianças em volta de seus pais, tinham… Esgoto, né! E aí, os vizinhos de tempos em tempos, meses, dois meses, eu não me lembro, saíam todos os homens, meu pai entre eles, para limpar, para poder dar vazão ao que todo mundo, né! Então… E eu me lembro que tinha uma quadra muito grande, eu jogava bola, brincávamos de índio, porque fazia muitas cabanas no meio do mato, e ficava brincando ali no meio do mato. Então, são lembranças que… A gente, criança, se diverte com qualquer coisa, né! Acho que isso é a parte boa de ser criança, porque você não percebe muito muitas coisas. Então, eu acho que nesse bairro, Melendez, ai eu já fui crescendo, eu me lembro de minha escola, Rufino José Cuervo. E é uma escola que me marcou muito porque eu fiquei com uma lembrança muito boa, gostosa, daquela minha escola, e de professoras que durante anos acompanharam a gente. E eu lembro até que uma dessas professoras que deu aula para mim, depois eu cheguei a palestrar para ela. Aí, foi uma coisa muito louca, porque a geração… Mas enfim… Então, essa escola… Às vezes, quando eu consigo chegar no meu bairro, eu dou uma chegadinha, porque eu tenho uma recordação gostosa da minha escola.
P/1 - E seu pai e a sua mãe, como eram?
R - O meu pai…
P/1 - Eles eram de lá mesmo?
R - Sim! Meu pai… Eu nasci em Cali, meu pai é de Girardot, uma cidade mais ao centro da Colômbia, Girardot. E minha mãe é de outra cidade, Armênia. De Armênia, que foi até uma cidade que foi atendida muitos anos atrás por um vulcão, que cobriu a cidade, né! Então… Aí, eles contam muitas histórias, inclusive. Infelizmente a Colômbia… A gente vive uma história na Colômbia de muita violência, na verdade, porque até meus pais, meus avós, eles tiveram que sair de suas terras, porque na época… Primeiro, a questão política era muito forte, existiam dois governos liberais e conservadores, que uns queriam matar os outros. Então, meu pai, por exemplo, eu não tinha nem nascido, mas foi logo no começo que eu nasci, pelo que minha mãe relata. Meu pai era sargento militar, ele era liberal. Quando os conservadores assumiram o poder, os liberais queriam matar os conservadores. Então, meu pai teve que desertar para salvar a vida dele. E aí, em consequência, mataram a família dele, por exemplo. Então, são coisas, são histórias, que se perpetuam muito na Colômbia. Você vê, quando eu saí da Colômbia… E que eu já vou pular muitos anos para a frente, mas são histórias de criança, que você cresce numa cidade, como foi meu caso, sempre ouvindo e presenciando morte de muitos amigos, pessoas próximas, por causa, não apenas da política, mas do narcotráfico, da guerrilha na Colômbia. Desaparições de amigos que a gente brinca, porque também se sequestrava crianças, de 11 anos, 12, eles começaram a desaparecer. Você sente a ausência dos amigos e os pais não sabem pra onde eles foram. Amigos que nunca apareceram, né! E aí, a minha lembrança de criança, embora eu não lembro… Teve muitos anos que eu dormia no chão, tanto que eu tenho aqui uma marca no meu dedo, que ficou até assim, um rato que me mordeu, aí eu acordei porque estava com sangue. Então, é engraçado… Mordeu feio, era um bichão, porque, né! Então, eu acho que a minha infância, ela foi de uma carência muito forte, né! Mas eu acho… Ah, e outra coisa, infelizmente meu pai era alcoólatra. Essa é uma das coisas que mais me marcaram na minha infância, infelizmente. Que foi o que fez eu conseguir aos meus 17 anos sair de casa. Porque você começa a tomar consciência, e eu não queria mais ver o meu pai maltratando a minha mãe, jogando na cara tudo que ele levava para casa, tudo que ele fazia. Era um dever como um pai, a família não precisa ser… Eu falo isso hoje como pai de família também, né! Então, meu pai sempre foi muito ausente por causa do álcool. Então, minha mãe, muitas vezes ela ia lavar roupas, ela ia fazer coisas, e aí ela até levava a gente, porque ela não tinha com quem deixar os filhos, enfim. Então, acho que minhas lembranças, elas… Eu brincava muito na rua, brincava muito lá, tinha aquele campo aberto, cheio de mato. Então, a vida minha é uma vida de índio mesmo, que se enfia lá, brinca, fazia muitas comidinhas, que trazia de casa com os meus amigos. Mas com tudo, eu acho que foi uma infância gostosa, assim, sem maiores dores. E que quando você lembra de alguns fatos específicos, se entristece assim, uma das coisas que eu tento cuidar muito, que isso não acontecesse com os meus filhos, né? Porque eu acho que a gente tem um pouco essa responsabilidade, até de não reproduzir coisas que te causaram muitas dores. Então, é isso! Quando você pensa que… Não, foi isso! Eu fui crescendo. A gente criança só tem que estudar, né! Não me lembro do meu pai… Ainda bem que a gente não foi direcionado para trabalhar, porque muitos amigos meus os pais meio que obrigavam a trabalhar, e tal. Na Colômbia, com dez anos, muitos jovens, muitos amigos meus, foram iniciados pelo narcotráfico. Eu acho que é porque para uma criança levar coisas era muito fácil, muito simples. Inocentemente! Aí, quando você ganhava um trocado, era uma felicidade. E nessa questão, eu sim, agradeço muito a minha mãe, porque minha mãe, ela percebeu logo essa situação, e sempre estava nos controlando para onde íamos, com quem íamos. Eu tinha muitos amigos que trabalhavam, transitavam com isso, e a minha mãe sempre cortando. “Ó, ó, ó, toma cuidado!” Tinha amigos que as mães deles trabalhavam com narcotráfico, ou vendia, então muitas vezes acontecia que estávamos brincando dentro da casa deles, e de repente chega a polícia, um monte de gente com armas e tal. Hoje eu sei, mas na época eu não sabia, que era só dar um dinheirinho, e tá tudo certo, né! Então, é uma realidade muito presente. Foi uma realidade muito presente.
P/1 - E outras memórias, assim… Você contou dessas brincadeiras. Tem alguns outros hábitos ali da sua infância, alguns costumes específicos da família, alguma peculiaridade de hábitos de vocês? Ou mesmo comidas que vocês faziam, alguma comida que era especial, de data especial?
R - Então, a família, como eu te falei, eu acredito que a ausência do meu pai, ela influenciava muito, porque a minha mãe sempre estava… Muitas vezes sozinha. Então, o que acontece… A única alegria, que é uma coisa de muitos colombianos, era a gente se reunir aos domingos, muitas vezes para fazer sancocho. Sancocho que é um prato típico colombiano, que tem batata, mandioca, banana da terra verde, milho, um sopão assim, jogava um frango. Então, o Sancocho, ele é meio que uma celebração comunitária, familiar. Que isso prevalece ainda, até hoje na Colômbia. Então, é uma…. Então, principalmente o sancocho, ele nos congregava muito. Porque as minhas irmãs também… Eu tinha quatro irmãs, éramos em cinco. Aliás, falando dos meus irmãos, que não falei. Eu era o quarto de cinco irmãos. As três palmeiras eram mulheres. Era, não, são. Que hoje morreu uma delas já, faz dez anos, 12 anos. Só que minhas irmãs… Gente, eu não entendo porque elas…. Infelizmente a vida delas até hoje nunca foi legal, sabe! Por causa de violência em casa. Eu via que meus pais batiam nelas, tanto que elas meio que saíram com qualquer cara, isso pra sair, né! Mas quando minhas irmãs estavam, elas tentavam fazer alguma coisa juntos, às vezes, visitavam. Mas eu não me lembro de momentos… Claro, a gente teve momentos celebrativos, porque precisa, a família tem que ter esses momentos de encontro, de celebração. Eu acho que uma celebração maior, que eu me lembro com muita alegria e muito orgulho assim, foi o dia que eu fui fazer minha primeira comunhão. Porque na Colômbia fazer a primeira comunhão, parece que você vai casar, né! Aí, meus pais compraram o que é tradição na Colômbia, compraram um mocassim. Eu nunca tinha tido um mocassim. Um sapato mocassim que era de couro, um sapato top. Comprou um mocassim marrom, uma calça bege, um paletó bege, um colete bege, com uma camisa, essas que são meio bordadas aqui na frente assim, aqui em volta. Nossa, uma coisa, parecia casamento. Então, eu me lembro dessa infância, como a grande e maior celebração que eu tive de encontro com a família, com a família e com os amigos do bairro, assim. Foi a minha primeira comunhão, que, aliás, choveu, né! Então, veio a chuva, mas o meu pai montou uma lona, sei lá o que, aí todo mundo se divertiu. Ficou tudo bagunçado de barro e tal. Mas são coisas que nas brincadeiras a gente… Engraçado, a gente parece que esquece um pouco, né! Algumas coisas fazem o quê? As coisas boas, parece que elas não ficam na gente. Por que não ficam? Interessante, hein!
P/1 - O psicólogo é você aqui pra explicar pra gente.
R - Eu sei! Não, não! É porque, às vezes… Eu já parei de trabalhar com a psicologia. Mas parece que a gente faz questão, às vezes, de esquecer. Não é que faz questão, as situações vão te levando a esquecer momentos bons. Com certeza tinham muitos momentos bons. Eu acho que meus melhores momentos bons foi de jovem, que eu comecei adolescente, jovem, que eu comecei a me envolver com processos de grupos com jovens. Aí, começamos a fazer muitos…. Na época, eu comecei a me… Fui chamado para participar de grupos de jovens, pré-adolescentes ainda, 12, 13 anos. E aí, eu comecei a ver que era legal se reunir com outros e conversar, porque a gente fica no bairro, meio sem sentido, sem nada. Então, eu me reunia todos os sábados com grupos de jovens, e aí era legal, porque criávamos arte, criávamos teatro, fazíamos muitas coisas, discutia. Isso foi muitos anos, muitos, muitos, muitos anos. Tanto que depois eu me converti em coordenador de grupo de jovens. Então, eu acho que… Aí eu sinto que eu me incorporo como uma pessoa mais… Eu não sei, mais feliz, talvez. Porque eu me encontro com pessoas que veem sentido nas coisas, com maior força, com maior afinco, né! Aí, eu comecei a fazer um monte de coisas. Depois que eu saí da minha casa, aos 17 anos, eu nunca mais voltei em casa para morar, mas sim para visitar. Então, aí eu comecei a me relacionar com jovens de outros bairros. Essa era uma coisa que era da igreja. Eu fui catequista na igreja da minha paróquia. Então, eu começo a me perceber, sem saber que eu era meio que um líder na comunidade. E isso é muito louco, porque você faz coisas porque você quer, ou porque você se sente bem, legal. E aí, você começa a sentir que as pessoas te procuram. Essa é uma coisa gostosa para mim, legal! E minha família, eu meio que deixei a minha família para trás, não para trás, mas era um segundo plano, minha família. No tanto que muitos, muitos, muitos natais, eu não passava com a minha família, eu passava com o grupo de jovens, fazendo um monte de coisas, eu procurava… Então…
P/1 - Esse grupo de jovens você conheceu onde, na escola? Na igreja?
