Projeto Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista de Rosemary Barros Pinheiro
Entrevistada por Bruna Oliveira
Ladário, 28 de maio de 2025
Entrevista número PCSH_HV1471
Revisado por Nataniel Torres
P - Dona Rose, para começar, eu queria que você dissesse o seu nome completo.
R - Rosemary Barros Pinheiro. [intervenção]
P - Que dia que a senhora nasceu?
R - 20 de agosto de 1946.
P - Em que lugar?
R - Corumbá.
P - Então desde pequena a senhora sempre morou na mesma cidade?
R - Sempre morei em Corumbá.
P - E como é que era o nome dos seus pais?
R - Bibiano Souza Pinheiro, Minervina Valejo de Barros.
P - E você, como você descreveria eles?
R - Olha, foi um bom pai. Uma boa mãe. Sempre educou nós. Como podia, né? A gente era pobre, cada um fazia seu dever dentro de casa. Não tinha casa alheia. De noite a gente ia pra frente da casa pra brincar. Aí os vizinhos ficavam conversando um com o outro. Aí quando chegava no assunto de fantasma, a gente reunia tudo do lado deles, tudo comendo. Aí já estava na hora de ir dormir também.
P - E tem alguma história de fantasma que a senhora lembra desde aquela época?
R - Lembro. Lembro muito bem. Tem o Felismino, um parente do meu avô que me criou, que eu fui criada com o meu avô, né? Ele virava lobisomem. Não era mentira, não. A gente via o barulho lá na casa dele quando ele tava se transformando. E ele atacou muita gente no pedaço.
P - E a senhora conhecia?
R - Conhecia, conhecia.
P - E o seu pai e sua mãe, o que eles faziam?
R - O meu pai era chalaneiro. E a minha mãe vendia porco, linguiça e frango na feira.
P - E o seu pai e sua mãe eram daqui?
R - São.
P - Também nasceram…
R - Eu fui criada em Corumbá.
P - E essa época ninguém era envolvido com peixe ou já era?
R - Não.
P - Não?
R - Não.
P - Começou com você?
R - Começou com a minha mãe. Aí eu trabalhava no supermercado Sumerca. Aí o mercado fechou. Aí eu falei: “Mamãe, o...
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Entrevista de Rosemary Barros Pinheiro
Entrevistada por Bruna Oliveira
Ladário, 28 de maio de 2025
Entrevista número PCSH_HV1471
Revisado por Nataniel Torres
P - Dona Rose, para começar, eu queria que você dissesse o seu nome completo.
R - Rosemary Barros Pinheiro. [intervenção]
P - Que dia que a senhora nasceu?
R - 20 de agosto de 1946.
P - Em que lugar?
R - Corumbá.
P - Então desde pequena a senhora sempre morou na mesma cidade?
R - Sempre morei em Corumbá.
P - E como é que era o nome dos seus pais?
R - Bibiano Souza Pinheiro, Minervina Valejo de Barros.
P - E você, como você descreveria eles?
R - Olha, foi um bom pai. Uma boa mãe. Sempre educou nós. Como podia, né? A gente era pobre, cada um fazia seu dever dentro de casa. Não tinha casa alheia. De noite a gente ia pra frente da casa pra brincar. Aí os vizinhos ficavam conversando um com o outro. Aí quando chegava no assunto de fantasma, a gente reunia tudo do lado deles, tudo comendo. Aí já estava na hora de ir dormir também.
P - E tem alguma história de fantasma que a senhora lembra desde aquela época?
R - Lembro. Lembro muito bem. Tem o Felismino, um parente do meu avô que me criou, que eu fui criada com o meu avô, né? Ele virava lobisomem. Não era mentira, não. A gente via o barulho lá na casa dele quando ele tava se transformando. E ele atacou muita gente no pedaço.
P - E a senhora conhecia?
R - Conhecia, conhecia.
P - E o seu pai e sua mãe, o que eles faziam?
R - O meu pai era chalaneiro. E a minha mãe vendia porco, linguiça e frango na feira.
P - E o seu pai e sua mãe eram daqui?
R - São.
P - Também nasceram…
R - Eu fui criada em Corumbá.
P - E essa época ninguém era envolvido com peixe ou já era?
R - Não.
P - Não?
R - Não.
P - Começou com você?
R - Começou com a minha mãe. Aí eu trabalhava no supermercado Sumerca. Aí o mercado fechou. Aí eu falei: “Mamãe, o que eu vou fazer? Eu tenho quatro filhos, aluguel de casa, água, luz. Vou passar uma semana procurando emprego”. Passei duas. Aí a mamãe falou: “Venha vender peixe, minha filha”. Ah, mas eu com 23 anos, onde queria vender peixe? Nada. Disse pra minha mãe: “Não, não vou vender peixe, não, mamãe”. Passei uma semana, o dinheiro começou a acabar. Falei: “Não, vou descer pra vender peixe, né?”, aí desci. No primeiro dia, piranha morta me mordeu. Tirou um pedaço da minha mão. Com cinco dias, eu não tinha mão para segurar a colher. Tudo que era peixe me estrepava, me ferrava, cortava a minha mão. Eu não sabia mexer com a faca, cortar com o peixe. Falei: “Ah, mamãe, não vai dar certo”. Mamãe: “Vai, minha filha. A persistência é a razão do viver”. Aí foi que eu fiquei.
P - A sua mãe já pescava?
R - Não, a gente comprava dos pescadores.
P - Mas ela já vendia?
R - Já vendia antes de mim. Já tinha dois anos vendendo.
P - Então vamos voltar um pouquinho antes. Quando você me contou agora que seu pai era chalaneiro, vocês passeavam muito de chalana com ele?
R - Não. Era chalaneiro porque não tinha ponte, que o trem passava. O trem vinha só até Porto Esperança. De Porto Esperança pra Corumbá era as lanchas que trazia passageiro, carga. E papai tinha duas chalanas: Bartira e Borboleta. Eu e outro meu irmão mais velho ficávamos na Bartira, que era a chalana leve. Ele ficava num remo e eu ficava no outro. Nós trazíamos passageiros. E o papai ficava com a Borboleta, que era a chalana grande, e ele trazia as cargas. Ele nos ensinou que pegava os passageiros e subia de encontro com a correnteza. Quando chegava na correnteza, a gente jogava e remava rápido para encostar no barranco, que é aquele barranco lá onde fica cheio de carro e desce aquele último ladeirão, ali é encostado.
P - E é lá no Rio Paraguai?
R - No Rio Paraguai.
P - E quantos anos você tinha?
R - Eu tinha 14 anos e o meu irmão 12.
P - E você era a mais velha?
R - Era a mais velha.
P - E me conta se você chegou a conhecer, você falou que você foi criada pelos seus avós.
R - Meu avô.
P - Você chegou a conhecer seu avô e sua avó?
R - Eu conheci da parte de meu pai, eu conheci meu avô e meu avô. Da parte da minha mãe também. Mas esse meu avô criou meu pai. Aí quando eu nasci, que fiquei com cinco anos, ele me pegou da minha mãe. Era vizinho, e ele tinha do outro lado do Rio, uma roça. Aí ele me levava pra lá. Com os oito anos, ele me internou no Colégio das Irmãs. Eu fiquei seis anos no Colégio das Irmãs internada, estudando lá.
