Entrevista de Quitéria Ana de Melo Teixeira
Entrevistado por Sofia Tapajós
Caetés, 16/06/2025
Projeto: Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista número: PCSH_HV1462
Realizado por Museu da Pessoa
P/1 - Entrevista de Quitéria Ana de Melo Teixeira, entrevistada por Sofia Tapajós, Caetés, 16 de junho de 2025. Projeto Vida, Vozes e Saberes em Um Mundo em Chamas, entrevista número PCSH_HV1462. Mais uma vez obrigada, Quitéria.
R - Imagina.
P/1 - Pelo seu tempo por receber a gente.
R - Muito obrigada.
P/1 - E eu queria começar perguntando o seu nome, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Quitéria. Sobrenome? Meu nome é Quitéria Ana de Melo Teixeira. Eu nasci em Caetés em 1969.
P/1 - E qual que é o nome dos seus pais?
R - Meu pai, Valdemar Moita de Melo e Ana Ferreira de Melo.
P/1 - E eles são de onde?
R - Meu pai é de Paranatama e a minha mãe daqui de Caetés.
P/1 - Você sabe como eles se conheceram?
R - Se conheceram por aqui mesmo, né? Meu pai trabalhando com o meu avô na roça, né? E aí, minha mãe... meu avô não queria o casamento, e meu pai disse, eu vou roubar ela. Naquele tempo a pessoa roubava a moça pra casar, né? E aí ele veio, minha mãe disse, minha mãe conta que ela, uma noite ela já tinha combinado com ele o dia, nessa casa inclusive, e aí uma prima dela dormia com ela, e ela chamou pra ir no banheiro à noite lá fora, né? Aí ela foi... não voltou mais. Aí a minha prima entrou e minha avó disse, “cadê a Ana?” Minha mãe chama a Ana, minha prima disse, “ela fugiu”. Aí pronto, ela fugiu, minha avó disse, “não vou fazer o casamento”, e minha avó falou, “se você não fizer, eu faço”. Aí acabou que eles se casaram e naquele tempo era muito... Era muito rigoroso, as pessoas eram muito conservadores, e ela veio, casou e tudo, e veio aqui dar benção para o meu avô e ele não respondeu. E aí foi assim que eles se conheceram, e eu sou a primeira filha. Nasci ali... Ah,...
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Entrevistado por Sofia Tapajós
Caetés, 16/06/2025
Projeto: Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista número: PCSH_HV1462
Realizado por Museu da Pessoa
P/1 - Entrevista de Quitéria Ana de Melo Teixeira, entrevistada por Sofia Tapajós, Caetés, 16 de junho de 2025. Projeto Vida, Vozes e Saberes em Um Mundo em Chamas, entrevista número PCSH_HV1462. Mais uma vez obrigada, Quitéria.
R - Imagina.
P/1 - Pelo seu tempo por receber a gente.
R - Muito obrigada.
P/1 - E eu queria começar perguntando o seu nome, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Quitéria. Sobrenome? Meu nome é Quitéria Ana de Melo Teixeira. Eu nasci em Caetés em 1969.
P/1 - E qual que é o nome dos seus pais?
R - Meu pai, Valdemar Moita de Melo e Ana Ferreira de Melo.
P/1 - E eles são de onde?
R - Meu pai é de Paranatama e a minha mãe daqui de Caetés.
P/1 - Você sabe como eles se conheceram?
R - Se conheceram por aqui mesmo, né? Meu pai trabalhando com o meu avô na roça, né? E aí, minha mãe... meu avô não queria o casamento, e meu pai disse, eu vou roubar ela. Naquele tempo a pessoa roubava a moça pra casar, né? E aí ele veio, minha mãe disse, minha mãe conta que ela, uma noite ela já tinha combinado com ele o dia, nessa casa inclusive, e aí uma prima dela dormia com ela, e ela chamou pra ir no banheiro à noite lá fora, né? Aí ela foi... não voltou mais. Aí a minha prima entrou e minha avó disse, “cadê a Ana?” Minha mãe chama a Ana, minha prima disse, “ela fugiu”. Aí pronto, ela fugiu, minha avó disse, “não vou fazer o casamento”, e minha avó falou, “se você não fizer, eu faço”. Aí acabou que eles se casaram e naquele tempo era muito... Era muito rigoroso, as pessoas eram muito conservadores, e ela veio, casou e tudo, e veio aqui dar benção para o meu avô e ele não respondeu. E aí foi assim que eles se conheceram, e eu sou a primeira filha. Nasci ali... Ah, nasci no hospital, não nasci aqui no sítio, não. As mulheres tinham muitos filhos em casa, tinha uma mortalidade muito grande também de criança que nascia em casa, as mulheres também morriam, né? Mas eu nasci na cidade. E depois teve o meu irmão. Minha mãe sempre lidou muito com a roça, minha mãe gostava muito da roça. Minha mãe não era uma mulher que gostava de cuidar da casa, porque aqui no Nordeste as mulheres têm o dever de cuidar da casa, somente da casa, de servir o marido, botar a comida no prato. Tinha homens naquela época que ficavam com fome se a mulher não estivesse em casa para colocar a comida no prato. E a minha mãe não era assim, ela era grosseirona, e aí, ela acabava que deixava eu com a minha avó. Acabou que minha avó foi quem me criou, a minha mãe se mudava muito, morou em Petrolina, morou em outros lugares, e eu ficava com a minha avó. Cresci, nasci, praticamente nasci e cresci com a minha avó. Fiquei aqui, aí estudava numa escola aqui no sítio, e depois, eu gostava muito de estudar. E meu avô dizia, “ah, vou mandar você pra Caetés e tal”. Aí estudava, estudava, e depois não tinha como morar na cidade. Aí uma pessoa daqui do sítio tinha uma casa na cidade, e falou pro meu avô, “se você quiser mandar ela pra lá, ela fica lá e vai estudando lá”, eu fui, fiquei um ano, foi um ano muito ruim, porque essas pessoas, elas meio que me escravizavam, sabe? E eu fiquei um ano inteiro lá, era muito difícil eu vir aqui no sítio, apesar de Caeté ser um pouco perto, meu avô tinha carro e tudo, sempre ia pra feira em Capoeiras, toda sexta-feira, e eu ficava... Eu passava fome, eu tinha necessidade de comida e... Quando chegava sexta-feira, eu ficava muito ansiosa, muito feliz pra saber, meu avô vai passar aqui hoje, vai me dar uma moeda, vou comprar uma pipoca e tal, né? E aí era muito bom quando meu avô passava lá. Fiquei um ano lá estudando, consegui, depois, minha mãe não estava mais aqui no sítio, ela morava em Santo Antônio do Tará, é uma cidade aqui na Caatinga também, um povoado. Aí meu pai decidiu comprar uma casinha em Garanhuns, ele comprou uma casinha lá. Quando ele comprou a casinha, eu já estava morando com meu tio, porque eu tenho um tio que era enfermeiro. E aí meu tio morava em Garanhuns e ele já tinha oferecido pro meu avô, se ela quiser estudar, ela pode ir lá pra casa, que não foi muito diferente da outra casa que eu estava. Nessa mesma época, aí foi quando meu pai comprou a casa, eu fui morar com meu pai, na casa que meu pai comprou. E daí eu estudei até a sexta série lá na escola, quando foi... anos 90. Lembro que foi até... quando teve a eleição de Lula e Collor, era a primeira vez que eu ia votar. E aí eu estudava nessa escola e tinha um cara que ele ia muito na porta da escola. Eu tinha 17 anos na época. E aí ele, um cara mais velho do que eu, ficava me olhando muito e às vezes quando eu ia pra casa à noite, estudava à noite, ele me seguia... Eu também não quero falar sobre isso porque é só uma coisa que aconteceu. Aí passou... Aconteceram umas coisas muito ruins que ele fez pra mim, e eu precisei ir pra São Paulo, porque ele atirou no meu pai. Aconteceram muitas coisas ruins, aí eu decidi ir pra São Paulo.
P/1 - Queria só voltar um pouco. Como que era a sua avó?
R - Ai, minha avó era uma mulher maravilhosa. Tem a foto dela aqui atrás. Minha avó era uma pessoa incrível, ela tinha muito amor. Minha avó... Eu sempre... O pessoal tem uma coisa de dizer assim, é santo fulano. Eu digo, minha avó é santa, porque minha avó era uma pessoa... Tinha um coração enorme, era uma pessoa muito carinhosa, tudo ela dividia com a gente, principalmente comigo, né? Quando eu tinha alguma impressão que eu ia me afastar da minha avó, eu já entrava em desespero, porque eu queria muito ficar perto dela. Ela era uma pessoa muito boa, muito querida.
