Entrevista de Germaine Tillwitz
Entrevistada por Lucas Torigoe e Pedro Carioca
São Paulo, 9 de março de 2023
Projeto Programa Conte Sua História - Casa do Cuidar
Entrevista número PCSH_HV1373
Transcrita por Vinícius Ferreira
Revisada por Grazielle Pellicel
P1 - Obrigado por você estar aqui. Sei que a viagem foi longa, me falaram, né?
R - Tranquilo. Faz parte.
P1 - E para começar, uma pergunta bem difícil: qual é o seu nome completo, que dia você nasceu e ano, por favor.
R - Eu me chamo Germaine Tillwitz. Eu nasci no dia 31 de outubro de 1983.
P1 - Em que cidade foi?
R - Foi Ibiaçá, Rio Grande do Sul.
P1 - E eles te falaram como é que foi seu nascimento, seu pai, sua mãe, o dia?
R - Sim, sim. A minha mãe era muito católica na época e ela tinha medo que eu nascesse no dia de Finados. Ela conta que ela foi no dia 30, eu acho, até o cemitério, porque ela imaginava que ela não ia conseguir ir no cemitério no Dia de Finados, aí ela foi e ela fez essa caminhada. Era longe e ela entrou em trabalho de parto. E eu nasci às sete horas da manhã do dia 31 de outubro, de parto normal, na cidadezinha vizinha, que eu acho que deve ser uns trinta quilômetros; que no Rio Grande do Sul, toda cidadezinha, com exceção de Porto Alegre, toda cidade é minúscula, né? E aí, ela diz que chegou no hospital já quase… Eu sou a filha mais velha, né? Eles não acreditavam que seria um parto tão rápido, mas ela disse que chegou no hospital e eu já estava nascendo.
P1 - E qual é o nome da sua mãe?
R - Marinês. Marinês.
P1 - Marinês. Ela nasceu no Rio Grande do Sul, também? Como é a família dela?
R - Minha mãe é de família descendente de italianos. Tanto do lado do pai como da mãe. Ela também nasceu no Rio Grande do Sul, na mesma cidade. Só que era numa fazenda, na época. Nasceu de parto domiciliar.
P1 - E que que a família da sua mãe fazia, faz?
R - A família da minha mãe, eles eram agricultores, né, antigamente. Depois os meus...
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Entrevistada por Lucas Torigoe e Pedro Carioca
São Paulo, 9 de março de 2023
Projeto Programa Conte Sua História - Casa do Cuidar
Entrevista número PCSH_HV1373
Transcrita por Vinícius Ferreira
Revisada por Grazielle Pellicel
P1 - Obrigado por você estar aqui. Sei que a viagem foi longa, me falaram, né?
R - Tranquilo. Faz parte.
P1 - E para começar, uma pergunta bem difícil: qual é o seu nome completo, que dia você nasceu e ano, por favor.
R - Eu me chamo Germaine Tillwitz. Eu nasci no dia 31 de outubro de 1983.
P1 - Em que cidade foi?
R - Foi Ibiaçá, Rio Grande do Sul.
P1 - E eles te falaram como é que foi seu nascimento, seu pai, sua mãe, o dia?
R - Sim, sim. A minha mãe era muito católica na época e ela tinha medo que eu nascesse no dia de Finados. Ela conta que ela foi no dia 30, eu acho, até o cemitério, porque ela imaginava que ela não ia conseguir ir no cemitério no Dia de Finados, aí ela foi e ela fez essa caminhada. Era longe e ela entrou em trabalho de parto. E eu nasci às sete horas da manhã do dia 31 de outubro, de parto normal, na cidadezinha vizinha, que eu acho que deve ser uns trinta quilômetros; que no Rio Grande do Sul, toda cidadezinha, com exceção de Porto Alegre, toda cidade é minúscula, né? E aí, ela diz que chegou no hospital já quase… Eu sou a filha mais velha, né? Eles não acreditavam que seria um parto tão rápido, mas ela disse que chegou no hospital e eu já estava nascendo.
P1 - E qual é o nome da sua mãe?
R - Marinês. Marinês.
P1 - Marinês. Ela nasceu no Rio Grande do Sul, também? Como é a família dela?
R - Minha mãe é de família descendente de italianos. Tanto do lado do pai como da mãe. Ela também nasceu no Rio Grande do Sul, na mesma cidade. Só que era numa fazenda, na época. Nasceu de parto domiciliar.
P1 - E que que a família da sua mãe fazia, faz?
R - A família da minha mãe, eles eram agricultores, né, antigamente. Depois os meus avós trabalharam na igreja. E a minha mãe, antes de conhecer o meu pai, ela era bancária, mas aí depois acho que o banco fechou, um banco pequeno, fechou e aí eles foram empreender. Eles começaram a empreender. Meu pai é contador.
Mas aí fizeram empreendimentos, até que se mudaram para o Pará, quando eu tinha três anos de idade. Eu ia fazer quatro anos de idade, na época.
P1 - E qual era o nome de seu pai, completo?
R - Gilmar Tillwitz.
P1 - Sabe como eles se conheceram?
R - O meu pai foi o único filho dos três irmãos homens que não seguiu a profissão do pai, que é caminhoneiro, e ele foi o único que partiu para o lado de sentar na cadeira de um escritório, digamos assim. E aí o meu avô falou: “Por que você não vai”... Ele morava no Paraná, meu pai é paranaense. Aí o meu avô falou: “Por que você não vai lá conhecer seu primo que é advogado, lá no interior do Rio Grande do Sul?”, não sei o quê. Conhecer não, “trabalhar com seu primo”. Aí ele foi! Aí nisso ele conheceu a minha mãe nessa cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul chamada Ibiaçá.
P1 - Eles eram o que, vizinhos, alguma coisa assim?
R - Acho que sim. A cidade era pequena, né, e ele foi trabalhar com, acho que… Imagino que era um dos únicos advogados da cidade, e aí, logo, ah, ‘carne nova’ no pedaço, (risos) minha mãe conheceu. Ela conta que a minha nonna falava: “Ai ele é muito trabalhador e tal... é um bom partido”, né, digamos assim. E eles se conheceram, namoraram, aí a minha mãe engravidou e eles se casaram.
P1 - Entendi. E o seu pai, você acha que ele tinha pinta de ser caminhoneiro mesmo?
R - Não, não. (risos) Não imagino meu pai sendo caminhoneiro.
P1 - Ele é realmente diferente dos irmãos, da família?
R - É. Ele é o irmão mais velho de cinco e meio que o irmãozão, assim, que…
P1 - E quando você nasceu, vocês moravam aonde? Quais são as suas primeiras lembranças, assim?
R - Engraçado, a gente foi embora do Sul, eu ia fazer quatro anos, mas eu tenho lembranças de lá, de muito pequena. Eu falo para eles e eles concordam, assim, lembram. Lembrança de dois a três anos de idade, então eu lembro. Nós nos mudamos [pra] lá, só lá, acho que umas três… Umas três vezes, de três casas. Eu lembro de duas. Quando a minha nonna saía da igreja, passava, me pegava e levava para casa dela. A casa era em cima de um depósito de bebida, de cerveja e eu lembro do cheiro assim, que tinha aquele cheiro de bebida mesmo. E aí a outra casa foi uma casa que eles construíram. Daí já era deles e tudo mais. Eu me lembro de alguns episódios: tinha um vizinho da frente que era meu amiguinho, era da mesma idade. Eu tenho algumas lembranças assim do Sul, antes da gente se mudar.
P1 - E você se lembra da mudança então?
R - Eu lembro da mudança.
P1 - Como é que foi?
R - A mudança ocorreu acho que um ou dois dias depois do casamento da minha tia, irmã do meu pai, porque aí, nesse meio tempo que eu era pequenininha, e eles dois trabalhavam, meu pai tem duas irmãs e aí ele chamou, né? "Você pode vir cuidar? Porque a gente trabalha e tal", aí uma dessas irmãs foi, a mais nova, e depois acabou voltando para o Paraná. Nisso, veio a outra irmã e aí a outra irmã acabou arrumando um namorado lá, engravidou também e ela casou. E aí eu fui dama de honra desse casamento e a minha tia conta que a mudança já estava no caminhão e quando a gente foi embora, a casa dela é na beira da estrada, na fazenda, e a gente passava buzinando, que o caminhão era do meu avô. E aí eu não tenho lembrança da mudança em si, mas da chegada no Pará eu tenho algumas lembranças.
P1 - Na viagem também, assim, da estrada?
R - Só o que eles me contam. Que a minha mãe conta que era um caminhão… O caminhão eu lembro porque meu avô teve esse caminhão [por] muitos anos. Era um caminhão vermelho, um 1313 Mercedes. E na cabine desse caminhão, meu avô, meu pai, minha mãe e eu, na cabine desse caminhão, né, do Rio Grande do Sul até o Pará. E ela disse que eu não queria sentar no colo do meu pai, apenas no colo dela, a viagem inteira. Não tinha negócio de cadeirinha e cinto de segurança. Imagina, né, década de oitenta, vida louca. (risos) Era isso. Ela diz que foi uma viagem que quando descia, não sentia as pernas, coitada.
P1 - Demorou quanto tempo?
R - Ai, não sei, mas é três mil e poucos quilômetros, deve ter demorado uns cinco dias de caminhão.
P1 - Foi no caminhão do seu avô, é isso?
R - Do meu avô. Aí a gente chegou no Pará, já tinha, acho que a casa já tinha, alugada. É… Aí eu lembro que não tinha energia na cidade, só tinha energia até onze horas da noite. Eles desligavam o gerador e acabava a energia, aí a gente vivia na lamparinazinha ou vela e tinha muito mosquito. A gente não era acostumado, né, no Sul. E tinha os mosquiteiros, só que os mosquiteiros, quando você encosta, o pernilongo vem, né? Aí era difícil assim. Muito calor e tudo mais. Até a adaptação… E a cidade, que era muito diferente da cidade que a gente tinha saído.
P1 - Diferente como? Assim, o clima...?
R - Além do clima, era uma cidade que estava em desenvolvimento, era uma cidade… Não era nova… Era nova em idade, óbvio, porque é no meio da Amazônia e tudo mais, mas ela era uma cidade cheia de migrantes de outros estados, então tinha muita gente de Minas, de Goiás, Espírito Santo e muita gente do Sul. Foi por isso que a gente acabou indo, porque o meu avô, numa dessas de puxar o frete, voltou e falou: "Gilmar, tem um lugar lá no Pará que acho que você vai ganhar dinheiro. Acho que talvez fosse seu começo de vida”, aí ele foi conhecer numa viagem. Foi com meu avô no caminhão, aí ele voltou e falou pra minha mãe: “Marinês, lá eu acho que dá pra gente começar a nossa vida”. Aí ela falou: "Tá, então vamos". Aí a minha nonna, na época, não queria, né? Ela falou: "Não vai, lá tem onça, jacaré…”, não sei o quê. Aí minha mãe falou… Aí ela disse, [minha avó], a minha mãe conta que ela falou: “Filha, deixa ele ir, que aí depois ele volta”. Ela falou: “Não, mas é minha família, eu vou, né?”. Eles moram lá até hoje. Não na mesma cidade, mas moram no Pará até hoje.
P1 - E que cidade que você está falando do Pará e o que tinha lá naquela época que teve essa…
R - É Rondon do Pará, se chama Rondon do Pará. A cidade mais conhecida, maior, fica a cem quilômetros de Marabá, que fica a quase seiscentos quilômetros de Belém, a capital. Já é uma região próxima ao Tocantins e ao Pará… ao Pará, não, ao Maranhão. E na época, o que girava era madeira, eram madeireiras quando os meus pais mudaram para lá, aí ele foi ser contador de uma madeireira. Depois, ele abriu o próprio escritório e ficou anos. Minha mãe aprendeu o ofício também, estudou, virou contadora. E depois ele saiu, deixou minha mãe no ramo e foi para o lado da madeira também, numa outra cidadezinha vizinha. Aí faliu, depois recomeçou de novo e aí eles foram embora para uma outra cidade, que é onde eles moram hoje, que fica a cem quilômetros de Belém, que se chama Moju.
P1 - Você cresceu no Pará, então? É isso?
R - Eu cresci no Pará. De quase quatro anos até os meus quase quinze, eu morei lá e depois eu fui estudar fora, porque a minha mãe considerava que o estudo lá não era adequado. E aí ela queria… “Acho que você poderia estudar fora”, mas ela não achava que eu deveria morar na casa de ninguém e aí eu estudei em um internato perto de Anápolis, em Goiás. Eu já morei nas cinco regiões do país. (risos)
P1 - A gente vai chegar lá, mas antes me fala um pouquinho das suas primeiras lembranças no Pará. O que você fazia no dia a dia? Como era o dia a dia da sua família logo que vocês chegaram? O seu pai trabalhar, assim, como que era?
R - Tanto meu pai como minha mãe trabalhavam. Eu lembro que eles... Eu entrei na escola, que foi a escola que eu estudei a vida inteira, até a antiga oitava série, né, que hoje é o nono ano, antes de ir pro internato, e eles trabalhavam o dia todo, eu ficava na escola ou com um funcionário. Até os meus cinco anos e meio, quando meu irmão nasceu. É aí que as coisas começaram a melhorar financeiramente. A gente morava em outra casa, uma casa melhor, porque a primeira casa era muito pequena, o teto baixo. Minha mãe conta que ela levantava a mão e alcançava, assim, o teto. E a rua era uma que era de ladeira, eu lembro. A casinha não era legal de morar. A outra não, a outra já tinha um quintal gigante com... era uma casa de madeira, mas era uma casa com um quintal enorme, então tinha muito espaço para brincar. Era bom de morar lá, tenho boas lembranças de infância dessa casa.
P1 - E junto com o nascimento do seu irmão, então, isso?
R - Sim. Meu irmão nasceu, eu estava com cinco anos e meio. Eu lembro que eu pedia um irmão, já pedia.
P1 - Você se sentia sozinha lá, é isso?