P - E na época que você ficava na roça com ele, como é que era? Ele ensinava você a lidar com a roça?
R - Ensinava a carpir, plantar, colher, matar periquitos na fonda, que comiam milho, né? Aí tinha que matar.
P - Matar pra ele não comer o milho?
R - Não comer o milho.
P - E depois ele decidiu internar você no colégio?
R - É, ele falava na minha filha que ele me chamava de “negra”. Ele falava: “Negra, eu vou fazer de você gente. Você vai estudar. Você vai ser gente para cuidar dos seus pais amanhã”.
P - E por que a senhora foi criada por ele, você sabe?
R - Porque ele tinha a melhor aquisição financeira e ele achava que com ele eu ia ser mais bem educada que com a minha mãe.
P - Nessa época, quantos irmãos você tinha?
R - Tinha dois.
P - Era o seu irmão de 12 anos e quem mais?
R - E a Maurência, que morava em Campo Grande, que faleceu ano retrasado.
P - E como era a convivência com seus irmãos naquela época?
R - Era bem. A gente vivia bem. Tudo criança, tudo brincava.
P - Você gostava de brincar do quê?
R - De roda, de pega-pega, de puladinha, de queimada. A gente brincava até nove, dez horas da noite. Não tinha pra onde ir, que ali é onde era aquela estrada que você viu, ali era pedra. Era uma pedreira. Quando começou a fazer o moinho, que começou a fazer a estrada ali, que pavimentou, né? Não era. A água chegava lá na porta da casa da minha mãe. Aquela casa nos fundos, vizinha da Bibiana, ali que nós nascemos e criamos.
P - E como é que era o cenário, a paisagem ali?
R - Era muito bonito. Quando o rio secava, tinha dois campos de futebol. Deste lado era dos homens, deste lado era das meninas. E uma vez por mês a gente disputava com os homens.
P - O rio Paraguai secava?
R - Secava, dava uma praia longa. Muito bonito, muito bonito. Aquele outro lado do rio era só fazendinha. Só gado.
P - E você morava do outro lado do rio?
R - Não, eu morava vizinho da minha mãe.
P - Vizinho da sua mãe.
R - E do outro lado era a roça do meu avô.
P - E daí quando você... A roça era... Só a roça? Não morava lá?
R - Não.
P - Ah, entendi.
R - Não morava lá. A gente ia de dia pra lá. Quatro horas a gente atravessava o rio pra cá.
P - E tem alguma história dessa época que a senhora lembre com carinho?
R - Lembro que meu avô dava medo, que eu queria tomar banho no rio. Ele falava, minha filha, vocês não sabem o que tem dentro desse rio. Dentro desse rio tem girafa, tem leão, tudo era pra enfeitar a minha cabeça, me criar medo. E tem o bicho d'água que te pega pelo pé. Aí eu criei medo, dentro d'água eu morria. Eu esperava ele carregar água, encher o tambor pra me tomar banho.
P - E que bicho d'água era esse?
R - O menino d'água. Esse eu cheguei de ver. Cheguei, tinha o finado Emilito, que era um empregado daquele tempo, era um loide brasileiro, não era bacia do Prata. Ele chegou numa sexta-feira santa e a mulher não tinha feito comida, nada. Ele falou: “Vou pescar um peixe pra comer”. E a canoa ficava bem em frente da casa de mamãe, o rio estava cheio, ele embarcou na canoa e todos nós sentados olhando. Mamãe ainda falou pra ele: “Ei, Emilito. Tu não vai, hoje é sexta-feira santa, meio-dia, não vai, é perigoso”. Ele falou: “Não, eu vou que eu não tenho o que comer em casa”. Primeira tarrafada ele pegou peixe, segunda tarrafada ele pegou o negrinho d'água. O negrinho d'água deu uma surra nele, quase matou ele. Precisou o papai pegar uma canoa, ir lá e acudir ele e trazer ele. Quase matou ele.
P - Dizem que não pode sair na sexta-feira, né?
R - Não, é um dia muito perigoso. Hoje não. Hoje fazem festa, fazem baile. Mas quando nós era criança, os santos na casa da minha mãe, na casa da minha avó, era tudo coberto. Na sexta-feira santa, a gente só comia depois que o galo cantasse duas horas. A minha avó botava uma tigela no centro da mesa, cheia de folha de laranjeira. A gente tava com fome, ia lá, pegava aquela folha e botava na boca pra mastigar. Aí só ia comer depois que o galo cantasse duas horas. Aí ela chamava nós pra comer. Hoje não. O pessoal bebe, mata um ao outro, é um desrespeito. Eu fico olhando, mas eu falo para meus filhos: “Vocês não vão andar. Não vão fazer as coisas que não devem. Hoje é um dia sagrado”.
P - E como é que era lá no colégio, quando você começou a estudar?
R - Ah, eu sentia falta de casa. Sentia falta do meu avô, de noite eu chorava. Aí a freira vinha e falava: “Não, minha filha, ninguém tá fazendo nada a você, tem que acostumar”. Aí depois de uns cinco, seis meses eu acostumei. Aí de três em três meses o meu avô podia me buscar pra passar um dia com eles. Aí eu já não queria mais vim pra casa da minha mãe, eu queria ficar lá, que tinha horário pra gente brincar, tinha tudo. Aí eu já tinha perdido aquela alegria de meus amigos que era criança comigo. Eu já não queria descer, queria ficar lá.
P - E a sua outra irmã não foi com você? Foi só você?
R - Só eu. Só eu que ele me criava.
P - E como é que era a casa do seu avô naquela época?
R - Era sala, o quarto, uma área de serviço, banheira, cozinha e um galpão onde ele empilhava milho. A gente debulhava milho pras galinhas comerem, pro porco comer. Aí ficava armazenado. Tinha um lugar que era cheio de areia, que ele enfiava mandioca, batata doce ali pra ter sempre. Ficava ali.
P - E ele plantava o quê?
R - Milho, mandioca, batata doce, quiabo, maxixe, melancia, abóbora, tudo. Eu falo assim, parece que eu tô vendo ele na minha frente. Ele era um português baixinho. Ele esteve nas duas guerras mundiais. Nesse pé esquerdo, ele tinha só dois dedos. Nessa mão aqui, ele só tinha esses dois. O corpo dele era tudo marcado de bala, essas coisas.
P - Como era o nome do seu avô?
R - Do que me criou? Benedito de Souza Pinheiro. A gente chamava ele de “Velho Marinho”.
P - Por quê?
R - Porque ele gostava de ser chamado assim, que ele falava que era o nome do pai dele.
P - E me conta, na escola, como foi no primeiro dia quando você chegou lá? Você não gostou?
R - Não. De jeito nenhum. Ainda tinha que vestir aquela saia comprida, que era para baixo do joelho, o tempo todo de uniforme, o tempo todo o cabelo preso. Tinha horário pra comer, quando batia o sino já tinha que rezar pra ir dormir. Puxa, aquilo pra mim era uma... Nossa mãe, que pecado que eu tava pagando ali.