P/1 Como ela chamava?
R - Luísa.
P/1 - E tem alguma história que você lembra dela, que você passou com ela?
R - Tem muitas. Ela era doentinha, ela era bem doentinha. Minha avó dizia, ia pra Garanhuns levar ela, e dizia… quando eu ficava olhando o carro chegar, e quando eu olhava ela não veio, aí eu já começava a chorar, querendo saber o que aconteceu, né? Ela dizia, “ah, tua avó ficou lá, precisou ficar, tomar uns medicamentos, né, e teve que ficar”. E ela sempre me chamava pra ir pra feira e dizia, vou comprar um tecido e fazer uma roupa pra você. Aí ela comprava um tecidinho lá na feira mesmo e fazia umas roupas pra mim, ela tinha máquina, ela mesmo costurava. E sempre ela... Às vezes, uma coisa que eu me lembro muito da minha avó era... Eu tinha medo de chuva, medo de quando morria alguém, por aqui, “aí alguém morreu”. Aí eu... À noite eu dizia, mãe, chamava ela de mãe, né? Tô com medo. As minhas avós dormiam nesse quarto aqui que hoje eu durmo, eu dormia naquele outro. Às vezes com outras primas também, mas quando eu tava sozinha eu dizia, “eu tô com medo”, ela dizia, “venha para cá”. Ela pegava uma rede e armava uma rede no quarto dela e dormia com ela, porque eu tinha muito medo, ela me protegia muito. E... A noite assim, pra tudo que eu chamava ela, ela sempre me acolhia. Contava, ela contava histórias de quando a mãe dela morreu também, que a minha bisavó, a mãe dela, ela saiu pra ir no mato, no banheiro, no caso. E minha avó ficava chamando ela, ela não respondia, aí minha avó foi e achou ela morta. E outras histórias que ela contava também que eu não consigo lembrar, sabe, Sofia? Porque acaba que tem coisa que na hora você não lembra, né? Mas... Meu avô traía ela. Às vezes ela contava, “ai, teu avô e tal”, e depois a gente sabia quem era a outra mulher.. Mas ela era uma mulher muito incrível, porque ela sempre dizia, as mulheres que o seu avô me trai com elas, não tem culpa não, e hoje eu fico pensando, poxa, minha avó há 50 anos atrás, muito mais de 50, ela já tinha esse pensamento, né?
P/1 - E como que era o sítio aqui? Como que era a paisagem?
R - A paisagem era diferente, minha avó criava gado, ali onde tem... onde hoje eu tenho um galinheiro, era uma cocheira, que é um lugar que o gado dorme, passa a noite. E meu avô tirava leite, tinha roça, tinha um caldeirão, que é um lugar de pedra que junta água, quando chove, a gente vai usando aquela água, né? Que era ali. Tá bem diferente aqui agora. Não tinha essa árvore aí na frente, que é a Jurema. É... Não tinha essa casinha aqui do lado, essa coberturinha foi meu pai que fez, depois que... E aqui em volta era muita palma, sempre tinha muita palma, mudou muita coisa. A entrada não era ali, era pra lá. Tá bem diferente. A casa não, a casa continua igual, o que mudou foi só o PVC que eu coloquei nos quartos pra...
P/1 - E você falou que essa jurema não estava aí. Como que ela chegou aí?
R - Ela nasceu aí. Eram duas. Eu precisei tirar uma porque ela estava tombando para cá. Porque as pessoas não tinham hábito de plantar árvores, eles só iam cortando. E depois que eu estou aqui, eu já plantei algumas árvores, mas a única grandona que tem mesmo é a Jurema. Meu avô plantou uma castanhola, só que ela não resistiu.
P/1 - Desculpa. E nessa época tinha algum sabor que te marcava? Alguma fruta, alguma comida?
R - Cuscuz.
P/1 - Cuscuz?
R - É. Cuscuz, que a gente... Tinha trabalhador, né? E a gente acordava muito cedo, minha avó colocava o milho de molho, o milho seco assim, igual você tá vendo ali. Colocava ele de molho numa água quente à noite, e no dia seguinte, de madrugada, a gente acordava cedo, eu e minha prima, que às vezes dormia aqui, pra ralar o milho numa máquina, tipo aquelas triturador de... A gente ralava o milho ali na garagem de uma máquina, e peneirava. E aquela parte fininha ia separando e passava de novo e ia processando, sabe? Manual. Aí fazia um cuscuz enorme, e aquele era muito bom com leite. Meu Deus! Era muito bom.
P/1 - E você e essa prima, como que ela chamava?
R - Chamava Liene.
P/1 - Vocês brincavam?
R - Brincava, a gente brincava com caco de vidro, com caco de prato. Nossos brinquedos eram esses.
P/1 - E do que vocês brincavam?
R - De casinha mesmo, ali nos matos. A gente às vezes aprontava algumas, mexia nas coisas da minha avó, mas a gente brincava ali nos matos, fazia comidinha, sempre pegava um copo que quebrou, virava pra baixo e dizia que era uma cadeira.
P/1 - Tem alguma história, algum momento marcante que você...
R - Tem, que eu tava brincando, a gente tava procurando um caco de vidro para fazer móveis, ali perto da estrada. E tinha um homem que, ele comprava galinha, toda quinta-feira ele passava comprando galinha, ele botava um pau aqui nas costas e as galinhas tudo penduradas. Ele é marido de uma tia minha, da parte do meu pai, e ele era muito brincalhão, ele gostava de mexer com a gente, sabe? Brincar, fazer cócegas e tal. Não sei por que ele fazia esse tipo de brincadeira. E eu não gostava, eu tinha medo, a gente tava ali, eu e essa minha prima, e quando eu dei fé, ele tava vindo na estrada, eu... Baza tava vindo ali, eu saí correndo e acabei caindo em cima dos vidros, cortei o joelho, que o pedaço do meu joelho saiu, assim. Aí a minha prima... E eu agora, como que eu vou pra casa? Ele viu, ele disse “o que foi”, disse que ela caiu em cima dos vidros, ele me pegou e trouxe pra cá e minha avó cuidou do machucado, né?
P/1 - E teve alguma coisa que a sua avó te ensinou, que você lembra, assim?
R - Minha avó me ensinou a costurar. Aprendi a costurar com ela. Ela sempre dizia, “vem, eu vou ensinar você a costurar na máquina”, e fazer fuxico. Hoje, quando eu vou fazer fuxico eu não consigo mais fazer, mas ela me ensinou direitinho. Aí eu acabo, fico tentando lembrar como era que eu virava assim pra fazer o fuxico, porque fazia tapete assim também, coisa com retalho, né? Uma vez também ela me ensinou a fazer uma concha de retalho. E eu fui embora, quando eu fui pra São Paulo eu levei, mas eu acabei perdendo.
P/1 - E aí, quando você foi para São Paulo, o que você sentiu quando você chegou lá?
R - Eu fiquei meio perdida, sabe? Mas eu sabia que eu precisava lutar. Eu fiquei uns dois, três dias numa casa de uma pessoa e eu, a partir daquele dia, eu já sabia ler, eu sabia que São Paulo, se você soubesse ler, facilitava a sua vida. E eu tinha... Teve um dia que eu estava dormindo lá e... Era verão, era janeiro, nessa casa e... Eu acordei com um barulho de... Um barulho muito... De papel, assim, mexendo e tal, quando eu me descobri que eu olhei, era muita barata, muita barata. E aí eu... A partir daquele dia, eu peguei pavor de barata, na segunda-feira, eu disse pra minha prima, que eu fui com ela, que já era outra prima, eu disse, “Aparecida, preciso arrumar um emprego, urgente”, ela disse, “tem uma pessoa lá na Vila Mariana que quer”. Aí, eu disse, “pois eu vou”, “você quer ir lá?”, eu disse, “quero”. Aí, me deu o número do ônibus, eu sabia ir, nunca tinha andado de São Paulo, minha primeira vez. Aí, fui, a mulher disse, “eu quero pra você trabalhar e dormir aqui, morar. Só vou dar uma folga pra você no final de semana. Só que tem uma coisa, meu marido…”, eu menina da roça, pessoal tudo exigente, ela disse, “meu marido é muito exigente com a roupa, que ele é gerente da Goodyear e a camisa dele é branca, tem que passar bem passada, porque quando ele vestir, se tiver uma marca assim, ele vai pedir pra você passar novamente”. Aí eu disse, “tá certo, eu vou ficar no emprego, eu passo a camisa, se você disser que não tá boa, eu passo novamente”. Aí fiquei.