R - Eu tinha amiguinhos na escola, mas a minha mãe conta que eu era uma criança que brincava muito sozinha, não demandava deles, assim, não podia… eu acho que eu não tenho lembrança disso, mas eu acho que todos os amiguinhos tinham irmãos também, não sei. Não sei, eu acho que me virava bem sozinha até.
P1 - E conta um pouco dessa escola então. Qual o nome dela? Como é que era essa escola?
R - Era a escola chamada Roda Viva. Era perto da minha casa, eu ia andando. Meus pais me ensinaram o caminho, então, desde sempre, desde pequenininha, ia andando. A cidade só tem uma avenida, até hoje, que é a avenida principal. E aí a gente morava para o lado de baixo da avenida. A cidade era dividida [por essa avenida] pro lado, pro lado de cima e de baixo da avenida, que coincidia com a BR, onde passava a própria cidade e tal. A minha mãe achava que não era perigoso eu ir pra escola sozinha, porque eu não tinha que atravessar a avenida. E aí tudo que acontecia pro outro lado da avenida, ela não deixava. Aí ou ela me levava ou alguém tinha que me levar. O inglês era do outro lado da avenida, mas era só atravessar a avenida. Não, alguém tinha que me levar, porque tinha que atravessar a avenida. Era nessa concepção da ideia da minha mãe de perigo da cidade. Então a escola era uma escola… ah, a cidade era pequena, então dá para dizer que a escola era grande, mas tinha desde o pequenininho até os grandes. Então, quando… eu acho que era colegial na época, não acho que era ensino médio que chamava. E foi nessa escola que eu fiquei até a oitava série, então conhecia a diretora, conhecia todos os professores.
P1 - E o que você se lembra mais dessa escola? De amigo, dos professores? O que mais te marcou nela?
R - Tem professores que eu converso até hoje. Digamos que uma das minhas primeiras professoras, que é a professora Marilene. E tenho amigos ainda dessa época da escola. Tenho amigos que eram de infância e hoje a gente ainda tem contato. A turma era pequena, então nunca tive uma turma com mais de dez alunos. Sempre foram turmas pequenas. No final, na oitava série, eu acho que nós éramos cinco só. Quatro meninas e um menino. Quando a gente terminou, né, que teve a formatura da oitava série.
P1 - E voce gostava de alguma matéria mais, assim?
R - Eu acho que sempre gostei mais de história, geografia. Na época, eu me virava bem em tudo.
P1 - E me conta uma coisa: o seu irmão, qual é o nome dele?
R - Gregory.
P1 - E você tem mais um?
R - Anos depois, quando a gente já era… eu já era formada, trabalhava e meu irmão também já era grande, a minha mãe adotou um menino chamado Thiago, então nós somos três hoje. Mas o Tiago veio para a gente já com sete anos, eu já era formada, devia ter uns vinte e poucos anos. Então a gente ficou um tempo, [só] eu e o Gregory, até a chegada do Tiago. Foram alguns anos aí.
P1 - E vocês se davam bem? Você e o Gregory, nessa época?
R - Ah, de crianças, brigávamos bastante. Eu gostava de ver ele bravo (risos) e ele era muito irritado. Eu gostava de irritar ele, mas a gente se dava bem.
P1 - E vocês gostavam de brincar do que na sua infância?
R - Como a diferença de idade é grande, são cinco anos e meio, a gente não brincava muito junto até ele ter, sei lá, seus dez anos. Aí depois a gente jogava videogame ou brincava de alguma coisa. Mas quando ia amiguinho, eu não queria brincar com ele, porque ele era pequeno, achava que ele estragava as brincadeiras e tudo mais. Eu só brincava com ele quando não tinha outra opção.
P1 - Entendi. (risos) E me conta uma coisa: vocês conhecerão mais a região também? Vocês viajavam?
R - Sim, a gente viajava todo ano. No início, a gente viajava só para visitar os parentes no Sul. Então, a gente saía de carro do Pará… eu lembro que eram três dias. Três dormidas, assim, e… Aí naquela época era mapa, né? Abria o mapa. Depois, a minha mãe passou a fazer, programar umas paradas estratégicas, então a gente parava para passear em algum lugar. Então a gente sempre fazia esses passeios de tirar alguns dias. Numa outra… em algum ano, eu acho que eu já era adolescente, a gente foi pelo Nordeste, ao invés de descer pela Belém-Brasília, então fomos conhecendo o Nordeste. Ela tinha essa, gostava de pesquisar e fazer viagens, né? Era bem legal.
P1 - No carro do seu pai? Que carro que era?
R - A cada ano era um, né? Sei lá. Eu acho que a primeira vez, uma das primeiras vezes, era um Gol. Um golzinho daquele quadradinho, sem ar condicionado. Nossa, meu irmão pequeno, acho que tinha acabado de nascer, foi para o casamento da minha tia. Fui dama de honra também do casamento dessa minha tia, da irmã dele, [do meu pai], a irmã mais nova. Eu lembro que ele tinha, tem até foto. Ele devia ter uns três meses, quatro, mais ou menos.
P1 - Uma viagem enorme?
R - Enorme e vida louca, solta. O bebê no colo. (risos)
P1 - E onde vocês paravam mais, que vocês gostavam?
R - Meu pai olhava, falava: “Esse posto aí parece bom”. Aí a gente levava, para não gastar, fazia uma bacia cheia de frango com farinha e aí a gente comia essa farofa de frango lá, comprava uma coisa para beber. Era isso. Eles tomavam chimarrão, então eles levavam o chimarrão. Só que eles reclamavam, porque tinha que pedir para alguém esquentar água, no posto, e aí ninguém esquentava a água do jeito que eles queriam que esquentasse. Até que eles desenvolveram um método próprio de levar um botijãozinho, pequenininho, assim. Já viu? Um botijãozinho que é pequenininho? Ele é um fogareirozinho, e aí eles criaram uma caixinha que cabia exatamente, sob medida, o botijãozinho, a garrafa térmica, a cuia e a erva. Aí parava nessa hora para comer farofa e também fazer um chimarrão. E aí eles iam tomando chimarrão.
P1 - Mas digo assim, tinha alguma cidade ou algum lugar que você gostava mais de parar quando vocês viajavam para o Sul?
R - Não é uma cidade exatamente, mas eu gostava muito de parar num posto que eu acho que, se eu não me engano, ele fica em Minas, tinha o posto Alvorada. E agora, recente, nós fomos para o Goiás, na família do meu marido, e a gente passou em frente a esse posto e eu falei com as minhas filhas: “Olha, eu parava nesse posto quando era criança. Tem foto d’eu e meu irmão, ali naquelas flores”.
P1 - Mas o que você gostava nesse lugar?
R - Não sei, eu acho que era grande, era espaçoso, tinha coisa pra ver, a comida era boa. Porque era uma viagem que a gente, como a gente ia para visitar os parentes, não era uma viagem que a gente ia parando nas cidades para conhecer, né, então a gente passava por fora. Eu lembro que tinha vontade de conhecer Goiânia, que passava por Goiânia. Só fui conhecer Goiânia quando eu fui estudar no internato. Então, que a gente não parava, [senão] a viagem ia durar dez dias, né? A gente queria chegar. Só nessas paradas estratégicas que a minha mãe já programava: “Não, a gente vai ficar, sei lá, quatro dias em Caldas Novas”, aí já ia com destino certo de parar em Caldas Novas. De cidades mesmo, assim, de paradas, não.
P1 - Entendi. Então, no fim das contas, vocês visitavam bastante seus parentes no Sul. Voces não perderam essa...?
R - Não, até hoje a gente… sempre. A família do meu pai. E a família da minha mãe, como eram apenas dois irmãos, ela acabou levando eles para lá também. Quando começou o escritório a melhorar, ela fez o convite. Foi a minha tia primeiro e depois o meu tio, e hoje eles moram lá também. E a minha avó.
P1 - E a origem da família do seu pai?
R - É alemã.
P1 - E quando vocês voltavam lá para ver a família do seu pai, tinha algum parente que você gostava mais do que, enfim, que você queria ver mais? Difícil essa pergunta, né? (risos)
R - Nossa, muito. Mas é porque assim, a gente chegava e a família do meu pai é muito unida… da minha mãe também, mas a gente chegava primeiro, porque é mais perto do Paraná do que do Rio Grande do Sul, então a primeira parada era na casa da minha avó. Aí quando chegava, já estavam os meus tios todos lá esperando. Minha tia, os meus tios, se não estivessem viajando também, estavam lá, porque geralmente era final de ano, que a gente juntava as férias, né? E a minha mãe não gosta de frio, então nunca que ela iria fazer nas férias de julho. Então ela sempre programava de ir no final do ano. Mas aí ‘o’ parente, não. A gente ficava na casa da minha avó, minha avó fazia comida que a gente gostava, meu avô jogava baralho. Ah, todos! Não tem um principal. Não vou me comprometer. (risos) Aí depois a gente ficava, lembro que a gente ficava algumas vezes no Natal na minha avó e depois ia para a minha nonna no Ano Novo ou depois do Ano Novo e passava uma semana. E aí lá, sempre a minha mãe gostava de visitar a família dela, todos os tios, aí tirava um dia para nós irmos no interiorzinho lá. Pegava o carro e ia em cada tio. Aí meu nonninho ainda era vivo, o meu bisavô - eu chamo de nonninho - era vivo ainda na época, a gente ia sempre. Então todo ano tinha esse ritual aí de visita da família. Era bom.
P1 - Como é que vocês comemoravam o Natal e o Ano Novo?
R - A gente comemorava como ainda comemora, fazendo a ceia de véspera e no outro dia um almoço com as pessoas que não foram ou ia pra casa de outro parente.
P1 - E na casa… isso na casa da família do seu pai, é isso?
R - Era mais na casa da família do meu pai, que é mais gente. [A família] do meu pai é maior.
P1 - Entendi. E tem alguma comida desses dias que você lembra bastante, assim, que era feito?
R - Ah, falar da casa da minha avó é falar do pão, da nega maluca que ela faz metade da cobertura de um jeito e metade de outro para agradar os netos. Então tem nego que gosta de cobertura mais durinha, tem neto que gosta de cobertura mole. Aí ela faz o tabuleiro metade metade. Acho que é isso. Talvez, da casa da minha nonna, sopa de agnolini e buchada.
P1 - Você acha… é muito diferente a família da sua mãe e do seu pai? Ou não?
R - São, são bem diferentes. São duas famílias do Sul, de imigrantes, né, descendentes de imigrantes, mas a família do meu pai é maior, então, são cinco filhos e família da minha mãe, apenas três. Eu fui a primeira neta dos dois lados e os meus tios, do lado da minha mãe, demoraram mais a ter filhos, então eu era só a única neta por muitos anos, até o meu irmão nascer e ficar só nós dois. Então, assim, era uma família menor. E depois eles foram para o Pará. Eles foram para o Pará antes. Então, quando a gente ia algumas vezes, os meus tios já moravam no Pará. Então a comemoração em torno de festas, essas coisas, ficava mais por conta do lado do meu pai mesmo.
P1 - E a sua… desculpa, avó materna?
R - Depois que os dois filhos foram para o Pará, eles ficaram. Mas quando a minha tia estava grávida, acho que do segundo filho, do Mateus, ela foi a passeio e aí ela convenceu a eles a se mudarem. E aí eles foram também, os meus nonnos acabaram indo pro Pará. Meu nonno já é falecido, mas a minha nonna ainda mora lá no Pará. Na mesma cidade, Rondon do Pará, porque os meus tios ficaram lá. Meus pais se mudaram, foram para Moju, mas os meus tios ficaram, meu tio e minha tia, com o escritório dos meus pais, que acabou ficando pra eles. Assim, eles compraram e hoje eles seguem nesse ramo. E a minha nonna fica lá com eles.
P1 - À medida em que você foi crescendo, antes ainda do internato, você pensava em alguma profissão? Já tinha um sonho?
R - Eu acho que eu sempre falei que eu ia ser advogada. Eu não me lembro de ter… a não ser quando era criança: “Ah, quero ser bailarina”, não tinha balé na cidade. (risos) Mas quando me entendo, assim, de que “Ah, vou fazer alguma coisa”, eu falava que queria ser advogada. Queria fazer Direito.
P1 - Mas por que você acha?
R - Não sei. Acho que é porque eu gostava de ler, porque eu achava que era bonito. Depois, quando eu estava no ensino médio, fiz aqueles testes de aptidão e acho que ia me dar bem, ia ser feliz na profissão.
P1 - E me descreve um pouquinho melhor como é que essa casa de madeira que você fala que você tem boas lembranças. Se eu fosse entrar nela, assim, como é que seria?
R - Ela tem uma cerquinha de madeira, a altura que dá aqui mais ou menos, uma porta… era toda cercada com essa cerquinha, uma área rodeada, aí tem uma porta que dá para a sala de entrada. E tinha uma coisa que minha mãe não gostava, que era um quarto bem que dava para a sala. Então, falava: “Nossa, esse quarto não tem privacidade nenhuma”. E era o quarto deles. Aí depois tinha um corredor onde ficava a mesa de jantar, um banheiro para esse lado e um quarto para esse lado. E o quarto também dava pra sala de jantar. No fundo, era a cozinha. A cozinha era, tinha um degrauzinho para descer. Era a única parte da casa que tinha esse degrauzinho. Mais para frente, eles aumentaram e fizeram uma área no fundo também ali. O quintal é enorme. Enorme! Pra você ter ideia do quintal: tinha três jaqueiras, uma mangueira, um pé de caju. O quintal era muito grande. E dava para uma rua que era perto do hospital da cidade e era bem tranquila assim, mas minha mãe não me deixava brincar na rua. Ai os amiguinhos tinham que brincar comigo lá. E eles gostaram, porque [o quintal] é enorme, muito bom de brincar. Mas a minha vontade era brincar na rua, como todo mundo.
P1 - E vocês traziam eles para dentro e vocês brincavam do quê?