P - E você contou que você tinha medo de entrar no rio, seu avô falava pra não entrar.
R - É.
P - Mas você não nadava então no rio?
R - Não. Eu fui aprender a nadar com 23 anos, depois que eu casei que fui aprender a nadar.
P - Aí nadava no rio Paraguai mesmo?
R - Nadava. Nadava, aprendi a remar. Aprendi a remar, já aprendi a remar com meu avô, né? Cedo aprendi a remar.
P - Com seu pai também, né?
R - É. Já com meu pai já era maior. Depois que o velho morreu, que eu saí do colégio. Aí que eu já vim morar com meu pai. Aí mamãe um dia chamou eu e meu irmão mais velho e falou: “Olha, vocês dois vão ter que ajudar seu pai na chalana. Vocês vão ficar com a Borboleta, que é leve, e seu pai vai ficar com Bartira, que é pesada. Tem que trabalhar”, aí nós fomos. A mãe fez um cinto largo, de pano, pra gente enlear na cintura pra não deixar o remo leve, solto. Por causa da força que a gente fazia, cansava o braço, aí tinha que ser os dois braços. Era aquele remo comprido e meu irmão desse lado. Então, a gente tinha que apresilhar o ferrinho pra trabalhar.
P - E como que foi no momento que seu avô faleceu?
R - Nossa, pra mim foi uma perda. Eu chorava tanto. Nossa, eu não sabia onde que era o cemitério.Mas eu pedia pra meu tio me levar lá. Todo dia eu ia lá ver ele. Todo dia. Todo dia. Aí já não precisava o meu tio levar. Eu pedia pra professora me soltar 20 minutos mais cedo, que era pra minha mãe não sentir falta que eu tava indo no cemitério. Aí eu ia de carreira lá no cemitério ver ele.
P - E esses ensinamentos de ervas que a senhora tem, dos chás, a senhora foi aprendendo ao longo da sua vida?
R - Foi aprendendo ao longo, e meu avô me ensinou bastante também. Ele me ensinava bastante. Ele me ensinou muito conhecer as pessoas. Ele sentava comigo e me explicava como que era a vida que eu tinha que saber, tinha que conhecer. Ele falava: “Minha filha, não confia num homem porque ele tem a cabeça branca. Os canalhas também envelhecem”. Isso eu gravei que até hoje eu olho pra pessoa assim e vou falar pra senhora, é muito difícil uma pessoa me enganar. Muito difícil. Os meus filhos arrumam umas amizades, eu chamo eles depois e falo: “Olha, não confia. Não confia. Não confia”. Porque o inimigo, ele não vem aqui na sua casa pedir para você ir com ele lá na esquina. Você não vai. Ele é seu inimigo, mas ele manda um amigo seu vir te buscar para levar para ele. Esse meu filho mais velho não me escutou. Ele era soldado, engajado, já ia embora para a Amazônia, que o capitão do exército gostava muito dele, ia levá-lo para a Amazônia, ele já ia sair daqui como cabo. Aí, um dia, eu morava na casa dos fundos, escutei, tá batendo palma, eu saí e vi o rapaz, um amigo dele: “Ai, dona, vim buscar o Rubinho, a gente vai ali, já volta já”. “Tá bom”. Aí foi. E ele morava aqui nessa casa da frente. Deu 10 horas, fiquei despreocupada, fui dormir. No outro dia cedo, eu fui embora com o meu finado marido no caminhão da cooperativa. Na descida, um rapaz fez sinal pra nós parar. Aí paramos. Ele falou: “Ô, dona Meire, vai pro hospital, seu filho tá lá, morre ou não morre, esfaqueado”. Dona, eu vou falar com a senhora. Parece que aquele caminhão não andava. Aí chegou lá no hospital, não deixaram eu entrar pra ver meu filho. Deixou só ele. Aí ele falou: “Vou lá no exército, Meire, fica aqui. Aí ele veio no exército lá, pegaram meu filho e trouxeram aqui pra Marinha. Ele era militar, os médicos lá não podiam tocar a mão nele. Veio pra cá, pra Marinha. Aí depois de operado, tudo, de tarde que eu pude ver ele. Ele falou: “É, mãe, eu tô aqui porque não escutei o que a senhora falava. O Jefinho me buscou pra fulano. E se eu não sou ligeiro, eu tinha morrido”. E até hoje eu falo pra meus filhos: “Confia na pessoa, sempre desconfiando, meu filho. E quando você for para um lugar que na saída não deu certo, mas dez passos não deu certo, volta, meu filho, não vai não. Deus está te livrando de alguma coisa”. O dia que eu sofri esse assalto, que eu tomei essa cacetada aqui, que eu fiquei dois anos e oito meses cega dessa vista, minha mãe falou: “Minha filha, não vai na Caixa Econômica. Você não tem dinheiro, minha filha, pra pegar todas essas joias no leilão. Não vai, não”. Falei: “Não, eu vou”. Aí eu olhei pra trás, assim, a lancha vinha chegando com o peixe. Aí eu falei: “Ah, vou subir que eu vou tirar dinheiro. Olha lá, Ramon chegando”, que era um pescador [intervenção]. Aí, na descida começou a garoar, eu puxei o casaco assim na cabeça e com o dinheiro aqui .Na subida eu vi o homem sentado comendo numa sacola, mas todo mundo me conhecia, né? Primeira cacetada eu botei essa mão aqui, quebrou meu braço aqui, a segunda quebrou esse osso meu aqui. Aí a terceira eu escorreguei e tomei aqui. Aí um senhor, que é amigo da gente lá, passou, que viu, gritou, socou o carro em cima dele, mas ele já tinha pego meu dinheiro, tinha tirado meus brincos, corrente, pulseira, tudo minha. Passou lá pela peixaria, falou pros meus filhos: “Ó, sua mãe tá morta, vou deixar ela lá no pronto-socorro”. Ah, foi aquele desespero. Aí chegou lá, eu não tava morta, eu tava em coma. Eu fiquei em coma cinco dias. Quando eu acordei, eu já tinha perdido essa vista, esse meu aqui tudo roxo. Aí, depois de dois meses, eu fui no médico, o médico falou que eu já tinha perdido a vista. Primeiro o delegado foi lá, me levou pra reconhecer a pessoa. Aí eu olhei pra ele bem, falei: “Não”, falei pro delegado, “não é nenhum deles”. Só falei com um polícia, “eu vou acertar com ele. Pode ter certeza, vou acertar com ele”. “Tá”. Passados dois meses que ele fez isso comigo, ele teve a capacidade de ir lá no meu serviço, pedir um cigarro pra mim. Eu olhei pra ele, não falei nada, peguei o cigarro e dei pra ele, que nessa época eu fumava. “Tá”. Aí eu tinha os amigos paraguaios que vêm nesses empurras. Pra um amigo meu falei: “Ó, o cara tá solto aí. Tá aí. Veio aqui pedir cigarro pra mim”. Aí ele falou: “Ah, vou levar ele pra passear no Paraguai, porque de lá ele não vai ter condição de voltar pra cá mais”. E levou ele. Foi de mais de oito anos, eu encontrei com ele de novo na Frei Mariano. Só que ele não me reconheceu, porque eu tinha cortado o cabelo bem curtinho e pintado. Ele não me reconheceu. Aí depois eu fiquei viva com ele, onde eu via ele eu desviava, que bandido é bandido, ele não tem nada a perder. 10 reais que ele leva de você, pra ele é dinheiro, é lucro.