P/1 - E como era seu cotidiano nessa época, seu dia-a-dia?
R - Trabalhava, limpava a casa, lavava a louça, lavava a roupa, lavava o quintal, só trabalhava. No final de semana ela dava folga no sábado, à tarde, e aí ficava perdida, porque de vez não tinha para onde ir, não tinha contato, tinha só alguns parentes, mas também era muito difícil naquele tempo de você... Às vezes, você tinha que marcar, tipo... Marcar o encontro hoje para encontrar, tipo, daqui 15 dias, mas você chegava lá, talvez... Não tinha como se comunicar. Porque, às vezes, na casa que a gente trabalhava tinha telefone, mas o patrão não deixava usar, né? Aí tinha ficha, mas, às vezes, porque naquele tempo era ficha de telefone. E aí, era assim.
P/1 - E você consegue descrever mais ou menos a paisagem de São Paulo? O que você via lá?
R - A paisagem? Muitos prédios, né? Um pouco de violência também, muitas pessoas em situação de rua. E eu meio que olhava aquilo, mas eu... Era como se eu não quisesse ver, sabe? Eu dizia, “não, não é possível”. E muita correria, muita... muito... muito estresse. Muita... é muito complicado. São Paulo é... E aí eu fiquei lá, fui ficando, nssa rotina. Trabalhava a semana toda, às vezes ela me levava para viajar com ela, para trabalhar também. Mas ela foi até uma pessoa razoável.
P/1 - E você ficou trabalhando lá até quando?
R - Eu fiquei trabalhando lá até quando eu engravidei. Tava namorando e acabei ficando grávida.
P/1 - E como que você conheceu seu namorado?
R - Conheci em uma ocasião, lá em Carapicuíba, eu fui… fizr umas amizades lá com os meninos, e aí eu conheci, eu já conhecia ele, ele ficava, ele ficava, me criticava muito e dizia… ficava dando risada de mim às vezes, mas não gostava muito. Sabe aquela pessoa que você fala assim, “não gosta de fulano”. E aí acabou que a gente acabou namorando. Quando eu dei fé, eu tava grávida.
P/1 - E como que foi depois?
R - Aí eu falei pra minha patroa, eu falei pra ele, eu disse, “tô grávida”. Aí ele disse, “quer abortar?” Eu falei, “quero”. Sabe por que que eu falei, Sofia, que eu queria? Porque naquele momento, era só eu e eu mesmo, entendeu? Eu não tinha outra pessoa pra recorrer, eu disse, se a pessoa que podia me apoiar nessa hora perguntou se eu queria abortar, então eu vou fazer o quê? Eu não tenho ninguém aqui, né? Aí eu disse, “quero”, tá certo. Eu já conhecia a mãe dele, e aí, no outro final de semana, a gente se viu e ele disse, “minha mãe quer falar com você”. Aí ela disse, “o Roni falou que você quer abortar”, eu disse “sim”. Ela disse, “não senhora, não vai abortar não. Você vai ter esse filho, você pode contar comigo”. Respirei, opa, de novo, outra chance, né? Tá certo, aí... falei, “preciso conversar com a minha patroa e dizer pra ela que eu tô grávida”, eu cheguei e disse “Tô grávida”, e ela disse... “Pronto, pois eu não posso mais ficar com você aqui, não, porque é arriscado e não sei o que, eu vou pagar o seu tempo que você trabalhou aqui e você vai embora”. Minha sogra já tinha dito que eu podia contar com ela e a gente conversava e tal. Aí fui morar lá na casa da minha sogra. Fiquei sem trabalhar, fui morar lá, o dinheiro que eu peguei, eu comprei enxoval, mas a minha ex-patroa também, ela me dava presente pro bebê e tudo, ela foi bem bacana. Quando estava no oitavo mês de gravidez, o meu marido mexeu nas minhas coisas, e achou uns negativos de foto, naquele tempo era foto no negativo, guardava o negativo. Aí ele achou umas fotos e ele revelou essas fotos e eram umas fotos de quando eu tinha vindo aqui, em Pernambuco. E aí ele viu eu com a galera, com o pessoal, e ele cismou que o filho não era dele. Ele revelou as fotos sem me avisar, sem nada, chegou e disse “esse filho que você tá não é meu não. Olha aqui, olha isso, olha aquilo”. Eu disse, “mas é”. E fiquei. Aí a partir daquele dia... Sim, Sofia, eu posso voltar? Quando minha sogra me deu a oportunidade de morar na casa dela, eu lembrei, “Poxa vida, eu achei... Eu tenho valor, né?” Porque naquele tempo da minha juventude, uma moça que não tinha mais virgindade, ela não tinha mais valor aqui, e também em outros lugares, mas principalmente aqui. Quando ela me deu essa chance de dizer, “eu vou te apoiar”, eu disse, “poxa vida, então eu tenho valor, né?” O cara, engravidei, ele vai cuidar de mim, ficar comigo. E aí eu, quando eu fui morar na casa dela, passando, atrapalhando tudo, eu... Eu já, naquela época eu disse, eu preciso dar o meu melhor, tudo que eu fazia, eu areava muito bem as panelas, pra ficar bem brilhosa, eu lavava muito bem a roupa, eu cozinhava bem, eu ajeitava a minha comidinha direitinho, eu morava num cômodo do lado da casa dela. E eu dizia, porque eu preciso mostrar, eu preciso dar o meu melhor em tudo pras pessoas que me apoiaram, e eu dava o meu melhor em tudo, em lavar roupa, em fazer a comida, em limpar o chão, encerava o chão com a mão, dava a lustre no chão com a mão, porque eu queria dar o meu melhor. E aí foi quando eu descobri que ele falou que o filho não era dele, aí eu entristeci de novo, e sabia que o filho era dele, e tive uma menina, o nome dela é Rayce, e ela já nasceu parecida com a avó. Quando o médico me deu ela, que eu olhei a mão dela e disse que era a mão da dona Creuza, aquela mão igualzinha a da avó. Mas aí eu fiquei triste, às vezes eu pensava, não, ele vai parar de falar isso, mas ele nunca parava. E aí eu, sem instrução, sem informação nenhuma, meio perdida, quando eu dei fé, eu tava grávida de novo, da Raíza. Eu tive a Rayce em março de 93 e tive a Raíza em abril de 94.
P/1 - E como que você escolheu o nome delas?
R - O nome da Rayce foi o pai que escolheu. Ele queria colocar Royce, que tinha um cara lá em São Paulo, não sei se ele era de São Paulo, um pagodeiro, um cara do samba, que chamava Royce do Cavaco, ele queria colocar o nome do menino de Royce, se fosse um menino, mas era uma menina, e nasceu Rayce. E aí, a gente chegou no cartório, o homem escrivão falou assim, “mas o que é isso, Rayce?” “É porque eu queria colocar Royce, mas é uma menina”. Aí acabou registrando, depois veio a Raíza, a Raíza já era mais fácil. Eu tenho quatro filhos, e a Rayce, ela, que é essa que mora em Maceió hoje, ela... Ela sempre foi meio... assim, né? não era aquela menina de dar atenção, ela era mais recatada, mais quieta, gostava de estudar, mas ela sempre foi muito observadora e muito inteligente, e quando… Sim, aí eu fui pra igreja, né? Fiquei crente, fui crente e levava elas pra igreja. Aí depois tive o Rui, engravidei de novo quando a Raíza tinha... é uma diferença de cinco anos, o Rui e a Raíza. Quando meu marido descobriu que era um menino, ele ficou feliz. Aí tive o Rui e depois tive a Rebeca também. A Rayce hoje é não binária, ela sempre foi uma menina muito... Quando era criança, eu percebia ela assim, diferentona, né? Mas a gente queria levar... Aí, chegava na igreja, o pastor dizia, “vou dar uma saia pra você trazer as meninas pra igreja, não sei o quê”. Eu disse, “pastor, o que mais tem na minha casa é saia. Não é por causa de saia”. Aí, eu obrigava ela, disse, você tem que vestir a saia pra ir pra igreja, vestia a saia pra ir pra igreja. Aí tinha um curso que chamava Escola Dominical e ela fez esse curso, ela tirou nota máxima, ela ganhou até prêmio na minha igreja, ela conhece a Bíblia de trás para frente, da frente para trás, só que ela batia muito de frente com o pessoal de igreja, porque “vocês estão fazendo errado, não é assim”. Mesmo assim, puxei todo mundo para a igreja, e quando cresceu, foram crescendo, e aí quem foi aprendendo com eles foi eu. Aí comecei a aprender, “mãe, não é assim”. “Mãe, isso tá errado”. E aí fui me abrindo, eu aprendi muita coisa com meus filhos. Muita.
