IDENTIFICAÇÃO Meu nome é Eliana Souza Silva, eu nasci em Serra Branca, na Paraíba, no dia 21 de julho de 1962. FAMÍLIA O nome do meu pai é João Aleixo de Souza, ele era um pequeno comerciante. O nome da minha mãe é Maria Aleixo da Silva, ela trabalhava em casa, como doméstica, só fazia serviços de casa. Eu sou a terceira filha. Tenho um irmão e uma irmã; eu sou a terceira. Eu tenho um irmão e quatro irmãs na verdade. Sou casada e tenho um filho, o João. Ele tem 14 anos. INFÂNCIA Eu nasci em Serra Branca, fiquei lá até os meus seis anos e meio, quando os meus pais resolveram vir para o Rio de Janeiro. Na verdade, o meu pai veio primeiro, para trabalhar aqui. Lá em Serra Branca, ele era comerciante, vendia pequenas coisas, trabalhava em bar. Mas quando ele veio para o Rio, ele trabalhava em obra, como servente. Ele veio primeiro, porque Serra Branca é uma cidade que é afetada pela seca do nordeste, então as condições de vida lá são muito precárias. Ele veio numa perspectiva de conseguir trabalho aqui e minha mãe ficou lá. No início da década de 70, mais precisamente de 1970, ele mandou buscar a família toda, porque ele havia ficado doente. A minha mãe veio conosco; veio eu e mais cinco irmãos para cá, para Nova Holanda, uma das favelas da Maré. Nascemos todos em Serra Branca e viemos para cá, minha irmã ainda era bebê. SERRA BRANCA – PARAÍBA A vida em Serra Branca, apesar de ser difícil – por conta da falta de trabalho, essa coisa da seca, de não ter perspectiva –, era uma vida que eu considero boa, no sentido de que a casa em que morava tinha espaço, meu avô tinha sítio, tinha essa coisa da área rural, de plantar. Então, era uma vida de que eu tenho uma boa lembrança. NOVA HOLANDA – RIO DE JANEIRO Quando eu cheguei aqui eu fiquei assim... Depois já adulta, às vezes, eu me lembro desse momento. Foi um momento meio traumático porque eu vim direto para...
Continuar leituraIDENTIFICAÇÃO Meu nome é Eliana Souza Silva, eu nasci em Serra Branca, na Paraíba, no dia 21 de julho de 1962. FAMÍLIA O nome do meu pai é João Aleixo de Souza, ele era um pequeno comerciante. O nome da minha mãe é Maria Aleixo da Silva, ela trabalhava em casa, como doméstica, só fazia serviços de casa. Eu sou a terceira filha. Tenho um irmão e uma irmã; eu sou a terceira. Eu tenho um irmão e quatro irmãs na verdade. Sou casada e tenho um filho, o João. Ele tem 14 anos. INFÂNCIA Eu nasci em Serra Branca, fiquei lá até os meus seis anos e meio, quando os meus pais resolveram vir para o Rio de Janeiro. Na verdade, o meu pai veio primeiro, para trabalhar aqui. Lá em Serra Branca, ele era comerciante, vendia pequenas coisas, trabalhava em bar. Mas quando ele veio para o Rio, ele trabalhava em obra, como servente. Ele veio primeiro, porque Serra Branca é uma cidade que é afetada pela seca do nordeste, então as condições de vida lá são muito precárias. Ele veio numa perspectiva de conseguir trabalho aqui e minha mãe ficou lá. No início da década de 70, mais precisamente de 1970, ele mandou buscar a família toda, porque ele havia ficado doente. A minha mãe veio conosco; veio eu e mais cinco irmãos para cá, para Nova Holanda, uma das favelas da Maré. Nascemos todos em Serra Branca e viemos para cá, minha irmã ainda era bebê. SERRA BRANCA – PARAÍBA A vida em Serra Branca, apesar de ser difícil – por conta da falta de trabalho, essa coisa da seca, de não ter perspectiva –, era uma vida que eu considero boa, no sentido de que a casa em que morava tinha espaço, meu avô tinha sítio, tinha essa coisa da área rural, de plantar. Então, era uma vida de que eu tenho uma boa lembrança. NOVA HOLANDA – RIO DE JANEIRO Quando eu cheguei aqui eu fiquei assim... Depois já adulta, às vezes, eu me lembro desse momento. Foi um momento meio traumático porque eu vim direto para Nova Holanda. Meu pai havia comprado um barraco, porque era onde o seu irmão morava. Era um barraco todo de madeira, as condições eram muito ruins, precárias mesmo, tinha muito pouco espaço. Eu lembro bem dessa situação de incômodo, nós seis, os seis irmãos dormindo numa cama de casal, num cômodo só. A casa tinha três cômodos. Na frente, tinha um armarinho que ele fez, porque, quando ficou doente, ele não pôde mais trabalhar em obra. Ele abriu um armarinho lá. Ele tinha úlcera, ficou muito nervoso. Então, a chegada aqui – a paisagem muito diferente – não foi uma coisa muito confortável, eu não entendia muito bem o que estava acontecendo. Mas eu via que as condições eram bem piores do que as de lá, inclusive em termos de espaço; principalmente, em termos de espaço. Nós seis ficávamos muito presos. Meu pai criou a gente de uma maneira muito rígida, presa. E lá em Serra Branca, a gente andava na rua, brincava na rua. Aqui já não foi assim, sem contar esse lado mesmo de dormir, de ir ao banheiro, de ir a cozinha, de não ter esses compartimentos muito definidos e todo mundo ficar muito junto. Então, essa diferença me marcou, porque vim para cá, para um lugar pior. Não entendi muito. Também porque ninguém explicava muito. Naquele momento, eu não entendia o que estava acontecendo, era criança. Mas me marcou. Esse barraco era em frente a um posto policial – hoje não existe mais – e muitas vezes a gente ouvia as pessoas apanhando, aquelas gritarias. Eu mudei a nove anos da Maré, só tem nove anos. Quando me mudei para Niterói, muitas vezes, eu acordava com aqueles gemidos das pessoas à noite apanhando. Isso foi nos anos 70, mas isso perdurou um tempo, essa coisa das pessoas apanharem. A gente via muita coisa porque a minha casa era de frente ao posto policial, era numa esquina. Também não entendia o que acontecia ali, eu era criança. INFÂNCIA Eu não tive, como criança, muito convívio na Nova Holanda. O convívio que eu fui ter naquele meio foi a partir dos 14, 15 anos, porque meus pais freqüentavam a Igreja Católica, que não era nem lá na Nova Holanda, era numa outra favela ao lado. Então, a gente ia para a Igreja, participava do grupo de jovens de Igreja. Ali se estabeleciam algumas relações para além da Igreja, com pessoas que moravam perto. Mas na minha infância mesmo eu não tive muito convívio de brincar na rua, de sair. As minhas brincadeiras, as coisas que aconteciam nesse sentido eram na escola, porque eu estudava na escola, que também era em frente à minha casa, a Escola Municipal Nova Holanda. Meu pai – quando a gente veio – já tinha matriculado a gente na escola. Então o meu contato com as pessoas da Nova Holanda, na infância, se deu muito por conta da escola e depois da Igreja Católica. Mas eu nunca tive – nem meus irmãos – esse convívio com outras crianças de rua para brincar. A gente brincava muito em casa, entre nós, num espaço muito pequeno. Meu pai comprava muito gibi, ele era uma pessoa muito preocupada com a nossa educação. Ele comprou televisão logo que pôde. Ele levava a gente no Parque Xangai, era um parque na Penha, levava a gente na praia, mas era muito com ele, não tinha convívio. ENSINO FUNDAMENTAL Eu ia fazer sete anos quando entrei na escola [na Nova Holanda], porque faço aniversário no meio do ano. Eu tenho uma boa lembrança da escola. Ela era em frente à minha casa, existe até hoje. A escola está do mesmo jeito de quando eu estudei. Eu tenho uma boa lembrança da escola. A escola foi importante, eu estabeleci algumas relações com professores lá. Era uma escola boa, dentro dos limites – eu vejo isso hoje – do que tem normalmente nas favelas, porque você tinha professores muito comprometidos, preocupados com essa questão da educação dos alunos. Era uma outra problemática a questão da pobreza, diferente de hoje. Mas o meu convívio foi muito bom, eu sempre gostei de estudar. Não tive muito problema em relação a isso, eu tenho uma boa lembrança da escola e estabeleci muitas relações com professores lá. ESCOLAS / COMUNIDADES CARENTES A Maré hoje tem 16 escolas, naquela época tinha no máximo cinco, seis escolas. Hoje tem 16. E o que a gente percebe é que o professor hoje que vai dar aula na favela, de uma maneira geral, ele não tem muita opção, ele vai por uma questão, muitas vezes, de sobrevivência e de ter um emprego público. Essa coisa do professor ser uma referência, ser um profissional importante na vida das crianças, isso é muito pouco visto e valorizado, principalmente, nesses lugares, nesses espaços populares. O professor, muitas vezes, não tem uma qualificação e não conhece aquela realidade. Tem o contexto da violência, então ele vai com muito medo para lá, vai com medo das crianças. Tem toda uma representação hoje desses lugares, das favelas, em que ali você tem potenciais marginais. Então