P - E tudo isso, o seu avô que te ensinava?
R - Me ensinava.
P - E das ervas, dos chás também?
R - Também. Para a senhora ver, esse meu filho teve Covid, ele pegou no colégio. Ele quase morreu, mas não levou ele no médico. O outro, meu neto que eu crio, esse quando eu soube, que ele tava na casa da mãe, passando umas férias, quando eu subo ele estava no hospital. Aí eu corri lá no hospital, o médico, a enfermeira falou: “Ele vai ser intubado de noite”. Falei: “Não, eu vou levar ele agora”. “Não, não”. “Levo, levo. Cadê o médico?” Chamaram o médico: “A senhora tem que assinar uma porção de papel, documento aqui. A senhora é responsável”. “Assino”. Trouxe ele. Ele não falava nada. Em três dias botei meu neto de pé. Depois que todo mundo melhorou, quem caiu fui eu. Eu sou ruinzinha, não gosto de remédio, não. De remédio, não. A única coisa que eu tomava, toda hora que eu tomava, era chá de alho. Toda hora eu tomava chá de alho ou comia alho. E sarei, tô aqui. Tô de pé.
P - E na escola, o que a senhora gostava de aprender?
R - Catecismo. Mas só que a minha vocação não era ser católica, a minha vocação era ser espírita. Porque eu via gente que já tinha morrido e eu conversava com a pessoa, assim, sabe? Eu chegava em casa, falava com a mamãe: “Mamãe, vi fulano, assim, assim”. A mamãe falava: “Vai dormir, menina? Tá louca? Conheceu fulano? Você não conheceu, como que você conversou com ela? Ela já morreu”. “Conversei, mamãe”.
P - Desde pequena?
R - Desde pequena. Eu tinha visão. Desde pequena.
P - E não tinha medo?
R - Não. Não tinha medo.
P - E me conta, quando você remava na chalana com o seu irmão, teve um dia que foi marcante?
R - Teve. Teve um dia. Foi marcante, que eu caí na água, sem saber nadar, pra acudir a criancinha da mulher que caiu na água. Sem saber nadar.
P - Como é que foi essa história?
R - Acho que foi o remo que eu segurei, o remo não afunda, a madeira não funda, que eu segurei a menininha pelo cabelo. E meu irmão jogou o outro remo pra me segurar, pra me puxar.
P - E a criança tinha caído?
R - É. A mãe distraída. Acho que a criança achou bonito e pulou.
P - Quantos anos você tinha?
R - 14 anos.
P - E conseguiu sair bem da água?
R - Consegui, consegui pegar a menininha.
P - E não sentiu nem medo de pular?
R - Não, não sei onde que me deu tanta coragem aquele dia. E até hoje eu tenho esse dom de cuidar. Eu falo para meu filho que antes de eu morrer, eu ainda vou fazer muita cirurgia espiritual, vou cuidar de muita gente. Eu falo para esse meu filho. Esse meu filho fala: “Não tem nada que três metros de corrente e dois cadeados não dá jeito. A gente prende a senhora para parar de sair loucura”. Eu falo para ele: “Não é loucura”.
P - A senhora começou a fazer cirurgia espiritual com quantos anos?
R - Não, eu falo pra ele que antes de eu morrer eu vou fazer.
P - Você vai fazer, não faz ainda.
R - Não.
P - Entendi. E me conta como é que foi quando a senhora começou a ficar mais mocinha? O que a senhora fazia pra se divertir?
R - Olha, nós íamos no cinema das 4 às 6. Mamãe falava: “Se vocês chegarem às seis e dez aqui, outro domingo vocês não saem”. Primeiro que a mamãe tinha um fogão de ferro de quatro bocas, a lenha, eu tinha que deixar aquela chapa brilhando no sábado de tarde, que já era para poder sair no domingo. Mas isso eu já tinha dezoito anos. Aí eu fui trabalhar na Casa Síria como balconista. Trabalhei três anos e oito meses. Saí pra casar. Saí véspera do meu casamento.
P - Foi seu primeiro emprego?
R - Foi meu primeiro emprego.
P - Aí já era com 18?
R - Já era com 18 anos.
P - E você continua estudando depois que você saiu do colégio?
R - Não, eu fiz ginásio, que na época não era segundo grau, era ginásio. O ginásio eu fiz.
P - E aí, como é que foi que você conheceu o seu marido?
R - Eu conheci no clube, no carnaval. Conheci ele, namoramos dois anos, aí resolvemos casar.
P - Como que foi esse dia, você lembra?
R - O casamento?
P - Não, você conheceu ele.
R - A gente já era amigo. Aí, um dia, ele falou — ele chamava Jonas —, aí ele falou assim: “Rose, vamos brincar de namorar?”. Aí eu falei: “Vamos”. A mamãe pegou eu de mão dada com ele, tomei uma surra. Tomei-lhe uma surra, até hoje eu lembro. Tomei uma surra, a mamãe fez uma leiteira de dois litros de salmoura e jogou em mim. Deus me livre, a hora que aquela salmoura bateu, que ela molhava a corda pra bater... Rapaz, vou falar pra senhora: eu não sabia onde que doía. Aí eu falei pra ele: “Você quer saber de uma coisa? Eu já não tenho mais namoro, não. Eu já apanhei da minha mãe por causa de você. Porque você é um homem” — ele tinha 23 anos, parece — “e eu sou uma criança. Acabou o namoro”, eu falei pra ele. Ele falou: “Não, eu vou enfrentar seu pai”. Oxa! Namorava, sentava eu, ele e meu irmão bem no meio. Das seis às sete, que era o namoro, e ficava conversando. Conversa vai, conversa vem... Aí, no dia 17 de setembro, ele me pediu em casamento. Aí, no dia 29 de abril, nós casamos. Ah, minha filha, que desespero! Naquele tempo, a gente era tão ingênuo que não sabia de nada. Na hora que esse homem passava a mão em mim, eu gritava a minha sogra. Minha sogra gritava lá do fundo: “Vai dormir, cambada! Quero dormir! Vocês não dormem, não deixam os outros dormirem”. Foi uma leva, nossa mãe! E pra mim ter minha primeira filha, que eu não sabia por onde que nascia? Minha sogra falava pra mim: “Vai nascer por onde você fez”. Na hora que eu ia no banheiro, eu passava a mão e falava: “Ah não, eu vou morrer. Por esse buraco não vai sair. Agora eu vou morrer”. E eu chorava. Minha sogra falava: “Cala a boca! Cala a boca, não chora pra mim, não. Quem mandou você fazer?”, e eu chorava. Como que eu chorava! E eu quase morri de parto dela. Ela nasceu com 5 kg e 350 g, eu quase morri. Meu pai teve que ir na fazenda buscar o doutor Wilson. Aí ele chegou, falou pro meu pai: “Olha, vou salvar sua filha. Porque ela não tem condição mais nem de fazer cesárea”. Tirou, minha filha. Nasceu preta, com todo umbigo enleado no pescoço dela. E até hoje ela é gorda. Ela tem 154 quilos. Toda vida ela foi uma criança gorda.