R - Ah, daí o céu era o limite. O quintal enorme, a gente fazia a casinha, brincava de guerrinha. Ia para casa brincar de boneca, de escritório. Uma vez meu pai estava construindo alguma coisa e tinha um monte de tijolo empilhado lá, para a construção de não sei o quê. E aí eu espalhei os tijolos para fazer uma casa. Aí todo mundo foi embora e eu tive que botar os tijolos de volta, sozinha. Não foi legal. (risos)
P1 - O seu pai e a sua mãe são bravos, são tranquilos? Como é que eles são?
R - O meu pai era mais na dele, não aparecia tanto a figura, a não ser quando ele queria mostrar, então ele entrava em ação, e aí ele era mais autoritário. A minha mãe, comigo, sempre foi… eu achava que ela era brava. Hoje, eu vendo, é o jeito dela. Mas eu criança, olhando a minha mãe, achava ela muito séria e brava. Hoje eu vejo que não é. Até porque talvez ela… vendo ela com meus irmãos, eu, como sou mais velha, eu vejo que ela não é. Ela é bem de boa mesmo assim. Mas eu, na minha ideia de criança, eu acho que, como eu fui, sempre fui uma criança muito tranquila, teve poucos momentos de fúria dos meus pais.
P1 - Agora, você me falou que você foi parar no internato em Goiás, é isso? Em Goiânia. Como é que começou essa história?
R - Eu estava já na oitava série, minha mãe achava que o estudo não era bom na cidade, que eu já ia para o segundo grau. “Ah, como é que a minha filha vai fazer o segundo grau aqui? Depois vai fazer o vestibular? Não tem como”. E realmente, nos últimos anos, na escola, o ensino era realmente muito fraco. Tinha vezes, de nós, alunos, a gente ensinar alguma coisa. Eu me lembro de uma situação que estava eu e uma amiga, Nayara, e a professora falava que não sabia fazer uma equação de matemática, e gente falou: “A gente sabe”, a gente foi no quadro e fez. E aí eu lembro que a minha mãe e a mãe dela, que também era preocupada com isso, ficaram indignadas. Assim: “Nossa, como?”. Aí a mãe dessa minha amiga, [que] era minha amiga desde pequenininha, assim, a gente foi… eu acho que ela entrou na escola na segunda série. Na primeira série, sei lá. A gente era bem piticas, muito piticas. Uma dormia na casa da outra e tal. E a mãe dela falou: “Meu, vou botar a Nayara para estudar em Goiânia”, porque eles tinham parentes. E a minha mãe: “Não, eu não vou botar pra estudar em nenhum parente, até porque os parentes moram no Sul e numa cidade do interior, vou trocar seis por meia dúzia”. Ela falou: “Nossa, o que eu posso fazer? Alugar um apartamento para morar sozinha com quatorze anos é muito…”, aí ela conta que uma vez ela recebeu uma visita de um cliente do escritório que falou do internato, ele tinha estudado no internato. E no Pará tem um internato, que é o antigo internato Adventista, só que eles não... Era no meio da Transamazônica, era um negócio muito difícil de chegar. Quando era época de chuva, ninguém saía, um negócio assim meio... a ideia era que eu fosse estudar nesse internato, só que ela achou que, por mais que em quilometragem fosse mais perto, seria pior o acesso. E aí eu acabei indo pro outro meio que em cima da hora, tanto que as aulas já tinham começado quando eu cheguei.
P1 - Qual que é o nome dele?
R - É Iabc (Instituto Adventista Brasil Central).
P1 - Iabc?
R - É. Fica perto de Anápolis. Fica no caminho para Brasília, perto de… ah, o nome daquela cidade, acho que é até turística, do Goiás. Pirenópolis! Tinha alunos de Pirenópolis lá, que eles chamavam de, dos externos, aí um ônibus com _____ de Pirenópolis e tal, para essa escola.
P1 - E o que você pensou disso, de estudar no internato?
R - Ai, eu odiei. Falei: “Nossa, não. Não, não, não”.
P1 - Mas você é católico, era católica na época?
R - Sim, e falei: “Nossa, não quero, não quero. Não quero, não quero!”. E as roupas? Nossa! Aí, na época, adolescente usava roupas desse tamanho (pequeno), né, aí tinha que usar uma saias aqui (tamanho grande). Nossa, eu não tinha nenhuma. Eu lembro que a gente foi na costureira, assim, para mandar fazer umas roupas em cima da hora. E eu achava aquilo tudo horrível. Falei: “Não”. E sempre, pra mim, foi muito confortável e nunca passei por mudança de escola, então isso era uma coisa nova. Eu era muito tímida. Falei: “Como vou chegar agora num lugar que as pessoas já estão muito animadas, já se conhecem… e eu vou chegar”, foi ruim. Eu lembro que eu fui meio contrariada, mas tinha que ir, né, eu não ia me revoltar, sei lá. O que iria fazer, né? (risos) Era minha única opção. Mas eu gostei! Eu entrei chorando… eu falava que, eu conto que eu entrei chorando e saí chorando, porque fiz muitas amizades lá. No primeiro dia, foi uma coincidência enorme. A gente chegou e a preceptora do dormitório feminino olhou a ficha e falou: “Nossa, Tillwitz. Eu tenho um tio [que é] Tillwitz”. Aí meu pai falou: “Não, mas deve ser meu parente, porque eu não conheço nenhuma outra família de Tillwitz”, “Ah, não, deve ser do interiorzinho do Paraná”. Meu pai falou: “Então, eu sou do interiorzinho do Paraná. Bom Jesus”, “É, Bom Jesus”, “Nossa, quem é seu tio?”. O tio dela era casado… tipo, a irmã da mãe dela é casada com o irmão do meu pai. Aí eles se consideraram meio parentes: “Ah, então, a gente…”. E, nossa, ela, então, me tratava como sobrinha. Era muito bom, porque desde o início ela me adotou, né? Cleci. Aí ela me levava para a casa dela no final de semana, o marido era gaúcho também, fazia churrasco. Porque o internato era vegetariano… não… é, vegetariano. Aí não tinha carne.
P1 - Era um internato de que…
R - É Adventista do Sétimo Dia. Mas o internato é vegetariano por… não sei. Não lembro, não sei, mas os professores não precisam ser, né? Então, nas casas deles, eles comem o que eles querem. Aí eles me convidaram para a casa deles, que era numa vilinha perto. Aí eu ia. Muito bom! (risos) Então teve esse, eu tive esse apoio. Eu tive uma sorte grande. E ela me colocou num quarto com meninas muito legais, que já eram amigas entre elas, elas eram amigas de infância e eram do Pará também, só que na capital. Primeiro foi um estranhamento, porque elas não queriam mais ninguém no quarto, elas já estavam lá há algum tempo e não queriam mais ninguém, mas depois a gente se enturmou e foi muito bom, ficamos juntas até o final, até o último ano.
P1 - Quantas eram? Suas amigas.
R - Eram três, aí uma saiu, entrou a irmã da outra e ficou até o final.
P1 - Você ficou o que, três anos?
R - Três Anos.
P1 - E como é que era o dia a dia? Como é que era a rotina de vocês?
R - Começava cedo. Acordando, colocava uma música e aí acordava todo mundo para ir para um culto, que era bem cedinho, antes do café da manhã. Era um culto rapidinho, cantavam uns três hinos e ia pro café da manhã. Aí a gente voltava para o quarto, escovava os dentes, se arrumava e ia pra escola, que era de manhã. Todo mundo estudava de manhã. E à tarde [era] livre, fazia o que quisesse. Aí à noite, antes do jantar, tinha um outro culto. Aí jantava, podia ir para a biblioteca, podia fazer aula de música, muitos deles faziam. E final de semana, como são adventistas, no final de semana tem culto. E o domingo era livre, assim, de assistir filme, quadra, esporte, ir para a casa de um convidado.
P1 - E era só meninas?
R - Não. O internato é misto, mas dormitórios separados. Mas nas salas de aula ou na interação do resto, era misto. Só pra ficar… a convivência era mista, mas, por exemplo, vai estudar e tem que ficar no dormitório feminino, então não tem menino. Era assim.
P1 - E durante todo esse tempo no internato, teve alguma história que aconteceu e que te marcou?
R - Tenho muitas histórias do internato, sim. Como falei, eu cheguei uma menina muito tímida, que tive a vida muito confortável, assim, de não ter esses incômodos da vida, de ter que fazer mudanças. Minha mudança foi pequenininha, pro Pará, e permaneci na mesma escola. E quando eu cheguei, eu acho que eu fui me enturmando ali, aí você começa a pegar uma certa intimidade. E adolescente quer fazer alguma coisa errada, né? A gente não gostava de acordar de manhã, aí colava cadeado, porque as monitoras tinham cadeado para abrir o negócio, para ligar a luz e tocar a música. A gente colava o cadeado com Super Bonder para elas não conseguirem. Sei lá, soltava uma bomba no meio da noite. Essas coisas assim, adolescente.
P1 - Caramba, no internato?
R - Contrabandeava comida que não podia. Por exemplo, não podia carne, então uma lata de sardinha era como se fosse uma picanha e dividia para setecentas pessoas. Assim, chamava o outro quarto. Aí fazia miojo no ferro. Tirava o ferro, botava num banquinho, aí cozinhava miojo ali naquele ferro e jogava… nossa! Jogava aquela sardinha dentro com ketchup e maionese, aquela gororoba e aí dividia com uma galera, porque, nossa, parecia que estava comendo uma iguaria, né? Uma lata de sardinha. Coca Cola, que também não podia, a gente levava. Esses pequenos delitos. (risos)
P1 - E você nessa época começou a namorar ou não, a flertar? Como é que foi?
R - Numa dessas vezes que eu… minha mãe me levava para casa, ou nos feriados longos… e nas férias, é claro. E aí, num desses feriados longos, que era o meu aniversário de quinze anos, eu encontrei com meu coleguinha, que era meu coleguinha do inglês da época, assim, há uns… quando a gente tinha, sei lá, doze e treze anos. E ele me mandou um recado pela minha prima, que estava a fim de mim. Só como ele pegava muito no meu pé, eu falei: “Mentira, não é verdade”, mas eu gostava dele. E aí, quando a gente voltou, eu já com quase quinze anos, eu encontrei com ele na festa de Halloween, que seria no dia do meu aniversário. E aí ele veio falar comigo. Aí ele falou: “Ah, não sei o que”, puxou um papo. E aí eu falei: “Ah, meu, você veio falar comigo pra perguntar essas coisas”, né, tipo. Aí ele: “Você quer ir lá para estacionamento?”. Falei: “Quero!”, (risos) e sei que demorou. E aí esse, hoje, é meu marido.
P1 - Seu marido hoje?
R - Desse primeiro beijo lá no estacionamento, escondido, é o pai das minhas filhas, meu marido.
P1 - Qual o nome dele?
R - Gustavo.
P1 - Vou voltar um pouquinho. Você conheceu ele no inglês?
R - No inglês. Reprovado! Porque ele não gostava de fazer inglês. Hoje faz no Duolingo, mas ele não gostava de fazer inglês e a mãe querendo que fizesse, porque achava que era importante, colocou. Ele falou: “Não vou fazer. Bom, não faço nada e aí minha mãe me tira do inglês”. Só que não. Minha sogra, muito esperta que era, falou: “Eu captei vossa mensagem. Você, com esse livro aqui em branco. Não, você não vai sair. Você vai ficar”. Só que aí ele ficou reprovado. Eu era uma turma a menos, porque era um ano mais nova, fiquei na mesma turma que ele. E o irmão dele, que era um ano mais novo que eu, era muito geninho, assim, como o inglês era pequeno, eles acabaram fazendo uma turma só. Aí era o irmão que foi promovido, o irmão que foi rebaixado e a minha turma. A gente se conheceu no Inglês.
P1 - E aí você foi para o internato, é isso?
R - Aí isso, se passou um ano, ele foi estudar fora, porque mais velho do que eu, a mãe também nessa mesma preocupação de que não podia continuar na cidade, mandou ele estudar em Belém. Então ele ficou um ano fora. Ele já estava no seu segundo ano estudando fora quando a gente se reencontrou nesse feriado.
P1 - Então nem você nem ele estavam na cidade.
R - Não, a gente só estava de passeio, de feriado.
P1 - E ele já gostava de você na época do inglês?
R - Segundo o recado que veio da minha prima. (risos)
P1 - Entendi. E você gostava dele já nessa época?
R - Já ficava de olho nele desde antes do inglês, mas não sabia quem era, porque ele era bonitinho. Ele sempre fazia projetos de ciências muito interessantes. Aí lembro de uma vez que a gente estava no projeto de ciências e eu falei para as meninas, falei: “Vamos lá ver o menininho apresentando, vamos”, “Mas a gente já viu”, “Ele é bonitinho, vamos ver de novo”. Ele usava aparelho e era o único menino da cidade que usava aquele aparelho… acho que nem usa mais, que era por fora assim. Ele conta que era tipo um ponto turístico da cidade. As pessoas falavam: “Isso não atrai raio?”. Aí eu achava bonitinho: “Ai, quero ver ele explicando”, era um trenzinho sobre salinização. E ele explicando sobre a salinização e eu lá.
P1 - E quando você… como você teve essa férias longas… foi o quê? Foi em janeiro?
R - Não, foi pro meu aniversário. De Finados. Aí a gente se encontrou, a gente combinou que ia namorar.
P1 - Já combinou?
R - Já. Pronto, vamos namorar. E à distância. Então, não tinha internet, celular, não tinha. Era carta. Cartinha e uma ligação uma vez por semana, e se encontrava nas férias.
P1 - Ele em Belém e você em...?
R - No internato. Aí ele fez vestibular depois. Depois eu [fiz]. Aí, quando eu já estava no vestibular, eu fui morar em Belém. Aí a gente ficou junto.
P1 - Esse período das cartas então foi o que, um ano e poucos, dois anos?
R - Dois anos. Foi do segundo ou terceiro ano da escola.
P1 - E como eram essas cartas? Você guardou elas?
R - Tenho. Tenho, tá na casa da minha mãe. Ah, contava [que] tinha feito prova de não sei o que, tava estudando para nanana, brigou com o irmão. Ah, sei lá, “minha mãe me contou que viu o seu pai no banco”. Essas coisas. “Te amo! Tchau, até a próxima”.