as pessoas já vão para a escola com esses estereótipos. E a questão mais importante, que é a questão pedagógica ou estímulo para aprendizagem dessas crianças, isso fica em segundo plano. Há uma supervalorização da realidade social, e esse professor não está preparado para trabalhar com aquela realidade, com os problemas – você tem crianças que moram sozinhas, tem crianças que levantam sozinhas, vão para escola, não tomam banho. E, muitas vezes, o professor não está preparado. É óbvio que tem professores que não têm esse perfil. Mas a escola, hoje, não dá conta disso e aí entra a questão mais importante, a questão pedagógica, que fica em segundo plano. Não se investe nessas crianças, não se estimula para que essas crianças possam dar o salto necessário. IMAGEM DAS FAVELAS Na minha época, havia um investimento muito grande dos profissionais, por conta dessa característica da comunidade. Hoje, a comunidade tem esse perfil da violência que acaba definindo tudo, inclusive as relações. Eu acho que muitos profissionais vão com essa visão posta na cidade inteira aqui do Rio em relação às favelas. Então quem mora lá ou é envolvido com o tráfico, ou é uma pessoa que pode potencialmente se envolver. A gente vê que as crianças têm muito poucas oportunidades de se desenvolver, porque elas já estão marcadas com esses estereótipos. Há uma distorção. É diferente ser pobre e ser marginal. Hoje existe um contexto muito complicado para se trabalhar. Você tem uma escola que de fato cumpre o papel de educar e de desenvolver essas possibilidades de uma criança. Mas a maioria das escolas está tomada por essa visão, tanto que um professor que dá aula numa escola particular e dá aula numa escola pública tem uma postura diferente nos dois lugares. EDUCAÇÂO / ESTÍMULO FAMILIAR Eu tinha estímulo familiar [para seguir estudando], tanto que os meus irmãos todos também estudaram, fizeram universidade pública – todo mundo fez universidade pública – apesar de termos estudado, o primário, o ginásio e o segundo grau numa escola pública. Nós estudamos na mesma escola. Quer dizer, eu saí do primário para uma outra escola municipal, que era do outro lado da Avenida Brasil, a Clotilde Guimarães. No segundo grau, fui para uma escola na Ilha do Governador chamada Prefeito Mendes de Moraes. Com meus irmãos, o percurso foi o mesmo. Eu acho que tinha uma coisa familiar muito forte que foi determinante na minha escolha, e tinha um desejo meu. Eu sempre gostei de estudar e teve esses fatores da escola que ajudaram. Então, foi um conjunto de questões que favoreceu as redes onde eu me inseri. Na própria Igreja, eu sempre recebi muito estímulo para estudar, dificilmente, eu não iria por esse caminho. Mas eu acho que o fator mais determinante é a família. Tanto que o meu pai tinha esse armarinho e a forma da gente, enfim, sobreviver era que todo mundo trabalhasse lá. Então, com 13 anos, eu tinha carga horária de três horas. Meus irmãos também. A gente dividia horário de trabalho ali e na escola. ENSINO SUPERIOR Eu fiz Letras, Português–Literatura. Depois, fiz mestrado. Eu terminei a graduação em 1987 e em 1990 eu entrei para o mestrado em Educação. A faculdade me abriu campo de trabalho. Dou aula de Redação; trabalho com Língua Portuguesa e Redação. Na verdade, eu quis ser professora, não por conta da Língua Portuguesa, porque ela é maravilhosa, mas eu queria muito trabalhar. Primeiro eu queria ser professora, porque eu já dava aula quando era adolescente, eu já alfabetizava. Eu me envolvi em vários projetos de educação de jovens e adultos – na Igreja, nas experiências comunitárias lá na Maré – então eu queria ser professora. Depois, por causa dessa coisa da língua, de dominar a língua. EDUCAÇÃO / CONSCIENTIZAÇÃO Depois que eu tomei consciência um pouco da minha situação, da minha condição, da minha realidade, achei que era um instrumental importante para colocar a minha indignação em relação à situação que eu vivia. Então foi muito uma coisa política – se a gente puder dizer assim – poder falar, poder escrever sobre essa realidade. Seria uma forma de dar uma contribuição, além da satisfação pessoal de ter uma profissão. Eu fui motivada a estudar línguas por causa disso: “Ah, eu quero saber me colocar, quero saber mostrar a minha indignação”, e tinha esse desejo de trabalhar com Educação, de dar aula, tanto que eu fiz mestrado de Educação. A motivação maior foi essa. VESTIBULAR Eu não ingressei direto na faculdade depois de terminar o segundo grau. Eu não fiz vestibular no ano que eu terminei. Aí eu consegui uma bolsa num pré-vestibular – no curso Bahiense da Tijuca – através de uma pessoa que conhecia. Ela me falou desse curso na Tijuca, eu fui lá, fiz as provas e consegui uma bolsa. Fiz um ano de cursinho do Baiense e passei no primeiro ano. MILITÂNCIA E TRABALHOS SOCIAIS O primeiro contato com essa realidade mais específica foi na Igreja, onde se fazia um trabalho de base. Era a Igreja que meu pai freqüentava. No grupo jovem, a gente tinha algumas obrigações como: visitar famílias pobres, ajudar, fazer determinadas atividades para juntar alimento. E, participando disso, eu fiquei responsável, junto com outras pessoas, por ajudar um determinado grupo da comunidade que era muito pobre. Então, uma vez por mês, tinha que ir lá nessa casa, conversar com a pessoa e dar esse alimento. Só que eu fiz isso umas duas, três vezes, na quarta eu fiquei me perguntando: “todo mês vir aqui, ficar olhando para essa situação complicada” – porque era uma casa muito pobre, era uma senhora que tinha sete filhos, que o marido tinha abandonado, e ela não podia trabalhar porque as crianças eram pequenas. Eu ficava me perguntando qual o sentido de ir lá uma vez por mês distribuir uma cesta de alimento para ela e os filhos, e eles não terem certidão de nascimento, não estarem na escola. Aí eu comecei a me envolver um pouco com a vida dela: “Por que você não vai tirar certidão de nascimento?” Eu comecei a ver onde tirava, como se tirava. Eu tinha 16 ou 17 anos. Aí comecei a ajudar nesse sentido, estabeleci uma relação maior do que essa da Igreja, de dar bolsa e tal, e questionava o padre sobre o sentido disso. Essas pessoas deviam de alguma forma se inserir em alguma situação que pudesse melhorar as suas condições. Só assistir não adiantava. Acabei até saindo da Igreja por conta desses questionamentos. FIOCRUZ - PROJETO “CONHECENDO A COMUNIDADE” AGENTES COMUNITÁRIOS DE SAÚDE Nesse período também chegaram alguns profissionais lá na Nova Holanda, da área de saúde. Eles trabalhavam como sanitaristas, com saúde pública. Eles eram da Fiocruz, e foram para a Nova Holanda fazer um trabalho num posto de saúde que existia lá. Era uma equipe multidisciplinar – tinha sociólogo, tinha pedagogo, psicólogo, médico – e, em vez de eles chegarem e estruturarem o trabalho, eles saíram procurando pessoas na comunidade para ajudá-los a pensar o projeto de educação. Aí eles foram na Igreja, no bloco carnavalesco – que se chamava “Mataram o Meu Gato” –, no campo de futebol, enfim saíram atrás. Eles foram tentar pinçar pessoas que tinham alguma legitimidade, alguma liderança ali na comunidade. Na Igreja, eu e outros jovens fomos selecionados para participar desse projeto. Depois que eles constituíram esse grupo, intitulado “Agentes Comunitários de Saúde” – como fomos denominados. O nosso primeiro trabalho foi o “Conhecendo a Comunidade”. Inclusive, foi o momento em que eu me dei conta do que era a comunidade, porque era um trabalho em que cada um de nós era um agente. A Nova Holanda tinha 33 ruas, essas ruas foram divididas, e eu tinha cinco ruas. Eu tinha que ir de casa em casa e perguntar e preencher um questionário: “O que você acha que falta aqui na comunidade?”, “O que pode melhorar?”