P - Nasceu grande já, né?
R - Já nasceu grande. As roupas que eu tinha feito, nenhuma entrava nela. Ela ficou cinco dias embrulhada na toalha.
P - A senhora fez as roupinhas dela?
R - Fiz. Eu gosto de costurar. Gosto demais de costurar. Agora não, porque agora eu não sinto agulha, não sinto nada, os dedos não sentem. Não costuro mais. Pago pra costurar, mas eu gosto.
P - Você contou um pouco, mas eu queria retomar a história de começar a vender peixe. Sua mãe já vendia, aí ela falou pra você começar a vender. Você já tinha a sua primeira filha?
R - Já. Eu tinha aquele que tá lá, aquele altão branco, que tinha dois anos. Eu tinha que levar ele, porque os irmãos iam pro colégio, não tinha com quem deixar ele, eu levava ele. Aí eu não sabia se trabalhava, se vendia peixe, se cuidava dele. Pra não ir na água. Foi até que um dia eu falei pra mamãe: “Não, eu vou amarrar esse guri”. Aí eu comprei uma corda grande, amarrava nele, amarrava na minha cintura. Não tinha como ele correr de mim.
P - E nessa época, você pescava ou nunca pescou?
R - Não, pesquei. Dona, eu dei meu trabalho pro serradeiro. Vocês vão entrevistar ele, ele vai falar. Pra fazer essa casa aqui, eu pesquei até na hora de ter meu filho caçula. Eu quase tive esse guri em uma chalana lá em cima, na primeira ilha.
P - E pescava o quê?
R - De rede. Era proibido. Aí depois que a rede se tornou crime, eu abandonei pescar. Mas eu pescava.
P - Pescava que peixe?
R - O que batesse na rede. Era eu, Deus, uma carteira de cigarro e uma garrafa de café. Eu saía da minha casa às seis horas, que eu morava lá em Corumbá, e chegava às cinco horas, quatro e meia, ali na praia com o peixe.
P - Quatro e meia da manhã?
R - É. Passava a noite toda pescando.
P - Sozinha?
R - Sozinha. Não, com Deus, né?
P - E o seu marido?
R - Já pescava também. Pescava mais em lancha. Longe daqui que eles iam. Lá para o São Lourenço, a Rita Velha, a Maria Joana, que ele ia pescar. Ficava 12 dias fora de casa.
P - Ficava um tempo, né? Não tinha como voltar rápido.
R - Não. Porque a APAM vinha com 32, 38 toneladas de peixe. Era a lancha dele.
P - E, enquanto isso, você pescava por perto?
R - Pescava.
P - E você estava falando que você deu trabalho para o Coronel Ângelo porque ele era da polícia?
R - Ele era o comandante e ficou sabendo que eu pescava, ele botava as polícias para tentar me pegar.
P - E você escapava?
R - Escapava, eu botava ouvido n’água para escutar o barulho do motor. Aí eu enfiava no camalote. Eu passava a noite toda no meio do camalote. Quando eu subia na chalana para tirar o peixe da rede, meu corpo era cheio de sanguessuga pregada. Aí eu tinha que derramar vinagre pra elas soltarem.
P - E não tinha cobra no meio dos camalotes?
R - Não. Até tinha, né? Mas cobra é... Só sucuri, né? Quem enleia na gente. Mas não tinha.
P - Nunca pegou?
R - Não.
P - E como que foi? Começou a vender? Aí já sabia vender?
R - Já. Depois a mamãe me ensinou a cortar, tirar espinha. A mãe falava: “Tá vendo, minha filha? Você não nasceu com dente, depois que ele nasceu”. “Eu tinha muita pressa”, a mamãe falava pra mim. Mas eu aprendi. E eu tô até hoje, criei meus filhos, construí minha casa, passei 10 anos juntando dinheiro pra construir isso aqui. [intervenção]
P - Há quanto tempo que a senhora pesca?
R - Que eu vendo peixe?
P - Vende peixe.
R - 58 anos. Perdi minha mocidade ali. Mas agradeço muito do ensinamento da minha mãe. Muito eu agradeço. Aprendi muito. Conheci muita gente. Conheci muitos bandidos. Fernandinho Beira Mar era um freguês meu. Grande. De dois em dois meses ele chegava com oito isopor, passava o dinheiro pra gente, falava que era isopor tudo cheio de peixe. “Eu vou entrar pra Bolívia” - que ele vinha na lancha dele - “Aí daqui dois dias, três dias eu tô aqui, eu quero isopor tudo cheio de peixe”. E a gente batalhava. Eu e meu irmão que morreu, a gente corria atrás. Mamãe não gostava. Mamãe: “Vende peixe pra esse homem, nada. Qualquer hora vai todo mundo preso junto com ele”. Eu falava: “Mamãe, ele tá comprando, tá daqui do dinheiro que ele deixa, tudo. Nós não temos nada a ver com o que ele faz. O que ele faz é problema dele”. Conheci muita gente. Conheci muito deputado. Eu sou sobrinha-prima do deputado Ibsen Pinheiro. Conheci muita gente.
P - E nessa época que você começou a vender, onde que era a peixaria?
R - Lá embaixo no porto, onde fica aquelas lanchas lá. Não era peixaria. Era uma lona que a gente jogava no chão, ali botava o peixe. Balança era aquelas de mão, assim, que pesava o peixe. A gente não limpava, nem botava em sacola. Era amarrada com fio, assim, aí entregava pra pessoa. Se a pessoa tinha sacola, punha na sacola. Se não tinha, levava embora pendurado. Aí depois a gente foi aprimorando. Apareceu um senhor de Cuiabá que ensinou a gente a cortar o peixe, limpar o peixe. Aí ficamos aprimorados ali.
P - E a senhora, quando era mais nova, antes de começar a vender peixe, o que a senhora gostava de comer?
R - Eu gostava de comer carne com arroz. Adorava carne com arroz. Carne com arroz e farofa.
P - Que carne que é?
R - Carne seca. Carne fresca eu não comia, porque eu tinha ido num velório e lá servia carne fresca com arroz. Nunca eu gostei, nunca eu fiz na minha casa. Eu vejo, parece que eu tô vendo pessoa do velório lá, pessoa morta no caixão. Eu não gosto, eu gosto de carne seca com arroz Que bebe de abóbora, que bebe de mamão. Meu filho não gosta. Ele gosta de jiló. Ele não gosta. De jeito nenhum.
P - E a senhora vendia muito peixe no começo?
R - Ô dona! Tinha dia de eu vender dois, três mil quilos. Era muito turista, muita gente. Era dois, três ônibus ali pra gente vender peixe.
P - E Corumbá era cheio?