R - Não! Eu fui fazer a minha preparação para fazer a catequese, falei, a primeira comunhão. Aí, eu fui terminando o grupo de catequese, uma freira, que nos orientava na catequese, nos convidou, a mim e a outros, a fazer parte do grupo de jovens, pré adolescente. Tinha um que? Uns que 13 anos, talvez. E eu aceitei. Nem pedi licença para minha mãe. Falei: “me convidaram, tal, tal, tal”. E então, eu comecei a frequentar, a partir dessa freira, que não usava hábito, era uma freira que até hoje eu tenho muita lembrança, porque para mim ela me salvou de muitas coisas, sabe? Porque através daí eu consegui enxergar o mundo muito diferente. Tanto que com a minha família eu me destoou muito. Na minha família o único que fez faculdade, fui eu, né! Então, isso marcar bastante, assim! Então, eu fui indo, fui indo, fui ser catequista, anos depois, aí eu fui ser coordenadora de grupo de jovens, né! Numa época em que a Colômbia, ninguém queria saber da Colômbia. Tanto que eu fui convidado para falar da nossa experiência de jovens da Colômbia ao exterior, eu fui convidado na Espanha, na França, nos lugares, para falar desse trabalho com os jovens, que era feito na Colômbia. E que não era fácil realmente. Os líderes sociais na Colômbia, muitos deles, éramos alvo deles, eram mortos, muitos deles na Colômbia, eram mortos. Eu fugi de uma situação dessas. Então, essa questão de ser líder, de trabalhar com jovens, num país extremamente conflituoso, onde os jovens queriam um país diferente e tal. Era muito perigoso. Onde você fica a vera, como foi meu caso, de ir para a guerrilha, porque você veria que a única alternativa de você conseguir desdobrar tantas dificuldades, era assumir as armas. “Vamos!” Tinha muitos amigos meus que decidiram ir para a guerrilha, que foram mortos depois, né! Alguns poucos hoje ainda estão vivos. Então, são histórias que eu consegui atravessar, digamos, ileso, porque, claro, aqui relatar situações muito específicas, não vai dar muito tempo, são situações complexas. Mas o que eu quero te dizer, é que para muitos jovens… Até para deixar a mensagem aqui para quem esteja vendo esse vídeo, na Colômbia, na minha juventude, você tinha apenas duas opções na Colômbia, para você ter uma vida… Quem era pobre, lógico. Ou você vai para o narcotráfico, ou você vai para a guerrilha, porque você não tem opção de mais nada. E eu não fui nem para o narcotráfico, nem para a guerrilha. Porém, a gente, como jovem, sofreu uma pressão de todos os lados. Além da violência do Estado, que isso gerava, porque além dessas coisas, você tinha que sobreviver, numa cidade que era cheio de “pandillas”. Quem é da Colômbia sabe o que são pandillas, que são pequenos grupos de jovens, que embora não esteja nem aqui, nem aqui. Estou no bairro! Mas cada um quer se demonstrar o mais forte. Sim! São coisas que o narcotráfico propiciava. Então, você é desses grupos, então esse grupo tinha bairros, como foi de fato. Em vários bairros da cidade, você não podia atravessar essa rua, porque você_______ Cada grupo de bairro tinha seu território, então você não pode atravessar esse território. Então, são histórias que parecem muito loucas, cara! Que você está aqui no bairro… Eu não posso passar aqui, cara! Porque eu não posso passar, existe uma proibição, porque não pode! Se eu preciso chegar na Rio Branco, eu tenho que dar uma puta volta, sei lá. Mas assim, era assim na Colômbia. Ainda bem que as coisas melhoraram muito. Mas as pandillas era uma coisa que na Colômbia elas imperavam de uma forma tão forte que… Então, você imagina num contexto desses, você trabalhar com jovens, era uma ousadia também. Você era um líder, então como líder você era perigoso.
P/1 - Conta alguma experiência, alguma história, alguma solução que teve que encontrar?
R - Não, teve várias histórias. A gente era muito procurado, porque ou você é de um lado, ou você é do outro. De qualquer lado você está ferrado. E então, um dia eu até fui preso, porque a gente… Era perto do bairro, tinha um rio, quem conhece o meu bairro, Melendez, tem o rio Melendez. E como era comum, muitas vezes ao chegar da escola ia com os amigos para o rio, a gente vai lá mergulhar e tal. E um dia a gente chegou lá, nos pegaram, fomos pegos tomando banho, e aí nos fizeram correr. E eles achavam que nós éramos da guerrilha. Entendeu? Então, assim… Cara, aí tem coisas que você…. Aí, eu fui na Polvorines, para quem conhece o bairro Polvorines, era uma região onde…. Uma área militar, eu morava perto do Batalhão Militar em Cali, e lá nos levaram e nos colocaram presos lá. Cara, eu sou muito cagão também, tem um pouco isso. O fato é que aquele dia nos prenderam, eu não sei o que ia fazer com a gente. O fato é que eu sei que tem um monte de caras que fugiram, e eu com aquele medo de fugir, porque eu sabia, eu sou do território, eu sei que lá tinha minas, era um território onde os militares eles guardam suas bombas, não sei o que, não sei o que, e guarda na terra, eu sabia disso. Até por causa da guerrilha, que ela transitava também por essa região. E eu com aquele medo que estourasse uma bomba, porque isso era uma coisa comum, normal. Mesmo assim, eu não sou tonto, eu não ia ficar esperando para que… Eu fugi também! Mas fugi assim, no meio do pavor danado. Então, assim, são situações, entre outras, que assim, sabe? Outro dia me pegaram, me bateram. Porque eu, logo depois que eu fui para a universidade, na universidade em Badi, em Cali, eu sempre… Depois que você cresce empoderado, porque eu participava de um centro cultural na Colômbia, que tinha muita formação social e política, e isso foi excelente para mim também. E a partir desse centro cultural, e que também eu incorporo para… Eu me conecto com a cultura, com as questões sociais, questões políticas, questões da cidade e tal. Acho que eu esqueci o que eu ia falar. Ah, sim! Aí, eu fui para a universidade, e para mim é muito bom me inserir em processos de reivindicações… Perdão! De reivindicação estudantil, de você reivindicar o direito dos estudantes, porque também havia muita repressão de diversas formas. E eu consigo também militar. Então, para mim, a maior adrenalina, nós jogávamos pedra mesmo, assim, e para mim a maior adrenalina era quando chegava a polícia, então você já sabia que ia chegar o gás lacrimogêneo, já tira a camisa, molha ela, assim. Então, você gosta do perigo também. Não, não é que gosta do perigo, mas eu acho que são momentos que a gente como jovem, e na minha época, houve um movimento estudantil muito forte, que eu valorizo muito para essas gerações que hoje estamos um pouco mais velhos, e que eu sinto muita falta hoje das gerações que não existem referenciais, sabe! A gente não acha referenciais. Na minha juventude eu tinha uns referenciais no mundo, onde se falava de justiça social, onde você falava de igualdade de direitos e tal. Então, a gente sempre buscou isso. Enfim… Pergunta, se não eu vou me perdendo também.
P/1 - As suas amizades durante a juventude, adolescência, acabava sendo o pessoal do grupo de jovens?
R - Sim!
P/1 - Se quiser contar um pouco mais dessas atividades?
R - Sim! Não, a minha adolescência foi isso mesmo, eu me limitava apenas a ir ao grupo de jovens, criar atividades com esses grupo de jovens. No buscávamos temas que fossem do interesse dos jovens. A gente fazia um… “Vamos falar, vamos fazer uma lista de temas que a gente gostaria de discutir, de conversar e tal.” Então, a gente fazia listas, e entre todos, íamos pautando… Como eram encontros semanais. “Então, essa semana vamos falar disso, na outra disso…” Então, fazíamos isso. E sempre havia… “A gente cria um jornal, El Tizón, chamava. Que era uma forma da gente criar, escrever, criar conteúdo. E era uma forma da gente se comunicar entre nós, e se comunicar com a comunidade. Então, a gente fazia esse jornal, a gente discutia, discutíamos a cidade, a gente fazia muitas atividades culturais no bairro, através desse centro cultural, que se articulava já também com outras frentes de trabalho no no bairro e na cidade. Então, assim, eram atividades de música, de dança, atividades culturais. Tínhamos encontros também de discussões, mas abertas com problemáticas da cidade, pontualmente. Discutíamos também, por que não, a questão da repressão, porque houve alguns momentos onde a gente queria… Pô, tinha muitos amigos nossos desaparecendo. Porra! Mas e aí, a cidade, a gente nunca escutar o prefeito da cidade falar disso. “Tem tantos desaparecidos, vamos…” Não, a gente não escutava nada. Só se escuta e vê a mãe do meu amigo chorando, procurando em tudo que era lugar e tal. Porra, ninguém diz nada! Então, você tinha que falar disso. Então, esse grupo de jovens, ele foi crescendo, a gente foi formando vários grupos, no bairro tínhamos, para você ter uma ideia, por isso que eu fui ser coordenador do grupo, porque num bairro só nós chegamos a ter quase doze grupos de jovens. E como articular? Tinha sábados que eu saía de uma reunião para outra, outra reunião. Claro, que aí a gente tinha outros líderes, porque uma pessoa só não dá conta, né! E a gente foi se articulando. E tínhamos vários grupos na cidade. E aí criamos outros grupos no país. Então, tínhamos grupos em Cartagena, tínhamos grupos em Cali, Medellín, Bogotá, na Armênia. Então, chegamos a ser realmente um grupo de jovens que foi movidos, um pouco sim pela igreja, digamos, mas era católico, de igreja católico. Mas também a gente se alimentava muito na minha juventude de uma coisa que hoje poucas pessoas conhecem e sabem, que é falar da Teologia da Libertação, né! Então, eu sou formada dentro dessa linha da Teologia da Libertação, onde para mim, Leonardo Boff, era um dos meus principais referências, o Pedro Casaldáliga, que no Brasil era o meu principal referencial. Paulo Freire na área da educação era meu pai, por isso que eu estudei educação popular. E assim, Gustavo Gutiérrez. Então, referências, onde assim, na época era a forte essas pessoas, em que se alimentava, se falava muito da utopia. Da utopia, da utopia. Depois, quando eu fui ler que a utopia, ela não existe. Puta! Como assim? A utopia, ela é inalcançável. É muito louco, né! Porque quando o Eduardo Galeano… Eu li, eu fui ler o livro Venas Abiertas de AmericaLatina, são livros que… Eu te falei que eu gosto de ler e li muito, assim. Daí onde você saca muito fôlego para… Mas eu ia falar, que quando eu descobri a utopia, que foi pelo Salgado… Poxa, esqueci agora. Então, é isso! Desculpa! Você tem personagens que a mim foram alimentando. E nós tínhamos depois, começamos a formar o que chamávamos de quadros, quadros ideológicos, vai! “Bom, a gente precisa conversar.” E aí, a gente tinha encontros com pessoas que vinham de outros países, para nos ajudar, para falar de estrutura, para entender o que é estrutura, o que é conjuntura. Como é que as coisas funcionam, como funciona a sociedade, sabe? Então, são coisas que você precisa entender de jovem, para você também saber o seu lugar, né! De que lugar a gente está falando. Hoje as pessoas falam da direita, falam de esquerda… “Mas você tem certeza de onde você está falando? Você tem certeza de sua história” Escuta aqui, as pessoas brigaram por causa de ideologias. Claro, que ideologia, ela nós compõe também. Mas a gente também tem que ter esse jogo de cintura para dialogar, para conversar. “Peraí, não, beleza!” Mas eu preciso saber a ciência certa, da onde eu estou falando. Quem sou eu? Essa minha história, ela me carrega, isso me constrói, isso me determina. Então, por isso que hoje eu me articulo muito. Quando eu te falei que eu moro aqui no Brasil há 28 anos, mas eu me apropriei da cultura brasileira, meus filhos são brasileiros, minha mulher é brasileira. Então, se eu não me aproprio desta cidade, deste país, eu como imigrante, eu… Então, estou fazendo o quê aqui? E olha que eu tenho características indígenas, então como característica indígenas, que já é uma comunidade que… Desculpa a expressão, mas naturalmente meio que segregada, e as pessoas não percebem tanto. Mas nós somos, sabe? Então, o que eu tenho para dizer? Nada? Claro que eu tenho para dizer coisas. Agora depende de quem quer escutar. Se você quer escutar, escuta. Se você não quer escutar, não escuta. Mas eu vou fazendo o meu caminho. Um dia eu vou morrer, tudo bem! Mas você vai buscando o teu… Porque pra mim o importante é o sentido a vida, sabe! Isso eu aprendi desde que estudava psicologia. O fundamental da psicologia é você ter um sentido, um propósito para tua vida. Então, dentro desses propósitos que você tem, vive sua vida feliz, da melhor forma possível. Das experiências que cada um de nós tem. E claro, eu me sinto hoje um vitorioso. Eu não sou rico, mas eu me sinto um vitorioso, porque eu criei… Hoje eu tenho quatro filhos, graças a Deus! Com dificuldade. Tudo bem, não faz mal! Mas graças a Deus nunca falta comida, estão na escola. Eu tenho gêmeas. Veio o desafio, esse ano vão para a faculdade. Então, cara, eles não precisaram viver tudo o que eu vivi, sabe! Então, pra mim isso é uma grande vitória.
P/2 - Uma curiosidade. Eu queria saber como foi esse processo de saída de casa. Quem te ajudou? Para onde você foi?
R - Sim! Olha, a saída da minha casa, ela foi impulsionada por um ato do meu pai. Ele chegou “bebadaço”, insultando a minha mãe, como de frequência. E eu falei: “Pai, pô!” Quando você cresce, você já acha que consegue encarar o pai, né! Que tem esse processo, né! “Pai, não faz isso! Pai, respeita minha mãe e tal, tal.” Eu estava cansado de ver isso. Então, eu falei: “Pai, não faz isso!” Aí, ele: “Ah, é! Você cresceu, não sei o que, já se sente muito homem, não sei o que.” “Não pai!” Ai ele veio me agredindo, ele veio com força, veio com tudo. Eu empurrei ele com muita força, ele caiu. Aí, ele saiu. Levantou com uma fúria, ele pegou um facão… Que esse momento para mim foi extremamente triste para mim, forte. Tanto que eu não esperei mais nada, e eu desci uma ladeira que morava, eu desci chorando de tristeza de ver o meu pai com um facão. Ele poderia ter me matado nessa hora. Aí, eu já não me lembro como eu falei para minha mãe. “Mãe eu não volto em casa, e um dia se eu puder…
P/1 - Se quiser a gente para um pouco. Pega uma água.