. Além de preencher esse questionário, no final do dia, a gente convidava esses moradores para uma reunião e falava sobre os projetos, sobre a questão do posto, e as pessoas externavam o que elas pensavam. Foi uma experiência muito marcante, porque eu me dei conta de uma realidade mais coletiva, das dificuldades. Foi um momento muito importante. O projeto era “Conhecendo a Comunidade”. A partir daí, a gente montou o projeto de trabalho desses profissionais. Aí ficou muito clara a necessidade de um projeto na área de saúde e de educação. A questão da saúde era discutida de uma outra forma. O médico tinha uma outra postura. ESCOLA NOVA HOLANDA Como eu já tinha interesse pela educação, fiquei nos projetos de educação. A gente fez um trabalho dentro da Escola Nova Holanda. A gente tinha turmas com crianças de seis e sete anos, que não se alfabetizavam. Aí fizemos uma proposta à escola para trabalharmos junto com esse professor, de ter outras pessoas interagindo na sala de aula, moradores, como eu, profissionais. Foi muito interessante porque eu comecei a estudar essa questão da alfabetização. A gente se formou um pouco com esses profissionais, eles traziam muitas coisas, muitas questões e traziam cursos. Conheci Paulo Freire nessa ocasião, pessoalmente. Fiz alguns cursos. A gente participou de um curso com um pessoal da Bahia que trabalhava há muitos anos com Paulo Freire. Enfim, eu recebi uma formação muito boa em relação a essa questão da alfabetização. A gente conseguiu fazer um trabalho junto com a professora que alfabetizou essas crianças. O meu contato com a comunidade e um pouco o despertar de uma consciência se deram nesse momento. Isso foi em 1978, 1979, 1980, acho que o trabalho durou até 1982. COMPLEXO DA MARÉ Quando a gente fala da Maré, são 16 favelas. A Nova Holanda, a favela onde eu fui morar, é uma delas. Cada comunidade na Maré, na ocasião, tinha uma associação de moradores. A Maré era toda tomada pelas palafitas e houve um projeto grande na ocasião que tirou essas casas e criou outras comunidades. Por isso que a Maré hoje tem 16 comunidades. Na época, tinha seis comunidades. A Maré em 20 anos cresceu de seis para 16 comunidades. COMUNIDADE NOVA HOLANDA: ORIGEM A Nova Holanda era um Centro de Habitação Provisória, que na década de 60 serviu para abrigar moradores removidos de favelas da zona sul do Rio de Janeiro. Foi na época do governador Carlos Lacerda, quando essas pessoas foram removidas para Nova Holanda e para outros centros de habitação provisória, como Ramos. Dali, elas iriam para uma outra casa, era para ser um centro de triagem. Quem cuidava dessa passagem era a Fundação Leão XIII. A Nova Holanda era administrada pela Fundação Leão XIII e, com o passar do tempo, com a mudança de governador, essa política de remoção foi sendo esvaziada e um espaço que era para ser provisório virou permanente. A gente fala que a Nova Holanda é uma favela criada pelo governo. O NOME “NOVA HOLANDA” Tem várias histórias em relação a essa questão do nome [Nova Holanda]. Dizem que o governador, que estava fazendo o Centro de Habitação, viajou para a Holanda e, lá tem aquelas casas de madeira. Quando ele chegou, olhou: “Essas casas de madeira são tão bonitinhas, não é a Holanda, mas é uma Nova Holanda”. São histórias que os moradores contam, porque, na verdade, Nova Holanda foi criada em 1962, exatamente no ano que eu nasci. Então, eu não morava aqui ainda, mas são as histórias que os moradores contam. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES – NOVA HOLANDA A Nova Holanda, por ser administrada pela Leão XIII, demorou muito para ter associação de moradores, porque a Leão XIII não deixava ter organização dos moradores. Havia uma tutela em relação a essas pessoas, havia horário de chegada e de saída, uma coisa mesmo administrada pelo Estado. E isso foi um dos problemas que a gente teve que acabar. Não podia ser assim. Então, a associação foi criada no final da década de 70, início da década de 80. O presidente foi aclamado, não foi eleito pela comunidade, muito por conta do Projeto Rio de retirada das palafitas, mas ele simplesmente não fazia nada. Ele era uma pessoa ligada a [Fundação] Leão XIII, que tinha toda uma forma de atuar sem envolver a comunidade. Quando a gente trabalhou no posto de saúde, a questão da comunidade aflorou, porque os moradores reclamavam muito dessa falta de participação e dessa forma da associação atuar; na verdade não atuava. Então, quando já havia um determinado tempo do trabalho do posto, houve uma discussão entre o grupo que participava – eu era uma dessas pessoas – sobre como a gente poderia interferir nesse trabalho da associação. Foi aí que a gente montou um grupo. Eu fui num cartório, peguei o estatuto da associação, comprei, vi que naquele ano, em 1984, o mandato desse presidente ia acabar e a gente aproveitou o momento para provocar uma eleição. Na época, havia uma situação política favorável, o Brizola tinha sido eleito governador e estava estimulando muito as associações de moradores de uma maneira populista. Mas, no nosso caso, foi importante o apoio de alguns órgãos do governo contra a própria Leão XIII, para legitimar a nossa eleição. A gente constituiu um grupo, reuniu pessoas da Igreja, pessoas do Bloco, mais uma vez, para ver como a gente podia fazer isso. Foram feitas várias discussões e foi montada uma chapa. Na montagem dessa chapa, foi feita uma discussão de quem seria, que cargos teria, e a gente fez uma eleição interna. Eu ganhei apoio dos meus colegas para concorrer ao cargo de presidente da Chapa Rosa, uma chapa que tinha muitas mulheres. Foi um processo que a gente foi de casa em casa, mais uma vez. Isso foi em 1984. A eleição contou com quase duas mil pessoas votando. Então, as pessoas se inscreveram para votar e a gente ganhou. ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES / CONDIÇÕES EM NOVA HOLANDA Eu tive que começar do zero. A gente não tinha rede de esgoto – a que existia era muito precária e não atendia a toda a comunidade –, a água encanada era também muito precária, a parte de energia elétrica estava em condições muito precárias, porque os moradores não pagavam a Light. Por conta disso, muitas vezes, a gente ficava dez dias sem energia, porque estourava um transformador. Mais da metade dos barracos era em madeira que estavam em condições muito precárias, tinha um aglomerado de casas chamadas duplex numa condição muito ruim, prestes a cair. Não tinha creche, a única coisa era a escola. Não tinha postos de saúde e nem tinha a sede da associação de moradores. Então, na verdade, a gente teve que começar do zero. CONQUISTAS EM NOVA HOLANDA A nossa primeira luta foi conquistar alguns espaços dentro da Nova Holanda, que abrigaram esses moradores que tinham vindo removidos. Eram galpões enormes, que estavam fechados e a gente conseguiu um galpão para fazer a sede da associação de moradores. Conseguimos depois um espaço para fazer a creche. Então, foi um momento de muita efervescência. A gente conseguia fazer muita assembléia, a gente tirou um representante de rua, que era uma pessoa que estava diretamente ligada à associação de moradores. A gente não tinha coleta de lixo. Foi um período muito importante para essas conquistas de urbanização e de infra-estrutura. Em três anos – porque o mandato era de cinco anos, e eu propus reduzir para três anos, para que houvesse uma renovação e fosse dentro de um processo mais participativo –, a gente conseguiu resolver a questão da água e do esgoto. Com a retirada das palafitas, o Figueiredo, que era então presidente da República, deixou um relatório quando saiu dizendo que havia retirado as palafitas da Maré e também urbanizado a área consolidada, colocando água e esgoto, o que era mentira. Então, eu usei esse relatório, e cobrei do BNH [Banco Nacional de Habitação] –, mas o BNH acabou no mesmo ano. Depois veio a Caixa Econômica e aí a gente conseguiu, não somente para a Nova Holanda, mas para as outras comunidades, água, esgoto e a pavimentação. Junto a Light, a gente conseguiu uma eletrificação nova e a creche com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Então, foi uma mudança. Para os duplex – as casas que estavam tombando –, a gente conseguiu dinheiro para reconstruir essas casas. Foi um momento de muita mudança, tanto que os moradores têm um saudosismo em relação aquele período muito grande, porque foram muitos acontecimentos e foi uma gestão muito positiva. Eu participei de mais três mandatos seguidos, mas não como presidente. Eu participava da diretoria, mas depois parei. Falei: “Não, a gente já fez muita coisa, mas não quero mais ficar nesse dia-a-dia e nessa coisa estressante de cuidar do esgoto que estourou, do não sei o quê”. PARTICIPAÇÃO DA COMUNIDADE Percebo que houve uma participação, mas que deixava a desejar. Por exemplo – já avaliando depois –, foi até por conta disso que depois a gente criou o Ceasm [Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré]. Porque a gente viu que a Associação de Moradores não dava conta. A associação é um organismo político, tem que lutar, cobrar. O morador entende a associação como um órgão público da prefeitura. Ele não se vê muito num papel de sujeito ativo, entende? Isso era uma coisa que me incomodava muito: como é que a as pessoas poderiam se apropriar mais desse poder que eles têm e que abrem mão, muito por uma alienação de não entender o que é aquilo? Foi aí