P1 - E demorava muito para chegar?
R - Demorava. Demorava, sei lá, uma semana. Aí lembro que inventaram um negócio, que me contaram que tinha carta social, que era um centavo o selo. Essa que demorava. Essa daí, achei melhor pagar cinquenta centavos e demorar dois dias a menos.
P1 - Que era bastante dinheiro na época.
R - É! Era bastante dinheiro. Com um centavo comprava cem, né? E eu estava no internato, então não tinha correio. Eu tinha que entregar para alguém levar no correio e dependia dessa pessoa, desse malote, sei lá, eles não iam todo dia, né? Ainda demorava mais por isso. Ou quando eu ia em Anápolis, aí eu mesma enviava.
P1 - E vocês foram mantendo a relação assim então.
R - Aí quando eu fui morar em Belém, foi a nossa época auge, né, de morar junto. Morar junto assim, morar na mesma cidade. Aí o meu irmão foi também estudar em Belém, os irmãos dele também estudavam em Belém. A gente acabou morando no mesmo prédio. Aí era uma farra, porque a gente estava o tempo todo juntos, os cinco. O meu irmão era grudado com o irmão dele, a irmã dele era grudada comigo, aí a gente vivia junto, os cinco. Até que ele não passou no vestibular em Belém e foi estudar no Tocantins.
P1 - E o que é que ele prestou…?
R - Medicina. Aí ele foi, aí foram seis anos da faculdade. E à distância, de novo.
P1 - E você passou em Belém?
R - Eu passei em Belém.
P1 - Em Direito?
R - Direito. Aí fiquei por causa da faculdade e ele ficou seis anos, da Medicina, no Tocantins.
P1 - E namorando?
R - Namorando. Só que daí já estava melhor, já tinha começado a internet. Discada, mas tinha. A gente comprou um computador. Eu lembro que a gente comprou… como ele passou no vestibular e a mãe dele, putz, tinha que bancar uma casa em Belém, tinha que bancar uma casa no Tocantins, por causa dos irmãos que ainda estavam em Belém, ela falou: “Não vou comprar computador, não. Não vou te dar celular, não sei o quê”. Eu já estava na faculdade e estagiando, falei: “Não, vamos comprar”. A gente comprou parcelado em 24 meses, não sei o que, faz um crediário. A gente comprou o computador, aí a gente conseguia se falar na webcam, não sei o que, no Messenger.
P1 - Isso é o que, 2003?
R - Foi 2003, eu acho que é. Isso mesmo.
P1 - E como é que foi a faculdade para você?
R - Foi boa, gostei da época da faculdade. Época boa.
P1 - Você fez a federal lá?
R - Sim, fiz na Ufpa.
P1 - E você ficou quanto tempo lá? Cinco anos, quatro anos?
R - Cinco anos. Eu morei em Belém acho que sete e fiquei cinco anos na faculdade. Quando terminei, eu fui trabalhar no Maranhão.
P1 - E o Gustavo à distância, estava se formando em Medicina. Como estava sendo para ele na época?
R - O último ano dele foi bem atípico. Ele conseguiu fazer um internato… não é um internato. Acho que é internato rural que eles chamam, então podia ir para outra cidade, que não fosse a cidade da faculdade, aí ele foi pro Maranhão também. Como eu já estava no Maranhão, que já estava formada, estava trabalhando, a gente conseguiu, assim, ficar mais junto, porque aí ele… não era na mesma cidade, mas era mais perto. Aí eu tinha carro, né, ia e voltava. Eu acho que a gente tem uma dimensão de quilômetros diferente quando a gente vai para lá, porque lá tudo é mais longe. Da nossa cidade até Belém são seiscentos quilômetros. Para a gente se ver era… não me lembro quantos quilômetros é de Araguaína até Belém, mas, sei lá, deve ser uns setecentos, oitocentos quilômetros. A gente ia de final de semana. Então assim, fazia bate volta, né? E hoje, quando a gente falava: “Ah, vamos ali”, “Nossa, é duzentos quilômetros”. É outra percepção, assim, da distância. Aí quando ele foi para o Maranhão, só da gente falar: “Nossa, a gente está no mesmo estado!”. Por mais que era longe, eu acho que, acho que devia dar uns quatrocentos quilômetros, onde ele trabalhava e onde eu trabalhava, aí a gente se via todo final de semana. Todo final de semana ele estava lá. Aí foi… acho que quando começou assim, a gente começou a ficar mais junto. Já estávamos… e ficamos noivos e tal.
P1 - Sempre pensaram em se casar e ter filhos, ou não?
R - Sim. A gente sempre pensou. Ele queria três, eu queria duas. Aí quando eu tive o primeiro, eu falei: “Agora eu quero três”. Ele: “Agora eu quero dois”. (risos) Aí acabamos fechando no dois.
P1 - E como é que ele é? O que te chamou atenção nele, quando vocês eram pequenos?
R - Ah, primeiro eu achei ele bonitinho. Depois, eu sabia que ele era inteligente. Eu não sei, eu acho que o fato dele pegar no meu pé, acho que instigava, sei lá, dá uma curiosidade de saber porque esse menino pegava no meu pé. Tipo filme… falo para ele que é o filme do… acho que é O Pestinha, que ele vai chegar para a menina e ele pensa, na cabeça dele, que ele vai elogiar a menina, mas ele xinga a menina. E era assim. Eu falo: “Nossa, você só me acabava. Na hora que eu chegava, você falava da minha roupa, você detonava e depois manda um recado, como é que eu ia acreditar que o recado era verdadeiro?”. Aí ele diz que quando eu não respondia o recado, aí que ele piorou. Ele falou: “Não quer nada comigo, então agora lascou. Agora que eu vou pegar no pé dela mesmo”, mas no final deu certo. (risos) Tá dando.
P1 - E ele se formou também, certo? E aí vocês foram morar juntos ou…?
R - Então, aí nesse processo, o que aconteceu? Ele se formou e passou na residência em São Paulo. E a gente já estava com um casamento marcado no Maranhão, com a igreja, com vestido, com não sei o quê. Só que a residência era dois anos, então: “Beleza, só mais dois anos e você volta, né?”. Quando ele… ele tinha acabado de se mudar para cá, ele mudou em janeiro, quando foi em fevereiro, perto do carnaval, ele recebeu uma ligação da mãe, ela só falou assim: “Meu filho, eu sofri um acidente e eu acho que é muito grave”. E aí ele falou: “Você está onde?”, “Eu estou no Pará, não sei o quê”. E aí a pessoa que a socorreu, pegou o celular e falou: “Olha, ela está perto de Dom Eliseu, no Pará, nanana”. Aí ele, daqui, recém formado, com a ajuda dos primos que já estavam aqui também, fazendo residência também, começaram a conversar com o médico que recebeu ela, viram que a situação realmente era muito grave. No dia, era um domingo, eu estava numa cidade e minha cunhada estava em outra, o meu cunhado em outra e ele aqui, e a minha sogra na estrada e o meu sogro a gente não tinha notícia. E aí ele conseguiu levar a minha sogra. Não pediu ambulância. Se fosse de ambulância, ia demorar muito, as ambulâncias são velhas, horríveis e… para levar até a cidade onde eu morava, que era a cidade que a minha cunhada mora, que é em Imperatriz, no Maranhão, que era a cidade que tinha mais suporte para que pudesse operá-la. E pediu para um amigo, que, por coincidência, morava nessa cidadezinha. E o médico foi junto, dentro da caminhonete. Uma caminhonete. Levaram ela no soro e tal. Chegou lá, ela foi operada às pressas. No outro dia, ele chegou, comprou uma passagem, e aí o médico, de lá mesmo, falou: “Gustavo, você está em São Paulo, cara. Leva sua mãe. Se ela ficar aqui, não vai rolar. Vai entrar no carnaval, esse hospital não tem tomografia para saber se a anastomose, a costura lá do intestino, deu certo e tal. E aí foi, nós contactamos uma via aérea. Aquela coisa que você acha assim que é só ligar, né: “Tem aéreo, por favor?”, não, demora, porque é lá no interior do Maranhão. Então, até todo esse processo de você contratar e chegar, isso demora. Aí ela veio e, realmente, a situação era muito grave, chegou aqui, reabordaram, outras cirurgias e tudo mais. Ela ficou meses internada. E aí, nesse meio tempo, eu falei: “Eu vou para aí” e aí eu vim para ajudar a cuidar dela. E aí eu fui ficando. Eu tinha uma sócia no escritório e eu falei: “Aguenta as pontas aí”. Até que um dia eu voltei e falei: “Eu não vou voltar. Vou ficar lá”. Aí, nesse meio tempo, ela descobriu o câncer de mama e então ela acabou ficando, assim, o que era para ser o tratamento de um acidente automobilístico, acabou juntando tudo para um tratamento de um câncer de mama. E aí decorreram alguns anos, assim, que foi a época que eu vim.
P1 - E vocês desmarcaram o casamento no Maranhão, então foi isso?
R - Sim, desmarcamos o casamento no Maranhão. Viemos morar juntos numa república de outros médicos. Era uma galera [que] morava no mesmo apartamento. E aí, tamo aí, nunca concretizamos o casamento, não.
P1 - Ah, não teve a cerimônia?
R - Não.
P1 - Vocês pagaram lá?
R - Não, acabamos não. Só tinha umas reservas, mas não tinha…
P1 - Então vocês não celebraram o casamento, mas vocês são casados no papel ou no Estado?
R - A gente fala que “amigado casado é”. Ah, pra quê? Tem duas filhas já, está mais do que casado. Não precisa, não.
P1 - E a sua sogra então ficou alguns anos no hospital, basicamente. É isso?
R - Ela teve alta depois de… ela ficou muito tempo internada. O intestino não abria e aquela coisa de operar asepxia, nanana. Coisa de hospital, né? E quando ela teve alta, já foi [direto] para o tratamento do câncer. Meio que concomitante. Então essa vivência de hospital era muito intensa pra gente. Ele no auge da residência, trezentos plantões e tendo que sobreviver em São Paulo, então, além dos plantões, tinha que fazer plantões para pagar as contas, e a mãe com câncer e o tratamento era aqui. E ela, as coisas dela eram lá, no Pará, e ela ficou muito tempo aqui. Até que quando estabilizou um pouco ela conseguiu ficar indo e voltando e voltando. Ela ficava com a gente. Com a gente, com a minha cunhada, em Imperatriz, que é uma cidade maior. Dava pra ela fazer uma parte do tratamento lá também.
P1 - E vocês se mudaram para São Paulo em que ano?
R - 2009.
P1 - E você achou muito diferente aqui?
R - Nossa, tudo, né? Tudo é diferente. É outra realidade São Paulo, pra gente. Eu não conhecia São Paulo, nunca tinha vindo. A gente conhecia, assim, de passar nas outras cidades, como eu te falei, Belém-Brasília até o Sul. Então, mas sei lá, não era São Paulo capital. E aí é tudo muito diferente. Imagina, dirigir em São Paulo. Dirigir em Belém? Não, dirigir em São Paulo. Aí logo ele, poucos meses que eu estava aqui, eu acho que, sei lá, no meio dos dois que eu estava aqui, veio uma tia que era muito católica, que ama Aparecida e ele falou: “Ah, a Germaine te leva”. Eu falei: “Eu? Pegar estrada? Não!”,”Não, é tranquilo, bota aí no… - na época era GPS que a gente comprava na 25 de Março, aquele GPS - esse GPS aí te leva”. O negócio perdia o sinal. Nossa, gente, meu Deus! Mas chegava, né?
P1 - Agora, você começou a trabalhar aqui também?
R - Não, desde o início, quando eu vim, a ideia era que eu fosse prestar para concurso. E aí então eu fiquei um tempo com a minha sogra, me matriculei no cursinho para concurso e fazia concursos. Ficava estudando, fazendo concurso e tal. Quando estava no auge dos meus estudos, digamos assim, eu engravidei da Laura. Nesse tempo, foi quando a minha sogra piorou e a Laurinha pequena. A minha sogra já em fase final, em casa e acamada. Cuidadora e toda essa parte. Quando eu fui retornar… falei: “Agora estabilizou. A Laura já tá sentadinha, já tá comendo, vou retornar pro cursinho”, eu descobri que estava grávida de novo. “Ah, espera, agora vou esperar a outra ter dois anos.” Aí, nesse meio tempo, minha sogra faleceu, nós nos mudamos para Mogi das Cruzes, eu entrei no mestrado, comecei a retomar a minha minha vida profissional e descobri um câncer. E aí foram vindo as sequências de coisas que impediam e tal. Aí entendemos que… “Deixa quieto e vai.”
P1 - Como é que foi o dia do nascimento da Laura?
R - Foi legal, porque a médica estava… eu tinha vontade de ter parto normal e a médica estava achando que ela era grande demais, um bebê muito grande para uma mãe que talvez não consiga ter um bebê tão grande. Aquelas previsões, né? Na época, eu não entendia nada sobre, não lia. E o que o Gustavo aprendeu na faculdade sobre o sistema obstétrico é aquele horror, né, que o parto normal é horrível, que o parto normal… então tinha toda essa coisa. Que tivemos um pré natal maravilhoso, gestação ótima. Lá pro final, ela falou: “Nossa, esse bebê é grande, não sei o que, não dá pra esperar. Vamos marcar?”, “Nossa, mas eu quero parto normal”, “Não, mas a gente faz uma indução do parto, não sei o quê”. Estava marcada Laura para nascer no dia 16 de julho de 2012. Minha mãe chegou, falei: “Nossa, oportunidades da minha mãe fazer os exames dela. Vou marcar tudo para ela aproveitar essa viagem para São Paulo para fazer um check-up”. Marquei uma ressonância magnética de mamas para a minha mãe. Loucura. Que é 24 horas. Eram… não, aí ela ainda falou assim: “Vamos marcar na segunda feira que aí o Gustavo tem a carteira assinada no hospital, ele vai poder tirar a licença paternidade”. Tinha todo um planejamento de perguntar para o bebé se ele queria nascer ou não, né? Aí a gente estava esperando a minha mãe fazer essa ressonância magnética às onze horas da noite. O Gustavo estava cheio de tinta, assim, porque tinha pintado o banheiro, o teto do banheiro, para esperar, as visitas iam chegar, e fomos levar minha mãe. E aí eu lembro que eu sentei, falei: “Ai Gustavo, queria tanto que a Laura quisesse nascer, que ela desse o sinal que ela quer nascer”. Aí, quando eu entrei no carro, sem brincadeira, a bolsa estourou. Eu falei: “Gustavo! Eu estou toda molhada e não fiz xixi, não sei o quê”. Aí minha mãe: “Meu Deus! É a bolsa que estourou!”. Isso já [era] meia noite e alguma coisa. Ele já queria sair: “Partiu hospital”. Eu falei: “Não, cara, dá tempo de buscar as coisas. Não vou para a maternidade sem a cobrinha da porta”, né, aquela ocupação. Aí a gente foi e ainda pegamos as coisas, fomos, ela nasceu 05h45 da manhã.