R - Passou! Desculpa! É porque eu acho que não era o momento de eu sair de casa. Aí, você pergunta, para onde eu fui e tal, você não sabe de nada ali. Mas eu estava no nono ano, estudando. Eu resolvo sair da minha casa, a primeira pessoa que me veio em mente foi uma irmã, pedir para ficar na casa dela. Ela me acolheu, ela entendeu perfeitamente a situação. E aí eu parei de ir na escola. Eu me lembro que eu estava no nono ano, faltava apenas um mês para terminar o ano. E eu gostava muito do meu colégio. Eu era o representante da minha sala. Eu estudava no Inem de Cali. É porque quando você gosta muito de um lugar. Você não quer deixar o lugar, né? Então, eu resolvi não voltar para a escola. E também não é porque eu não gostei, eu queria voltar na escola, só que quando eu saí da minha casa, eu saí com muita clareza, que eu não queria mais depender do meu pai, porque era meu pai que provinha a casa, e eu não queria mais depender dele. Eu queria romper com esse ciclo de muitos anos. Então, eu tinha que trabalhar. Eu fui trabalhar. A primeira coisa, quando você tem essa idade, você não tem muita clareza do que você quer fazer. Eu também estou falando de um momento antes dessas coisas dos jovens. Eu já estava nos jovens, mas não estava tão empoderado ainda. Mas eu sei que eu fui trabalhar com construção, como ajudante de construção. Trabalhei os piores seis meses da minha vida, porque é muito duro trabalhar com construção. Eu admiro muito as pessoas que trabalharam na construção, porque é muito duro, ou eu sou muito mole. Porque eu… Era novembro… Perdão, eu acho que esse novembro eu trabalhei, esse mês até dezembro, continuei trabalhando. Eu me matriculei para continuar os estudos à noite, sozinho mesmo. Aí, já fui alugar um quartinho pra mim, eu saí da casa da minha irmã, não porque ela me tivesse mandado embora, mas porque eu quis sair, porque também ela não tinha condições muito favoráveis, sabe? Então, eu aluguei um quartinho pra mim. E aí, eu me matriculei para continuar os meus estudos, retomar o ano que eu perdi, que perdi literalmente esse ano. E logo depois eu continuei a trabalhar em construção, mas eu não aguentei trabalhar em construção e estudar a noite, eu não escutava praticamente, as últimas duas aulas da noite, você não escuta mais nada, você dorme. Madrugar no dia seguinte, às 05h00 da manhã, aí eu saí da área de construção e fui para ser ajudante numa oficina mecânica, que também não é fácil. Trabalhava com radiadores, P900, de ônibus, muito grandes, montando e desmontando esses. Mas também talvez eu era muito mole, porque eu estudava. Então, esses trabalhos não favorecem para você estudar, porque você cansa muito. Por isso que infelizmente hoje muitos jovens também não conseguem estudar.
P/1 - Mas você conseguiu em algum momento continuar?
R - Sim! Não, depois eu… Mesmo assim eu não parei de estudar, continuei estudando. Eu terminei o meu ensino médio por mim mesmo, nunca mais pedi nada para meus pais. Eu terminei meu ensino médio, aí eu continue o processo dos jovens, já fui me empoderando um pouco mais. Aí, fui trabalhar de office boy, numa clínica. Eu acho que embora cansava, mas era menos, então me possibilitou… Pelo menos o cansaço não era tanto para a render na escola. Enfim, então é isso, eu sempre acreditei muito na educação, na escola, e foi isso que eu sempre fiz na minha vida, e que eu incentivo para os meus filhos. Hoje eu tenho um café aqui, mas eu jamais falo para meus filhos virem trabalhar aqui, porque eu dou total prioridade à escola. Se eles estão um dia por acaso aqui no café, é porque eles podem estar de boa. Mas eu sempre falo: “Vocês têm que estudar, esse é o momento de estudar.” Então, eu não forço eles virem trabalhar aqui, porque o momento de estudar é de estudar, sabe! Eu reconheço muito isso. Bom, e aí eu já comecei a estudar, fui para faculdade.
P/1 - Qual primeiro que você fez? Você fez mais de uma, né?
R - Sim! Eu fiz licenciatura em Educação Popular, e logo depois eu fiz Psicologia Social. São dois cursos que me apoderaram muitíssimo. E também, eu não sei porquê, mas é muito engraçado, porque as pessoas me escolhiam como representante da sala, sabe! Eu não entendo isso. Coisa que você busca… Eu me caracteriza muito por, sei lá, liderar coisas. Então, a gente chamava professores para palestras. E eu adorava fazer assim, você cuidar da mesa, eu falava todo mundo, e eu fazia uma compilação das falas de todos. Era tão gostoso! Eu gostava! Bom, é isso! Acho que quando eu decido vir para o Brasil… Tem uma parte que eu estou pulando, que eu disse que ia retomar, da adolescência. Tem uma parte, vocês querem que eu retome? Da infância, adolescência e juventude, ou não?
P/2 - Acho que talvez falar um pouco mais de como foi a universidade.
R - É! Não, eu acho que assim, a universidade naturalmente, você sabe que ainda mais na época de 1970, 1980, que para mim foi muito, muito importante, e não só para mim, mas para quem estava na universidade nessas décadas 70, 80. Foi um momento onde o movimento estudantil no mundo, houve grandes revelações, grandes movimentos, grandes ousadias de reivindicação social, muito forte. E eu termino participando muito disso, né! Eu fiz alguns textos para uma revista chamada Solidariedade, que era de Bogotá, porque eu começo, e é muito louco, aí eu até… Você falou disso, mas eu faço um pequeno parênteses, porque eu tenho rasgos indígenas. Infelizmente eu não sei muito, quase nada, da minha descendência. A minha ancestralidade, ela ficou perdida por muitos motivos assim, que uma das coisas que hoje eu estou tentando até redescobrir e abraçar. Mas na faculdade eu comecei a me relacionar com o Conselho Regional de Indígena de Cauca. Eu, com características indígenas, eu não sei nada das comunidades indígenas do meu país. Então, esse fato de eu liderar… Eu era representante, mas era na faculdade. Nós fazíamos reuniões para reivindicar direitos dos estudantes, não apenas da minha sala da universidade, de estudantes de modo geral. Então, isso gera muito movimento. Então, surge o ponto… Como eu te falei, na universidade, tinha dias que não saímos na rua. Nós cobríamos, e quebramos um ônibus, quebrávamos, virávamos carro de polícia. Assim, era terrorista mesmo. Mas era um momento social, que não apenas em Cali, mas em outros lugares isso era feito. Então, eu assim, o que eu fazia? Eu não sei! Eu participava de reuniões, de encontros, de movimentos, com outras universidades, de encorajar jovens. “Gente, vamos, nós precisamos apresentar.” Então, quando eu chego nas comunidades indígenas, é muito estranho, porque os próprios indígenas, eles falavam que eu era urbano. Porque você, embora tenha características indígenas, você não tem uma vida de uma comunidade indígena, né? Ainda, eu me lembro, que quando eu fui pedir para ver onde é que eu podia tomar banho. Era uma cachoeira linda. Eu nunca tinha tomado banho numa cachoeira livre, eu cresci na cidade. Por mais pobre que eu fosse, simples, tinha quatro paredes de madeira, mas era um banho privado. Então, são coisas que você se depara, não sei se são contradições, mas você vai se abrindo às coisas. E hoje eu sinto muita falta de eu me sentir como indígena mesmo. É uma das coisas que eu estou buscando nos últimos anos, porque eu preciso abraçar essas causas, que hoje em dia ninguém mais quer falar. Então, quando você me fala desse momento, desse momento da universidade, e tal. E onde você… Eu sinto que eu me compreendo melhor como indivíduo numa cidade, num país tão extremamente complexo. E aí, como acadêmico, vai! Porque você começa a trabalhar sobre conceitos que a academia te oferece. Então, você começa a sentir uma certa responsabilidade de tentar se inserir, ou pelo menos influenciar algumas coisas. Sei lá, na cidade, no bairro. E no bairro começavam a fazer muitas movimentações, desde ações concretas, participação social comunitária nos bairros, através… Com crianças….
P/2 - Rubén, pra gente voltar… Na sua infância você já tinha uma proximidade com a morte, com esses desaparecimentos, com a guerrilha. Queria saber como que você via, sentia, percebia a morte desde cedo. Com que foi isso na sua vida?
R - Então, infelizmente, a gente de criança, acho que a gente não tem muita consciência e naturaliza a situação, né! Coisa que não está certo. Naturalizar a morte, jamais! Embora a gente saiba que a morte é um estado tão natural quanto a vida, mas você não precisa se deparar com ela o tempo todo. Então, nas minhas memórias, infelizmente, era muito fácil você achar alguém morto e tudo bem! Pessoas até que matavam. A questão que a gente procurava sempre era no dia seguinte, vamos ver se saiu em El Caleño. El Caleño era o jornal da cidade onde aparecia. Então, procurar saber as causas, porque, quem era, tal! Então, assim, de criança, se você me fala desse primeiro momento da infância, a gente não tem consciência mesmo, né! Depois… Estamos falando de infância.Eu acho que na infância você não tem consciência disso. Não teria como eu te falar como é que era. Claro, você se surpreende, não é fácil ver uma pessoa. Até hoje, qualquer um de nós, eu, particularmente, eu não gosto de ver um morto, se eu vou visitar um amigo que morreu, eu posso até ir no velório, mas eu prefiro não ver. Não sei, talvez tenha um pouquinho desse… É engraçado, pode até ser isso. Não tinha pensado. Mas se eu vou num velório de uma pessoa que eu conheci, vou no velório, mas eu não quero ver a pessoa. Louco isso, né? Mas eu acho que a morte é a gente convive com ela, mas quando você percebe que ela é uma anciã, uma pessoa que teve sua vida, você sabe que vai chegar, agora, pra mim, eu me lembro, talvez, uma das coisas que me impactou muito foi ver um amigo, aí você sente assim, forte. Eu me lembro que meu amigo, ele foi assassinado mesmo. Infelizmente ele mexia com droga, mas era seu amigo. Então, por mais que eu também mexia com coisa errada, porra, eu brincava com ele. E aí, sim, você sente. Então, tem mais sentido. Outras mortes, infelizmente vira meio que natural, coisa que não deveria. Mas quando alguém muito próximo não tem como, não tem como, você sente. Todos nós sentimos, né?
P/1 - Indo mais pra frente, de contar como foi a entrada na universidade? Primeiro dia? Alguma memória da entrada?
R - Sim! Não, que primeiro pra mim entrar na universidade, foi uma busca minha, eu não tinha incentivo da família para entrar na universidade. Ninguém da minha família fez faculdade. Meus pais, o máximo que fez, foi o meu pai que fez o quarto ano do fundamental. Então, pra mim era uma expectativa muito grande. E é muito louco, porque quando você vai para faculdade, eu pensei assim: não sei se todos pensam isso. “Nossa, a faculdade, todo mundo vai ser inteligente, todo mundo vai ser diferente.” E nada! Mesmos vagabundos que a gente encontra no ensino médio. As pessoas que faltam, que não faltam. Então, você se depara também com isso na faculdade. Porém, eu não sei porque, eu sempre tive uma sensação gostosa de estudar, de ir, de aprender. Então, pra mim a lembrança que eu tenho na faculdade é assim, é um processo que eu fiz sozinho, me matriculei, eu entrei… Assim, não existe um fato que me chamasse a atenção, especificamente, mas era uma sensação gostosa. Na faculdade eu me sentia importante. Ó faculdade! E a sensação, né! Mas não me lembro de um fato específico, assim.
P/1 - E aí, você foi da educação popular para psicologia?
R - Sim!
P/1 - Foi direto? Uma coisa emendada na outra?
R - Sim!
P/1 - Teve algo da primeira formação que você pegou ali e pensou, agora eu quero ir para psicologia social. Como é que foi isso?