P/1 - Você pode falar um pouco do que você aprendeu com eles?
R - Eu aprendi a ter liberdade, ser quem eu sou, não precisar me modificar, mudar quem eu sou para agradar outra pessoa. E aprendi também a ser sincera, porque tem coisa que você não precisa esconder de filho. Aprendi a respeitar e, aprendi muita coisa, Sofia, muita coisa. Aprendi a respeitar a opinião das outras pessoas, aprendi muita coisa, assim, uma infinidade, eu não sei nem como dizer. Eu tenho uma gratidão enorme pelos meus filhos, porque de 40 anos pra cá, minha cabeça mudou muito, e eu tenho muita gratidão, porque eu aprendi muito com eles. Eles sempre diziam, “mãe, não é assim”, “mãe, não precisa ser assim”, “mãe, não precisa ser desse jeito”. Às vezes, fazia uma festa lá na minha sogra e “chama a Ana pra fazer isso, fazer aquilo”. eu dizia, “não, é porque eu tenho que ir fazer”. “Não, você não tem que ir fazer, você vai o que você quiser”. Aí eu dizia, “não, mas eu preciso ir, porque se eu não for, pode ser que seu pai ache ruim, pode ser que…” Eu me preocupava se as pessoas... “Poxa vida, fulano não vai mais gostar de mim porque eu não vou fazer isso pra ele”, e aprendi, eles ficavam batendo na tecla, “não precisa fazer, porque se a pessoa não quiser gostar de você por isso é porque ela já não gosta de você”. E a cada dia eu aprendo mais.
P/1 - Nesse tempo que você estava em São Paulo, você chegou a vir visitar alguma vez?
R - Vinha, sempre vinha, sempre vinha visitar. Depois que eu tive meus filhos, teve um pouco de dificuldade para eu vir aqui, mas eu sempre vinha. Inclusive, uma vez que eu vim, minha avó caiu aqui, machucou a perna. E eu vim com a Raíza. Nunca eu podia trazer tudo, as duas, porque a gente vinha de avião, a passagem era muito cara. Mas eu vim, foi a vez que minha avó machucou a perna. E, inclusive, quando a minha avó faleceu, eu não tava aqui, e foi pra mim muito, muito ruim quando eu fiquei sabendo que ela faleceu. Porque eu demorei pra saber também, porque naquele tempo a comunicação era mais difícil, né? Mas eu sempre vinha, e depois que o tempo foi passando, aí eu fui vindo com mais frequência. Porque tinha meu pai e minha mãe que já estavam morando aqui. E eu sempre vinha, meu pai também ficou um pouco doente.
P/1 - E o que você sentia quando você voltava?
R - Eu sentia saudade, porém eu não tinha vontade de voltar, porque eu sabia que eu tinha quatro filhos e eu tinha que ficar lá, porque como que eu ia sair com quatro filhos de São Paulo para morar aqui novamente? Que estrutura que eu tinha aqui? Lá eu trabalhava muito, eu trabalhei muito em São Paulo, muito, muito mesmo, eu nunca parei. Para manter meus filhos, depois a gente construiu uma casa no terreno da minha sogra, uma casinha, três cômodos, mas eu sempre vinha pra cá.
P/1 - E como que era essa casinha que vocês construíram?
R - Era um quarto, sala e cozinha, e um banheiro, bem pequeno mesmo, só cabia nós.
P/1 - E até quando você ficou em São Paulo?
R - Fiquei até 2000 e… que eu voltei de vez assim mesmo, fez três anos no dia quatro de maio, que eu voltei pra cá.
P/1 - E por que você decidiu voltar?
R - Porque minha mãe estava sozinha, nessa casa, e eu sempre dizia quando... Eu nunca pensei em voltar, não, Sofia, eu gostava daqui, mas eu não pensava mais em morar aqui. Só que aconteceu umas situações no meu casamento que eu disse “eu vou me separar”. Aí eu vim para cá em 2021, eu disse, “eu vou me separar”. Quando eu voltei, meu marido... Porque meu marido sempre foi uma pessoa muito assim, ele disse, “você vai voltar”, eu disse, “eu vim sozinha”, porque nesse tempo minha filha já morava em Maceió, eu vim sozinha. “Comprei uma passagem pra você voltar, porque já faz não sei quantos dias que você tá aí”, me mandou o link da passagem, eu tava em Maceió. Aí eu falei pra minha filha, “pronto, eu vou pra... eu vou embora pro sítio, ficar com a sua avó, que seu pai comprou a passagem pra mim, eu vou ter que ir embora”. Ela disse “não, mas você vai se você quiser”. Mas eu tinha medo, mulher, de dizer, “eu não quero ir, eu não vou agora, eu vou ficar mais um pouco”, e ela dizia, “você vai se você quiser, mãe. Manda ele fazer o que quiser com a passagem que ele comprou, você não mandou ele comprar”. Aí eu vim pra cá, fiquei com minha mãe e voltei pra São Paulo. Quando eu voltei, ele foi me buscar no aeroporto e tal, eu já tava sentindo uma separação, sabe? Porque eu sempre dizia isso. Aí tinha a Rebeca, a Rebeca tinha 17 anos, aconteceu uma discussão, eu disse, “vamos embora”. Ela disse, “vamos, a gente vai morar em Maceió. Vamos embora”. Só que eu sempre dizia que pra ele “um dia eu vou embora”, mas ele era meio bipolar, sabe? Falava umas coisas pra mim, depois ele voltava atrás, parecia que não aconteceu nada, e eu disse, “eu vou embora”. Aí, decidi com a Rebeca que eu ia embora. Nessa época eu não estava trabalhando, mas uma pessoa disse, eu ajudo você. Aí ela me chamou pra fazer faxina na casa dela, eu fazia faxina pra ela, pra mãe dela e pra irmã dela, fui fazendo faxina pra ela, ela disse, “eu ajudo você”, porque ela sabia, era minha patroa também, uma pessoa que eu trabalhava no dia. O marido dela é arquiteto bem sucedido em São Paulo, talvez você até conheça. Ela me ajudou quando foi pagar a mudança, e ele disse assim, “você vai embora mesmo?” Eu disse, “vou”. Ele disse, “não quer pensar um pouco?” Eu disse, “não, não quero mais, não”. E aí ele continuava achando que eu não vinha. Eu disse, “Já chamei a transportadora”, fui fazer o orçamento da mudança, e ele fechou a cara. Aí eu ajeitei minhas coisas, coloquei na transportadora, comprei passagem e vim embora.
P/1 - E aí você voltou pro sítio ou você foi pra Maceió?
R - Voltei pra casa. Inclusive a Rebeca veio comigo, eu certa que a Rebeca ia ficar. A Rebeca é a mais nova. Aí ela disse... Mãe, tem um show do Senna. Teve um show lá em São Paulo, lá no Anhembi, ela queria muito ir nesse show. Eu vou voltar, que ela... A gente chegou em maio, ela ia fazer aniversário em junho, ela ia fazer 18 em junho. Aí eu disse, “tá bom, Rebeca”, comprei o ingresso pra ela, então tá, “eu vou levar você em Maceió, você vai pra São Paulo, vai pro show, mas depois você volta”. E ela nunca quis voltar, ela mora com o pai.
P/1 - E o Rui?
R - O Rui morava com o pai também, mas foi morar em Americana porque a namorada dele é de lá. Acabou indo morar em Americana pra ficar mais próximo, para facilitar a vida, né? E tem a Raíza também. A Raíza mora em São Paulo também. A Raíza, ela é muito parecida comigo, assim... A Raíza... Ela é muito valente, muito guerreira. Já trabalhou em tudo que você puder imaginar. Hoje ela é gerente da Riachuelo, lá do Shopping Tamboré. Da Riachuelo não, do setor de perfumaria e eletroeletrônicos, pronto, ela tá lá, na Riachuelo. Mas se ela sair de lá hoje e você disser, ó, Raíza, eu tenho um emprego numa lojinha ali em Carapicuíba pra você, ela vai, mas ela não fica sem trabalho. É vaidosa, muito vaidosa, todo dia tá treinando, todo dia é preenchimento labial e não sei o que, e ela sempre, dos meus filhos que moram em São Paulo, foi sempre ela que veio me visitar. Dois anos consecutivos ela veio pra cá e ficou aqui comigo um mês, uma vez veio com o namorado e ano passado ela veio sozinha. Esse ano ela não veio porque ela disse, “mãe, vou pegar minhas férias e vou comprar um carro, fazer alguma coisa”, né? Porque trabalhar em São Paulo é muito corrido, dependendo do lugar que você mora pra você se locomover, é muito cansativo. E aí esse ano ela não veio.