P1 - Parto normal no fim?
R - Parto normal. No dia que estava marcado. Foi muito minha menina. (risos)
P1 - E como é que foi os primeiros dias dela, as primeiras semanas?
R - Foi muito tranquilo. A minha mãe ficou comigo acho que uns quinze dias, depois a minha sogra chegou. Ela estava bem na época e me ajudou muito. Quando minha mãe foi embora, foi quando ela chegou. E aí eu lembro que foi uma fase, assim, dela pequenininha, muito boa, que a gente morava no apartamento bem pequenininho e quando eu acordava, minha sogra já tinha feito, ah, sei lá, limpado o apartamento. Me ajudava, lavava roupa e eu ficava por conta de cuidar da neném. Foi uma fase muito boa, dela pequenininha. Ela era um bebezinho tranquilo também.
P1 - Não chorava muito?
R - Não. Ela era meio chata pra dormir assim. Mas eu não sei, eu não… ela fica na boa. Ela não é… “Isso aqui que é o que tem pra hoje? Então tá, bora ver isso aqui.”
P1 - E você acha que alguma coisa mudou na sua vida depois que a Laura nasceu, que você virou mãe? Na sua cabeça?
R - Para começar, eu pensei: “Eu preciso achar outras mães, um grupo”, aí comecei a pesquisar na internet, comecei a ver sobre partos. Aí eu já vi: “Poxa, eu tive foi sorte. Esse parto podia não ter dado certo. Deu do jeito que eu queria, mas poderia não ter dado”. E aí eu comecei a mudar assim, questões de prioridades, tanto eu, como o Gustavo: “O que a gente quer para nossa vida? Quais são as prioridades? A gente quer mesmo ficar em São Paulo? Essa vida louca. Não sei o quê”. Isso, a mãe dele ainda estava com a gente, né, quando a Laura… a Laura com cinco meses, foi quando ela teve a progressão de fase final da doença. A gente saiu e tinha férias de uma semana da residência e nessa uma semana a gente achou um apartamento maior, nos mudamos e… porque a gente sabia o que vinha pela frente, então a gente precisava de um apartamento grande, porque a família de longe vinha visitar, a gente precisava de uma cuidadora, então a gente… nesse meio tempo, né? Mas com bebê pequeno, a gente começou a ver as nossas prioridades da vida, o que a gente queria. As nossas vontades, assim, de vida. Porque você… até, pelo menos, pra gente: antes, você pensa, até pensa, mas quando é concreto, você tem um “o que vamos fazer a partir de agora?”, né?
P1 - Bem perto da Laura nascer, a sua sogra faleceu. Foi isso?
R - Não, ela estava perto da Sara nascer. Engravidei da Sara, a Laura tinha oito meses. Foi um susto para a gente. E aí a minha sogra faleceu no dia 9 de agosto, a Sara nasceu em janeiro. Eu estava grávida quando... eu e minha cunhada. Ela teve dois netos que ela viu de barriga.
P1 - E por que Laura e Sara?
R - Laura, não era Laura, era Larissa. E era um nome que eu gostava, a gente tinha escolhido: “Ah, se um dia a gente tiver um filho, vai ser Heitor e Larissa”. Um dia, minha sogra falou: “Nossa, eu não gosto de Larissa”. [Espero] que não tenha nenhuma Larissa aqui. (risos) “Eu não gosto de Larissa”. Aí eu falei: “Ai, de quem você gosta?”, “Eu gosto de Laura”, “Pois pronto, então o dia que eu engravidar, se for uma menina, Laura. Combinado?”, “Combinado”. E foi assim. E Sara,
nós não tínhamos outro nome de menina e aí engravidei de outra menina, então ficou pra lá. E aí a gente acha bonito Cecília: “Nossa, Cecília. Ah, Cecília!”, a gente chamava de Cecília. Aí a minha cunhada falou pra mim: “Ai, Cecília. Você liga para significado de nome?”. Falei: “Não, ligo não”. Aí ela: “Ah tá”. Aí eu falei: “Agora eu ligo, quero saber o por quê. Fala aí”. Ela falou: “É que Cecília significa cego”, “Ah, não quero mais esse nome, não”. Não, aí a gente saiu à procura de outro nome que fosse pequeno, queria um nome pequeno, e veio Sara. Aí eu falei “Sara” e ele: “Ah, gostei!”. Pronto, aí ficou.
P1 - E eu não perguntei no início da entrevista também, mas por que é Germaine o seu nome? Foi ideia de quem?
R - Que coisa mais bizarra, não sei o porquê, mas a minha mãe disse que não tinha nome, não sabia nem se ia ser menino ou menina, que não sabiam naquela época. Que na hora que nasceu: “Tem nome?”. E aí ela falou: “Tem, Germaine”. Tipo, Ana, Maria? Não, Germaine. Aí o médico falou: “Ah tá”. Aí: “Ah, por quê?”. Ela diz que leu num livro, mas ela não sabe que livro é.
P1 - Não tinha na cidade? Ninguém com esse nome?
R - Não, nunca nunca conheci outro.
P1 - Não conheceu outra, nunca?
R - Na época do Orkut, eu pesquisei lá. Ah, hoje, claro, vai no Google e tem.
P1 - Aí não era questão de parente?
R - Não, foi uma brisa da minha mãe na hora. Na patolândia lá, de mãe.
P1 - Entendi. Então a Laura nasceu em 2012 e a Sara…
R - Em 2014.
P1 - Entendi. Você se mudaram para Mogi por conta da cidade também? É isso?
R - A gente mudou para Mogi por conta dessa coisa de querer uma vida diferente, mais tranquila e tudo mais. A ideia inicial mesmo era vir fazer a residência, ficar um tempo na residência e ir embora para o Pará ou o Maranhão. A gente tinha família. Mas as coisas foram acontecendo aqui, a gente foi gostando de morar aqui, as oportunidades de trabalho foram aparecendo para ele. Eu prestava para concurso e imaginava aqui: como é que eu estudava para o concurso lá no interior. Então falava: “Nossa, a gente vai mudar, para depois mudar de novo?”, porque eu fazia concurso em vários lugares do Brasil. Aí ele falava: “Então vamos ficar por aqui nesse tempo que você vai estudando para o concurso, até você passar num lugar que vai ser pra gente ir”. E isso foi acontecendo. Quando a Sara nasceu, ele falou: “Gê, eu acho que a gente poderia morar num lugar mais tranquilo”. Ele já trabalhava em Mogi, começou a trabalhar em Mogi a convite de um amigo: “Ah, vem fazer uma agenda aqui, talvez você goste” e ele gostou. De uma vez na semana, aumentou para duas, aumentou para três. Não fazia mais sentido, né, [essa ida e vinda de São Paulo]. Ele falou: “Vamos lá visitar, ver se você gosta”. Falei: “Não, bora lá!”. E aí quando a gente chegou no condomínio… a gente morava na Vila Mariana. Vila Mariana não tem um parquinho. Aquela coisa de mãe, né, que eu queria sair, levar as minhas filhas pra brincar. Não tem um parquinho. Chegou no condomínio, cada… andava numa rua, tinha um parquinho: “Ah, quero morar aqui! Vou querer parquinho!”. Hoje nós não vamos mais nos parquinhos, mas foi o que me encantou assim, foi imaginar que as crianças iam ter uma infância legal, morando lá. E realmente, brincam na rua, os amigos, os vizinhos. Realmente é o que a gente imaginava.
P1 - E o seu marido, qual é a especialidade dele?
R - Ele é cardiologista. Ecocardiografista.
P1 - Entendi. Como é que foram os primeiros anos da Laura? Como é que foram os primeiros anos da Sara? Elas se dão bem, ou não?
R - Elas se dão. Elas são muito parceirinhas. Falar delas, eu fico emocionada. (chora) Elas… tudo isso, a gente, passando por um tratamento, né, e elas muito pequenininhas. A Sara tinha dois anos quando eu descobri o câncer. A gente sempre teve na nossa ideia assim… falo “nossa”, porque, como casal, a gente fala, tipo, a gente tenta falar a mesma língua, principalmente com elas, na educação delas e tudo o mais, de não omitir nada para elas, mas que as coisas não fossem cruéis, né? Então, conforme a demanda vai chegando, a gente ia dando as informações. É óbvio que com dois anos de idade uma criança não sabe o que é ter a mãe com câncer, a mãe careca, mas com oito, com nove e dez, que é a idade que elas estão, elas já sabem. Com certeza elas não sabem do jeito que eu sei, do jeito que ele sabe, mas já sabem. E no coraçãozinho delas, na cabeça delas, o medo de perder a mãe já é uma coisa que bate. Eu descobri com os dois anos da Sara, ela era muito pequenininha, então a gente tem mais tempo de vivendo com câncer do que não vivendo com o câncer na infância delas. Mas, no que a gente vê, no que a gente percebe é que elas são crianças felizes. Comparando com outros amiguinhos, comparando com sobrinhos, elas têm as mesmas questões, elas têm as mesmas alegrias, elas têm as mesmas brincadeiras. Então é uma infância que a gente tem conseguido fazê-las viverem de forma bem gostosa, os questionamentos que elas vão tendo e tudo o mais. Acho que tem sido isso.
P1 - E agora mais com essa idade que elas têm, elas também têm te ajudado no dia a dia?
R - Sim, já ajudam. Eu estava até falando sobre isso, que o normal, o mais normal, é sempre a mãe dar colo e elas já me dão. Outro dia eu estava passando mal e vomitando muito e tudo, a Sara tinha que ir pro balé ela falava: “Mãe, eu não quero ir. Queria ficar aqui. Queria te ajudar. Eu tenho medo de perder tempo. Sem você”. E aí a gente chorou, eu e ela, e eu falei: “Filha, a gente vai viver isso. O que tiver que viver. Eu não quero que você deixe de viver as suas coisas, como você não deixaria se eu não tivesse câncer”. Se eu não tivesse, porque todo mundo tem essa incerteza. A incerteza está para todo mundo. Então, do mesmo jeito, o pai, que não tem nenhuma doença grave, do mesmo jeito que elas, a gente não sabe o que vai acontecer amanhã, então a gente não vai deixar de viver coisas que a gente viveria, por causa disso. Mas elas me ajudam muito, acho que têm sido grandes amigas.
P1 - E me conta uma coisa… você gostaria de fazer uma pequena pausa ou a gente pode continuar?
R - Não, pode continuar. Manda ver. (risos)
P1 - Pegar um paninho pra _____.
R - Não, pode continuar.
P1 - Então eu queria que você me contasse como é que foi o processo de descoberta do câncer? Como é que foi, foram os sintomas primeiro?