R - Não, foi muito interessante, porque o que primeiro eu queria fazer, era psicologia, só que infelizmente eu já trabalhava. Feliz ou infelizmente, eu já trabalhava. Como o curso de psicologia, ele tinha vários horários durante o dia, então infelizmente eu não consegui… O centro cultural no qual eu trabalhava, as diretoras, que eram freiras, elas não me liberaram. Coisa que eu fiquei um pouco puto, mas tudo bem. Para eu estudar. Então, eu fui para um curso que tivesse uma mobilidade maior de horários. Então, aí o curso de Educação Popular, foi me dar essa flexibilidade, porque tinha que cumprir horário de trabalho. Não, perdão! Antes desses dois cursos… Eu falei para vocês que eu tinha ido trabalhar numa clínica com um médico, né? Nesse meu destino, meu primeiro curso universitário, eu queria… No momento que eu estava lá, eu queria estudar muito economia. Quando eu era office boy, daquele lugar, daquela clínica que trabalhava com crianças com leucemia. Eu falei para o médico que eu queria estudar economia, ele falou para mim. E ele era decano da Faculdade de Medicina da Universidade Libre, em Cali, de uma faculdade. Era médico, né! Era decano, que é diretor. Ele me falou: “Escuta aqui, não faz economia, que isso não dá dinheiro, tal, tal, tal.” Eu vou te pagar 50% e você vai estudar contabilidade. E eu falei: contabilidade, economia. Eu não tinha muita opção, porque também não tinha muita grana. Mesmo assim, eu fiquei pensando em mim. Eu acho que economia e contabilidade… Nunca tive ninguém que me orientasse. Acho que contabilidade e economia, deve ter uma coisa próxima. E aí, eu comecei a estudar contabilidade. Ele realmente me pagou, tal. Só que passaram-se dois semestres, e eu não me identifiquei com o curso. Porque economia tem a ver com essas coisas que eu sempre gostei de análises mais aberto, não sei, sempre pensei muito aberto assim. Não sei. Não é aquilo que eu estava querendo assim. Aí, eu estava com vergonha de falar para ele que eu não queria estudar isso, porque ele estava me doando... Eu não me lembro se era 50, ou 70% de bolsa. E aí, eu falei para ele que eu tinha me matriculado num outro curso. Como é que foi? E era educação popular. Ele ia me matar se eu falasse que ia estudar educação popular. Menos ainda, né? Porque eu já tinha os meus trabalhos com os jovens, já fazia… Total que eu não tive coragem de falar para ele. E aí, eu saí, porque eu não queria mais continuar estudando contabilidade. Eu sei que ele não ia me entender. Então, eu resolvi falar para ele, que eu tinha ganhado uma bolsa, coisa que era mentira, pra estudar. Acho que eu falei para ele que era qualquer outra coisa, né! E aí, ele também não gostou. Acho que eu falei que ia estudar economia mesmo. Aí, total que eu saí. Então, quando eu fui estudar Educação Popular, com certeza já era… Primeiro que eu tinha tentado estudar psicologia e não conseguia porque não tinha os horários disponíveis por causa do meu trabalho. Quando estava nessa clínica, aí eu já com o meu trabalho, com os finais de semana e as noites, mas também era tudo voluntário, sem remuneração, nada. Aí, eu fui estudar educação popular. Aí, eu consegui me concentrar um pouco mais na construção da questão social. Aí, eu não sei se foi também por causa disso que a instituição me chamou para trabalhar com eles, aquele centro cultural. Então, esse Centro cultural, ele já me contratou como coordenador, com os jovens, aí beleza! Aí, tudo mudou! Porque eu estava estudando uma coisa que eu queria, que eu gostava e além do mais, eu tinha essa possibilidade de me relacionar com os jovens, com o bairro, com o centro cultural, com outras coisas. Então, aí esse eu senti que comecei a ser feliz, porque estava, né? E aí, eu fui estudando, trabalhando com cena cultural, articulando muitas coisas no bairro, na cidade. Só respondendo a sua pergunta. Acho que é isso.
P/1 - Mas se tiver mais memória vai…
R - Logo depois que eu terminei esse curso… Eu sempre senti necessidade de estudar, de ler e tal. Aí, eu vim fazer psicologia. E aí, para mim, psicologia foi uma coisa que me aproximou muito a muitas histórias de vida, onde eu entro para fazer parte de um livro de histórias, o livro chama-se “Não Futuro”. Que são histórias de jovens que vivem do narcotráfico e que muitos deles… Nós fizemos um livro onde relata a histórias de 35 jovens, onde apenas seis deles… Hoje, faz tempo que eu não sei, mas até dez anos atrás, apenas cinco estavam vivos. Então, é um livro que ele me traz muito… Com a psicologia, ela me leva a entender que o narcotráfico é um problema social muito profundo, porque as pessoas, os jovens e as pessoas não vão trabalhar com o narcotráfico porque legal, não é apenas para comprar uma moto, porque o que os jovens buscavam na minha juventude era ter uma moto, era o máximo. E eu me lembro que quando o Pablo Escobar, quando existia a história do Pablo Escobar, em Medellín, Pablo Escobar foi o principal referencial dos jovens, porque quando ele comprou a sua primeira moto, estourou essa notícia na Colômbia. Então, foi o preâmbulo, foi a abertura para gerar histórias dos sicários, que chamava na Colômbia, onde as pessoas matavam com moto. Então, você ter uma moto, era primeiro… Para os jovens, era uma questão de status, era o máximo você ter uma puta moto, que todo mundo queria ter uma moto. E o segundo estágio era você fazer parte de um grupo. E cara, você recebe para matar alguém que mandaram matar. Entendeu? Aí, quando eu trago a psicologia para mim, eu vejo que o cara que vai matar, não é apenas porque é legal, não apenas porque você vai ganhar uma grana, mas porque você vê que a família desse meu amigo está na merda, pessoas que passam fome mesmo, e pessoas que não tem sustento, e pessoas de muitos pais que abandonam as suas famílias. Então, você começa a entender que as histórias humanas atravessam muito pela realidade que ela é muito mais profunda, necessita de educação, necessita de cuidado. Existem condições mínimas, básicas, para você estruturar uma família. Então, acho que a psicologia… Claro que isso através da educação popular também. Mas a psicologia, ela me aprofundar ainda mais nas questões humanas, que são extremamente complexas, né! Onde você começa a ver também, infelizmente, como famílias onde os pais estupram, os tios estupram, onde muitos jovens são atravessados por um monte de emoções, e que falar disso não é tão fácil. Então, você precisa fazer um trabalho nesse sentido. Como que um amigo, uma amiga, que tem problemas tão profundos… Puta! “Cara, vamos tentar conversar isso, vamos lá nos grupos, a gente se ajuda, porque…” Esses grupos era meio que terapia juvenil, sabe? Porque além de você compartilhar histórias, você cria coisas para você, sei lá, você se divertir, você criava. E você se apresenta na sociedade de uma forma diferente. Então, a psicologia trouxe isso para mim de bom, assim.
P/1 - E você começou a atuar com a psicologia ainda durante a sua formação, durante a graduação?
R - Sim!
P/1 - E como é que foi essa entrada nessa área?
R - Sim! A entrada da atuação na psicologia, você… Primeiro que com esses trabalhos em grupos de jovens, eu acho que isso me possibilitou uma certa facilidade para me comunicar, através de grupo de jovens, para pais e jovens. Eu fui catequista, então eu falava com os pais das crianças que iam fazer a catequese. Então, na área para trabalhar com a psicologia, você começa a fazer estágios. E o estágio… Claro, através de professores… E porque assim, pra mim foi muito fácil me inserir, porque da forma que eu te falei, os grupos de jovens são como grupos terapêuticos, você já fala de tanta coisa, até da vida da gente mesmo. Porque você não… Não é porque eu estou aqui que eu vou apenas escutar a sua história, a gente compartilha, de boas! Tanto que hoje eu tenho amigos na Colômbia, que são amigos mesmo, depois de tantos anos, estão em outros países, mas hoje nos falamos. Então, essa inserção com a psicologia, para mim foi muito natural. O único que houve a mais, talvez, foram processos metodológicos, onde você tenta trabalhar determinadas questões… Questões muito próprias. Mas a psicologia social tem uma vantagem que para mim, ela tem umas coisas que eu gosto muito mais do que a psicologia clínica. Porque a clínica ela te trata apenas como um indivíduo meio que isolado. Hoje foi mudado um pouco, ainda bem! Essa versão. Mas a clínica ela te trabalhava muito com você ser separado em muitas coisas. A psicologia social desde sempre, ela entendeu você como um indivíduo que faz parte de um conglomerado aberto já, naturalmente. Então, você está numa família onde o que faz de você é o meio que te compõe. Então, essa compreensão eu fui levando na faculdade. Aí, eu vou trabalhar simultaneamente com uma clínica, um sistema médico que chamava… Ainda no processo de formação. E aí, eles também… É claro, que a gente sempre deixa claro que está no processo de formação, né! “Medical System”. Sistema preventivo preventivo de psicologia, onde você vai nas empresas, e aquela empresa era contratada para ir às empresas e você falar com funcionários sobre coisas. Íamos uma equipe. Isso a partir do oitavo semestre, tá! Onde iam médicos, uma equipe multidisciplinar, médico, psicólogo, fisioterapeuta. E aí, as pessoas que quisessem ser escutadas por alguns motivos. Então, a gente se disponibilizava para isso. Como fui me inserindo na área profissional com a psicologia, concretamente aí. Agora, fora da lei, eu acho que eu já ia fazendo isso meio que simultaneamente com os jovens e com a comunidade que a gente atendia e trabalhava no bairro.
P/1 - Rubén, o que aconteceu quando você terminou a psicologia social? O que aconteceu na sua vida nesse momento? E também conta pra gente a vinda pro Brasil? O que aconteceu para você vir para cá?