que eu fui fazer o mestrado. BUSCA POR ALTERNATIVAS Depois do mestrado, eu comecei a refletir sobre o que a gente podia fazer – porque você via que aconteceu uma mudança muito grande na parte material e física. A qualidade de vida mudou, a gente criou uma cooperativa, acabou com os barracos de madeira. Mas, ao mesmo tempo, chegava período de eleição, vinha um político e dizia que tinha feito a creche. O morador que tinha ido à assembléia, que tinha ido na porta do secretário, votava naquele candidato. Eu estou dando esse exemplo porque o assédio dos políticos era uma coisa que me incomodava muito. A gente tinha feito um trabalho de tentar mudar um pouco essa cultura política e via que o trabalho que a gente fazia não atingia esse plano. As pessoas continuavam muito submissas e esperando um salvador para resolver os seus problemas. Isso que me levou a pensar no trabalho que a gente poderia tentar fazer na Maré. Um trabalho que, de fato, mudasse essa perspectiva e essa noção do morador sobre o seu papel. O Ceasm, na minha cabeça, surge já em 1997 dentro dessa perspectiva. Como é que se pode interferir em determinados indicadores, como é que se pode tentar melhorar o nível de educação e de cultura? MESTRADO Depois de três mandatos na Associação de Moradores, eu comecei a me indagar um pouco o sentido de só ficar fazendo coisas. Eu tenho muito essa característica de botar a mão na massa, de fazer e tal. O meu interesse em continuar estudando era um pouco para pensar nesses processos. Tanto que eu escolhi um mestrado em Educação e a linha de pesquisa era em educação popular. Todo o trabalho que eu tentei fazer na Associação junto com as pessoas era assim: na assembléia, a gente pensava como, pedagogicamente, determinados assuntos poderiam ser inseridos. A gente fazia pequenos grupos, depois fazia assembléias maiores. Havia uma preocupação pedagógica na apropriação dessas informações. Mas era impressionante como muitas coisas a gente não conseguia, a linguagem não chegava. Eu quis, na verdade, fazer um mestrado muito em função dessa perspectiva de pensar esses processos pedagógicos de como é que as pessoas adquirem uma consciência. As pessoas falam: “Tem que adquirir consciência, o trabalho só é transformador quando adquire consciência”. Mas o que é adquirir consciência? Como é que uma pessoa que tem uma história totalmente desfavorável, que tem que lutar para ter esgoto, que tem que lutar para ter água, que tem que fazer mutirão para limpar a sua rua, como é que uma pessoa adquire uma consciência? Porque, na verdade, as pessoas ali não tinham que fazer nada disso, o Estado é que tinha que fazer isso. Num bairro comum ninguém varre a sua rua, ninguém coleta o seu lixo, ninguém carrega água como eu carreguei. Então, tem um processo que é complicado na história das pessoas, que muitas vezes leva a naturalizar aquela realidade e, por mais que se lute, por mais que as pessoas cheguem, elas têm uma baixa estima muito acentuada, de modo que não conseguem superar essa questão e atingir uma consciência maior – e aí tem toda a questão da escolaridade, do acesso e das possibilidades. FORMAÇÃO DE AGENTES Quando eu fui fazer mestrado, fui muito nessa perspectiva de refletir onde é que a gente – no trabalho que a gente fez – contribuiu na formação de novos agentes e como é que trabalhos como esse, que estão ligados a uma questão de educação popular mesmo, de fato têm esse componente de transformação. Então, a minha dissertação de mestrado trabalha com o processo político e pedagógico do trabalho feito na Associação de Moradores. Na verdade, é uma proposta de uma reflexão sobre todo esse processo, onde entrou a questão política, onde entrou a questão pedagógica e como esses agentes que atuaram, seja o morador, seja o agente externo, seja o diretor da associação, seja os profissionais da creche, como esse conjunto de atores interagiu nessa mudança maior. Eu procurei estudar e pensar em novas perspectivas, porque sempre tive muito interesse em continuar trabalhando ali na Maré. Eu não queria sair e nem queria sair com esse sentimento negativo: “Ah, a gente fez tanta coisa, mas o morador continua jogando o lixo na rua”, entendeu? Não queria ficar com esse sentimento porque acho que o que aconteceu ali foi muito importante para as mudanças daquela realidade. Eu escolhi educação popular, muito por conta de tentar pensar num espaço específico, numa área específica e tentar atingir determinados objetivos que trabalhassem com essa questão da própria consciência que o morador possa adquirir, como chegar a isso, como transformar isso, como tornar isso uma coisa mais palpável, mais concreta para as pessoas. Eu fiz o mestrado na PUC, entrei em 1990, mas aí eu tive o meu filho, tive problema de doença, não fiquei bem, e tranquei. Voltei em 1992 e defendi a dissertação em 1995. CENTRO DE ESTUDOS E AÇÕES SOLIDÁRIAS DA MARÉ – CONCEPÇÂO Na época em que eu fiz a dissertação, não teve uma relação direta com o Ceasm. Eu sabia que queria fazer outra coisa, não sabia muito bem o que era, mas já não acreditava mais que a Associação pudesse fazer esse papel de transformador, no sentido do que eu acredito o que seja transformar. Mas estudar foi um instrumental importante para adquirir essa outra consciência de que eu tinha que fazer o trabalho. Na realidade, a gente começou esse movimento em 1996 e a gente chamou várias pessoas lá na Maré. A nossa tentativa era uma reunião por mês para discutir o que ia fazer. Desse grupo inicial, quando a gente chegou a reunir entre 15 e 20 pessoas, só ficaram quatro. Foram os que resistiram. CEASM / FORMAÇÃO DA EQUIPE DE TRABALHO O nascimento do Ceasm se insere dentro desse conjunto de reflexões que eu estava fazendo e me perguntando o que fazer, como fazer. Não queria ficar sem ter algum trabalho comunitário. Essa questão política da consciência foi o que me motivou. Eu busquei outras pessoas, que tivessem as mesmas inquietações, lá na Maré, pessoas com quem eu convivi na Igreja, pessoas da Associação de Moradores. Nessa busca, encontrei o Jailson, que é o meu marido. Ele estava fazendo o doutorado. Ele é militante de muitos anos, não de militância comunitária, mas desde a fundação do PT e ele tinha muitas questões em relação a esses processos que aconteciam. A experiência dele ampliou um pouco essa minha questão em relação à vida das pessoas ali. CEASM – CENTRO DE ESTUDOS E AÇÕES SOLIDÁRIAS DA MARÉ O Ceasm nasce um pouco com essa conformação de pessoas que já atuaram em determinados movimentos, seja partidário, seja comunitário, seja de Igreja. E aí quatro pessoas se juntaram para pensar um trabalho político – inicialmente o trabalho tinha essa conotação política, não política partidária, mas política num sentido mais amplo. A gente assumiu que queria transformar e mudar a consciência das pessoas. A Maré já tinha essa conformação de 16 comunidades. A gente queria fazer um trabalho não mais localizado numa comunidade, mas nas 16 comunidades. A gente queria fazer um trabalho que valorizasse o que a Maré tem de bom. Na ocasião, fizemos um levantamento e vimos que menos de 0,5% da Maré tinha chegado à universidade, num universo de 130 mil pessoas. A gente, na verdade, fazia parte desse menos de 0,5%, porque chegamos à universidade, enquanto as outras pessoas ali não chegaram. ESCOLHA E DEFINIÇÃO DO NOME CEASM Em cima dessas indagações, a gente criou o Ceasm. O próprio nome já fala isso: Centro – centro no sentido de ser uma referência central nesse conjunto de favelas – de Estudos – porque não adianta só fazer coisas como na Associação dos Moradores: conquistar água, esgoto, escola. Tem que entender como essa realidade está conformada. Isso implica ver o número de crianças que estão fora da escola, o número de pessoas que estão sem certidão de nascimento, na questão da população, na questão da pobreza. Então, “estudo” no sentido de pensar essa realidade a partir de dados concretos. Voltando ao nome: Ação – Centro de Estudos e Ações – porque ação é fundamental também. Você estuda para quê? Você elabora para quê? Para poder responder a uma questão específica daquela realidade, também não adianta só estudar. Continuando: Centro de Estudos e Ações Solidárias – “solidárias” porque todas as pessoas, inicialmente, tinham uma formação na Igreja e a gente trabalhava muito nessa perspectiva de que não adianta querer construir um mundo melhor se você não é solidário, se não é generoso. Então, ali não é só um espaço profissional, não é só um espaço de luta política, é um espaço em que se tenta trabalhar a diversidade, as diferenças e tenta