R - Não. Eu estava desmamado a Sara. A Sara tinha dois aninhos, eu estava no processo de desmame da Sara. Em dezembro de 2015, eu fiz toda aquele check-up e tal, e estava tudo bem. Em fevereiro… só que aí no laudo tinha: “Ah, leite”. Eu estava no processo de desmame. Em fevereiro, eu senti um nódulo e aí falei pro Gustavo: “Olha que esquisito isso aqui no meu peito” e tal. Aí ele falou: “Nossa, esquisito mesmo. Será que ainda é leite empedrado?”, “Ah, não sei”. Aí ele falou: “Marca de fazer um ultrassom logo”, eu fui no mesmo lugar que eu tinha ido da primeira vez. E aí, na hora que ele passou o transdutor, que ele veio para o braço, ele falou assim: “Olha, vou te dar o laudo e você já leva no seu ginecologista”, “Beleza. Ninguém tem câncer na minha família. Tranquilo”. Eu liguei pra ele, falei: “Gustavo, ele falou pra eu levar no ginecologista” e tal. Aí a gente tem outro amigo, que chama Gustavo também, muito amigo, muito amigo. Ficamos grávidas juntos, eu e a esposa dele. Ela fez residência com o Gustavo e ele é ginecologista. Inclusive ele, em algum momento, corria o risco de me ajudar no parto da Sara, se ela nascesse no período do Natal e Ano Novo. E aí o Gustavo falou: “Não, vou ligar para o meu xará, pra saber, pra gente não perder tempo”. Aí o Gustavo falou: “Não Gustavo, não. Não vai no ginecologista, não. Eu já vou te passar o pedido. Vocês escrevem aí, você mesmo faz um pedido do exame assim, assim e assim. Já encurta esse caminho”. E aí fomos, foi super tranquilo: “Não é nada, porque na minha família ninguém tem câncer”. Eu só vim com ele porque não podia voltar dirigindo, porque tinha uma incisãozinha e tal. Quando chegou, as médicas da Beneficência, que atenderam a gente… ele falou: “Ah”... aquele papo, né: “Ah, eu trabalhei aqui. Eu fiz residência aqui”. Já rolou uma empatia, né? Eu falo que eu tive esse grande privilégio, assim, das costas quentes, né, do, como eles falam, do CRM positivo. E aí elas: “Não, pera - elas foram olhar o exame -. Você se importa de fazer uma mamografia?”. Falei: “Não”. Não fui lá pra fazer isso, mas fui lá fazer, né? Quando eu saí, eu entrei na sala da biópsia e ele não entrou. Achei estranho assim, nossa, o nosso Gustavo não entrar. Quando eu saí, no corredor assim, ele falou: “Gê, não se troca ainda porque tem um horário disponível na ressonância magnética e você vai fazer”. Falei: “Cara, ninguém faz uma ressonância magnética porque tem um horário disponível. ‘Aí viemos aqui fazer uma ressonância magnética na área disponível’”. A gente sentado, esperando, falei: “Tá trancada?”. Ele falou: “Tá. Elas têm certeza que é câncer. Elas têm certeza”. Aí eu falei: “Cara, mas não dá para ter certeza. Não é só o laudo da biópsia que diz que é câncer?”. Ele falou: “É”, “Pode ter cara de câncer e não ser câncer?”, “Ah, Gê, pode, mas assim…”. Aí eu falei: “É isso que eu tenho”. O resultado só ia sair depois. Ele fala que eu sonsa, dormindo, tranquilona e ele lá, chorando, pensando: “Meu Deus, minha mulher tá com câncer”. E eu, nossa, super [na paz], vida que segue, normal. Quando foi na segunda, bem cedinho, ele me acordou, falou: “Gê”... a gente já sabia. Já tinha saído o pré-resultado parcial, aí ele já sabia, mas não falou nada no feriado. Ele me chamou de manhã e falou: “Gê, saiu o resultado e tal, é câncer mesmo e tudo mais”. Só que nesse primeiro momento, quando o câncer é descoberto, pelo menos o meu, que era câncer de mama primário, existe uma possibilidade de você não vai ver mais isso, de ser um período da sua vida que vai passar e você vai só contar história, não vai conviver com a história. Pô, falei: “Gustavo, sua mãe teve o diagnóstico do câncer de mama metastático, mas não significa que vai ser assim comigo. A gente teve essa história, mas não foi uma história que deu errado, ela viveu por alguns anos”. Era o que eu sempre falava, era o meu discurso: “Sua mãe, por mais que ela já descobriu”… ela já descobriu o metastático, né? Não teve esse processo igual eu. Eu descobri que não estava em outros órgãos ainda, dela já descobriu metastático. E a gente não tinha esse entendimento na época, do que eram os cuidados paliativos, de que ela era uma paciente paliativa. Não sabia. Mas a gente sabia que a doença era grave, mas ninguém chegou pra gente e falou: “Olha, não tem cura”. Porque em algum momento lá no tratamento dela, o exame veio normal, sem nada. E a gente imaginou: “Essa é a cura”. E não, não era. Dois meses depois, estava com o diagnóstico de que tinha nódulos no sistema nervoso central. Porque não foi informado, não chegam e dão a informação pro paciente. Em alguns casos. E aí é que a gente, como família, e ela como paciente, nossa, foi um outro choque. Poxa, estava curada, mas não era a cura. Quando eu cheguei lá no meu tratamento, eu já tinha essa dimensão. Mas só que eu falava: “Nossa, pera, o meu não é metastático, então pode ser que eu tenha uma história diferente. Pode ser que isso seja só uma fase”. E foi assim, eu falei: “Pronto, vai ser só uma fase. A gente vai aproveitar, bora aproveitar”. E como é uma família tudo de longe, todo mundo veio ajudar. Então, todo mundo que vinha ajudar, era uma farra. “Nossa, agora a minha tia Cláudia vem lá do Maranhão. Ah, então vamos…”, “O que você faz de melhor?”, “Ah, faço pipoca doce”, “Então vamos tomar espumante com pipoca doce, porque a gente está aproveitando que você está aqui”. E aí todos os parentes vieram, todo mundo fez essa coletividade, desse tratamento. O lugar que a gente mora, os amigos foram muito, muito maravilhosos. São ainda. E então fez esse grupo que as meninas pequenas não sentiram essa ausência da mãe, que… minha mãe veio muito, meu pai muitas vezes. Meu irmão, o do meio. O outro era muito novinho ainda. E então passamos assim de forma, digamos, gloriosa, porque foi um tratamento tranquilo, correu tudo bem. Quando veio o diagnóstico um ano e dois meses depois do câncer de mama já metastático, aí já é diferente. São duas, acho que duas coisas muito distintas. Primeiro você pensa: “Vou me safar dessa”; “E agora não vou me safar. Como é que vou viver com isso?”. É por aí. “Como é que eu vou viver agora com isso e bem?”, que é o que eu quero.
P1 - Na verdade, o que eu queria ir perguntando para você agora, é um pouco para quem também vai assistir provavelmente esse vídeo depois ou numa outra sessão, que talvez não saiba como é que é o passo a passo de um tratamento de câncer, né, um tratamento oncológico, essa questão de ser metastático ou não ser, o que é um cuidado paliativo. Se puder falar para a gente como é que foi.
R - O câncer pode ser diagnosticado como primário. E aí, quando você recebe o diagnóstico, é feito um, que eles chamam de estadiamento, que é uma série de exames para ver se a doença não está em outros órgãos. A partir disso: “Ah, não está, está localizado, então vamos partir para o tratamento do câncer primário”. Só que o que as pessoas… e que não é muito falado, é que existe um tempo de remissão. Esse tempo de remissão é o tempo que você está ainda acompanhando, é o tempo que, pelas estatísticas, a doença tem mais probabilidade de voltar. E aí, o que aconteceu comigo nesse tempo de remissão, foi pequeno, foi de um ano e… acho que deu um ano e dois meses, digamos assim, que é aquele tempo que fica fazendo exames periódicos. Numa dessas, fui fazer esses exames e aparecer lá “neoplasia secundária”. Então, quer dizer, a doença, nesse ponto, ela avançou para outros órgãos, outras partes do corpo, então outras partes do corpo têm câncer de mama. Eu tenho câncer de mama na minha cabeça, no meu sistema nervoso central, no fígado, na medula, nos linfonodos e nos ossos. Enfim. Esse processo, essa descoberta é de uma doença incurável para medicina hoje. Então, o câncer de mama metastático, como outros cânceres metastáticos, ele não tem cura. Ele tem tratamento, que é o que eu estou fazendo agora, só que é um tratamento que não para. É um tratamento contínuo. Eu uso uma medicação até ocorrer a falha terapêutica, quer dizer, parar de funcionar a medicação e a doença progredir ou até eu não tolerar mais, por efeitos colaterais ou toxicidade. Enfim, por algum desses motivos, a troca da medicação. Mas vai trocar por outra medicação. Até que existam linhas de tratamento e até que o corpo também consiga aguentar, que chega o momento que fala: “Não dá mais, bandeira branca aqui”. Ou chega um momento que ele fala: “Então, esse momento, agora, não tem mais linha de tratamento para você”. Podem acontecer essas etapas. e aí, falando de doença incurável e dos cuidados paliativos, existe uma grande diferença e um grande abismo, que é o paciente estar em tratamento paliativo e ele receber os cuidados paliativos. Então, ele está em tratamento paliativo, quer dizer, tem uma doença grave, incurável e ameaçadora da vida, que não precisa ser realmente, não precisa ser um câncer, pode ser uma insuficiência cardíaca grave, Alzheimer, Parkinson, esclerose. Enfim, inúmeras doenças. E aí vai estar em tratamento paliativo. Agora, ele receber os cuidados paliativos, existe um enorme abismo, principalmente no Brasil. Falando que Brasil, tem uma pesquisa, não sei, depois a gente pode até olhar, acho que é 2013, se eu não me engano, que fala que só 0,3% dos pacientes elegíveis para os cuidados paliativos, ou seja, que estão em tratamento paliativo, recebem esses cuidados. Só que uma outra pesquisa fala que as pessoas que recebem os cuidados paliativos, não só vivem melhor, como vivem mais, mas em tempo cronológico, que é o tempo que a gente entende por tempo. Então, quer dizer, poxa, a pessoa já tem um tempo que é predisposto a ser mais curto, mas nesse tempo predisposto a ser mais curto, ela pode ter um pouco mais de vida e uma vida melhor. É aí que está a grande graça dos cuidados paliativos: é a pessoa a viver melhor dentro da condição que ela tem. Mas é o que não acontece para a maioria das pessoas. Nem se fala sobre isso. E quando fala, as pessoas falam: “Não, pera, mas cuidados paliativos é à beira da morte já”. E o que seria à beira da morte? A gente não sabe. A não ser quando ela está iminente e o médico fala: “Olha, é hoje. Não passa de hoje!”, aquele negócio. E aí são os cuidados paliativos de final de vida, que também existe, que também acontece, que também é maravilhoso. É maravilhoso o paciente ser olhado lá no final da vida dele, lá no último momento e falar: “Nossa, queria ver o meu cachorro” e levarem o cachorro dele. “Ai, queria comer batata frita” e ele comer batata frita. Mas é muito além disso. No caso, eles olharem a Germaine e eles entendem como é a Germaine, o que é importante pra Germaine, o que é sagrado pra Germaine, como é que a Germaine vive bem a vida dela, o que é importante. É diferente de olhar pra outra paciente. Se eles não sabem quem eu sou, como é que eles vão cuidar de mim direito? Eles não sabem o que eu gosto de fazer. Então, é aí que estão os cuidados paliativos. Eles olham para o paciente e eles vão administrando as dores daquele paciente, que não são só dores físicas, são dores emocionais, sociais, financeiras, o familiar. “Como é que está vivendo o familiar? Alguém está olhando para ele? Alguém está ouvindo esse familiar, esse cuidador? O que o Gustavo está sentindo? O que as filhas da Germaine estão sentindo?”. É tudo isso, sabe? Os cuidados paliativos são tudo isso. Envolve olhar todas as dores, olhar o que é sagrado para esse paciente e tentar fazer ele viver melhor no tempo que tem.
P1 - Você falou uma coisa que é interessante, que é “à beira da morte”. Você ficou pensando, eu imagino muito nisso, o que é estar à beira da morte. Ou não?
R - Não. Eu acho que, estatisticamente falando, a vida é mais curta, mas eu não tenho curiosidade de saber o que realmente é estar à beira da morte, eu espero que demore. Mas, assim, quando eu tive o diagnóstico do câncer de mama metastático, eu não pensei na morte, eu pensei nesse processo, eu pensei em criar memórias com a minha família. O tempo que eu tenho, eu não sei, mas eu sei o que eu tenho agora é o que eu posso dizer com elas. Lá, em 2016, a Sara tinha dois anos e a Laura tinha três, se eu tivesse morrido naquela época, se eu tivesse sido atropelada, se tivesse caído da cama, se tivesse tomando um choque no chuveiro, poucas lembranças elas teriam da mãe. Mas, ao longo desse tempo, quanto a gente já viveu, quanto eu já ensinei para elas e quanto elas me ensinaram. Quantas coisas a gente fez, desde acordar no domingo e ficar mais tarde na cama, até estudar pra prova ou passar pela raspagem do cabelo, sei lá. Então eu acho que ficar pensando na beira da morte é roubar o tempo que eu tenho agora. E aí eu acho que é incompatível.
P1 - Eu digo isso no sentido de que todos nós estamos cientes de que… lembra…
R - Sim. A gente tá, como dizia (Anamina?), na frente de crônica, a finitude é crônica e é pra todo mundo. E, de certa forma, estamos todos à beira da morte. A gente já nasce morrendo. Eu sempre falo isso. Quando me chamam para falar e me chamam para falar em liga de medicina ou de outros profissionais da área da saúde, de algumas ligas de cuidados paliativos, eles gostam de ouvir os pacientes, e aí eu gosto de, quando é on line, de colocar um slide assim: “Eu estou morrendo, mas vocês também estão. Então já que está todo mundo na mesma página, que tá todo mundo morrendo, vamos viver agora e vamos falar sobre isso de agora”. Porque é isso, se eu tivesse morrido lá atrás, sei lá, de gripe… tá aí a pandemia, né? E quando a pandemia chegou, as pessoas tomaram uma consciência momentânea, porque eu acho que já está passando, de que são mortais. “Nossa, as pessoas morrem! Cara, a gente pode morrer sim, o tempo todo”.
P1 - E talvez não viver também, porque de ficar enclausurado.
R - Sim. Eu acho que também esse medo, né, que tinha.
P1 - E como é que foi para você, inclusive, esse período de pandemia? Ainda com os cuidados paliativos em casa?
R - Inicialmente, nós ficamos temerosos porque o Gustavo é médico, e estava no auge da baixa imunidade. A medicação que eu tomava, me deixava com a imunidade no ‘pé’. Assim, uma pessoa normal tem em torno de 1500, no mínimo 1500 neutrófilos, e eu estava convivendo com 400. E aí o que eles falavam é que era muito suscetível de pegar alguma coisa, então a gente tinha medo. Ele, nos primeiros, acho que dois meses, falou: “Dane-se! Vamos viver do que a gente tem e vamos esperar esse negócio passar para sair”. Não passava, né? Não passava, aí o dinheiro foi acabando: “E aí? Vai ter que voltar a trabalhar”. E aí a gente tomava os cuidados que a gente achava necessário na época. Depois, constataram que era exagero, mas como saber que era exagero na época? Então era o que a gente achava que estava certo. Mas, como eu já falei antes, é um grande privilégio ter uma casa, com quintal, as minhas filhas estarem numa escola que tinha disponibilidade de fazer aula on-line, então não passamos, assim, perrengues. A gente tinha uma consciência de que tinha que ficar isolado por um tempo e que era necessário. Então acho que nós mudamos sem pânico, sem ficar de vitimismo, porque era o que tinha que acontecer e estava todo mundo passando por isso. Só que as pessoas estavam passando por isso de forma séria, grave, então a gente agradecia por estar todo mundo bem. A família, mesmo distante, estava todo mundo bem. E ia levando como [se fosse] uma outra situação, torcendo para que passasse, que as pessoas parassem de morrer, essas coisas que afetaram todo mundo.
P1 - E você também sentiu que esse período da pandemia foi um período de pausar planos? Pôde, enfim, recalibrar as questões, os projetos? Como é que foi?