R - Era. Muitas pessoas foram embora de Corumbá. Porque Corumbá só tem dois fatores para trabalhar: ou vai para o morro para mineração, ou vem para as lanchas servir de piloteiro. Não tem outro serviço melhor.
P - E tinha muito turista na época?
R - Tinha. Nossa mãe! Corumbá foi muito movimentado. Corumbá, tudo que a senhora pensar, tinha, teve.
P - E a senhora foi acompanhando a mudança do lugar ali?
R - Foi, foi.
P - Porque sempre esteve no mesmo lugar?
R - Sempre no mesmo lugar.
P - Tanto do porto quanto do rio, né? Como é que foi? Foi mudando ou não?
R - Foi mudando.
P - Era daquela cor a água já?
R - Era.
P - Sempre foi?
R - Só que ali divide, né? Não sei se a senhora prestou atenção. O rio que desce de lá é claro, o rio que vem da baía é escuro a água. Não mistura.
P - E a parte que a senhora tem a peixaria, já é escuro?
R - Já era a água escura da baía que saía. Era a água escura da baía.
P - E lá foi mudando com o tempo?
R - Foi mudando com o tempo, né? De 95 pra cá, que começou esses barcos pesados, grandes, do Paraguai, vim pra cá, acabou o peixe ali no rio em frente ali. A gente trabalhava 60% com o peixe que comprava dali de frente. A gente ficava vendo os pescadores tirar os pintados, pôr na canoa, dourado, pacu. Aí depois que começou a passar esses navios, são três hélices, acabou o peixe. Hoje dali a senhora não come mais nem bagre.
P - E como é que foi essa mudança que você falou de começar a vir esses barcos grandes? Antes não tinha. Como é que era a negociação com os pescadores?
R - A gente fornecia gelo, alimentação e combustível. Eles tinham a lancha deles. Aí eles iam embora pescar. Aí dez, doze dias eles vinham com o peixe. Tarrabão de peixe era cinco dias. Vinha com mil e duzentos quilos cada lancha.
P - E era o que você vendia por dia?
R - Por dia.
P - E vendia qual o peixe mais?
R - Pintado. Mais era o peixe nobre, pintado e pacu. Na época dourado também era vendável.
P - Hoje em dia não?
R - Não, hoje é proibido a pesca dele. E se esses pescadores não se baterem em cima, não vai ser liberado nunca. Porque o governo teve cinco anos para estudar, meio retrasados, que não estudaram nada. Gente, o que é isso? Cinco anos e você não fez nada. Proibiram para mais dois anos.
P - Porque tá em extinção?
R - Tá nada, tem demais, dona. Não tem pescador. Porque hoje ninguém mais quer ser pescador. Ninguém. Eles querem receber só auxílio, que é os quatro meses que o governo paga. Falar que Corumbá tem 2 mil pescador, não tem. Se tiver 50, tem muito.
P - Então, o seu trabalho tá sendo prejudicado, né?
R - Tá.
P - Que tem menos peixe pra vender, né?
R - Tem, pra vender. Menos peixe pra vender.
P - E essa época que você pescava, você já vendia?
R - Já vendia. Eu chegava com o peixe, tinha um senhor que destripava pra mim, eu ia pra casa tomar um banho, trocar de roupa, aí eu vinha pra trabalhar. Tirava um pouco de peixe, dava pra minha mãe, pra ela ficar quieta. Senão ela mesmo falava pros homens, ela: “Tá ali”. Minha mãe não gostava. Ela falava: “Pensa bem, minha filha, você só sabe remar, você não sabe nadar, o que você quer dentro d'água?” Eu falava: “Mãe, eu vou e volto. Você não tem fé em Deus? Eu vou e volto”. Eu ia e voltava. Quando eu cheguei lá pra ter meu filho, esse último, que eu vou mostrar a foto dele, falei: “Mãe, me vindo esse peixe, a senhora tira quatro pintados pra senhora” - que era trinta - Aí falei, “senhora, entrega treze pra Lulu e treze pra o Seu Ceará, que aí eu vou pra maternidade”. Aí tava um senhor parado, eu falei: “Você não me leva lá na maternidade?” “Mas assim como a senhora está? Suja de peixe”, eu falei: “É”. Aí depois que eu ganhei meu filho, que eu tomei banho. Aí fiquei enleada na toalha até mamãe ir lá me ver, levar roupa pra mim. Eu sou guerreira e ensino meus filhos a ser guerreiro. Não desvaneça, não.
P - A senhora contou que criou eles quase sozinha, né?
R - Quase sozinha. Esse último, meu marido que morreu, que tá com seis anos, esse nunca soube o preço de um filho, de um chinelo de dedo havaiana pros filhos. E eu nunca soube o quanto que ele ganhava, afinal de contas. Eu quando estava construindo essa casa aqui, ele chegava de viagem, ele via o quintal aí cheio de material e falava: “Você está fazendo conta, mulher? Está pensando que eu vou pagar? Eu sumo com a roupa do corpo”. Eu falava: “Se você quiser, vai agora. Não estou fazendo conta para você pagar não, homem. Estou fazendo para mim pagar”. Dia de sábado eu subia ali da praia, meio-dia, eu ia deixar um pouco do que eu ganhava pra cada um que me deu fiado. Eu agradeço muito ao seu patrão Marinho e à dona Maria Marinho. Apartava as coisas pra mim, eu ligava pra ela. Ela falava: “Pode mandar buscar, negra” - me chamam de negra - “Pode mandar buscar, negra. Pode mandar”, ela falava pro gerente: “Assina um papel aí que ela vai levar”. E fiz minha casa.
P - Como é que era a rotina de vender o peixe?