ser o mais solidário possível. A questão da solidariedade é muito importante na Maré. A gente acredita que se houver uma mudança qualitativa de vida na Maré, isso terá um efeito no Rio de Janeiro inteiro. COMPLEXO DA MARÉ / DIMENSÂO A Maré é cortada pela Avenida Brasil, uma das principais vias de chegada do Rio de Janeiro. Tem a Linha Vermelha, a Linha Amarela, o Aeroporto Internacional, a maior universidade do Brasil e tem toda essa problemática da violência. Se você conseguir construir projetos ali e diminuir essa problemática, em que a questão social seja vista de outra forma, isso pode ser um modelo para as cidades. Então, todo o nosso investimento, toda a nossa energia vai ser canalizada para a Maré. A gente não vai se dispersar, por mais que a gente faça o projeto mais lindo e maravilhoso, nós vamos ficar na Maré. Até porque a Maré, pelo tamanho, é uma cidade de médio porte do Brasil. Mais de 80% das cidades no Brasil não têm o tamanho da Maré. Ela é maior do que Angra dos Reis, do que Barra do Pirai. Então se você imaginar a Maré por aí, vai pensar que a política pública para lá tem que ser de outra forma. É uma opção radical, não é bairrismo, mas é uma opção radical por um lugar que tem a ver com a nossa história, com a nossa vida, com o que a gente é. AÇÕES SOLIDÁRIAS: PRÉ-VESTIBULAR COMUNITÁRIO A partir da identificação desse dado – de que menos de 0,5% da população da Maré tinha chegado à universidade –, a gente pensou que o primeiro projeto deveria ser um pré-vestibular comunitário, para tentar ampliar o acesso das pessoas à Universidade. A gente acreditava e acredita que a universidade tem um componente importante que é ampliar o horizonte cultural das pessoas; você não só ganha uma profissão nova, não só consegue se inserir melhor no mercado de trabalho, mas tem uma experiência cultural diferenciada. Então, era importante ir para universidade, quem quisesse – essa coisa de aumentar o horizonte das pessoas ali –, porque poucas pessoas terminavam o ensino médio. Ir para a universidade era menos ainda. Então, o primeiro projeto foi o pré-vestibular comunitário e foi importante no sentido de que a gente agregou um conjunto de pessoas da Maré que também tinham terminado, como nós, a universidade. Os professores do pré-vestibular, inicialmente, eram pessoas da Maré, pessoas como nós: “Vem cá, você está a fim de fazer um projeto diferente?” No primeiro ano, a gente só teve o pré-vestibular. Em 1997, a gente pensou o projeto, em 1998 foi a primeira turma de pré-vestibular. No primeiro ano, a gente selecionou 130 alunos. Desses 130 ficaram 90, e tinha duas turmas. Desses 90, a gente aprovou 41 alunos para as universidades públicas e para a PUC do Rio de Janeiro, com a qual a gente tem um convênio. A aprovação foi muito boa, e isso deu um gás muito grande. No ano seguinte, a gente já começou a ter outras possibilidades. CEASM: ÁREAS DE ATUAÇÃO Depois de sete anos e meio, que é o tempo que a gente tem hoje, a gente trabalha com três áreas, dentro da rede de educação, que é uma das redes que eu acompanho. As áreas são: educação, comunicação e cultura. Tem um conjunto de projetos de educação que a gente desenvolve. Dentro da rede de cultura, tem um conjunto de projetos ligados à cultura e dentro da rede de comunicação, a mesma coisa. REDE DE EDUCAÇÃO Dentro da rede de educação, tem o curso Pré-Vestibular; o Preparatório para o Ensino Médio – para alunos que estão na oitava série da escola pública receberem uma formação no último ano da escola. Eles estudam de manhã na escola e de tarde conosco. A idéia é que eles tentem o Pedro II, os Cap’s, escolas técnicas aqui do Rio de Janeiro. Tem também o Preparatório para a quinta série – com crianças da quarta série que estão numa situação muito complicada, principalmente, com problemas de leitura e de escrita. Então, eles recebem um reforço, um estímulo. A nossa maior questão é que as crianças não parem de estudar, porque a evasão escolar é muito grande. Um dos nossos objetivos é esse. Inclusive, o projeto da Petrobras, a sua razão de ser é essa. Tem, então, o Programa de Criança Petrobras na Maré dentro da rede de educação. Tem também o Observatório da Maré, que é da rede de educação; tem os Cursos de Línguas; tem o projeto Nenhum a Menos – porque depois que o Observatório fez um censo, a gente descobriu que 1.200 crianças estavam fora da escola. Então, a gente fez todo um trabalho de retorno dessas crianças à escola. A gente tem todo um trabalho mais social junto à família dessas crianças, para que elas permaneçam na escola. A gente tem uma Biblioteca, tem um Laboratório de Informática, tem um Laboratório Didático, tudo isso dentro da rede de educação. REDE DE CULTURA Na rede de cultura, temos um conjunto de oficinas culturais: teatro, dança, música, interpretação e artes visuais. Tem a Escola de Dança que abriga o Corpo de Dança da Maré, para a formação em dança e a produção de espetáculos. Tem a Rede Memória, dentro da rede cultura, que é um projeto de resgate da história de ocupação das comunidades, muito por conta dos conceitos que a gente trabalha no Ceasm, que é a questão da identidade, a questão de pertencimento à região. É um trabalho de pesquisa em memória e aí tem um conjunto de atividades inseridas: tem os Contadores de História da Maré, tem o pessoal que trabalha no arquivo, o pessoal que trabalha com documentação, tem as Oficinas de Imagem e Comunicação, que trabalham com vídeo, fotografia, também todos dentro dessa perspectiva de formação do jovem que está no ensino médio. REDE DE COMUNICAÇÃO A rede de comunicação tem um jornal chamado O Cidadão, que tem 20 mil exemplares, ele é produzido por jovens da Maré, dois jovens estão na faculdade de comunicação, que foram do pré-vestibular. Ele é distribuído de casa em casa. A idéia é ser um jornal da comunidade, um jornal de bairro. PRÊMIO CLÁUDIA Receber o Prêmio Ashoka 2000 [Prêmio Empreendedor Social Ashoka – McKinsey] foi quase como, esse ano, quando eu recebi o Prêmio Cláudia. A Editora Abril tem um prêmio há nove anos em que eles escolhem anualmente mulheres em determinadas categorias, negócios etc. Eu recebi em 2005 pela categoria projeto social. Aí é um monte de coisas que acontecem, é uma coisa bonita, é uma festa, é um reconhecimento bacana. PRÊMIO EMPREENDEDOR SOCIAL ASHOKA – MCKINSEY O da Ashoka, eu achei bem interessante, porque a Ashoka trabalha investindo em empreendedores sociais. Eu não conhecia e o interessante é que há realmente um investimento no sentido de possibilitar que você atue da melhor forma dentro dessa opção – que para mim não é só uma opção profissional –, você acaba se qualificando muito com esse trabalho. Eu digo isso, porque a minha questão maior tem a ver com a minha história, com a minha vida. Acho que eu vou estar sempre fazendo o que faço, o que de certa forma me credencia para trabalhar profissionalmente com isso também. Mas a minha motivação maior não é essa. O que eu acho interessante no prêmio da Ashoka é pode trabalhar esses dois lados, você pode satisfazer plenamente um desejo de militante e pode, se quiser, se tornar um bom profissional, porque eles te oferecem um conjunto de possibilidades, de instrumentais para você se qualificar como empreendedor. O Ashoka oferece cursos, oficinas, intercâmbios e possibilidades. Ele te coloca numa rede mundial com pessoas que têm o mesmo desejo de transformar o mundo e fazer isso na sua vida cotidiana. Óbvio que receber um reconhecimento é bacana e eu achei essa possibilidade interessante. Ainda não usufruo do que poderia, porque a Ashoka oferece muita coisa e eu participo de poucas, porque não tenho muito tempo. Mas foi super importante para a minha vida pessoal mesmo, porque o processo de seleção da Ashoka faz você repensar também a sua atuação como pessoa, como indivíduo no mundo. Então é muito legal te colocarem diante de questões: “Ah, o que você quer fazer daqui a 10 anos? Como você se vê nesse processo?” E, realmente, faz você parar para pensar. Então, mais que o reconhecimento pelo prêmio, é te colocar nessa situação de prestar atenção em você mesma. Normalmente, quando a gente trabalha com coletivo, acaba esquecendo um pouco desse lado. E eles enfatizam muito essa coisa do indivíduo, que eu acho muito bacana. PROGRAMA DE CRIANÇA PETROBRAS O Programa de Criança Petrobras na Maré chegou no segundo semestre de 1999. A gente procurou a Petrobras, não por conta do Programa de Criança. Tem uma pessoa na Maré, o Marcelo, que é artista plástico, universitário, ele esteve muito próximo na fundação do Ceasm, foi muito importante também