R - Olha, pausamos assim… claro, você pensa que eu vou fazer, sei lá, uma viagem e a viagem não dá certo. Tudo bem. Acho que no auge da pandemia, o que todo mundo queria era ficar vivo e bem. Eu queria continuar o meu tratamento e que ele não parasse. Eu queria continuar bem, fazendo meu tratamento. Então que tivesse que pausar ou que tivesse de prejuízo, seria em algum outro momento retomado.
P1 - E afetou seu tratamento, ou não?
R - Não, deu pra continuar. No primeiro ano da pandemia, foi quando eu tive a progressão, que eu acho que foi uma progressão assim, de baque mesmo para gente, que quando a gente descobriu que estava na cabeça e eram inúmeros tumores. Então, lidar com essa distância social e, ao mesmo tempo, com a progressão da doença não foi muito confortável, porque o que eu queria era estar cheio de gente e não podia. Mas, ao mesmo tempo, pensava no que é necessário, né, então não tem o que fazer. Então, que bom que está todo mundo bem, estão em suas casas. É o que dá para fazer.
P1 - Como é que foi para as suas filhas? A pandemia. Você falou que elas foram para a escola on-line, né, mas essa coisa de ficar em casa um tempo, longe dos amigos.
R - Eu acho que para elas, como elas têm uma a outra e a idade é muito próxima, elas são muito grudadas. Elas até falam no plural. Eu pergunto alguma coisa e: “Não, nós não queremos”. Eu falo: “Não, você não quer e sua irmã quer”. Eu pego, chego com uma roupa: “Não, nós não vestimos esse tipo de roupa”. Eu falo: “Nós? Nós é muita gente, pergunta pra sua irmã se ela não veste esse tipo de roupa”. E então quando elas têm essa unidade, elas são muito, muito grudadinhas, eu acho que foi mais leve para elas, por isso. Também por a gente ter bastante espaço, então, tinha uma casa com quintal, cachorro. Elas se adaptaram bem ao on-line. Nós liberamos, que [antes] elas não tinham acesso ainda ao Whatsapp, então a gente achou necessário que elas falassem com os amigos, né? Então nós liberamos, na época, o Whatsapp, para elas interagirem. E na aula on-line, elas, assim, foram bem. As professoras foram maravilhosas. A Sara foi alfabetizada on-line e como ela é a mais nova, como ela é mais tagarela e mais desenvolta, eu tive que separar, porque elas ficavam no mesmo ambiente para eu poder ficar de olho, mas como ela sempre estava falando e quando a outra precisava abrir o áudio, ela sempre estava interrompendo, eu tive que passar ela para o quarto, então não acompanhei muito ela, porque achava que a outra precisava mais. Mas quando eu vi ela já estava lendo. As professoras foram maravilhosas. Nossa, coitadas. Foi uma fase difícil para elas, imagino.
P1 - Conta um pouquinho mais sobre elas então. A Laura é de um jeito, é mais quietinha, é isso? E a Sara é mais tagarela.
R - A Laurinha é canceriana, ela é muito observadora, mais quieta, mas quando ela tem intimidade, ela gosta de interagir bastante, de questionar e de tirar o
que você pode oferecer. Ela, como eu, entrou na primeira escola e continua, a Sara também, então tem os amiguinhos que desde pititicos são os mesmos. Claro que alguns outros vão ____ pelo meio do caminho, mas tem aquela turminha que eles são desde o maternalzinho, que são como uma irmandade. Ela tem esse apego a esses amiguinhos. Ela é muito parceira do pai, parece que ela quer fazer… algumas vezes ele até fala: “Eu acho que ela fez isso para tentar me agradar”. Um pouco antes da pandemia - ele gosta muito de futebol, ela falou: “Quero jogar futebol”, ela era a única menina na escolinha de futebol. Então ela tem essa coisa com o pai de querer mostrar que gosta das mesmas coisas que ele: “Pai, nós somos parecidos. Até fisicamente, papai, nós somos parecidos”. Ela é mais assim. A Sara, apesar de ser capricorniana, e falarem que os capricornianos são de coração duro, ela é muito emotiva, ela sente as emoções, assim, as coisas da casa. Ela é uma ‘esponjinha’. E ela gosta de extravasar, então ela fala sobre isso, o que está incomodando. A Laura, a gente já percebe que ela precisa chegar mais porque ela guarda. E a Sara não, ela fala o que está incomodando. Ela já é mais expansiva, então está sempre tagarelando, sempre falando, sempre perguntando alguma coisa. Se a gente está numa conversa e o Gustavo, entre nós dois, ela está no meio e a gente fala: “Ei, espera, estamos conversando”. Ela: “Ah, desculpa!”. Então ela é assim, é mais expansiva, mais extrovertida que a irmã. Mas a Laura tem, acho que coisa de irmão mais velho, um domínio sobre elas, de coisas que ela faz porque a irmã quer que ela faça. Eu acho engraçado que ela não faz pra ninguém, mas pra irmã ela faz. Não faz isso para os amigos, mas ela faz isso para a irmã. São diferentes e são parecidas ao mesmo tempo, é interessante. São muito grudadinhas.
P1 - Agora, mudando um pouco de assunto, você falou sobre palestras que você deu e sobre toda, digamos assim, amplitude que é a questão do cuidado paliativo. Então, nesse período, como é que foi dominar esse conhecimento, digamos assim, também, sobre tudo isso e falar sobre isso? Como é que você tem desenvolvido essa questão?
R - Eu falo que eu sou formada em dezessete, agora dezoito, temporadas de Grey's Anatomy. (risos) Então eu faço um tratamento, mas eu gosto de saber o que eu estou fazendo: “Essa medicação altera, mas ela é o quê? Como é que foi aprovada?”, “Ah, o estudo tal”, “E quais são as reações? Quais são os efeitos colaterais?”. E aí eu sempre fiz, sempre fui assim. Quando eu cuidava da minha sogra, eu era assim, falava: “Nossa, ela está fazendo tal medicação”, ia ler os periódicos de medicina, o que é que estava no PubMed sobre isso. E quando eu comecei a fazer meu tratamento, foi igual, porque eu acho que eu sou a principal interessada em ter o conhecimento pleno do que é o meu tratamento. Não sou médica, mas muita coisa eu posso entender. E aí, quando eu me vi com câncer de mama metastático, uma doença incurável: “Eu quero viver bem. Eu quero viver bem esse tempo que eu tenho”. E aí que eu entrei para pesquisar sobre os cuidados paliativos, eu falei: “Eu preciso saber mais”, e aí eu fiz um curso on-line da Casa do Cuidar, inclusive, que não precisa ser da área da saúde, que é um curso sobre cuidados paliativos. Eu li muitos livros sobre cuidados paliativos e fui vendo. Eu acho que o principal é a vivência, vivência não só minha, mas de outras pessoas. E aí quando a Michele me falou que ia criar a Casa Paliativa, me convidou para ser staff, lá no auge da pandemia - estávamos no auge da pandemia, em abril. Ela falou: “Amiga, eu vou fazer um negócio que é inovador e pra paciente, tal e tal”. Falei: “Pois bora lá então, me põe aí nesse grupo” e o grupo foi tomando uma proporção grande, mais e mais gente entrando. A gente tendo aulas e trazendo informação aos pacientes. Então essa troca, talvez, valha mais do que um curso de teoria, porque o paciente ele chega lá e ele conta as suas dores e vem o outro paciente, ajuda e fala: “Olha, talvez o norte seja esse”, “Olha, eu fiz assim, Fulano fez de outro jeito”. Então tem essa troca muito maravilhosa. E quando a gente vê que só o apoio e só a troca não funciona, tem os profissionais que estão ali voluntariamente para ajudar esses pacientes. Não só os pacientes, mas também os cuidadores podem participar. Então o conhecimento que eu busquei e que eu ainda busco, ele veio primeiro de forma teórica e depois, com toda essa troca de outros pacientes, de outros familiares, de amizades que eu acabei fazendo nesse meio tempo, de pessoas que tinham condição parecida com a minha.
P1 - Você está falando da Casa do Cuidar?
R - Dentro da Casa do Cuidar tem a Casa Paliativa, que a doutora Ana Cláudia Arantes ____ da Casa do Cuidar, e dentro da Casa do Cuidar tem um espaço que é para pacientes e familiares, cuidadores. Aí os profissionais que ajudam são pessoas da Casa do Cuidar, mas esse espaço é único: ele é para pacientes e familiares. Lá, no espaço físico, também tem uma sala, que é nossa, que a gente chama de casinha, que é o nosso espaço, de pacientes: a gente vai lá, toma um café, a gente chama alguém pra falar de algum assunto, enfim, e aí a gente convive nesse espaço, nesse espaço de pertencimento, que é muito importante para os pacientes, uma troca.
P1 - Vocês se juntam pra contar as histórias de vocês, é isso?
R - Sim. E também a gente se junta, eventualmente, pra… tem aulas sobre informação mesmo, de qualidade para os pacientes, ou sobre dor, aulas sobre opióides, aulas sobre esperança, aulas sobre sexualidade. Assim, sabe? Então é bem, bem legal mesmo. Tem sido bem revolucionária, digamos assim.
P1 - Tem alguma história de alguém que você queria contar para a gente, que te marcou, de alguém que você conheceu, uma pessoa que você conheceu na Casa.
R - Olha, a história da Fabi… a Fabi chegou na Casa Paliativa, teve câncer de mama metastático, já descobriu metastático, e ela sofreu muito, muito, muito com dores. E o tratamento de pronto-socorro era aquele assim: “Você tem câncer e é isso aí, você vai sentir dor. É normal sentir dor. Faz parte da doença”. E ela recebeu um cuidado extraordinário de uma médica da dor, que fez ela viver melhor o tempo que ela tinha para viver. Sendo cuidada realmente, sabe? Assim, foi uma coisa que fez diferença na vida dela. E ela falava sobre isso: “Do dia que eu cheguei no pronto socorro e ouvi que aquilo era normal ao dia que ela falou ‘Não, isso não é normal. Não precisa estar passando por isso.’”, o quanto isso mudou a vida dela. Porque ninguém quer ficar sentindo dor o tempo inteiro, progressivo e tal. Como que isso estava sendo cuidado? Não estava sendo cuidado. E a partir do momento que ela foi cuidada, ela passou a viver melhor. Então ela falava assim, ela contava o quanto que isso foi significativo para ela, quanto isso foi impactante na vida dela. Mas histórias de muitas outras pessoas que entraram na Casa Paliativa, meio que sem saber muito o que eram os cuidados paliativos, só sabendo que era um paciente paliativo, mas não sabia o que era realmente. De pessoas, hoje, que chegam até para mudar condutas profissionais, sabe? Então acho que quando eu falo que é uma revolução, é porque… imagina, a pessoa fala: “Agora eu sou o paliativo”. E o profissional fala: “Não, não é”, “Não, sou assim! Sou por isso, isso e aquilo. Eu mereço isso, isso e isso. Nada menos que isso”. Então as pessoas estão mais informadas, estão procurando também seus direitos, sua melhor qualidade de tratamento e viver melhor.
P1 - Acho muito incrível como você passou, me parece, assim, né, abrindo um pouco para minha opinião, de quem recebeu essa notícia e hoje me parece que é muito uma grande causa da sua vida, né, informar as pessoas com a sua experiência.
R - Sim, eu faço voluntariado porque eu amo mesmo. Eu acho que se uma pessoa for impactada, já teria vale a pena. E aí quando eu entro numa sala, mesmo que virtual, que eu vejo ali trinta estudantes de medicina querendo saber mais sobre cuidados paliativos, querendo saber mais até como falar com o paciente, porque no dia a dia... e eu falo muito sobre isso, eu até sei como é, porque o Gustavo fez faculdade e tal. Então, quando você tem agenda cheia, vai passar visita em, sei lá, trinta pacientes, tem uma lista com um monte de gente, aquilo ali pode passar a ser um número. E que nunca seja um número para eles. Então, acho que se puder levar que aquilo ali não é um número, que não é um diagnóstico… na sua frente não vai estar o câncer de mama metastático [com] cid cinquenta. Não é um cid, é uma pessoa e essa pessoa é o amor de outras pessoas, ela ama outras pessoas. Uma vez eu ia entrar na máquina de ressonância magnética e aí eu ouvi… eu estava esperando, eles estavam arrumando a sala: “Não, porque agora saiu um joelho, vai entrar uma cabeça”. Aí eu falei: "Ah, a cabeça está aqui. A cabeça tem nome. E o joelho que acabou de sair, também. O joelho ele tem um corpo que tem uma alma dentro”, “Ai, desculpa! Nossa, não foi o que a gente quis dizer”, “Não, beleza, tranquilo”, mas assim, que a gente não seja uma cabeça, um joelho ou um pulmão, porque ninguém se resume a isso, que você faça o seu trabalho… que eu tenho um terno ranço: “Ah, a medicina humanizada”, toda medicina tem que ser humanizada. Isso não é um adjetivo. Quando foi que medicina humanizada virou um adjetivo? É porque está bem estranho, né?
P1 - Ou um privilégio, né, uma coisa assim. Um diferencial, né?
R - É, um diferencial. Toda a medicina deveria ser humanizada, ela é para humanos. Precisaram humanizar a medicina, para virar um adjetivo. Então quer dizer que quando você é visto, quando você é tratado pelo nome, isso é um bônus? Não é um bônus. Eu entendo que, óbvio, tem milhões de paciente para essa visita, mas não estraga os seus cinco minutos, nem o do paciente, porque para ele vai continuar no resto do dia. Então acho que é muito sobre isso, sobre não ser um plus, é sua obrigação. Você entrou por isso? Foi para isso que você entrou? Foi essa a profissão que você escolheu, então continua a fazer o que, de humano para humano, sem achar que está fazendo mais por isso, por ser humanizado.
P1 - E o que você acha que você mais aprendeu ou, digamos, se aperfeiçoou nesses anos convivendo com a doença? Já são o que, nove anos, oito?
R - Dezesseis para 23 é…
P1 - Sete anos.
R - É, sete… sete?
P1 - Sete ou oito.