R - Puxa, era muito alegre, dona. Hoje não, hoje é uma competição. Competição ali que eu enfrento no meio de filho. Tem aquele filho moreno meu assim, que você viu sentado. Ele tem dois anos que eu não falo com ele. Ele arrumou uma amante. E a mulher dele é agente penitenciária, só que hoje ela é chefona lá do presídio. Eu falava: “Ô Marquinhos, não faça isso, meu filho. Você tem uma mulher trabalhadeira, tem dois filhos, vai destruir sua família”. Mas não deu outro, bicho. Ele fazia compra só de roupas boas, coisa cara, com o cartão da mulher. Foi até que ela descobriu. Dona, ele quase matou essa mulher de tanto bater. Ele deixou ela careca desse lado de uma vez, puxando ela pelo cabelo. E a filha tava gravando, ele deu um murro na filha, quebrou o nariz da menina assim. Aí eu falei pra ele: “Ela não teve coragem de chamar a polícia pra mim, mas eu vou chamar”. Aí a filha dele falou: “Não vovó, chama não”. Aí eu não falo com ele. Tem dois anos. Falei pra ele. Falei: “Meu filho, eu esconjuro você como meu filho. Uma mulher que ajudou você. Você fazia a compra pra sua amante com o cartão dela e você fez o que você fez com ela. Não me chama de sua mãe. Eu não sou sua mãe”. Não falo com ele. Aquele outro meu filho lá, aquele altão, ele se entregou na cachaça há 22 anos. Meu filho era um mendigo aqui em Ladário. E olha que ele trabalhava nessa eichata paraguaia, cargando a eichata. Tinha sábado que ele pegava cinco, seis mil dólares. Ele sumia de mim. Eu acordei um dia com o rapaz batendo na minha porta: “Dona Meire, seu filho tá lá caído esfaqueado”. Dona, eu perdi minhas pernas. Eu corri tanto que eu esqueci que eu tinha um fusca. Esqueci do fusca. Cheguei lá gritando, achei o senhor: “Dona Meire, o que foi? Por que você tá gritando?”. Falei: “Meu filho que tá caído ali esfaqueado. E levamos ele pro hospital. Ele passou por três cirurgias. Aí, ele continuou bebendo. Quando foi um dia, eu fui buscar ele, que ele tava caído no sol quente. Nós dois desmaiamos. Ficou eu e ele no CTI. Eu fiquei dois dias, ele ficou cinco. Aí o médico chamou ele e falou: “Olha, você infartou e quase que você mata sua mãe. Se você botar um gole de pinga na sua boca, você vai morrer”. Foi que ele largou de beber. Hoje ele tem uma mulher que é uma pérola, vou falar pra senhora. Mulher trabalhadeira. Dou conselho pros dois. Eu falo pra eles: “Olha, ninguém vence sem luta. Ninguém. Você me diz quem que venceu sem lutar. Então vocês lutam pelo que vocês querem. Coma uma vez por dia, você não vai morrer porque não jantou. Coma”. Eu passei muitas fomes, dona, para criar meus filhos. Não tenho vergonha de falar. Esse povo rico de Corumbá tudo me conhece. Dia de sábado, de tarde, eu botava uma sacola embaixo do braço. Eu ia na casa desse povo rico, que tudo me conhecia, pedir. Eu falava: “Eu não quero dinheiro. Eu quero roupa usada e o que comer, se vocês têm pra me dar, e não quero de graça, eu limpo o quintal, limpo uma cozinha, o que vocês quiserem que eu faça, eu faço”. E criei meus filhos, eu falo pra eles. De vez em quando aparece lá esse povo que tudo fora embora de Corumbá, os filhos cresceram, Corumbá não tem serviço, muitos formaram, são médicos, são engenheiros, mas de vez em quando eles vêm lá na praia me ver. Levam um presente pra mim, aí eu reúno meus filhos e falo: “Essa pessoa me ajudou a criar vocês”. Ganho! Ixi, tem muita gente! No mês passado teve uma senhora que trouxe pra mim lençol, toalha, até bolo ela trouxe pra mim. “Aí, Meire, isso daqui foi minha filha que mandou pra você” “Tá bom”.
P - Dona Rose, a senhora estava falando que... Vou retomar, depois a gente volta pra essa parte. É o que veio na minha cabeça agora. A senhora estava falando que o Ângelo Rabelo perseguia a senhora, botava o povo atrás da senhora. Quando que a senhora decidiu parar de pescar?
R - Quando o pescar de rede se tornou crime. Ia puxar a cadeia. Falei: “O quê? Vou puxar a cadeia e largar meus filhos para os outros? Não”. Larguei de mão. Ele falava para mim: Mulher, você vai ver”. E hoje nós somos amigos. Eu tenho uma adoração por ele. Corumbá conheceu cultura através dele e da Márcia. Corumbá não tinha cultura. Era só aquele carnaval, aquela festa de São João e... Hoje não. Aquele moinho ali era uma casa de pomba e esconderijo de bandido. Era tudo acabado. Quando fecharam ali, roubaram tudo do material que tinha ali. Ali fazia trigo, farelo, biscoito, macarrão. Roubaram tudo. Esse homem, quando pegou aquele moinho ali, dava pena. Eu falava, “Ah, homem!”. Pra senhora ver, ele era para não gostar de mim, porque meu tio era caçador de jacaré, meu tio que aleijou aquele braço dele. Mas hoje a gente somos amigos. Gosto muito dele. Gosto muito do Coronel. Ensino muitas coisas pra ele. Lá onde ele mora, lá no Amolar, eu quando casei, o meu sogro tinha fazenda lá. No Taquaral. Eu falo pra ele como que é lá. Eu falo: “O dia que aquele morro tremer, Rabelo, você abandona aquilo lá”. Porque um morro treme. Treme tudinho. Conheço tudo. Eu falo pra ele. Daqui até chegar no Amolar, barranco por barranco. Ensino as coisas pra ele.
P - O que a senhora ensina?
R - Ah de tudo, eu falo pra ele: “Rabelo, vou falar uma coisa pra você. Deixa de falar que raio tá tocando fogo no Pantanal. Porque raio é uma machadinha de pedra desse tamanho. Aonde ele cai, ele afunda dois, três metros. Ele não pega fogo. Então, você não fala que raio tá pegando fogo no Pantanal. E vidro. Você acha que alguém vai sair daqui pra jogar vidro lá no sermo de meu Deus? Não fala, não”. Ele fica bravo comigo. Eu ensino pra ele do lado que o sol morre, do lado que o sol nasce, a posição das estrelas, o que vai dar no outro dia. Eu falei pra ele: “Rabelo, você quer plantar? Planta, que nós vamos ter uma grande seca”. “Ah, mas como assim?”. Falei: “Olha a posição que o sol tá morrendo. O sol tá morrendo pra cá. Ele não pode morrer pra cá, ele tem que morrer bem aqui. Então a gente vai ter uma grande seca”. A senhora tá vendo esse rio cheio? Isso é água de chuva. Parou de chover, ó. Vai embora. Eu ensino as coisas pra ele. Eu adoro ele com a Márcia. A Márcia é uma menina sorridente. Um coração bom. Ela adora aquelas crianças. Tudo é filho pra ela. Branco, preto, rico, pobre. Tudo é filho pra ela.
P - E o seu sogro que tinha lá no Taquaral, como é que a senhora conheceu aquele lugar a primeira vez?
R - Quando eu casei, botou meu marido de gerente, a gente foi morar lá.
P - E daí parou de pescar? Ou não pescava ainda?
R - Não pescava.
P - Não pescava ainda.
R - Não pescava. A gente foi morar lá como gerente. Aí quando a gente tinha que vir, a gente vinha de 3 em 3 meses pra cidade. Aí nós íamos no morro tirar pedra ametista, aquele morro ali é rico. Ali tem ametista, tem malacacheta, tem ouro. Tem de tudo que você pensar aquele morro ali. Muito rico. Muito rico.
P - E garimpava?
R - Não, a gente sabia onde tinha, eu sabia onde tinha. Cada sol bate assim onde tem, fica fazendo assim. Aí eu ia com o meu marido com uma enxada, uma alavanca, uma picareta, nós tirávamos um saco, dois sacos, aí a gente vinha pra cidade e vendia.
P - E dava dinheiro?
R - Dava, a gente vendia pra essa joalheria. E pra falar a verdade, eu nunca gostei de bolso de homem. Eu gostava do meu trabalho. Gostava de trabalhar, ter meu dinheiro.
P - E como foi que a senhora ficou sozinha com seus filhos?
R - Eu separei dele.
P - Do Jonas?