R - Eu vim para o Brasil porque me ofereceram uma bolsa de estudo. Eu não tinha terminado Psicologia. A hora que você falou. Mas eu aceitei porque sempre gostei muito de estudar assim, de ler e tal. Então, eu vim fazer um curso aqui na PUC, na área de educação popular, com o Paulo Freire. Eu achei sensacional, porque para mim, como falei para vocês… Inclusive, eu estava fazendo tudo o possível para levar o Paulo Freire lá na minha faculdade, ele já tinha aceitado. E aí, ele infelizmente veio a adoecer e morreu em 1997. Então, essa era uma das coisas que eu queria muito. Da mesma forma, assim, eu consegui levar para a minha comunidade, no meu bairro o Pedro Casaldáliga, sabe? Nossa, é uma coisa que eu trago comigo assim. Eu consegui levar uma pessoa tão importante pra mim, para uma comunidade, que representava muito, o Pedro Casaldáliga. Eu sei que não tem nada a ver com a tua pergunta. Mas essa transição, então, ela se dá no momento que me oferecem, eu aceito. E é claro que no momento o meu objetivo era estudar e voltar para a Colômbia, a intenção minha não era em algum momento ficar por aqui. Então, eu estou no meu curso. Aí, eu conheço a minha companheira hoje. Aí lascou tudo! Lascou tudo, não. Acho que a vida nos leva por caminhos. Eu conheci ela na PUC, a minha esposa, Patrícia, que hoje temos quatro filhas. Muita gente! Então, foi basicamente isso. Tanto, que eu tive que voltar para encerrar as questões finais do curso, tudo. E o que foi mais louco ainda, foi… Bom, eu estava estudando aqui, depois que eu terminei o curso e voltei para a Colômbia para fazer as finalizações do curso. E aí, como eu comecei a namorar, digamos, a Patrícia, ela foi no ano seguinte para a Colômbia, e aí ela voltou. E aí, eu fiquei com a promessa de trabalhar no Núcleo de Trabalhos Comunitários da PUC. Que veio se consolidar. Tinha que esperar, porque eu tinha que esperar a liberação de uma verba que era do governo do Estado, ou outra verba que era da Faculdade Mogi das Cruzes, que era quem estava contratando. Esses procedimentos através do grupo do NTC - Núcleo de Trabalhos Comunitários da PUC. Feito, tá! Aí, eu vim para cá. E aí, eu tive que tomar uma determinação. Putz, e agora? Porque eu venho? Tem a Patrícia. Aí, houve um tempo de muito desajuste, porque a gente tá se conhecendo, a gente tá… Eu só me lembro que quando eu me determino vir para cá… Como era um curso que era para trabalhar com educadoras populares aqui e tal, eu voltei para a Colômbia, aí eu continuo com a Patrícia. Aí, eu falei: “E aí, como é que fica?” Bom, ou vai ou racha! Então, eu decidi vir para ficar. Quando eu resolvi vir para ficar… É muito louca, porque é aquilo que eu te falei, eu tenho aqui uns livros, e quando você… Você vê que eu tinha uma preocupação, sempre muito por estudar, né! Porque para mim, a minha maior riqueza é o conhecimento e a educação. Eu falo isso sempre para todo mundo. E eu me lembro que quando eu decidi vir para o Brasil, a minha mala toda, que até hoje é minha esposa, lembra, que o único que eu trazia nessa mala eram livros, e livros, e livros. Eu vou te pegar aqui… E porque esse livro, como outros que eu ainda conservo em casa, ela está em espanhol. Ele é um livro de espanhol: “Enfoques qualitativos e participativos de investigação social” Quando eu vim para o Brasil, a minha investigação era… Eu vim aqui para fazer esse curso… Uma coisa que existe na Colômbia que eu pensei que era muito bom no Brasil, e eu me decepcionei, na Colômbia existe JAL, que é Junta de Acción Local e existem JAR, “J”, “A”, “C” - Juntas de Acción Comunitaria, Aí, eu vim aqui para o Brasil para pesquisar o que era o equivalente na Colômbia, que seria aqui sociedades de amigos de bairros. E aí, eu achei que a sociedade dos Amigos do Bairro, no Brasil, seria excelente. Decepção! Aí, eu descubro que as contas… Perdão! Então, são livros que eu trouxe como referencial. Pra mim a investigação social sempre foi… Eu sempre fui um pouco exigente. Você sempre tem que trabalhar acima de questões teóricas e bem fundamentadas. Aí, eu comecei a pesquisar onde existiam esses grupos, aí eu comecei a fazer um… Na cidade mesmo, pesquisando, e eu descobri que as pouquíssimas que existiam, as pouquíssimas, eram grupos muito particulares, Associação de Amigos de Bairros, eram pequenos grupos que apenas existiam para beneficiar interesses particulares de grupinho de pessoas. Muito pequeno. E aí, eu falei: Putz, e agora o que que eu faço? Porque eu não percebi que essas pessoas estivessem engajadas em processos mais abertos, mais participativos. Eu não via as comunidades, os bairros que eu visitava, que as pessoas estivessem engajadas. Então, eu fiz um trabalho muito… que eu não fiquei muito feliz, muito satisfeito. É claro que eu fiz minhas justificativas, tudo. Porém, eu entreguei na faculdade. Beleza! Apresentei. Mas um trabalho que… Da mesma forma que quando eu vim para o Brasil pela primeira vez, eu achava que as comunidades eclesiais de base, que era a minha formação inicial, que eu já falei para vocês da Colômbia, através da Teologia da Libertação. Eu me decepcionei também com as Comunidades Eclesiais de Base no Brasil, porque para mim, o Brasil era minha principal referente, pelo menos pelos livros e as pessoas que eu conhecia, me referenciava. Então, isso também foi um baque para mim. Então, você tem que ver como você vai costurando coisas na área do conhecimento que te conecta. Mas voltando um pouco à tua questão. Quando eu chego ao Brasil, eu trouxe minha bagagem de livros, eu trouxe então um livro de Psicologia, um Dicionário de Psicologia, porque a minha intenção era trabalhar na área de psicologia, de boas. Ué, sou psicólogo, estudei para isso. Sou educador popular. Só que quando você começa a bater nas portas… Primeiro, que eu sou uma pessoa, que muitas pessoas, só de olhar para você, já fica olhando para você horas. Putz! Uma coisa é você receber um currículo, e você encontrar a pessoa, e você já sente no olhar que a pessoa já não fica tão feliz de te ver, de olhar para você. Porque não é aquilo que talvez imaginassem que fosse… Quando eu pego o livro de psicologia… Eu sempre me alimentei muito… É claro que o livro que eu comprei logo no início, que são insights, porque a vida da gente, de todo mundo, ela é cheia de insights. Isso aqui, o que que eu consigo aprender, o que é que eu consigo ensinar, o que eu consigo interpretar em cada coisa, em cada momento, em cada instante? O que é que eu posso sacar da vida de uma pessoa, o que que eu posso tirar, perdão! De ensinamento. O que eu posso aprender de melhor nessa vida? Então, eu me alimento muito de insights, de histórias de vida, com coisas que me alimentam. Isso aqui é um livro que depois… Depois eu vou falar do café. Mas eu apenas trouxe, porque quando você chega com a mala cheia de livros, a um país que na verdade esses livros todos não servem para nada. Para mim só foi muito forte. Porque para mim foi um balde de água gelada em mim, porque eu senti que perdi praticamente dez anos da minha vida, pelo menos acadêmica. Porque aí você tem que entrar em lugar, você tem que comprovar. Você tem aquela burocracia onde você tem que… Tinha que homologar o currículo, e tal. Aí, você, puta! “E aí, eu não sou nada aqui, meu!” Então, aí é uma coisa que você quando é imigrante, quando você tem umas características indígenas, quando você percebe as pessoas que já se conectam de acordo com determinados interesses. Quando você vai buscar trabalho, quando você se sente qualificado para uma coisa, e você percebe que essa pessoa não te corresponde. Eu me deparei com entrevistas, que mesmo que eu não fui selecionado, eu me questionava. Puta, que entrevista mais pobre! Porque existem pessoas que não são qualificadas para determinadas coisas e ocupam cargos… Mas tudo bem, faz parte da dinâmica social, sabe! Então, quando eu chego ao Brasil, aí eu resolvo conviver e logo em seguida me casar com a minha esposa, formalizar essa união, tal. E aí, cara, somos uma família já. Então, você precisa gerenciar a casa, existem custos e tal. E aí, eu vejo que é o que eu queria, que eu pensei que ia ser de boas com esses livros todos, com conhecimento, você estuda, você alguma coisa aprende. Mas você vê que isso não custa. Não tem valor mais. Então, eu guardo minhas malas, e eu começava a fazer uma leitura da cidade, com muita dificuldade e tal. E cara, por sorte que essa época que eu cheguei, estava meio que o auge de estudar espanhol. Então, eu fui dar aula de espanhol. Parecia que nativo, pelo menos para isso, era meio que valorizado, ser nativo. Aí, eu comecei realmente a dar aula de espanhol um tempo. Não queria começo, porque…. Não sei! Eu não queria falar espanhol. Mesmo assim, eu fui dar aula de espanhol. Eu fiquei dando aula de espanhol um tempo. Eu querendo me conectar… Porque assim, a homologação da psicologia veio muitíssimos anos depois que eu já nem estava mais. Mas eu na intenção de me conectar, que algum lugar aqui me reconhecesse pelo o que eu tinha estudado, eu fui estudar administração com enfoque em Recursos Humanos, pra tentar me conectar assim, pelo menos. Eu terminei o curso, mas não deu em nada, porque também Recursos Humanos é uma coisa que te liga muito com empresas mais formais assim e tal. E também eu já nessa época eu estava com uns 31 anos, 32 anos, para o mercado ou 32 anos, dependendo, você já começa a ser velho. Hoje, então, nem se fala. Eu sempre valorizo muito o conhecimento, mas em termos profissionais, para mim não significou nada. Eu tentei me conectar como voluntário em alguns lugares. E como voluntário, chegou um momento, quase uns quatro anos de voluntário, não rolou nada. Eu falei “Não, preciso dinheiro”. Eu amo o trabalho social, porém hoje a gente precisa sobreviver. Eu fiquei dando aula de espanhol muito tempo. Dando aula de espanhol, comecei a dar aula em colégio particular. Só que aí, para colégios particulares começaram a exigir licenciatura para os professores de colégios. Eu estava terminando administração, eu falei: “Por favor, me esperem, que eu termino e começo a estudar Letras” Uma escola muito boa, ganhava bem e tal, mas eles não esperaram, aí eu saí. Então, eu continuei dando aulas de espanhol, em escola de idiomas. Comecei a estudar letras, aí eu comecei a dar aula em colégios particulares, estudando. Aí, isso me segurou, né! Antes de estudar Letras, eu consegui, inclusive através da Secretaria da Educação, uma autorização para lecionar em colégios. Isso eu me lembro que eu fiz. Isso me permitiu dar aula nos colégios, sem começar ainda. Logo que eu comecei isso me segurou. Então, eu dei aula de espanhol uns seis anos. Uns seis anos dando aula de espanhol e fazendo coisas simultâneas, de assessoria de algumas organizações, que ainda me chamavam para dar assessoria de organizações sociais. Então, enquanto eu terminei meu curso de Letras, terminei meu curso de Letras, dava aula, me começaram a chamar para dar aula em faculdade. Na faculdade, eu dando aula na faculdade, eu comecei também já a estudar uma pós em psicopedagogia. Então, isso já me foi gerando uma aproximação com umas instituições que eu queria muito me aproximar, que era assessoria. Então, eu assessorei um projeto que eu não sei se ainda existe: Jovens Urbanos. Com a organização, eu esqueci o nome da organização. E também com uma associação, chamada Associação Cantareira, na extrema zona sul de São Paulo. Então, quando eu começo a me conectar com essas organizações, mas já estou estudando a psicopedagogia, aí eu começo a sentir que estou me conectando a aquilo que eu já era no meu passado. Eu tinha uma vida social intensa. Imagina, eu era coordenador Nacional de Movimento de Jovens da Colômbia. Quando eu começo a me conectar, aí eu começo a passar um monte de currículos em diferentes instituições. De repente, um dia me chamam numa situação para trabalhar com a prefeitura. Dentro da nomenclatura da prefeitura, tinha a nomeação de técnico, na nomeação da prefeitura, técnico é tipo psicólogo, assistente social, pedagogo e tal. E logo eu percebi nesse processo seletivo, que não foi fácil, foram cinco fases. Eu percebi na terceira fase, que precisava também de gerente. Aí, eu falei: Será que eu jogo tudo? Aí, chegou na fase terceira, e me perguntaram para que vaga eu estava indo atrás. Eu falei: para gerente. Eu joguei tudo, assim. Eu gosto de ser meio que líder, assim, eu gosto de estar na frente um pouco assim. Não sei se isso é bom ou ruim. Mas eu me posicionei “Eu quero ser gerente” “Tá! Mas se vim para técnico? “Não, é que eu quero ser gerente, eu gostaria para gerente” Na quarta fase, me chamaram. “Olha, que não tenho vaga para ser gerente, aceita vaga para ser técnico?” Eu falei: Não! É que o salário era muito atrativo, entendeu? Eu fui para casa, e deu uma semana, oito dias, sei lá. Aí, me ligaram. “Oh, você passou, você pode ir.” Puta, cara! Aí, eu fiquei 12 anos como gerente com a prefeitura aqui em São Paulo. Então, para mim… Porque eu te conto isso? Porque a vida também tem momentos que você tem que jogar muito, e você ter que jogar pesado. E ainda mais pessoas com as minhas características. Se você não arriscar coisas, você não chega a lugar nenhum. Eu não te falo que eu já cheguei… Não, eu ainda também estou em outro momento agora. Mas para mim, essa história de eu ser gerente de serviços sócio-assistenciais da prefeitura, é uma história que é para poucos. Não porque eu sou mais do que ninguém, não. Eu arrisquei, porque poderiam ter dito para mim. “Então não dá.” E eu poderia ter saído fora. Na única chance que eu tive. E foi essa a única chance que eu joguei e tudo, e eu fiquei 12 anos. Aí, eu gerenciei vários serviços sócio-assistenciais, com crianças, que são os CCA, que são Centro de Crianças e Adolescentes, eu gerenciei. E eles fizeram instituições de longa permanência para idosos. Eu gerenciei repúblicas, que é uma segunda instância dos albergues, que são centro de acolhimento. Eu gerenciei CA, que são centros de acolhimento, que são pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social. Eu gerenciei um programa, que é um programa chamado Ação Família, que aliás, por minha, e outro gerente de outra ação, nós conseguimos… Porque eu comecei a participar a participar da Comissão de Políticas Públicas do Fórum da Assistência Social do Estado de São Paulo, e através daí eu me empoderei com outro gerente, e conseguimos que esse programa: Ação Família, que poderia ser extinto por qualquer prefeito, que ele virasse esse serviço permanente. Hoje ele existe como SASF. Então, eu te falo isso, porque assim, uma ação social, ela não pode ser apenas de falar, sabe! Você precisa agir e trabalhar e fazer com que as coisas aconteçam. Então, hoje, talvez eu estou um pouco menos ativo nessas instâncias, porque também meu foco hoje é o café. Eu te falo isso como uma história e uma memória que para mim é extremamente importante, para meus filhos isso é extremamente importante, para pessoas que, às vezes, com característica como as minhas, que se eximem de fazer qualquer esforço, ou que se segregam naturalmente antes de dar os primeiros passos. Tem que ir, sabe! Então, hoje eu me relaciono com uma comunidade latino americana, que eu não estou me gabando, mas que as pessoas me respeitam, e é claro que eu respeito todo mundo. E quando a gente fala de imigrantes, e quando a gente fala… Embora o brasileiro também é latino americano, mas tem determinados espaços onde o brasileiro não se sente latino americano. Então, você tem que trazer o próprio brasileiro e falar assim: “Vem aqui, desculpa, nós estamos falando da mesma coisa” Então, hoje a gente tem que fazer essa leitura, esses diálogos. Cada um do seu lugar. Você pode ter mais condição do que a minha, você é branco, ou você negro, ou você… Cara, estamos construindo uma sociedade para todos. Tentar construir uma sociedade para todos. Que está tão difícil. E eu não sei se a gente vai conseguir. Só que às vezes, assim, a gente fica pensando, né! Quando a gente constrói histórias, quando a gente fala assim: Tem um cara lá, há 2024 anos atrás, que chegou a esse mundo, dividiu a história da humanidade, para falar de justiça social. E até hoje o cara morreu lá, um monte de gente lembra do cara, e a injustiça social prevalece. E ainda tem gente que usa desse discurso para falar de prosperidade, para falar de vida, para falar de injustiça. E você não vê isso. Então, eu trago isso aqui apenas porque a gente precisa ter muita convicção. E por isso que eu nunca lembro minhas memórias, nunca esqueço minhas memórias, a minha história, sabe! Porque por mais que meu café não é um Starbucks, o meu café não é um Juan Valdéz da Colômbia, mas é um café. É um café que ele veio nascer em 2012, num lugar super pequenininho, no bairro do Bom Retiro. Um café que me possibilitou encontrar com muitas pessoas, que me permitiu uma conexão muito forte com o bairro, com os vizinhos, com a cidade. Um lugar que me fez um convite no espaço público do governo do estado, a Oficina Cultura Oswald de Andrade, que me permitiu transitar através da cultura, da educação, que me permitiu transitar através das histórias de tantos e tantos, não apenas brasileiros, nem colombianos, mas com gregos, com coreanos, com armênios. Um bairro tão diverso. E que eu consegui abraçar no espaço do café, como era o Oswald de Andrade, sabe! E eu, quando me fala isso… Desculpa! Porque… Talvez poucas vezes, talvez poucas pessoas escutaram de um cara que para muita gente é apenas um cara que trabalha com gastronomia lá e vende seu café. Mas muitas pessoas não sabem que para mim, talvez, vender um café, e trabalhar com gastronomia, é apenas um pretexto para dialogar sobre questões tão profundas como de como é a cidade, sabe! O cara, é um café, que ele te dimensiona tanto. Eu falei para vocês, às vezes, eu descubro através de uma mínima conversa no café, tantas outras histórias, e que não apenas a minha que existe, são tantas histórias. E que a gente acha que não. Para mim o que importa é vender um café. Eu quero ganhar dinheiro. Quero ser rico. Eu tenho que ter… Não! Esse café no bairro Bom Retiro, ele me dá uma alegria tão grande. E quando pedem para nós sair, num tempo assim, do nada, apenas por teimosia de algumas pessoas, que nem o contrato que a gente tinha assinado foi respeitado. Então, você se questiona. Porque não tiraram apenas o meu café, mas tiraram também o coração de um lugar que congregava pessoas, que levava pessoas não apenas para tomar um café, mas sim discutir um bairro, que ainda hoje está em disputa. Então, por isso que eu falo, às vezes, o café no Bom Retiro, ele não se empoderou. Eu me articulava muito através do… Me articulo, ainda, através do coletivo “Bom Retiro é o Mundo”, que ele ainda existe. E que é um coletivo que tenta dialogar com o bairro, sabe! Que é um coletivo que trabalhamos através de temas que nos atravessa, e que por mais que existam embates ideológicos, a gente precisa conversar sobre isso aqui, né!