P/1 - E quando você voltou, o que você achou de diferente no sítio?
R - Eu achei a eólica, que é o principal problema que eu tenho aqui, porque vir visitar aqui, igual eu vinha, uma vez por ano, de São Paulo, olhava isso daqui. Você fala, olha, bonito, que a gente acha tão bonito, né? Mas aí quando você dorme, à noite, você diz, “nossa, como vocês aguentam ficar aqui?” Isso aí é o monstro que a gente tem aqui, porque isso aí é um avião que nunca pousa, é um barulho ensurdecedor a noite inteira, o dia inteiro, tem dia que desligam por duas horas, três horas… É tão engraçado que um dia eu fiz um vídeo aqui, estava desligada, eu escutava uma criança conversando lá atrás, lá na autoestrada. E parecia até que o vídeo... Sabe quando você silencia o vídeo? Parecia que o vídeo estava silenciado, porque só escutava nada, pronto, não escutava nem passarinho, porque os passarinhos não vêm mais, eles não chegam mais aqui. Desequilibrou tudo, a vida da gente. Ó, o óculos, eu tô praticamente surda. Quando eu chego em Maceió, quando eu encontro com meus filhos ou pessoas que... A pessoa fala assim, “ah, não entendi”, “Mãe, você tá surda?” “Não, não tô surda não, mas não tô entendendo, não tô escutando direito o que você falou”. Repete, às vezes tem pessoas que você repete até três vezes. É porque você fica o tempo todo… Pele, a minha pele, tá vendo como é ressecada? Tudo por isso. Impactou muito aqui, então assim, a pior coisa que eu vejo aqui, nesses anos todinhos que eu fiquei fora, que voltei agora, com vontade de cuidar do meu território, da minha terra, de plantar minhas coisas, mas eu fico numa guerra com essa coisa aí. Acabou com a vida de muita gente, literalmente, porque além dela ter degradado a Caatinga, ela acabou com vidas, com famílias, ela cria conflito entre a gente, porque eu não quero sair daqui, eu quero ficar, mas a minha prima quer sair, aí, quando entra no debate, “eu não quero sair”, mas ela diz, “mas eu quero”, então, eu tô contra ela, entendeu? Logo quando eu voltei para cá, uma pessoa me chamou para fazer parte de alguns movimentos, aí eu fui, só que é um conflito muito grande entre a comunidade, porque uma pessoa quer, outra não quer. E sem contar com outros impactos que a gente tem na plantação, nos animais. Galinha não tira mais o monte de pintinho que tirava antes, os animais diminuem a produção de leite, do pessoal que tira leite. Os porcos, eles se... Como é que fala? Come os filhotes, sabe? É muita coisa. Agora não tá sol, mas quando tiver sol, depois eu vou mostrar pra você um vídeo, essa hélice, ela passa aqui na minha sala, ela passa na cozinha, no quarto. Aí você sai de dentro de casa, você vai pra roça, ela tá passando lá na... Você fica o tempo todo lidando com a situação que você fala, como que pode morar na roça e tá passando por isso? E... A plantação, por exemplo, o feijão de corda, eu sou guardiã de sementes, cheguei quase agora de volta, mas eu já sou guardiã de sementes, porque eu gosto muito de plantar e de ver a multiplicação das sementes, e uma particularidade que eu tenho é com milho, né? E o feijão de corda, ele não dá mais. Você planta ele, ele cresce todo bonito, é a coisa mais linda, eu tenho até um pé depois, se vocês quiserem fotografar. A coisa mais linda o pé, ele dá a flor, quando ele dá a base, que ele começa a crescer, ele vai fazendo assim. Aí some o grão. Desligaram. E é isso, a única coisa ruim que tem aqui é o parque eólico. A eólica, ela prejudicou a vida de muitas pessoas. Eles oferecem também, quem quer ser realocado, eles oferecem uma indenização pela casa e deixam você usar a terra, mas a indenização da casa não dá nem pra você comprar outra casa em outro lugar, porque quem tá vendendo quer vender mais caro. Imagina quem é acostumado a morar aqui até que mora na cidade. Uma casa em Caetés agora é 200 mil, uma casinha de nada. Minha prima mora aqui do lado, ela vai ser indenizada, ela disse que esse dia passou a noite em claro, mais o marido pensando, porque o menino dela estava chorando, que disse que não quer sair daqui, ele tem 14 anos. Ele disse, “eu não quero sair daqui, mãe. Eu já nasci, cresci aqui, eu tenho minha escola, tenho minhas coisas tudo aqui, eu não quero sair daqui para morar em outro lugar, eu não quero”. E ela disse, “eu vou fazer o que agora?” Muito difícil.
P/1 - Você falou que você é guardiã de sementes, como que começou isso?
R - Começou que eu me envolvi nesses movimentos, né? E aí uma pessoa me chamou pra um seminário de troca de sementes. E eu fui, em Garanhuns, fiquei encantada com aquelas sementes, tudo bonitinho. Eu peguei algumas sementes, trouxe e plantei, e eu fui gostando de ver, porque eu nasci e cresci na roça, mas não tinha esse cuidado com as sementes, porque a gente só plantava mesmo pra comer. E fui começando a entender também outras questões de semente transgênica, que é muito ruim. E aí, quando eu fui pegar essas sementes, semente crioula, beleza, aí eu fui multiplicando, fui multiplicando e cada dia que passa eu aprendo mais com a semente, porque eu sei que o feijão não, mas o milho, se você não tiver um cuidado para plantar ele, ele pode ser polinizado. Esse milho aqui, amarelo, pode ser polinizado pelo branco ou pelo vermelho, então não posso plantar um perto do outro, tem que ter um prazo de um para o outro. Feijão também e aí eu vou multiplicando as sementes e eu gosto muito de trabalhar com semente.
P/1 - Teve alguém que te ensinou sobre as sementes?
R - Esse milho batica, amarelo, eu acho que ele tem mais de 20 anos, porque era o milho que a minha mãe plantava, minha mãe sempre guardava uma garrafa de milho. Dessa garrafa que ela guardava, depois ela foi para Garanhuns mas aí a gente foi guardando uma garrafinha, e todo ano sempre sobrava um tiquinho, aí planta. Ela dizia, “ó, tem que guardar uma garrafinha de milho para plantar”. E aí, quando eu conheci essa galera do IPA [Instituto Agronômico de Pernambuco], ele disse, “que é esse milho bonito, Quitéria?”, que eu mandava foto, ele disse, “eu vou aí na sua casa”. Veio aqui, aí disse, “olha, seleciona esse milho que a Prefeitura de Garanhuns compra de você, viu? A gente vai fazer um teste no seu milho”. Eu disse, “esse milho é batica original, é milho que era do meu avô, e minha mãe foi guardando, minha mãe também plantava, ia guardando”. Ele disse, “é Quitéria, mas a gente vai fazer um teste de transgenia, porque talvez seu vizinho planta outro milho”. Aí fizeram o teste em Recife e em Sergipe, deu livre de transgenia. Fiquei tão feliz quando ele disse, “olha, seu milho deu livre de transgenia”. E de tudo, de adubo, de tudo. E aí, quando foi, fez o teste de germinação, aí deu positivo também, vendi pra prefeitura e fiquei muito feliz. Nossa, quando saiu esse teste da minha semente que eu... Nossa, foi tudo pra mim, porque a gente vive num mundo que... complicado, a gente tá comendo muita coisa ruim. E eu quero plantar minha própria comida sempre.
P/1 - E como que é a vegetação por aqui? Além da sua roça, como que você descreveria a mata daqui?
R - Muita jurema, né? A gente tem muita jurema. A mata daqui, quem predomina é a jurema, né? A forte. É a jurema e os mandacaru, os facheiros, essas plantas de espinho que você sabe, é mais o que predomina mesmo, é a jurema, a vegetação assim. A pessoa planta capim pro gado, mas aí de capim eu não entendo muito não [risos].
P/1 - Você falou que você tem plantado mais árvores, por quê?