nesse processo. Ele trabalhava num Programa de Criança que funciona em Duque de Caxias e sempre falava: “A Petrobras tem um Programa de Criança, por que a gente não tenta trazer isso para cá para a Maré?” CENPES Na verdade, a gente não procurou a Petrobras. Quando a gente procurou o Cenpes [Centro de Pesquisas e Desenvolvimento Leopoldo Américo M. de Mello], que fica no Fundão, do lado da Maré, fomos pedir apoio para o pré-vestibular comunitário da Maré, logo no início 1998. Eu procurei a comunicação do Cenpes. Eles marcaram uma reunião, a gente foi lá e eles explicaram que não apoiavam projetos, demandas que chegavam, mas que tinham uma atuação na área social a partir do Programa de Criança. O Marlúcio Arruda e o Carlos Nagib Khalil, na ocasião, me apresentaram o Programa de Criança, como é que funcionava no Cenpes. As crianças vinham da Ilha do Governador, ficavam no clube da Petrobras, tinham aula de arte, iam à piscina. Então, eles apresentaram e falaram que não tinham condição de apoiar o curso pré-vestibular. Mas, ao mesmo tempo, eles gostaram do nosso papo e falaram: “De qualquer forma, a gente quer conhecer vocês, a gente quer se envolver em alguma atividade na Maré, porque o Cenpes está do lado e a gente quer ter alguma atração na Maré. A gente não sabe qual, o pré-vestibular não dá, mas vamos ver.” Aí eles marcaram de ir lá na Maré para conhecer o Ceasm. Na verdade, a gente começou o Ceasm usando a Igreja, depois conseguiu espaço e começou a fazer obra. A gente não tinha um espaço definido, estava muito incipiente ainda. Então, eles nos visitaram, conversaram, e a gente passou quase um ano em contato. Eu ligava: “Não tem como doar cadeira? Não tem como.” E não acontecia nada. PROGRAMA DE CRIANÇA PETROBRAS / PROPOSTA DO CENPES Depois de quase um ano, eles me chamaram e falaram que, no ano seguinte – era final de 1998 –, estavam pensando em mudar o Programa de Criança, que estava sendo gerido pela Associação de Funcionários da Petrobras. Eles queriam fazer uma proposta: se o Ceasm não poderia assumir a gestão desse programa. Aí eu perguntei: “Daria para a gente fazer uma proposta? A gente pode mudar a forma como está sendo feita hoje? A gente pode ter uma proposta nossa? Tem como atuar somente na Maré? Porque a gente não tem interesse pela Ilha do Governador.” Eu não tinha o interesse de pegar um projeto só para gerir e ter dinheiro, a questão era se esse projeto tinha a ver com a gente também. Ele disse: “Vocês façam a proposta, porque a gente quer mudar tudo mesmo, a gente quer uma coisa diferente.” CONTRA-PROPOSTA DO CEASM Então, a gente fez uma proposta, que é a proposta inicial do Programa de Crianças da Maré, que primeiro atenderia somente às crianças da Maré. Não tenho nada contra as crianças da Ilha, elas precisam também, mas não teria a ver com a nossa proposta. Então, primeiro, a gente ia atender só a Maré; segundo, o projeto não aconteceria dentro do Cenpes. A proposta era que o programa fosse para dentro das escolas. Aí a gente fez um projeto escrito, com essas idéias, levei esse projeto para ele, passamos um tempo conversando, discutindo como seria. Eles aprovaram no início de 1999, mas o contrato só se consolidou mesmo no meio do ano. Inicialmente, o programa começou atuando em quatro escolas. Por que atuar dentro da escola? Por que atuar só dentro da Maré? Qual é a justificativa para isso? Primeiro, a gente já tinha um levantamento da evasão escolar na Maré, que era muito grande. Então, um dos objetivos desse programa era diminuir a evasão escolar, fazer com que a criança aprendesse a gostar de estar na escola. O programa deveria contribuir para melhorar esse ambiente escolar. Como aquela paisagem poderia ser uma paisagem em que a criança quisesse ficar? Esse era um dos objetivos, um objetivo importante, fazer a criança gostar da escola e não evadir da escola. Segundo, a gente trabalharia com linguagens que a escola não trabalha. Então, a questão das artes seria muito trabalhada, no sentido de atuar junto com o conteúdo da escola, para sofisticar mais e a criança poder se desenvolver mais – tem todo um conjunto de oficinas, teatro, música, dança, e outras que eu não lembro agora. Tem um conjunto de linguagens a que essa criança não tem acesso na escola e que ela passaria a ter pelo programa. PARCERIA COM OS PROFESSORES Teria também um trabalho muito forte junto aos professores, no sentido de trazê-los para pensarem junto com o programa, como eles poderiam se apropriar dos recursos que o programa tem para melhorar a questão pedagógica. Então, teria que ser um planejamento que reforçasse o planejamento da escola, a gente não está ali para substituir a escola, mas a gente pode ser um parceiro importante no sentido de repensar esse fazer pedagógico. Então, nessa parceria com o professor da turma que o Programa de Criança atende, o professor teria que saber o que a gente está fazendo lá e a gente teria que saber o que o professor faz, para reforçar esse trabalho. FOCO NA LEITURA E NA ESCRITA A gente tentaria fazer um trabalho muito grande na questão da leitura e da escrita, porque há uma defasagem nesse ponto e a gente pegou isso como uma bandeira importante. Você não vai desenvolver consciência, não vai ser um ser crítico se você não tiver essa habilidade resolvida. Então é importantíssimo, não adianta um menino tocar bem, se ele não sabe ler e escrever e não sabe se expressar, não é? Então isso é um componente importante do programa. PROGRAMA DE CRIANÇA PETROBRAS: TRABALHO COM OS PAIS O outro componente importante é o trabalho com os pais. O projeto tem os grupos que atendem nas escolas, com assistente social e psicólogo, em que a gente ajuda a escola nesse processo de relação com os pais. Tem escolas que nunca reuniam os pais. Hoje você tem grupos de pais, os pais se reúnem de 15 em 15 dias nesses grupos e é feito todo um trabalho de informação, de uma maneira ampliada e dependendo do interesse dos pais. Por exemplo, tem escola em que os pais manifestaram o interesse de aprender ler, porque uma boa parte não sabe. Então a gente montou uma turma de alfabetização só de pais, e por aí vai. Temas como a mulher, a questão da mulher, a questão da relação, como que a família se insere nesse processo pedagógico da criança, tem todo um conjunto de atividades que são voltadas para os pais. Tem um trabalho grande do programa em relação à questão do acompanhamento dessa criança. Uma criança que entra no programa a gente não quer largar até ela chegar à universidade. Esse era um dos objetivos: fazer com que ela chegasse à universidade. E aí tem todo um instrumental de monitoramento e avaliação, para entender o perfil dessa criança. Tem um conjunto de demandas materiais que a gente tenta também articular a partir do programa para suprir. Então a gente fez uma parceria há dois anos com uma outra ONG, o Instituto Helen Keller, que só trabalha com questão de exame de vista, com essa questão oftalmológica. A gente conseguiu, por exemplo, fazer exame de vista em todas as crianças do programa. Duas mil crianças por ano são atendidas pelo programa. Aí algumas vão para o ensino médio, vão para o preparatório PROGRAMA DE CRIANÇA DA MARÉ: PARTICIPAÇÃO Atualmente, não tem limite de idade para participar do programa, no início tinha. Mas atualmente a gente está pegando as crianças na alfabetização; as nossas atividades estão junto com as crianças que estão se alfabetizando. Então, tem atividades na alfabetização, tem atividade na terceira e quarta série, tem atividade na quinta, na sétima e na oitava, dependendo da escola. Hoje, a gente atende a oito escolas. Quando a criança vai para o ensino médio, ela passa pelo preparatório do Ceasm, porque todas as atividades são coordenadas com o que o Ceasm tem. Inclusive, eu dou aula para muitas delas, para alunos que foram do programa pré-vestibular. Então atingiu esse objetivo de não deixar que as crianças evadissem. RECEPTIVIDADE DO PROGRAMA NA MARÉ É uma resposta muito positiva, o programa vai fazer cinco anos e a gente recebe das escolas essa resposta. Tem esse aspecto que, a cada ano, a gente vê que a escola está entendendo mais essa parceria. Eles percebem que não é para competir, é para agregar. Não é um trabalho muito fácil, porque muitos professores se vêem ameaçados, porque a gente tem muito planejamento, tem muita discussão e uma exigência é a pessoa estar disposta para isso. Mas as direções, de uma maneira geral, são muito envolvidas e o programa tem uma receptividade muito boa. Junto aos pais é excelente. Muitos pais botam a criança naquela escola porque é onde tem