R - Eu sou de humanas. (risos)
P1 - Você descobriu quando tinha trinta e?
R - Dois. Vou fazer quarenta.
P1 - Então, o que você acha que mais se aperfeiçoou ou aprendeu? O que você mudou, do que você fazia, para hoje, de leitura, de experiência, de conversa? Digo assim, o que você mais aprendeu, não sei, a mediar, a fazer de outra forma com relação a todas as dores que você falou, física, social, enfim.
R - Olha, eu acho que a vivência e as progressões da doença. Não é nem tanto a leitura, porque na teoria eu sei que eu preciso cuidar do meu emocional, da minha vida social, mas é muito fácil falar: “Nossa, pera, preciso cuidar disso”. Do mesmo jeito que se eu estou com uma dor, eu vou ter que tomar dipirona. Se não passar, eu vou ter que tomar morfina. O que é que precisa ser feito, né? E a teoria diz que eu preciso ter tranquilidade, que eu preciso entender que todo mundo morre, só que quando você tem o diagnóstico nem aqui do lado, o tempo inteiro te lembrando, alguma coisa muda. No livro do Gilberto Dimenstein, ele fala de um negócio que não deseja que ninguém tivesse câncer, é mais ou menos assim, mas ele desejaria que, em algum momento, você tivesse essa percepção do que é estar morrendo. Porque a gente sempre está morrendo, só que a gente sempre está vivendo. Então eu acho que a grande chave, o grande equilíbrio… e quando vêm as progressões, e eu venho de um ano, estou há um ano tentando controlar a doença, que está meio descontrolada, porque até então tinha progressões, eu falava que eram anuais, progressões anuais e agora estou com um, sei lá, cinco progressões nas costas e de medicações que não estão funcionando. E aí eu falo: “Puxa, tá acabando as minhas. E agora?”. E aí isso só faz eu ter que pensar: “Nossa, eu tenho que aplicar todos os conselhos que eu dava para minha sogra, lá atrás, e tenho que aplicar o que eu falava para mim mesma, de pensar no hoje, porque eu nem tenho o amanhã, nem sei se o meu corpo vai suportar ou se eu vou pegar uma gripe”. Então, que eu consiga entender que eu estou fazendo esse protocolo agora e que eu estou com esperança, claro, que funcione, mas que eu tenho que viver agora, eu tenho que aproveitar o agora. É óbvio que quando eu pego o laudo, que eu pego e vejo: “Poxa, não funcionou de novo”, vem aquela recobrança de consciência, o medo e que talvez eu não consiga concluir algumas coisas, ou viagens, ou… enfim. Mas é tudo o que eu já consegui desde 2006. Então eu acho que essa grande chave, assim, do equilíbrio entre ter o medo, porque o medo é real, é verdadeiro, existe e de subir as escadas, mesmo enfrentando o escuro, o bicho papão, e continuar a assimilar.
P1 - Interessante que por mais que a gente converse aqui, tem alguma coisa da sua experiência que eu nunca vou entender, né, se eu não tiver a doença também.
R - É isso.
P1 - Agora, como é que estão os últimos prognósticos que você teve? Como é que está a questão das cargas, dos remédios? Como é que tá essa…
R - Eu falo que, às vezes eu sinto que eu estou num carrinho, numa ladeira. Sabe um carrinho de rolimã, que você começa na beira, está bem tranquilo e vai descendo, assim, e de uma hora para outra ele começa a impulsionar e pega uma velocidade? Então, algumas vezes eu sinto que eu estou nesse carrinho, numa velocidade e precisa ser freado. Só que eles não acharam ainda talvez o que freasse esse carrinho. Agora, nesse momento, eu ainda estou sem saber como está essa medicação, porque eu fiz apenas dois ciclos. Só que eu acho, naquele achismo, que o carrinho está freando, porque eu estou muito bem clinicamente. Apesar dos efeitos colaterais, que eu não imaginava que essa medicação tinha e que foram muito ruins no início, clinicamente, assim, pensando na questão ‘doença’, eu não estou sentindo dor. Eu estava tomando morfina de horário, estava com adesivo de morfina e ainda tomando outras coisas, e agora eu tirei tudo. Estou meio que livre. Eu voltei a fazer atividade física, que eu não estava conseguindo, estava com dor. Então, assim, pensando clinicamente… e eu até conversei isso com o Fábio, o meu oncologista, falei: “Fábio, clinicamente, parece que estamos tendo uma resposta muito boa”. A gente sabe? Não. Só o que vai dizer é a imagem lá. Mas, clinicamente falando, imagino que o carrinho está freando. Estamos na torcida que talvez isso ocorra dentro de um mês, não sei, que eu faço o exame.
P1 - Você faz exame de mês em mês?
R - Não. Quando troca o protocolo, ele pede dois ou três meses de tempo para a medicação agir e fazer os exames. E aí, quando está funcionando, ele mantém essa periodicidade. Ele pede outras coisas talvez por alguma queixa clínica: “Ah, tá doente, tal coisa”, pede um exame a mais, mas não é em dois ou três meses.
P1 - E como é que está hoje o dia a dia seu, do Gustavo, das suas filhas? Como é que?
R - A gente depende muito dos amigos, dos vizinhos porque o dia de quimioterapia é o dia inteiro; o dia que estou passando mal, eu não consigo pegar na escola. E ele tenta se manter trabalhando, porque a gente tem a vida para tocar e tudo mais. Até às vezes ele fala: "Poxa, não vou com você na quimioterapia. Até fico…”. Aí eu falo que é o tal do equilíbrio, né? Alguém tem que trabalhar e pagar as contas. Pra eu estar lá na quimioterapia e fazer a dancinha, você tem que estar fazendo sua agenda. Então, pensar de uma forma prática, planilhada. Não dá pra você cancelar suas agendas todas as vezes que eu for fazer quimioterapia, eu vou fazer exame ou vou para o hospital”. Mas a gente tenta fazer nossas coisas assim. Por exemplo, vou no show do Coldplay sendo que eu vou fazer quimioterapia na quinta e o show é na sexta, mas vou! Ia ser no mesmo dia, aí a gente já achou melhor não, né? Aí fomos um dia depois. Mas vamos vivendo aí, tentando fazer as coisas.
P1 - Tem alguma, um sonho que você ainda tem de realizar, algum projeto? Porque sonho às vezes é muito abstratos, né?
R - Ah, eu sonho… seria mentira se eu não falasse que queria ver minhas filhas, sei lá, sendos mães ou, se elas não quiserem ser mãe, sei lá, se realizando profissionalmente, enfim, adultas. Acho que é o sonho de toda mãe, todo pai, ver seus filhos crescerem. Mas sonhos de realizações pessoais, do que… não sei, fazer viagens, mais momentos com eles. Nada muito concreto. Reformar minha cozinha, sei lá. Coisas assim, simples. Não tão simples, claro, mas que o tempo talvez me dê.
P1 - E tem alguma coisa que você gostaria de deixar como legado para elas, pro seu marido, para quem você conversa? Que isso tenha ajudado tanto.
R - Eu até estava falando sobre isso esses dias: eu acho que o legado é o que a gente está vivendo. O legado é o que está construindo. E não adianta nada eu falar que eu quero deixar de legado que vivam hoje, se eu estiver trancada dentro de casa chorando por causa do meu diagnóstico. Se eu não mostrar isso, que eu vivi verdadeiramente, que, sei lá, fazer um bolo no final da tarde, receber minhas amigas. É uma coisa muito importante. Ver meu sobrinho crescer, ver que os outros sobrinhos estão indo para escola. Ver a beleza disso tudo. Que está todo mundo seguindo o fluxo e nesse fluxo eu não estou parando a minha vida pra ficar me questionando o porquê, porque eu tenho essa doença ou coitada de mim que eu tenho essa doença ou, nossa, hoje eu estou mal. Enfim, é querer… acho que o legado a gente constrói todo dia. Então, se eu estou vivendo mesmo, de verdade… não falo de estar pulando de bungee jumping ou, sei lá, tentando um Prêmio Nobel de alguma coisa, mas o dia a dia, né? Dia a dia, dia após dia, como a gente está vivendo todos os dias antes do último. Então é isso, não tenho um grande segredo ou um grande: “Vou deixar, quero deixar um legado maravilhoso”. Acho que o legado maravilhoso seria elas entenderem e aproveitar o tempo, não se demorarem onde não tiver amor e seguirem em frente. E não deixarem de receber os amigos se a pessoa estiver bagunçada, essas coisas. Não se preocuparem com pequinês, que é um problema que você cria o problema, essas coisas. Se elas entenderem, está tudo certo.
P1 - Como é que foi contar um pouquinho da sua história hoje aqui para a gente?
R - Gostoso, legal. É uma boa experiência. Estava curiosa. Acho que foi algo emocionante. É diferente, né? Nunca imaginei que eu ia falar de coisas que eu falei. Muito bom.
P1 - Você gostou? Foi uma experiência boa?
R - Foi. Mais uma coisa para dizer: “Olha, fiz, participei”. Coisas diferentes que se faz na vida.
P1 - Você já fez, deu várias entrevistas antes?
R - Sim, dei algumas.
P1 - E tem alguma história de alguém ou de alguma coisa que você lembrou durante, que você gostaria de contar para a gente e você não contou? Alguma pergunta que eu fiz, ou não fiz. Vocês querem fazer uma pergunta também?
P2 - Uma coisa que você trouxe ali, que esse processo dos cuidados trás muita pergunta do que é sagrado, quais são as descobertas. E eu queria ouvir um pouco do que você descobriu, o que você entendeu que era sagrado para você e que surgiu nessas ‘músicas’ aí que às vezes o _____ convive.
R - Eu entendi e eu acho que talvez eu tenha demorado uns trinta e poucos anos para entender isso, que é sagrado para mim eu me cuidar, eu ser saudável apesar de ter câncer. E eu até tento falar isso para as pessoas: “Cuidem-se, façam atividade física. Você quer levantar como, do vaso, no futuro? Como você quer chegar na velhice?” e tudo mais. E eu ______ isso por muitos anos, eu era a pessoa que não fazia atividade física, que corria da Educação Física, fazia obrigada e tudo mais. Hoje, assim, eu falo para o Fábio - meu oncologista -: “É inegociável eu não poder fazer atividade física. Então, o que eu não posso fazer?”, “Vamos deixar você fazer do jeito que está, porque é importante para você”. É óbvio que quando ele fala [que] é importante para mim, eu, na minha cabecinha dos cuidados paliativos, eu ouço: “Germaine, isso é sagrado para você”. (risos) Então, é sagrado para mim eu ter esse tempo, me cuidar, saber que eu estou fazendo coisas. Poxa, sou uma paciente de um câncer de mama, eu tenho metástases ósseas: o que eu posso fazer, que dependa de mim, para viver melhor? Porque não adianta eu ir lá na quimioterapia e não fazer a minha parte, de não me cuidar melhor. Se eu tiver músculos mais fortes, meus ossos vão depender menos. Então, essa é uma das coisas. A outra coisa é de não negociar com o tempo. O tempo é o que eu tenho, é o que todo mundo tem. Eu não vou ficar esperando um grande feito, um grande acontecimento para deixar acontecer a minha vida. A minha vida está acontecendo com câncer, quer eu goste ou não. A vida de toda a minha família, de todos os meus amigos, de vocês, enfim, o sol vai nascer e vai ser bom independente do que a gente quer que faça. Então, não vou negociar com o tempo. Acho que isso é muito sagrado, sim. Eu me permito me entristecer, mas eu não permito que essa tristeza tome conta da minha felicidade, ela entre na minha felicidade, do que eu já tenho. Então, que é a tristeza seja passageira e a felicidade seja sagrada para mim, sabe?
P1 - Você tem várias tatuagens. Essas que você tem, pode contar para a gente de onde elas surgiram?
R - Sim! Aqui… o Gustavo não tem tantas tatuagens, só tem essa, que é o nominho delas quando elas escreveram. Então, quando Lauro escreveu a primeira vez “Laura”, nós guardamos, e aí, um ano depois, quando Sara escreveu, a gente guardou também e tatuamos igual. Tanto que ela, [a Laura], a mais velha, né, falou: “Não fui eu que fiz esse R, foi a Sara”, mas o R da Sara já não era. (risos) E a tatuadora fez, inclusive, o pontinho que tinha perto. Aqui é duas coisas que eu amo muito, que é café e vinho. O vinho está suspenso por tempo indeterminado, espero que volte, (risos) porque está fazendo falta. E aqui é a frase, assim, que eu acho que quando eu tive o diagnóstico, essa frase ficou em mim. É uma frase que eu amo, que eu sempre falei desde o início que a gente é o que temos que passar. Como vamos passar isso, podemos mudar, né? Porque o que vem pra mim, vem pra mim; o que vem para você, vem para você; e não tem o que a gente faça. Isso vai acontecer anyway. Então, tem sempre um jeito diferente de viver o “como”, o processo sempre tem um jeito diferente. E é esse como que faz toda diferença. Aqui são umas cerejeiras, que elas mostram como a vida é breve e demoram um ano para florir, com o vento elas se vão e são maravilhosas, são lindas e mostram que a vida é isso.
P1 - Como última pergunta: me conta, quando você voltar para casa agora, como é que vai ser o dia de hoje?
R - Vou voltar para casa, vou resolver coisas burocráticas da família. Mais tarde, vou pegar as filhas na escola e levar - hoje é quinta - no judô. À noite, janta e... rotina. (risos)
P1 - E o Gustavo está atendendo?
R - Hoje ele está atendendo. Hoje é quinta-feira… ele atende tanto lugar que eu nem sei onde ele está hoje. Em Suzano de manhã e eu acho que à tarde em Ferraz de Vasconcelos. É isso aí, Suzano de manhã e à tarde Ferraz.
P1 - Acho que é isso então. Obrigado, viu? Um prazer muito grande conversar com você, é uma honra. Obrigado por você ter vindo aqui e espero que tenha gostado mesmo, viu, da experiência com a gente. Uma pena não poder ficar mais tempo, mas também não tem como contar.
R - É claro. (risos) A vida, né?
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