R - Ah, porque eu quero sombra. Um lugar para os pássaros, para os animais descansarem. E eu plantei um pau-brasil, uma barriguda, que a barriguda é nativa daqui, mas ela não nasce em qualquer lugar. Eu tenho frutífero também, tenho pé de graviola, de jabuticaba, tenho pitanga, tenho romã, que tá crescendo ainda, que eu vou nas feiras de troca de semente e acabo pegando uma muda de uma planta em outra, e aqui detrás de casa tem um pé de siriguela, que foi minha avó que plantou. Ele deve ter mais de 50... Ele tem uns 50 anos já, e mudando já, atrapalhando tudo a conversa, eu... Tá vendo essa rachadura? Isso aqui foi a dinamite da eólica. E uma pessoa que diz que é da central de relacionamento veio aqui, perguntou, “você não tem interesse”, eu disse “tenho não.” “Ah, mas por quê?” Eu disse, “porque eu não quero”, eu disse, “eu quero que esse parque seja desligado”, “Ah, mas o que a gente pode fazer é minimizar o impacto na sua casa”. Eu disse, “é você vai fazer o que?” “A gente pode colocar um PVC e mudar a sua janela. Fecha essa janela, essa porta e bota a sua janela pra lá”, ou seja... Aí eu disse “não”. Até não disse nada pra ela não, porque é uma mulher, mas eu fiquei com vontade de dizer pra ela, “não me chama mais não, na cancela, viu?” Porque eu disse pra ela todas as coisas interessantes que eu acho. Eu disse, “se a empresa me der um milhão de reais nessa casa, beleza, um milhão de reais dá pra eu comprar uma casa. Eu não quero morar na cidade, mas eu compro em outro sítio. Mas mulher, tem um pé de siriguela ali detrás de casa que um milhão não paga ele. Sabe por quê? Porque eu tenho 56 anos. Se eu pegar esse um milhão e eu comprar outro pé de siriguela, eu não vou ver ele desse tamanho nunca, eu tô com 56”. E quando eu falei pra você das árvores, Sofia, eu plantei as árvores porque eu quero deixar elas aí, porque eu sei que eu não vou ver um Pau-Brasil, tipo assim… E, às vezes, eu conversando com o Alexandre, eu vim de Recife, eu vi um flamboyant e eu disse, “Alexandre, o meu sonho é um flamboyant desse na frente da minha casa”. Ele disse, “por que você não tem?” Eu disse, “porque como que eu vou ter? Quando eu vou ver um flamboyant desse tamanho na frente da minha casa”, Eu tenho a idade que eu tô, o flamboyant, pra chegar a essa idade aí, ele demora uns 30, 40 anos. E assim, a galera que implantou esse parque não entende que, para algumas pessoas, dinheiro não é tudo. Que, para mim, por exemplo, o que é importante para mim é minha tranquilidade, é trabalhar na minha terra, sem ter esse barulho, sem ter essa sombra passando, vendo os animais livres. Aí vive morrendo, morre por urubu, um monte de bicho que bate nessa hélice, aí morre. Sem contar com o impacto no bioma, nas serpentes, Alexandre fez uma pesquisa enorme aí que um monte de escorpião, não existe mais, um monte de coisa, porque degradou, os bichos vão embora, é muito complicado.
P/1 - Você falou da rachadura, do processo da dinamite. Você já estava aqui quando aconteceu?
R - Meu avô estava.
P/1 - Ele estava? Ele contou como foi?
R - Foi em 2015, eu tinha vindo visitar, porque eu falei pra você que eu sempre vinha, né? Tava começando a implantar. Em 2015 eles estavam explodindo as rochas, na Caatinga pra implantar esses negócios aí. Teve um dia que eu tava aqui, aí chegou um cara num carrão, aí disse “ô Sr. José, terça-feira a gente vem com o SAMU [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] para tirar o senhor daqui, levar pra... para o senhor ficar descansando um pouquinho lá no posto de saúde de Paranatama, tá bom? Porque vai implodir uma dinamite, vai correr o risco de barulho, de pedra, não sei o quê”. Mas aí, mulher, as casas tudo rachadas, cisterna rachada. Eu não tenho direito a uma cisterna da Cáritas porque eu moro a menos de 500 metros de um aerogerador. A Cáritas Nordeste não vai me favorecer com a cisterna porque tem um projeto aí para ser aprovado no CPRH [Companhia Pernambucana de Meio Ambiente] e tal, que quem mora até 500 metros vai ser realocado. Então, mesmo que eu diga que eu não quero ser realocada, a Cáritas não vai fazer uma cisterna, porque o projeto de lei é para que quem mora com 500 seja retirado. A Cáritas vai fazer uma cisterna para depois a pessoa dizer, vou embora, derruba a cisterna, sendo que um monte de gente precisa de uma cisterna, né? E aí eu tô assim, sem... Eu tenho um tanque ali atrás, que o meu avô fez tem uns 40 anos, que é o meu reservatório de água, de captação de água de chuva, mas não tem. Você perguntou das rachaduras do meu avô, foi, aí tiraram ele daqui pra isso, e a casa ficou aí toda rachada, sendo que essa casa ela é de barro, tijolo de barro, né, assentado no barro, tudo aqui é tudo muito antigo. E ela, creio que ela não caiu porque ela é em cima de pedra, né, aqui embaixo é tudo pedra. Mas é muito, muito, o impacto é muito grande.
P/1 - E hoje como que é seu cotidiano, seu dia a dia?
R - Meu dia a dia é trabalhar na roça, vou pra escola, eu sou sozinha, como eu já disse pra você, pouca gente vem na minha casa. Às vezes eu vou para... Às vezes eu almoço, aí fico aqui e vou ver uma televisão, uma notícia, aí quando eu olho, tá passando a sombra dentro do quarto, aí eu digo, vou sair daqui. Aí eu vou lá atrás, olha meus pés de... de quiabo, meus feijão azul, que aí, chego lá, tá passando aí. Ah, quer saber? Eu vou trabalhar assim mesmo. Às vezes preciso ir na cidade. É... Eu também sou envolvida com um monte de coisa. O Alexandre me inseriu no grupo de pesquisa, gosto muito de Alexandre, acho uma pessoa incrível, [inteligível] muito pra mim conhecer o Alexandre. E a partir dali também que conheci vocês. Eu não gosto de ficar parada, eu não gosto de ficar parada, eu gosto sempre, se eu tô em casa, ou eu tô na roça, eu tô varrendo a casa, que particularmente, se for dizer assim, escolha, você quer ficar na roça ou limpando a casa? Quero ficar na roça. Mas eu tenho que fazer porque eu sou só, né? E também fui convidada a participar do grupo de Bacamarteiros, que é uma tradição cultural que tem aqui, fui convidada pelo presidente a participar e eu disse, “quero”, ele disse “se você não quiser atirar, você pode só pode só participar”. Eu disse, “não, eu quero aprender tudo”, porque eu não sei se vocês conhecem a tradição de Bacamarteiro, é uma coreografia, aí dá um tiro só com pólvora, que é para comemorar o São João, comemorar alguma coisa, e aí amanhã a gente vai se apresentar numa escola. E que outra coisa também que eu faço? Eu faço licor, às vezes eu tô aqui do nada e digo, “vou fazer um licor”. Aí tem um pé de laranja ali atrás, eu sempre fico de olho na laranja, que o primeiro licor que eu fiz de laranja foi uma obra de arte, porque é um licor feito com a minha própria laranja, e tava muito bom. E aí eu meio que... Eu faço minhas bebidas meio que um hobby, sabe? E eu até falei pra minha filha que eu queria... Eu disse, eu tinha vontade de dar um nome a cada cachaça que eu faço, cachaça temperada também, dar um nome assim, cachaça fulana de tal. Porque um dia eu tava meio assim, preocupada com as coisas, aí do nada eu... Vamos fazer uma cachaça? Aí me animei toda, vesti uma mini saia e fui fazer a cachaça, aí temperei a cachaça e tudo, tampei. Eu fiquei com uma vontade, mulher, de colocar o nome daquela cachaça de mini saia. Fui, como eu disse pra você, aprendi muito com meus filhos, vou botar o nome da sua cachaça de mini saia. Aí ela disse, “nossa mãe, você não acha que é muita exposição?” [risos] Eu falei, “não, mulher, não é nada”, ela disse, “é, não sei, você que sabe”, eu fiquei pensando, pensando, e acabei que nunca fiz, né? Porque eu queria muito colocar uns nomes bem assim, liberdade, gargalhada, porque antes eu não ria muito, eu era uma pessoa muito que eu... Hoje eu dou muita gargalhada. E é muito bom porque... Eu estive lá em Alexandre esse final de semana, e tava vendo os vídeos, meu Deus! [risos] Cada gargalhada que eu dava que... Aí as meninas diziam assim... “Quitéria está feliz”, e eu “tô!”, eu “cá cá cá cá” [risos]... Eu ri muito. E eu gosto muito de dar risada, muito bom, eu acho que... Tira tudo que é coisa ruim, uma risada boa. E aí eu queria muito botar o nome assim das cachaças, mas eu acabei não fazendo isso, mas achei bem interessante. Aí às vezes eu do nada vou lá e faço uma cachaça. O licor não, é um processo mais demorado, porque tem licor que demora 30 dias, 40. O da laranja mesmo, é 20 dias macerando, aí depois você coa, acrescenta a calda, deixa mais 10 dias, aí depois você filtra para engarrafar. E é assim. Às vezes eu paro também para ir selecionar as sementes, eu sempre acabo meio que me perdendo um pouco também, porque tenho muita coisa para fazer, mas eu gosto de parar e fazer minhas coisinhas.