P/1 - Rubén, conta pra gente como você chega ali ao Bom Retiro, começa, tem a iniciativa do primeiro café, como a coisa foi evoluindo? E essa relação com o bairro ali também do café?
R - Certo! Eu chego ao Bom Retiro ou, na verdade, através da Escola Santa Inês, porque eu matriculei o meu primeiro filho, o mais velho. Ele hoje está com 26 anos, o meu filho mais velho. E aí, então eu consigo frequentar o Bom Retiro, porque você… A escola, ela, você vai esperar o seu filho, você começa a se relacionar com outros pais e mães que moram na região. Com o filho você passa a transitar pelo bairro, você convida para comer um pastel, um sorvete. Então, você vai fazendo meio que esses reconhecimentos do bairro. E por sua vez, você vai também interagindo com pessoas. Eu acho que isso é muito natural quando você transita (por) lugares todos os dias. Mas eu acredito que a relação, ela veio a ficar… Logicamente, muito mais intensa, quando a gente resolve abrir um café. Que na verdade foi uma fase onde nós estávamos já com quatro filhos, e a gente viu que sustentar quatro filhos não era fácil. Aí, você acha que empreender é fácil, que é empreender você… Aí, foi uma decisão que tomamos juntos, com a minha esposa, de tentar um empreendimento. Como empreendimento, a gente comprou um ponto, que na verdade é o primeiro café nosso, não foi nem na Oswald, foi ali na Correia de Melo, número 42. E foi um café pequenininho, não tinha… Acho que ao todo, dava o que? Uns seis ou oito metros quadrados, utilizava a calçada para colocar umas mesinhas. E aquele tempo tinha que sair correndo para guardar, porque o rapa levava as mesas e cadeiras. Que até hoje é uma prática da prefeitura, coisa que eu acho muito errado, mas tudo bem.
P/1 - Que ano foi isso?
R - Isso foi em 2012, início de 2012. Outubro de 2012. Toda essa época com esse primeiro café, que foi o primeiro empreendimento da nossa história. Tanto eu, como Patrícia, minha esposa, nunca tínhamos mexido com negócios. Então, é um aprendizado. Então, a gente teve que começar a estudar sobre café, embora os meus avós trabalhassem com café, mas é aquela história que eu falei para vocês. Eles tiveram que abandonar os seus lugares, então a memória da infância que eu tenho é quase nada, porque tudo isso aconteceu antes de eu nascer, inclusive. Eu estava muito pequeno. Então, o fato de trazer um café para a gente, além de ser primeiro um desafio, porque o negócio, ele tinha que se sustentar. Mas foi uma coisa, assim, difícil, complicada. É muito louco, porque ao mesmo tempo você está se descobrindo como ser comerciante, depois de velho. Porque acho que tem muitas pessoas que resolvem empreender jovens, depois vai de boa. Depois que você está, você sabe o que tem que conversar com uma pessoa, mas que ao mesmo tempo você precisa vender. É meio estranho essa relação. Mas depois isso se torna natural e você tem que lidar com o público, sabendo que esse público pode te criticar por um determinado produto, pela qualidade do produto. Então, é muito louco esse jogo. Porque você entende que não é apenas amigos que vão lá, ou pessoas. Você tem que corresponder a expectativa da pessoa que você vai receber, que está esperando. Então, isso é uma relação meio complicada no começo. E claro, isso é sempre, né! Mas a gente foi aprendendo. Teve um momento… A gente comprou um ponto de cafeteria já pronto, chamava “Café do Bule”, era de uma grega, ali nesse ponto a gente comprou. E assim, a gente quis dar uma outra cara, porque você não pode ter um ponto com outra história, história de outra pessoa. Então, você tem que personalizar esse lugar. Como é que a gente pensou em personalizar esse lugar? Uma coisa que eu me neguei, num primeiro momento, foi que eram umas coisas que me incomodavam um pouco, no começo, que as pessoas achavam que eu era boliviano. Não que eu tenha preconceito com os bolivianos, mas como eu falo sempre, a minha fisionomia, ela caracteriza um pouco o povo andino. Mas eu não sou boliviano, eu sou colombiano. É muito louco! Porque era tanta fala do boliviano, que eu falei para a minha esposa. Putz, não sei o que fazer para… Que chega uma hora que te incomoda. E ainda mais uma coisa que eu sempre detestei, até hoje. É que aqui em São Paulo é muito comum, chamar as pessoas, tipo assim, você é do Ceará, as pessoas não te chama pelo teu nome. “Ó Ceará, vem cá! O Bahia, vem aqui! Bolívia, não sei o que…” Porra, isso me incomada imensamente. Assim como pessoas que me chamavam de Bolívia, sendo que eu não era boliviano. E logo depois, mesmo eu sendo da Colômbia, nunca gostei que me chamassem de Colômbia, porque meu nome não é Colômbia, e sou colombiano, com orgulho. Tenho orgulho de ser colombiano, mas eu sou Rubén, eu tenho nome, eu tenho sobrenome. Aí, minha esposa, que ela é publicitária, também, ela falou assim: “Escuta aqui, vamos colocar o nome do café como café colombiano” Aí, eu, num primeiro momento, eu já falei logo de cara. Putz! Botar esse nome nos bota uma responsabilidade, porque quando você carrega o nome de um país, ele querendo ou não, ele te joga uma responsabilidade. Muito louco isso! Mesmo assim a gente levou adiante a ideia, e a gente carimbou, e registrou o nome e tal. Beleza! “Café Colombiano”. E aí, sim, eu acho que não teve mais como continuar me chamando de Bolívia, porque eu sou colombiano. “Ah, o dono é colombiano?” “Sim, o dono é da Colômbia.” Beleza, então para mim tá bom. E não é que eu tenha nada contra boliviano, mas eu sou… E aí, o ponto, era um ponto pequenininho, como eu falei para vocês. Mas um ponto que ele foi agradando muitas pessoas do Bom Retiro ali, pequenininho. E tinha grandes concentrações de pessoas querendo comprar café lá, conhecer, conversar e tal. Então, esse primeiro contato com as pessoas do bairro, eu acho que ele foi meio…. Num primeiro momento foi muito dos trabalhadores do bairro do Bom Retiro, que havia uma coisa que me incomodava muito, quem ia no café, como tem muitos bancos, tem muitas confecções, então ia muito coreano, ia muito dono de loja, ia muito pessoas que trabalham em banco. É um público que era legal para a gente, a gente conseguia se comunicar. Só que era um público estritamente restrito, e te fazendo cobranças sociais, te colocando num nível, que a gente sabia que não estava no nível, digamos, no nível, falando em termos financeiros. Tipo… Cara, e umas conversas que a gente… Tinha que atender as pessoas sempre com educação, naturalmente e tal. Mas a gente queria uns diálogos mais reais assim, mas conforme talvez a nossa própria necessidade. Então, eu acredito que quando nos chamam para a Oswald de Andrade, que foi um convite muito aberto, assim: “Vocês não querem participar de uma licitação para ocupar aquele espaço lá?” Que logo depois nos apresentaram. Aí, a gente foi ver. “Beleza, vamos participar! Mas a gente não vai ganhar isso, imagina! A gente não tem nem tanta experiência assim”. Quando fomos, e aí a gente se depara, nos chamaram. “Vocês ganharam para ocupar o espaço” “Puta, e agora? O que que a gente vai fazer com esse espaço tão grande?” Porque era um espaço… Considerando o café que nós tínhamos, para esse espaço, ele era enorme para a gente. Então… E agora? A gente se depara com um desafio ainda maior, porque a Oswald, de alguma outra forma também, a Oswald, ela tem uma representatividade muito grande, em termos de cidade. Então, essa responsabilidade, ela se desdobra ainda mais. Então, a gente começou a fazer um cardápio e tal. Foi muito difícil os três primeiros anos, porque…. Não é porque a gente estava dentro da Oswald, que tínhamos um público garantido. Não! Porque na Oswald, naquela época, ia muito pouca gente, a programação da Oswald era muito pouca. Então, o que entrava na Oswald, eram pessoas muito específicas, que iam a um ou outro curso. Ia a um e a outro ensaio, né! Então, foi muito difícil para a gente também, assim. Então, esses primeiros três anos foram muito difíceis. Aí, passaram algumas administrações internas, lá dentro da Oswald, e a gente foi fazendo o nosso trabalho. E aí, aos poucos, a gente começou a ganhar uma visibilidade no bairro, no território, onde muitas pessoas começaram a vir de fora. Eu acho que aí vem uma sincronia, uma simbiose, não sei como chamar. Porque assim, nós sabemos que a Oswald depois foi melhorando a programação. E assim, tinham pessoas que não conheciam o café, que através da Oswald nos reconheciam. E tinha muita gente, mas muita gente que ia por causa do café, e se encontrar com um universo de cultura muito bacana. Então, isso foi se fortalecendo com o tempo. E por sua vez, aí sim, através da Oswald, eu comecei a descobrir pessoas muito interessantes do território. Então, aí sim, quando você começa a conversar com várias pessoas legais do território, e as diversas etnias, os diferentes grupos étnicos. Isso é muito legal, né? Porque você começa a conversar, construir coisas. E enfim, então para a gente isso foi abrindo, foi sendo uma uma dialética assim, muito bonita, uma espiral que nós fomos construindo. A gente passou vendendo o ponto da Correia de Melo. Logo no terceiro ano, ficamos só três anos no ponto da Correia de Melo. Por curiosidade, perdão! Na hora que ganhamos na Oswald, a gente tinha sido chamado para administrar a cantina do Colégio Santa Inês. Isso foi outra coisa que também nos comunica com muita gente do território. Quando a gente vem para Oswald, no dia da inauguração, a mãe da minha esposa, no dia da inauguração, ela foi operada de um câncer, ela veio a falecer dez dias depois. Esse falecimento dela, nos levou, porque nós éramos apenas, minha esposa, eu, quatro filhos, e tínhamos três lugares para administrar. Que eram o café da Rua da Correia de Melo, a cantina escolar, e a Osvaldo com todos os funcionários. A mãe dela morre. E nós ficamos assim, super desesperados para ver como que íamos administrar. Nem os nossos filhos, porque quem cuidava muito dos nossos filhos era a mãe da minha esposa, minha sogra. Então, para