o Programa de Criança. Em relação às crianças, eu acho que é uma coisa muito positiva. A gente fez uma brinquedoteca, eles têm acesso a muita coisa. Durante o ano eles fazem muitas saídas, visitam muitos locais, não tem como a criança não gostar. É até lugar comum, porque elas estão recebendo muito estímulo. O programa propicia um estímulo muito grande, que é o que a gente quer: naquela paisagem ter coisas sofisticadas e interessantes. É muito bom, eu vejo que o programa faz a diferença hoje em algumas escolas e faz a diferença na vida de muitas crianças. PATROCÍNIO PETROBRAS Eu acho fundamental a Petrobras patrocinar projetos como esse. Primeiro pela natureza da Petrobras, que é uma empresa estatal. Eu acho que é dever da Petrobras fazer isso. É fundamental que ela encontre uma forma de diminuir essa dívida social que existe no Brasil. Ela tem um papel importante no sentido de tentar interferir nisso. Mais do que alguma coisa que melhore a imagem da Empresa, eu acho que [essas ações] devem fazer parte de suas atividades. Alguns profissionais da Empresa deveriam estar atuando nesse sentido de interferir nesses processos sociais. Assim como a Petrobras é uma empresa que pensa essa coisa de ponta, de tecnologia, a questão social, pelo investimento que ela faz, ela pode desenvolver essa tecnologia, esse conhecimento e pode ser um diferencial para ela, não só competitivo, não só por conta desse aspecto, mas por ser uma empresa que cumpre o seu papel, que se coloca com essa possibilidade. Eu acho super importante e penso que esse tipo de trabalho deveria receber um monitoramento, para que, a cada ano, ele pudesse ser aprofundado e melhorado e que não tivesse essa contingência da política, que muitas vezes define esses trabalhos. Acho que tem que ser um conhecimento que vai se acumulando na Empresa, que é tão importante quanto o que ela faz, porque é brasileira e dos brasileiros. Eu penso que é muito importante esse trabalho que a Petrobras faz junto aos projetos sociais. RELAÇÃO COM A PETROBRAS No nosso projeto, a gente acabou estabelecendo uma relação, talvez pela proximidade com o Cenpes, muito positiva no sentido de aprendizado. A gente aprende muito com os profissionais que acompanham esse projeto. São pessoas dedicadas a entender e muito respeitosas à realidade. Então, uma coisa que a gente gosta muito nessa relação é que há um respeito ao que a gente produz, ao que a gente propõe e, ao mesmo tempo, eles propõem questões que estão dentro do âmbito da Empresa. É uma relação boa; sempre foi muito boa desde o início. O Cenpes sempre destacou uma pessoa para acompanhar o projeto. No início do ano, a gente apresenta um planejamento, discute esse planejamento, presta contas, não só através dos recibos, dessa parte contábil. O Marlúcio e o Nagib vão às reuniões – a gente tem reunião toda sexta-feira com todos os profissionais, então volta e meia eles estão nesse processo com a gente – é uma relação muito boa. Eu diria que, talvez, se eles tivessem mais tempo para se dedicar a essa questão, essa troca de conhecimento seria muito maior, mas ela é uma relação mesmo de troca. Eu digo que conheço um pouco da Empresa por conta do trabalho que eles fazem e sei que eles conhecem um pouco do trabalho que a gente faz por conta da relação que estabeleceram no Ceasm. Não é uma relação apenas de dinheiro, isso nunca foi o mais importante para eles, porque eles batalharam muito para garantir o recurso e a gente sabe que fez muito por onde para conseguir ter esse trabalho de qualidade. IMAGEM DA PETROBRAS NA COMUNIDADE A comunidade percebe essa parceria com a Petrobras. O jornal Cidadão, no final do ano passado, fez uma pesquisa em que perguntava ao morador – na verdade, a idéia era saber se o jornal atingia, chegava aos moradores, mas aí aproveitamos e fizemos umas perguntas – tipo: “Você conhece algum projeto do Ceasm?” “Você conhece alguma empresa que apóie o Ceasm?” E a Petrobras saiu em primeiro lugar na pesquisa. O objetivo não era nem saber do Programa de Criança, mas como tem essa relação com os pais e são mais de 700 pais que atuam nesses grupos de pais, você vê que a comunidade percebe. Também a gente faz muita propaganda no sentido de que é um projeto que está dento da escola, porque o apoio da comunidade é fundamental. Não só pela propaganda, a gente quando divulga é no sentido de: “olha só, a gente tem uma coisa que é importante que acontece aqui e é fundamental o envolvimento de vocês para garantir que esse trabalho dê certo, para que tenha resultado, para que seja eficiente, eficaz.” A gente trabalha muito assim. PROFISSIONAIS DO CEASM Hoje, são 312 pessoas trabalhando no CEASM. A gente começou com um formato tradicional, com presidente, vice-presidente, tesoureiro. No ano passado, a gente fez uma mudança na estrutura institucional. Hoje, tem o Conselho Institucional, tem o Conselho Gestor. As pessoas que eram da antiga diretoria foram para o Conselho Institucional. Como são pessoas que fundaram, pessoas que trabalharam nesse processo inicial, a gente funciona muito com essa coisa da representação e no sentido de estar formando, por exemplo, o Conselho Gestor, que é quem está no dia-a-dia. Antes eu me ocupava desde a vassoura que acabava até, sei lá, a reunião com o presidente da Petrobras. Agora não, agora eu estou trabalhando mais nessa questão estratégica, de buscar recursos, de fazer projetos, de elaborar melhor os projetos que a gente faz. Esse grupo institucional tem esse papel de dar respaldo e tem universitários, pessoas formadas por nós, trabalhando no Conselho Gestor, que são pessoas da Maré. Mais de 90 desses 300 são universitários, porque a gente não tem funcionários, todo mundo que trabalha no Ceasm faz um curso ou é universitário. Não é um trabalho voluntário. A gente, desde o início, não queria fazer trabalho voluntário porque tinha toda uma questão de ter continuidade, criar raízes e tem também uma coisa de investimento na questão profissional das pessoas da Maré. Então, todo o recurso que o Ceasm recebe, por exemplo, da Petrobras, a gente tem uma taxa de administração – esse dinheiro é para investir em bolsas para universitários, para poderem estudar de dia, por exemplo, ou na infra-estrutura do Ceasm, administrativo, luz, água. Todo o nosso recurso é para gerir essa possibilidade do morador da Maré estar estudando. No Programa de Criança, por exemplo, você tem 12 universitários que atuam junto com profissionais que são contratados. CRESCIMENTO DAS ONGs Em relação a esse conjunto de atividades que acontecem na Maré hoje, a gente percebe que, em 10 anos, houve um crescimento muito forte de trabalhos realizados por ONGs. Isso não existia no início da década de 80. Então houve um crescimento na oferta desse tipo de atividade que, por um lado, é bom e, por outro, tem algumas questões. Eu acho que, no caso do Ceasm, ele cumpre muito um papel de estar qualificando esses trabalhos, como a gente tem um compromisso muito forte com a qualidade desse trabalho, com essa mudança política maior. CEASM: VALORIZAÇÃO DA COMUNIDADE E DE SEUS MORADORES Na verdade, a gente fala isso hoje: o nosso objetivo não é fazer pré-vestibular, não é fazer Programa de Criança, não é prestar serviços os mais interessantes possíveis. Essas coisas são instrumentos para a gente colocar foco nessa questão específica de não ter essas possibilidades nas favelas. Então, a escola na favela normalmente é ruim, a creche é feita com material de péssima qualidade e a gente tenta contrapor isso tudo. Se você for no Ceasm, as instalações são muito boas, a tinta que é colocada lá é boa, a sala de aula é decente: clara, bonita, com as cadeiras bonitas. A gente tenta trabalhar essa parte estética, visual, porque a gente quer criar um outro paradigma em relação ao que é feito em termos de trabalho nas favelas. As pessoas oferecem o menos bom, porque é para a favela. A gente vê que o nosso trabalho acaba influenciando uma outra visão sobre essas políticas ou essas iniciativas que vão para a favela. Uma coisa importante desse trabalho – não é só essa questão estética, obviamente – é o que está por trás disso, é conseguir trabalhar essas representações e vencer alguns desses preconceitos que a gente percebe muito claramente na sociedade e que os moradores da favela sofrem muito. O Ceasm cumpre um papel muito importante nesse sentido ao colocar foco nessa questão e de estar dizendo assim: “olha, a gente faz isso aqui, isso aqui é bom, mas a gente não é coitadinha, a gente sabe dos nossos direitos e o que a gente quer é dignidade e oportunidade”. Então isso é um