P/1 - E o que te faz rir hoje?
R - Ah, aqui está conversando com vocês, né? Muito bom. Estar com pessoas que têm uma energia boa, que passam uma energia boa para a gente. Não tem como você não dar risada, é inevitável. E rio de ver minhas coisas, minhas plantações crescendo, e rio também de uma situação bem inusitada que aconteceu, que eu plantei um milho e o passarinho veio e comeu, arrancou os milhos em todinho, né? Aí eu falei pro amigo meu, “o que que eu faço?” Aí ele disse, Zé Maria o nome dele, ele disse, “Mulher, você não sabia não, quando a gente planta, a gente planta para o passarinho, para a formiga, para a lagarta e o que sobra é nosso?” Aí eu, “eita rapaz, então não sobrou nada para mim” [risos]. E lembrei de Gisele também, a esposa de Alexandre, que a gente foi colher tomate-cereja, ela gosta muito de tomate, aí eu disse, “Gi, bora colher uns tomates ali, se tiver, né? Porque o passarinho come tudo””. Ela disse, Dona Quitéria, o que for nosso vai estar lá. Vamos lá, o que for nosso vai estar lá.” Ainda tinham os tomates, né? E essas coisas também me fazem muito dar risada, às vezes Alexandre vem pra cá e a gente fica conversando, e quando eu dou fé, “ai, tô indo aí”, que bom. É muito bom. Você se sente leve, né?
P/1 - E esse seu conhecimento sobre as sementes, sobre a roça, você ensina alguém? Você passa ele pra frente?
R - Passo.
P - Como?
P/1 - Passo. Eu tô sempre dizendo pras pessoas, que as pessoas às vezes falam assim, “que bobagem, isso é besteira, não sei o quê, é nada, é só plantar”. Eu digo, “é, mas a gente precisa pensar também que a gente não pode colocar veneno, né? A gente não pode pegar uma semente que veio lá, não sei de onde, que fulano tá distribuindo de graça, ir lá e plantar”, porque aconteceu comigo. Ir para distribuir um milho aqui, eu plantei e ele não era um milho que prestava. E aí, pela primeira vez, eu inserida nesse grupo de pesquisa do Vale São José, que faço parte agora, uma professora do grupo também me chamou para fazer uma aula espetáculo. Hoje é... Vai fazer 15 dias quarta-feira, eu fui dar uma atividade sobre semente crioula pra criança de segunda série, foi muito gratificante, porque eu não imaginei que aquelas crianças... “Meu Deus, como eu vou lidar com esse pirralhinho de segunda série, mostrar semente pra essas crianças”. Eu nunca fiz uma atividade sobre semente crioula e agora eu vou chegar com um monte de criança, eu vou fazer o quê? Aí fiquei a semana toda pensando, eu pedi para a professora, pede para as mães mandaram eles levarem um potinho. Fiz um kitzinho de semente para cada um, separei, fiz um pacotinho e levei semente, levei terra, porque era na cidade. Chego lá, “gente, vamos plantar essas sementes”. E foi muito gratificante, porque depois que eu... Eles ficavam, “ó, tia! E esse aqui precisa molhar? Ô, tia, vai crescer que dia?" E mexia na semente, tirava a semente, depois olhava e enterrava de novo, eu digo meu Deus. Aí eu disse, “olha, professora, quando for a semana que vem você me avisa do que aconteceu”. Ela disse, “olha, eles não param de perguntar de você”. Eu fiquei tão feliz, tão bonitinho, eles tudo interessados, querendo saber. “Minha avó tem…” Aí eu disse que teve um que chegou e disse “minha avó pediu o meu pacotinho de semente, professora, e levou pro sítio para plantar”. É muito bacana, foi minha primeira... E também nas feiras, assim, quando eu vou... Eu sempre dou um spoiler sobre sementes para algumas pessoas, né? Porque eu também tenho que... A gente tem que saber com o que está lidando para poder falar. O milho, por exemplo, é... O milho vermelho, eu não sei a partir de quê ele ficou dessa cor, né? Eu preciso descobrir.
P/1 - Como que você vê o futuro aqui desse território?
R - Assim, desse território aqui eu vejo um futuro, não tenho muita expectativa boa, não. O futuro que eu vejo daqui, da zona rural aqui do município de Caetés é ela se acabar. Eu vejo ela se acabando, porque... Eu tenho meu tio que mora aqui, minha prima mora ali, vão ser indenizados, vão sair. Eu vou ficar com o vizinho daqui, aquele outro ali vai sair também. Então, assim, vai se acabando, porque já tem a questão de que quando chegou e saiu, o pessoal já desanimou em plantar, já desanimou de cuidar da sua própria comida. Aí falaram assim, “por que feijão de corda não dá mais?” Era uma coisa que a gente sempre tinha, feijão de corda verde em casa não tem mais. E aí muita gente que mora aqui na roça, Sofia, compra até coentro, viu? Vai pra feira comprar coentro, comprar batata doce. Eu tenho batata doce pequena ainda, mas eu tenho. Também, se precisar comprar, não vou dizer que eu não compro, mas tem gente que não planta mais nada. Muita gente com depressão, com ansiedade, e a crise de ansiedade, ela faz com que você fique estacionado, sem pensar, sem ter como pensar no que vai fazer. O povo dando miojo para as crianças, dando salsicha, porque a comida saudável vai se acabando. E a gente sabe que uma comida saudável não é só livre de ser transgênica, é livre de adubo também. Quer dizer, não é só ser livre de agrotóxico, é ser livre de adubo, de mistura. Igual... É... Calma aí que fugi, que eu ia falar do... Meu Deus, me esqueci. Se eu lembrar depois eu falo.
P/1 - E como você vê o futuro da Caatinga?