a gente foi realmente uma sensação muito ruim. E aí, a gente passou o ponto para a frente da Rua Correia de Melo. A gente veio também a passar, meio que desesperadamente, porque a gente não está aguentando, não iríamos aguentar, de cuidar de quatro filhos. Chamamos um amigo, se queria ficar com a cantina, conversamos com a escola, tudo bem. Aí, ficamos só na Oswald. E aí, cuidar dos filhos, da Oswald, que não foi fácil, porque eles eram pequenos ainda. Enfim… Mas foi um tempo que cada vez mais a gente foi sendo reconhecido pelo bairro. A mídia começou a nos procurar, a gente saiu em vários jornais através da televisão. Então, foi muito legal essa presença no bairro. Então, quando você me pergunta como foi sendo essa relação com o território. Foi uma coisa que foi acontecendo naturalmente. E logo depois que a gente… Quando eu entrei no coletivo… Na verdade o coletivo nasceu, porque tem muitas pessoas que questionam, principalmente a comunidade coreana, e existe uma parcela muito grande de pessoas, que na época, saiu uma reportagem quando o Dória era o prefeito, ou governador. Com um projeto de converter o Bom Retiro em “Little Seoul”. Logo depois, no outro governo, saiu no jornal falando de um projeto chamado “Koreatown”. Porque até hoje ainda existem umas discussões no bairro, onde a comunidade coreana quer fazer do Bom Retiro… Eu não sei quem pode escutar esse vídeo, mas existem umas conversas que ainda estão se desenrolando, porque os coreanos fizeram 60 anos de imigração coreana no Bom Retiro. E acho que eles tem todo o direito de comemorar a presença, e que uma presença bonita, simbólica, e super importante na cidade. Porém, existe uma ação, que os moradores e quem trabalha ali no Bom Retiro, a gente critica, é o jeito que são determinadas as decisões do bairro no território. Como se usa de algumas pessoas que são, que fazem parte do poder público, para determinar sem consultas públicas. Sem uma comunicação pertinente, apropriada. Sem uma conversa aberta para buscar soluções coletivas para o território. Então, são questões que a gente como coletivo, e a gente individualmente, já fomos criticadas como xenofobia contra coreanos. Imagina, quem sou eu para falar de xenofobia, né? Então, a gente procura apenas que haja um respeito para a memória de um território. Porque eu, como venho falando pra vocês. Eu me apropriei de um país, eu sou colombiano, mas eu abracei o Brasil, abraço a cidade, abraço o lugar onde eu estou, porque os meus filhos são brasileiros, minha esposa é brasileira. Então, eu acredito que isso me dá autoridade moral para falar do que também eu quero e eu não quero no meu território. Existem discussões, então, que levam a pensar que é xenofobia, que nós queremos… Não! A gente pode discutir. Igual aqui, no Campos Elíseos, está se falando da chegada do Palácio do Governo aqui. Mas tá vendo uma forma de gentrificação que não está sendo discutida devidamente. Então, o jeito como está chegando. Como é que isso impacta uma comunidade? E como é que isso impacta um território, uma cidade? Cracolândia é um problema? Claro que é um problema. Pessoas em situação de rua é um problema? Claro que é um problema. Mas o problema ele não acaba você jogando ele para todos os lados. Cara, onde estão as políticas públicas para a gente cuidar dessas pessoas? O Estado, o desafio do Estado, é articular instituições, empresas, para fazer uma transferência do que for, não apenas… Assim, os problemas são muito profundos. Então, a gente tem que ver como fazer com essas questões. Então, é o jeito como essa a democracia, da qual a gente fala, ela não acontece. A democracia, ela se sustenta apenas a partir do momento que existe uma participação real, não apenas representativa. E nós temos uma democracia representativa, que quem determina muitas coisas, na verdade, é quem está no poder no momento. Então, quando eu começo a fazer parte do coletivo, eu quero discutir o bairro, eu quero ver como é que a gente… Como já ouvi. “Cara, você é imigrante, você não tem o que fazer aqui. Na Colômbia não tem pobre” Desculpa, mas são pessoas que não merecem nem resposta, sabe! Cara, eu tô aqui! Eu pago impostos da mesma forma que você, que você, que você, todos aqui pagam impostos. Eu gero empregos. Eu, de uma forma ou outra, eu contribuo para a cidade. Inclusive, para falar da diversidade. Vamos falar! Quer conhecer a Colômbia através de mim? Vamos falar da Colômbia. O que a Colômbia tem de legal, de ruim. Eu posso te falar da Colômbia. Vamos falar do Brasil? Vamos falar do Brasil. Eu vou falar do mundo, certo! Existem muitas pautas que acontecem no mundo que nós interfere aqui. Então, o coletivo é isso. E eu gostaria muito que o coletivo… Já foi proposto de fazer uma sociedade de amigos de bairro com o coletivo, mas tem pessoas que não topam. É muito louco isso! Parece que as pessoas…. E de fato existe uma fala, que alguns membros do coletivos dizem que o problema quando você institucionaliza um órgão, parece que perde outras coisas. Infelizmente isso também é real. Quando você institucionaliza uma coisa, ele passa a ter outro viés. Mas depende, é que tudo é muito complexo. Agora, todo o coletivo, ou toda associação, ela existe porque existem interesses comuns. Da mesma forma que a elite se junta para trabalhar os seus interesses, a gente também precisa se juntar. E a gente tem problemas de organização, que parece que a gente tem interesses financeiros, parece que alguns temas humanos, minimamente, a gente não consegue discutir e se organizar. Estou falando do Bom Retiro, mas, por exemplo, quando eu falo do café, o interesse nosso desde sempre, foi reconhecer o território, reconhecer as organizações, que estavam em volta da gente, reconhecer os vizinhos que nos cercam, e reconhecer esses grupos, que também sempre… São grupos que têm diferentes interesses. Mas tentar se aproximar também desses diferentes, mas se aproximar e fortalecer o que existe naquilo que a gente acredita. Então, eu conheço, por exemplo, um projeto aqui por perto. E só para encerrar essa parte do coletivo, que aí onde também está a força de uma pequena empresa, como é a minha, minúscula, nós somos nada, que a visibilidade consegue minimamente dar visibilidade a um projeto, por exemplo, que chamasse Projeto Lavanderia, que está na Cleveland. Um dos projetos. Posso falar aqui de vários. Mas é um projeto que ele iniciou, o Lucas, que ele iniciou na pandemia, porque as pessoas em situação de rua não tem onde fazer suas necessidades, não tem onde lavar roupa, não tem onde… E ainda, além do mais, são criticados porque andam sujos, porque fazem cocô por aí, porque não tem aonde. Cara, onde existem políticas públicas para essas pessoas, para quem não façam isso? Que são criticados. Então, esse projeto Lavanderia, a gente conhece, somos amigos. A gente tenta fazer uma ação para que as pessoas possam adquirir aqui no Café Colombiano, quem quiser, para que alguém compre uma…. É tipo um cartãozinho, para que uma pessoa em situação de rua possa lavar suas roupas lá, possa tomar um banho digno, possa ter um café. Legal! Não é nada, mas já é alguma coisa. A gente viver de pequenas ações, sensação de servir alguma coisa para uma pessoa que não tem nada. Tudo certo! Então, é isso! Eu acho que nós como pequenas empresas, temos sim uma responsabilidade nas comunidades que a gente habita, que a gente ocupa. E eu que estou aqui nos Campos Elíseos, não é porque eu estou aqui, que eu não tenho nada a ver com a Favela do Moinho, nem que eu não tenho nada a ver com quem passa aqui pela rua. Eu tenho uma responsabilidade. Eu quero gerar um impacto social. Não do jeito que eu gostaria, mas é tudo do jeito que a gente consegue fazer. Então, acho que é isso.
P/1 - E o nome do coletivo, O Bom Retiro é o Mundo, já fala muito de qual é a proposta para o bairro, né! Também. Que é o mundo inteiro ali.
R - Sim! Isso, isso! Porque aí tem várias, vários grego, coreanos, bolivianos, paraguaios, tem muita. Então, essa diversidade foi o que também levou…. Ah, eu não falei, e o que levou na composição desse coletivo, justamente foi a frase… Saiu no jornal, na Folha de São Paulo, tem um projeto Koreatown para o Bom Retiro. O que a gente pensou logo de cara, é que a gente vem cuidando, e que não aconteça com o Bom Retiro o que aconteceu com a Liberdade. Porque o Bairro da Liberdade apagou a história, existe um apagamento da memória das comunidades negras, do Pelourinho que existia e que hoje é um bairro japonês. Então, você conhece mais como esse bairro japonês. Então, é uma coisa que a gente tem feito uma resistência significativa no bairro do Bom Retiro. E contra os coreanos? Não, não tem nada a ver contra os coreanos. Vamos discutir, sabe! Vamos construir um território multicultural e valorizando, com certeza, todas as culturas que aí habitam. É só isso! Só mesmo.
P/1 - E hoje, planos e projetos para o futuro? Sonhos que você tem? O que você pensa? Depois de tudo que você já fez, você tem mais ideias?
R - Não, eu acho que a gente, a gente sempre sonha, a gente sempre quer crescer. Quando você tem uma empresa, você tem o… O dia a dia é muito difícil para um pequeno empreendedor, no Brasil, em São Paulo, porque você não tem grandes incentivos, o Estado, a prefeitura, existe o Pronaf, tudo isso. Mas é muito louco porque você para adquirir um empréstimo no Pronaf, você tem que pagar uma série de coisas, que muitas vezes, só de você ter que pagar todas essas coisas. E porque você nem precisa mais desse Pronaf, sabe! Eu, não vou pagar depois da pandemia, que já foi… Depois de ter saído da Oswald, que foi outro baque para a gente, que ninguém faz ideia do que isso representou para a gente. Eu tive que pagar 12 pessoas que trabalhavam com a gente, que o governo do Estado, ninguém quer saber nessa hora, somos nós como empresa, que temos essa responsabilidade.
P/1 - E Rubén, depois de tudo isso que você já fez, que foi muita coisa, que que você tem de planos, sonhos para o futuro?