aspecto importante. PLANOS FUTUROS O outro aspecto é que hoje você tem mais de 140 instituições atuando na Maré, seja do poder público, privado, organizações não governamentais e comunitárias. Então, seria muito importante que, a partir desse processo de reflexão sobre a Maré ou de identificação desse diagnóstico da realidade, a gente pudesse pensar como aquela região poderia se desenvolver. A gente tem o desejo de um dia construir com essas instituições um Plano de Desenvolvimento Local para a Maré. Mas não um Plano de Desenvolvimento Local que considere apenas a questão econômica, mas que leve em consideração a questão social, a questão ambiental, a questão dos direitos, a questão da participação e a questão econômica, que é fundamental para sobreviver também. Esse é um dos nossos desejos e a gente está trabalhando para isso. O Ceasm fez um catálogo de instituições – estamos lançando um caderno sobre as empresas da Maré – e a gente percebe que está criando um outro conceito e uma outra forma de se trabalhar ali na região. O mais importante é isso, já temos 450 jovens na universidade, nesses sete anos. Ótimo, mas a gente precisa, além da questão individual, pensar nessa questão coletiva que é a mudança do bairro como um todo. PRÉ-VESTIBULAR Eu considero o pré-vestibular um projeto muito importante, porque quando o aluno chega no pré-vestibular ele um pouco toma consciência da vida dele e da realidade onde ele vive. Então, a gente trabalha nessa perspectiva que é a de apresentar a possibilidade dele realizar não só o desejo individual de ir para a universidade e conseguir um bom trabalho, mas é um momento de colocar para ele outras possibilidades. E a gente tem um retorno muito positivo disso. Hoje você tem jovens da Maré que pegaram creches que estavam fechando e estão dirigindo essas creches, criaram uma outra ONG. Tem um filósofo, uma pedagoga, uma nutricionista, uma psicóloga. São moradores ali da Nova Holanda, que pegaram esse desafio de gerir uma creche que estava fechando. Isso é resultado do nosso trabalho. O pré-vestibular tem essa possibilidade de muito rapidamente dar um retorno à comunidade. É muito estimulante perceber como esse processo acontece: aqueles grupinhos de jovens hoje indo para a biblioteca, indo para o cinema, para o teatro. Você vê que tem uma conformação acontecendo, que em médio prazo isso vai trazer uma mudança. Talvez seja aquela mudança que eu pensava inicialmente, que só fazendo a parte física não dava. Então é um projeto muito estimulante, que dá força a todos os outros, porque hoje essas pessoas trabalham nos outros projetos. INTEGRAÇÃO DOS ALUNOS DA MARÉ NA PUC Os alunos do pré-vestibular se integram bem na PUC. Nos primeiros anos, alguns tiveram problemas, houve um certo choque com aquela realidade, onde tudo é muito fácil para quem está lá e tal. Ontem, eu estava lá tomando um café com uma amiga da minha sala, chegou um menino e bateu nas minhas costas. Era o Jonathan, do Corpo de Dança, que tinha sido aluno de uma escola. Nem sabia que ele tinha passado para Administração e estava lá. Ele me viu e veio falar comigo e eu: “Olha que legal, eu vou estar aqui segunda e terça”. Quando ele saiu, a menina falou: “Poxa, que legal ver uma pessoa lá da Maré”. Aí eu fiquei pensando: “Nossa Eu vi esse menino criança, agora está na PUC estudando”. É uma sensação muito boa, muito legal, porque o nosso trabalho de fato tem um resultado concreto nas pessoas. Sem dúvida é uma satisfação muito grande ver isso e pensar: “Pôxa, eu contribui para isso”. TRAJETÓRIA PROFISSIONAL / UFRJ Trabalhar na universidade sempre foi uma coisa um tanto fora da minha realidade. Eu me sentia um pouco deslocada, o termo é esse. Tinha um certo desconforto, apesar de estar na universidade desde 1987 e ser um espaço em que sempre tive muita liberdade de trabalho, onde sempre fui muito respeitada. Mas eu investi pouco nesse caminho acadêmico dentro da universidade. A minha energia – eu seria falsa se falasse outra coisa – sempre foi muito canalizada para trabalhos dentro de favela, de espaço popular e para trabalhar com aquela clientela. Ficar dando aula para “filhinho de papai”, isso nunca foi o meu desejo, tanto que eu trabalho hoje na Pró-Reitoria de Extensão fazendo projetos ligados à favela. Trabalho de pesquisa e trabalho de intervenção para a favela, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Essa experiência é importante dentro daquele campo, porque é um lugar onde eu também posso chegar se quiser. Tem um lado de satisfação pessoal no sentido de que muita gente tem medo de chegar na universidade, por causa daquilo que a academia representa. Eu entrei para a UFRJ como estudante, terminei a faculdade em 1985 e dois anos depois comecei a trabalhar. Mas é um espaço ainda muito distante das pessoas, é um espaço onde as pessoas não se sentem muito identificadas, e eu não sou exceção nesse sentido. Mas, para mim, sempre foi um espaço muito acolhedor, sempre me senti muito bem, porque é um espaço de aprendizagem importante. Mas como eu sempre tentei fazer o que gosto em outro lugar, deixei em algum momento a universidade um pouco de lado, porque eu estava muito envolvida com outras atividades. UFRJ / FORMAÇÃO DE UNIVERSITÁRIOS Agora me ofereceram um cargo para trabalhar com favela, com formação de universitários que são de espaços populares. São jovens que chegam à universidade, que têm toda essa problemática para se inserir naquele mundo acadêmico. Então, eu estou fazendo o que gosto também, mas dentro da universidade. Mas assumir aquela coisa de professor, de ir para a sala de aula e lidar só com pesquisa, longe da prática mesmo, isso não me caracteriza, eu nunca me dispus a isso, tanto que, várias vezes, eu pensei em fazer outra coisa. DOUTORADO Hoje eu faço o que gosto na universidade. Para o doutorado, eu também fui numa perspectiva de dar uma parada, depois de Ceasm, de ter trabalhado bastante, para estudar e dar um outro rumo. Talvez, agora, eu pense um pouco em conformar melhor essa questão da academia, de escrever mais. Eu estou num caminho, por isso fui para o doutorado, porque agora tenho que escrever um pouco mais. A minha pesquisa tem a ver com a Maré e com essa questão das instituições da Maré. Estou fazendo na PUC-Rio, no Departamento de Serviço Social. Eu comecei o doutorado agora, a primeira aula foi antes de ontem. LAZER Tenho horas de lazer, sim. Tenho poucas horas de lazer, mas eu gosto de ler, gosto de ir ao cinema, que vou bastante, e vejo muito filme em casa. SERRA BRANCA Eu gostaria de me envolver com a cidade em que eu nasci, Serra Branca. Volto sempre lá. Em janeiro, passei um mês lá. Houve a mudança da prefeitura e o prefeito que entrou é uma pessoa que eu conheço, é amiga, e estava há cinco mandatos tentando ganhar a gestão, porque lá tem aquela coisa de coronelismo mesmo. Eu tinha muita vontade de ajudar esse problema da seca, é algo que está na minha cabeça, ainda acho que volto para lá. MEMÓRIA PETROBRAS A memória é sempre uma coisa bem interessante. Registrar é interessante. Há a questão de como as pessoas – a sociedade – vão se apropriar desse projeto de memória. Então, mais importante que fazer, é ver como as pessoas vão se apropriar disso. Como uma pessoa que tem uma ligação, que tem um projeto na Petrobras, vai se apropriar dessa história para poder trabalhar nesses projetos que a gente faz. Acho um investimento relevante, porque muitos brasileiros não têm noção da importância dessa Empresa e não sabem das ações que são feitas. Por isso, é tão importante pensar o que esse material vai produzir. Eu queria registrar a sugestão de se pensar em algo além da Internet, para quem não têm acesso a Internet também poder se apropriar dos programas que a Petrobras apóia. Eu trabalho com duas mil crianças, um conjunto de pais, e penso como a gente poderia, de alguma forma, trabalhar essa história e pensar as razões e obrigações da Petrobras estar fazendo isso em relação à questão social. É importante também essa oportunidade de falar. É uma outra voz, que não está dentro da Petrobras, mas é de alguém que lida com a Empresa e também se sente parte dela, a partir desse trabalho e como brasileira. Eu tenho orgulho da Petrobras existir. Se eu puder, vou sempre divulgar e falar sobre isso com o meu trabalho, mas não só por causa do meu projeto. A Petrobras tem uma importância que vai muito além do que a gente percebe, do que a gente vê. Acho que a valorização da memória é importante pela questão histórica que a Petrobras tem no nosso país.
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