R - Péssimo também. Péssimo. A Caatinga é o que mais entristece, né? Você vê... A gente saía pra cachoeira, pra olhar um rio, aí quando você vai hoje, você para, tem que deixar o carro, a moto, o transporte que você tiver embaixo de um aerogerador. As pessoas hoje, o ponto de referência é “onde você mora?”, “moro próximo da Torre Pintada”, que é essa ali. “Onde você mora?” “Ah, moro perto do parque eólico”. “Pra onde você vai?” “Ah, sabe onde é? Naquela torre em tal lugar”. Essa prima minha, a gente sempre saía de carro com as crianças pra ir olhar a Caatinga, e assim, é uma coisa assustadora. Eu tenho foto aí da gente andando por cima das rochas quebradas dinamites, assim, absurdas, que foram usadas pra... E você fica imaginando como deve ter sido para os animais aquilo ali, né? Porque é... É assim, é uma coisa absurda, é monstruoso mesmo. O estrago que eles fazem na Caatinga para implantar um aerogerador. Um! Imagina para implantar 150, não sei quantos mil. Acaba! E assim, a gente sabe, a gente pede, eu luto pra que esse parque seja desligado. Eu sou minoria, sou. Mas onde eu chegar, onde eu tiver a oportunidade de falar, eu vou pedir pra que ele seja desligado, desativado. Meu desejo é esse, entendeu? Eu sei que é difícil, é, mas eu tenho que expressar a minha vontade, o que eu quero pra mim. Na Caatinga já não mora ninguém mais. Quem morava na Caatinga foi embora. Você passa assim, você vê uma ruína, porque agora eles são espertos, eles indenizam e eles dão um prazo pra você sair da casa, de 30 dias. Tem aquele prazo determinado. Aí se você... Ou você aluga outra ou você se vira pra sair. Aí eles vêm e derrubam a sua... Você tira o que puder tirar. A telha, o que você puder tirar, você tira. Se não der tempo pra você tirar, eles vêm e derrubam a casa, e eles mesmo levam o entulho, não fica nada. Nada. Leva tudo. Na Caatinga, anterior, nas outras... Porque eles vão mudando de empresa, né? Já tá acho que na quinta ou sexta empresa que compra o parque, eles não levavam, não. Aí tem as casinhas lá, as ruínas, você fala assim, “olha, quem morava ali era fulano, mas foi embora, por causa da eólica. E ali era fulano, mas foi embora”. Então, ficou só as ruínas. E a Caatinga, ela vai se acabar. Infelizmente, a gente não tem muito o que fazer. A gente tem que lutar sempre, mas mesmo sabendo que é muito difícil, porque a gente é minoria diante de grandes empresas que só querem mesmo devastar o meio ambiente, degradar, né? E aí depois o povo reclama de enchente, reclama de seca, reclama disso, daquilo, e quando reclamam, eu digo, não só pra pessoas que fizeram isso aí, mas pra outras pessoas, eu digo. Porque a pessoa fala assim, “ai, Deus tá castigando o Nordeste com a seca. Deus tá castigando São Paulo com a chuva”. Não, Deus tem nada a ver com isso, não. Como o meio ambiente tá aí, a gente só tem que respeitar. A gente não tem nem o que cuidar, como diz Nego Bispo, a gente nem tem o que cuidar, não, a gente só tem que respeitar. Ela tá lá. Tá vendo a jurema? Ela tá ali. Eu preciso ficar cuidando dela? Jogando água nela? Ou podando ela? Não. Ela tá lá, ela se vira, eu só preciso respeitar ela. Pronto. E, na verdade, é ela que cuida de mim, não é que eu preciso cuidar dela, né? A gente só precisa respeitar. E acabou o respeito pela natureza. As nascentes estão se acabando. Aqui... Conhece Belo Jardim, já ouviu falar? Belo Jardim tem muitas nascentes, e eu, esses dias, conheci uma pessoa que eu sigo no Instagram, do Pé na Estrada, e eu vi que ele postou... Eu não estava assim, não sabia de nada, não estava inteirada desses assuntos, não. Aí ele postou uma foto de uma torre de... fazendo teste de vento, né? Aí eu, onde fui lá e comentei, eu disse, “não deixe não implantar, uma vez um parque aéreo implantado aí, nunca mais vocês vão ter paz”. Aí ele pediu o meu número, eu dei. Ele tá... Mulher, ele tá uma pessoa desesperada, ele tá literalmente desesperado, porque ele mandou vários vídeos pra mim, disse, “ó Quitéria, isso aqui vai se acabar, isso aqui vai se acabar, isso aqui também vai se acabar”. Mulher, cada cachoeira, é a coisa mais linda. Ele disse, “a gente tá com um projeto de lei para não deixar implantar esse parque, mas o projeto de lei da prefeitura. E se vier outro prefeito? Tá bom, esse prefeito assina e a gente não vai autorizar essa implantação desse parque eólico aqui. Mas aí muda a gestão”. Desesperado que tem gente que... Quando eu mandei... Tem uma matéria no jornal hoje, que o César Tralli fez uma reportagem que passou no jornal hoje, e o César Tralli fez vários comentários negativos sobre a eólica aqui, sobre esse parque, e ele disse que o pessoal não tinha visto ainda. Tinha um homem lá que quando ele viu, ele disse, “eu não quero não. Já assinei pra deixar a torre de medição na minha terra, mas e agora? O que eu faço? Eu não quero não, eu não quero”. Aí eu disse, é triste. Eu disse, conversei com o Alexandre, é triste que eles estão igual a gente. É triste, mas vai acontecer, porque, infelizmente, é a minoria que luta contra isso. Ali no São Clemente, tem várias pessoas que têm aerogeradores em suas propriedades, que recebem por volta de 20 mil reais ou até mais, e não é impactado, porque ele não mora aqui, ele mora no Maranhão, mora na cidade. Quem é impactado é quem mora de um lado, meu tio recebe de dois aerogeradores, ele é impactado, porque ele mora quase embaixo, mas eu também sou e não recebo nada. Só recebo problema de saúde, só recebo problema na plantação, na criação das minhas galinhas, tem galinha que vai, bota... Quinze ovos, quando você vê, tirou cinco pintinhos, aí você vai tirar, tem um morto, vai olhar os outros ovos, tá tudo perdido.
P/1 - E como você acha que a sua história pode ajudar nessa luta?
R - Ah, eu acho que pode conscientizar outras pessoas, né? Vamos acordar porque a gente vai fazer o quê? Vai deixar isso acontecer, vamos nos juntar, se unir, acho que a gente precisa parar para pensar um pouco no dia de amanhã e o que a gente vai deixar aqui para as outras pessoas. Porque o que tem aqui foi deixado por nossos ancestrais, e se a gente deixar acabar, vai ficar nada. Tem que lutar e dizer que a gente não pode desistir, tem que continuar lutando, que tem uma caminhada para prosseguir, para a gente chegar até algum lugar a gente não pode parar. E tem que focar na luta contra... o desmatamento, contra a degradação da Caatinga, porque a Caatinga é muito importante. O Brasil é o único país que tem bioma Caatinga.
P/1 - E hoje quais são os seus sonhos?
R - Meus sonhos? Que esse parque seja desligado. Que a Caatinga voltasse a ser o que era ela antes. Que era ela antes, toda cheia de paisagem, de árvore, com as suas montanhas, suas pedras. Era só um sonho mesmo, porque já tá feito. E assim, um sonho que seja desligado, eu já falei várias vezes. Desliga, desmonta, já impactou mesmo, mas pelo menos deixa a gente dormir em paz, né? os animais ficarem tranquilos, que os animais não têm culpa de nada, eu posso ter culpa, você pode ter, mas os animais, que culpa eles têm? Meu sonho é esse, ver tudo como se fosse uma inteligência artificial que passa na minha cabeça assim, ver um filme voltando, sabe? Meu sonho era esse.
P/1 - E você tem projetos seus para o futuro?
R - Eu tenho projeto de plantar bastante árvore e manter o meu local de plantar a minha comida saudável, né? Meu projeto é esse, de alcançar outras pessoas que pensam igual eu e a gente se juntar e fazer as coisas acontecerem.
P/1 - O que você achou, desculpa, de contar a sua história hoje?
R - Achei importante. É muita coisa que a gente tem pra falar, né? A gente acaba, às vezes, esquecendo de alguns detalhes, mas achei muito importante. Espero que alguma coisa que eu falei aqui possa impactar no pensamento de outras pessoas, na vida de outras pessoas e... pra gente reagir, lutar contra... contra quem quer destruir a natureza. Porque sem ela, nós não somos nada. O que somos nós sem as árvores. A chuva vem porque elas estão aí. Os animais precisam das árvores para se alimentar, pra... pra sombra, pra água, né?
P/1 - E como você se sentiu?
R - Bem, me senti bem, bem tranquila, foi muito bom. Achei que ia ficar nervosa, mas foi muito bom, fiquei muito muito tranquilo. Pode ser que eu tenha me atrapalhado em algumas coisas, mas é isso. Foi espontâneo, né? É porque assim, a gente nunca sabe fazer tudo direitinho, quando se trata de uma… de falar sobre essas coisas que impactam a vida da gente. É tanta coisa que você acaba esquecendo de alguns detalhes, é da vida também, né? Tem muita coisa da vida que a gente precisa analisar e ver que, poxa vida, se eu cheguei até aqui, eu posso ir mais longe, né?
P/1 - Você acha que faltou falar alguma coisa?
R - Faltou, mas eu não quero falar.
P/1 - Tem mais alguma coisa que você queira falar?
R - Queria dizer que achei muito importante a vinda de vocês para cá. É uma coisa importantíssima mesmo, porque precisa ser falado, precisa ser mostrado o que acontece, o que a gente precisa, o que a gente vive, como a gente era e como a gente é. Precisa ser dito para que as pessoas se conscientizem. Por exemplo, a Caatinga ela era maravilhosa, ela continua sendo maravilhosa, porém, ela tá destruída. Então, assim, é importante que as pessoas vejam isso e que se conscientizem, para que pare de acontecer. Que não é só eólica, não é só. Tem a solar também, tem os problemas de Maceió, que só prejudica a gente.
P/1 -Bom, então, Quitéria, super obrigada, viu?
R - Obrigada, Sofia.
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