R - Sim. Então, a gente sempre sonha, eu sempre falo que nós somos… A gente sempre pensa grande, para fazer… Não, como é que é? Eu sempre sonho grande, para fazer pelo 10, 20%, daquilo que eu sonho. Sempre existem projetos. Eu estava falando da dificuldade que é empreender no Brasil, porque não existem incentivos, né! Então, quando você não tem incentivos, é difícil você desenvolver. Mas eu quero muito… Primeiro, ter uma relativa tranquilidade de pagar as contas aqui. Porque a gente tem… Muito louco, né! Mas a prioridade minha para vencer o mês, é pagar os que trabalham com a gente. Nossos colaboradores, nossos funcionários, são as prioridades. Segundo, depois aproveitar para conseguir pagar o aluguel desse espaço, que não é meu, que não é nosso. Depois disso, você tem que pagar água, luz, telefone, aquelas coisas que você precisa pagar, se não você não consegue ter uma operação. E aí sim, depois disso, é muito louco que a gente deixa a família da gente. Mas precisa ser assim para a gente conseguir. Então, se empreender, eu percebo que a gente precisa ter muita determinação para isso, porque tem muitos momentos que dá vontade de você largar tudo e não fazer mais nada. Porque como até repito, não existem incentivos para isso, as pessoas não enxergam muito. Há um ano e cinco meses que estávamos nesse novo espaço, a gente ainda não conseguiu ter um ritmo de público aqui, que nos ajude, porque o público do Bom Retiro, de uma forma ou outra, era um outro público, vai muito turista lá porque o bairro é atrativo para turismo. Aqui não! Então, eu tenho outro público. Então, eu também estou tentando entender esse público. Porém, eu estou caminhando, eu estou buscando, estou tentando entender essa dinâmica, mas as pessoas também precisam nos enxergar como um café, como um espaço, que ele tem uma proposta muito clara. Primeiro, assim como foi o nosso primeiro café, lá em 2012, nós queremos que quem chegue aqui, se sinta como se estivesse numa casa, na nossa casa. Porque na nossa casa, quando uma pessoa chega, nós queremos abraçá-lo, atendê-lo bem. Então, nós queremos que as pessoas tenham essa experiência aqui. Que tenha um café de qualidade. Quando você me fala de sonhos, é muito louco porque saiu recentemente uma pesquisa, que cafeterias que tem um perfil de café especial, como é o nosso, essas empresas, essas cafeterias, são preponderantemente feitas por brancos. Então, eu entendo que eu estou num nicho de mercado, onde eu também já sofri preconceitos, porque eu não sou branco, eu não sou tatuado, porque essas cafeterias de cafés especiais, geralmente existem uma marca registrada com um público que atende, já caracterizado, e parece que se impõe. Respeito! Acho que existem profissionais excelentes. Nós também temos um conhecimento de café, mas às vezes as pessoas não nos enxergam ainda com essa seriedade que nós trabalhamos. Pelo contrário, recentemente temos uma pessoa que está nos torrando. Desculpa falar assim. Porque a pessoa tomou um café, cobramos um X, que aliás, se essa pessoa soubesse no mercado do café, como ele age, quando falamos de cafés especiais, não faria o que está fazendo. Mas nós instigando porque cobramos R$13,00 de um café coado, Colombiano. E está nos falando que porque está caro, porque não democratizamos mais e tal. Eu sei que trabalhar com café especial é um nicho de mercado delicado, infelizmente, infelizmente ela é elitista. E eu juro para vocês que eu faço justamente de tudo para tentar não cair. Só que existe uma lógica de mercado, muito louca, que quando você tem um produto de qualidade, você quer deixar ele um pouco mais acessível, você já não é mais valorizado, porque teu produto parece que ele é de segunda, que tem menos qualidade e tal. Então, existe uma lógica de mercado que vai te levando, sabe! Não deveria ser assim. Eu quero que as pessoas conheçam aqui um café de qualidade, não apenas brasileiro, que também é de qualidade, de excelente qualidade. E às vezes as pessoas parecem que não identificam muito isso. Não sei se é porque eu não sou aquela representação de uma cafeteria de alto padrão. Eu não represento isso. A minha pessoa não representa. E eu também não quero representar, porque justamente assim… Se vocês vão lá no fundo, vocês vão ver uma imagem de um indígena tomando café, de uma indígena tomando café, porque justamente a proposta nossa, é uma cafeteria… Quando eu falo de sonhos, que possa ter outros valores, não apenas falar estritamente de um café, que assim como a gente também resgata a história de quem produz o café, do sofrimento de uns produtores que não são reconhecidos no mercado, que as cafeterias de cafés tentam fazer isso, ou fazem. Eu não sei, mas eu sei que tem pessoas que fazem. Outras tantas não. Mas fala-se desse sofrimento, ou pelo menos dessa valorização ao produtor. Mas essa narrativa, ela não pode ficar apenas aí. Então, o Café Colombiano traz uma narrativa? Sim! Dessa valorização. Mas o café para mim, para nós, ele traz outro tipo de conexão, que tem a ver com o conhecimento, com experiências sensoriais, e com experiências de vida, que atravessa a sociedade, que atravessa os conhecimentos, dependendo de onde eles vieram. Então, quando eu penso em sonho, eu queria que meu café, ele não sofresse tanto no dia a dia. Eu queria ter mais gente no dia a dia com a gente, que a gente pudesse conversar um pouco mais, criar espaços de encontro. Eu queria muito uma cafeteria onde seja justamente, eu não quero falar mal da Starbucks porque eu li o livro do Howard Schultz, que é o dono da Starbucks, e que eu achei sensacional, e que falo humildemente, me inspira muito a história do Howard Schultz, que fez a Starbucks. E outras histórias que me iluminam, quando eu trago esse livro aqui. A história desse cara aqui, Edgard Bressani, tem uma história sensacional no Brasil, para escrever esse livro. E o cara não trabalhava com o café, mas ele foi convidado a trabalhar com café, e ele hoje é um dos grandes pensadores na área dos cafés, entre outros. Aqui, em São Paulo, temos Isabela Raposeiras. Enfim, temos mulheres também muito comprometidas. Então, a gente tenta trazer essas figuras que gostam. Então, falar de sonhos, eu queria ser uma empresa um pouquinho mais sólida. E porque não dizer, ter outros Cafés Colombianos. E eu quero ter a minha marca. Nós acabamos de criar, inclusive, outra marca, porque eu trabalho além do café brasileiro, também além do café colombiano, também com o brasileiro. Que isso é uma questão que a gente precisava já. Demoramos para fazer isso. Porque eu vendo café em pacote. Às vezes, até deixamos que acabem porque não tínhamos nos posicionado ainda. Com certeza a partir do ano que vem vamos fazer isso. Mas é assim, essa marca nossa, que vai se chamar Arandu. Porque como café Colombiano, eu não posso colocar café Colombiano procedência, origem, Espírito Santo. Fica estranho, né! Então, quando você trabalha com café, com café de origem, você tem que falar da procedência, das notas sensoriais, tal, tal, tal. Então, essa nova marca que estamos criando agora: Arandu, ela vai nos dar essa possibilidade real de trabalhar com o café colombiano e brasileiro, muito clara, explicitamente. E falar das regiões de onde elas vêm, tanto da Colômbia, como do Brasil. Então, quando você me pergunta por sonhos, eu quero ter essa empresa, que fala um pouco assim, talvez um dia eu conheci o dono, não sei se chega a ser uma Starbucks, acho que não. Não quero também isso. Mas nem que seja uma loja, mas que seja um pouco sólida. Duas lojas, três lojas, sei lá! Mas que elas se sustentem legal. Com uma vida de verdade, com interações interessantes. Eu gosto que o conhecimento circule no café, que a arte circula no café. Que essa é uma pegada que a gente quer ter sempre presente. Porque espaços de cafeteria você encontra um monte, muitas delas num ambiente sóbrio, até frio um pouco, sabe? Mas é claro que a decisão é de quem vai tomar café. Então, você está feliz, nos grandes espaços. Tudo bem, você se identifica com alguma coisa. Mas se eu quero que esse sonho de Patrícia, Rubén, com o Café Colombiano, com o Arandu, seja esse sonho desse espaço de infinitas possibilidades, através da arte, da cultura, da construção de ideias, do encontro, do encontro humano, fraterno. Pronto! Mais nada. Sabe aquele café quentinho, que ultrapassa a xícara e te recebe com um abraço? É isso! Pronto!
P/1 - Ótimo! Rubén, tem mais alguma história que você gostaria de contar, que a gente não perguntou, ou alguma outra coisa assim, de qualquer fase da vida?
R - Acho que não! Não sei! Você tem alguma história para me lembrar?
P/1 - Ou alguma mensagem que você gostaria de deixar pra quem assistisse a essa conversa?
R - Não sei, porque, às vezes, quando a gente fala de mensagem. Não é querendo dar conselhos para ninguém. Mas eu acho que a vida, ela está aí para a gente desafiar, na verdade. E o limite da vida de cada um, e cada um que determina esse limite. Então, eu… Não é uma mensagem, mas eu quero ter uma vida sem limites. Eu quero ir até onde Deus me permitir, até onde o universo me permitir. Mas eu acho que seria uma mensagem para mim mesmo, é viver a vida com alegria, sabe! Porque, às vezes, a gente vê o mundo e o mundo só tem tristeza, às vezes, a vida, ela é tão corrida, tão cheia de dívidas, que a gente precisa achar espaços para a alegria, para viver de verdade, pra viver mesmo. Às vezes, a gente deixa de viver coisas, porque está devendo ali, aí você paga as contas, você continua na tristeza. Eu acabei de ir com a minha esposa para a Espanha e Portugal. Não porque estamos bem de vida, não porque está sobrando, não. A gente está fazendo isso, porque primeiro, dentro dos sonhos, estamos estudando possibilidades de expansão. Para dentro do sonho. Podemos sonhar, mas também para viver um pouco, sabe! Vamos conhecer, transitar, entender como funciona o mercado. Mas também, principalmente, vamos nos permitir. Não é porque está sobrando, tem coisas que você precisa forçar para acontecer. Da mesma forma que eu arrisquei um dia ficar sem emprego. E eu terminei sendo gerente do oceanos, em vários projetos que me… São experiências tão ricas aqui, sabe! Então, acho que a gente tem que sonhar sempre, pensar que tudo pode ser possível. Tudo! Claro, às vezes, não é no tamanho, na dimensão que a gente gostaria, desejaria. Mas eu quero ver isso. Ver meus filhos bem. Acho que a minha família é uma das coisas… Falei pouco, mas eu acho que a minha missão principal, é a minha família, porque meus filhos, hoje, meu filho mais velho terminou a universidade. Ele está trabalhando numa instituição multinacional, mas eu quero que ele esteja bem, e ele esteja feliz. Meus filhos, que ainda dependem de mim, gêmeas de 18 anos, e meu último de 13 anos. Eu ficaria feliz que eles conseguissem fazer uma faculdade, um curso, uma coisa, que eles sejam felizes. Eu falo para eles muito claramente, não precisa eles se casarem e se sentirem obrigados a continuar com o café. Eles vão continuar com o café se eles quiserem, se esse projeto tem a ver com a vida deles. Acha que não, vai em paz! Seja livre! Porque a gente tem que ser livre. Então, o que importa que para mim, hoje, o café, ele me gerou uma liberdade, que hoje eu não troco por nada. E não é porque eu estou legal, porque estou cheio… Não! Se estou feliz, estou livre. Você sofre no dia a dia com questões financeiras. Mas somos o que somos, e a gente vai tocando desse jeito. Eu acho que é isso.
P/1 - E o que você achou de gravar aqui hoje? Falar da sua vida, de contar sua história?
R - Eu não me lembro assim, alguém sentou tanto tempo para ouvir minha história. Porque eu já tive entrevistas para a televisão, para jornais, mas sempre foram entrevistas muito parciais assim, meio rápidas. E perguntas muito específicas. Para perguntas específicas, respostas específicas. Então, como eu nunca sentei tanto tempo para falar sobre minha história, sobre a minha vida, é uma coisa que talvez nem eu antes tinha pensado E quando… Esqueci teu nome. Alisson? E vocês viram quando… É só para falar do comecinhos da vida. Você puxa essas memórias que são desagradáveis. Então, foi legal! Eu gostei de repensar meu passado. O que eu faço hoje. Falar de sonhos, e você também pensar o teu futuro. E eu acho que meu passado, o que somos hoje, e no futuro, ele é um mix de sensações, que eu não me arrependo de tudo que eu já fiz, sabe! Acho que isso é o mais importante. E eu agradeço a vocês terem tido essa paciência de me escutar, escutar tantas histórias que vocês escutam, porque talvez, como vocês mesmo dizem, talvez a gente não lembra de coisas, e talvez vai lembrar depois. Mas são tantas histórias, tantos momentos bons e ruins, que eu ainda pretendo antes de morrer, quem sabe, escrever um livro um dia. Porque eu acho que existem muitas histórias que não contei ainda e que seria legal, sei lá! Para quê eu não sei. Mas só o exercício de escrever já é legal. Não que com isso vai transformar o mundo, mas é uma história, como tantas outras histórias. Então é isso. Acho que agradeço de verdade. E vou entrar a conhecer outras histórias, porque aquilo que vocês falaram logo no começo, às vezes, a gente também se projeta em histórias, em outras histórias de vida. Então, por isso que eu falo, eu sei que a marca Starbucks, é uma marca que já foi criticada, mas quando eu fui ler a história de Howard Schultz. Essa história me inspirou. E eu vi que o cara também não chegou lá do nada. Então, para quem leu esse livro, vai entender o que eu estou falando. E eu sei que eu não vou ser uma multinacional, sei lá. Vai que, né? Mas é histórias como a dele, e outras histórias de vida, que já li, me inspiram muito. Uma história que me inspirou muito quando eu estava estudando Letras. Só para finalizar. Uma foi a do Fernando Pessoa, e a outra foi de… Ai que legal, me inspirou tanto que esqueci agora, que feio, hein! Da Hora da Estrela.
P/1 - Clarice Lispector?
R - Clarice Lispector. Cara, a força dessa mulher, e outras tantas, é que eu não posso falar de autoras e pessoas, porque… Mas quando eu conheci a Clarice Lispector, puta, tiro o chapéu para as mulheres. Para minha esposa, para cada uma de vocês. Dentro da transversalidade de gênero que possa existir, você tem que se encontrar nesses lugares de fala. Então, fim! Muito obrigado!
P/1 - Muito obrigada!
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