R - É, do Jonas. Ele trabalhava no Itaú, um dia, meia-noite, escutei a voz dele, falei, “Ah!”. Levantei, abri a porta, deitei. Ele nunca que chegava. Aí eu saí. Era a minha terceira vizinha. Peguei ele abraçado com ela. Enquanto ele tava lá namorando, eu tava fazendo a mala dele lá em casa. Na hora que ele chegou eu falei pra ele: “Tá aqui sua mala. A casa é minha, pega destino, vai viver com ela”.
P - E nessa hora a senhora teve que começar a criar seus filhos sozinha?
R - Criar sozinha.
P - A senhora tava contando que deixava ele dentro de casa?
R - Deixava trancado. E ai deles, se eles fizessem piratagem, todo mundo apanhava os cinco pra um não rir da cara do outro. Apanhava os cinco.
P - O que a senhora falava pra eles não saírem?
R - “Vocês não vão pra rua, porque tudo que aconteceu lá fora foi um filho sem pai que fez. Então vocês não vão. Vocês vão apanhar”. Então, e nunca, dona, deixei meus filhos ir por casa de tio, de tia, pedir nada. Nunca. E nunca deixei faltar nada pra eles. Nunca. Eu batalhava pra eles terem o que eles queriam. E toda a vida estudando. Toda a vida estudando.
P - E conta pra mim como é que foi o dia que você vendeu aquele peixão. Que peixão que foi aquele?
R - De 54 kg, um pintado. Era o Sr. Sebastião, velhinho. Ele, da canoa dele, ia igual uma bala. Desceu igual uma bala. Passei a que tinha um motor na canoa. Falei: “Gente, o que esse velho tá arrumando hoje. Quem que tá arrumando pra ele?”. Aí eu chamei o Sr. Darcy e falei: “Sr. Darcy, vai com a voadeira atrás do Sr. Sebastião, que ele tá indo igual uma bala. Acho que alguma coisa tá puxando ele”. Aí o Sr. Darcy falou: “É 10 reais” naquela época, “pra ir”. Falei: “Tá bom”. Fui atrás dele, ele lá, veio puxando. Puxaram o peixe lá na praia ali atrás, que puxou o pintado. E o pintado tava cansado. 54 quilos. Aí 10 turistas queriam o mesmo peixe. Não tinha como. Porque eu pendurei. Falei: “Ah, se não vender até o final do dia, eu vou fazer filé, porque dentro do frito também não cabe”. Aí 10 turistas queriam o mesmo peixe. Falei: “Não tem condição”. Aí tive que ensinar uma senhora lá perto do aeroporto que fazia essas bolsas térmicas. Aí eles foram lá, que a dona fez uma bolsa térmica de 1,80m ou 2,80m, não sei, que enfiou o pintado dentro e que levou. Poxa, aquele pintado até hoje! Seu Sebastião, velhinho, ficou alegre. Falou: “Ô dona Meire, com esse dinheiro eu vou comprar um motor e um bote”. E comprou um motor e um bote.
P - E a relação que você tinha com os pescadores naquela época era diferente?
R - Era. Naquela época existia homem de palavra, dona. Existia. Hoje, não existe mais. Hoje se a senhora confiar num homem, a senhora tá dando um tapa no sal.
P - E eles contavam pra senhora a causa de que eles passavam no rio?
R - Contavam, do que eles viam. Esse rio tem coisa feia, dona. Tem muita coisa feia que a gente não sabe. Mas que tem, tem. Eu tenho um rapaz que tem 24 anos, que ele não pesca de noite, mas nem que pague ele muito bem pago. Ele fala: “Não, dona Meire, eu escutei o rio falando. Eu não pesco de noite de jeito nenhum”. E não pesca mesmo. E ele era um bom pescador da noite. Ele chegava com cinco ou seis pintados, barbado, palmito, piranha. Hoje ele pega aqueles peixinhos ralo e fala: “Tá dando pra pagar a pensão do meu filho, mas de noite eu não pesco. Não pesco mais de jeito nenhum”. E eu falava: “mas o que o Rio falava?”. Ele falava: “Não sei. Falava uma linguagem diferente, uma linguagem feito índio. Mas não pesco de noite, eu não pesco”. Ele não vai mesmo. Ainda ontem eu falei pra ele: “Tá saindo pintado de noite”. Ele falou pra mim: “Pode bater até ouro no meu anzol, de noite eu não vou”. E não vai mesmo. Tadinho dele, tem dia que vai dar pena dele. Fala, “mas vai, ué, de noite. É as coisas da sua cabeça. Você não bebeu pra ir pescar ali, não?”. “Eu não bebo, você sabe que eu não bebo”. Mas, enfim, fazer o quê?
P - Tem outra história que contaram pra você do Rio?
R - Tem, tem muito. É que esse rapaz já morreu, senão eu ia pegar a foto com ele pra mostrar pra senhora. De uma mulher sentada na canoa dele. Até aqui era uma mulher, daqui pra cá era um peixe. Ele tirou no celular dele. E não tem muito tempo, tem seis anos isso. Tem, esse rio tem muita coisa, dona, que a gente vai morrer e não vai saber o fim. Acho que tem, tem.
P - E o que é o Pantanal para a senhora?
R - Puxa, plantar o Pantanal para mim é uma vida. Eu falo para o meu filho: “O dia que eu morrer você me enterra onde quero-quero vai cantar, onde vai ter pássaro cantando embaixo de um arvoredo”, eu falo para ele, “e eu quero ser enterrada antes do pôr do sol”. Ele fica assim. Ele fala: “Tá mamãe, eu vou procurar um arvoredo pra enterrar a senhora debaixo dele”. Ai, eu adoro, dona, esse Pantanal é uma vida. Muito lindo, nós somos muito ricos, esse Pantanal. Muito, muito, muito, muito. Aí tem bicho, tem pássaro que a gente não conhece. Muito.
P - O Ângelo falou pra mim que aqui, o Pantanal, o homem que viveu aqui aprendeu a conviver com a natureza.
R - Não tem coisa melhor que a senhora morar nesse Pantanal. Não tem coisa… Coisa boa. Eu falo pra Ângelo Rabelo, falo assim: “Ângelo, se eu ganhar na mega, eu vou mudar lá pro Palmital. Nunca mais eu boto o pé aqui em Corumbá”. Porque o Palmital é a coisa mais bonita do mundo. A senhora vê aquele... Lá do pico do morro, a cachoeira que nasce, que cai a água.
P - Onde que é?
R - Palmital. É pra lá do Taquaral. Tem o Taquaral, aí vem o morro da Guaíba, a senhora sobe o morro e desce pra chegar no Taquaral. Divisa com a Bolívia.
P - É depois da Serra do Amolar?
R - É, depois da Serra do Amolar. É outra morraria tão bonita quanto a morraria do Amolar. Ele tá louquinho pra comprar lá agora. Agora ele te infernizou que quer comprar o Palmital. Não sei o que ele tá arrumando, mas ele quer comprar lá. É a coisa mais linda. As casas é tudo telada, todas as casas tem piscina com água natural. Muito bonito.
P - Quando a senhora falou que você deu um conselho pra ele, que era do morro tremer, como é que é essa história?
R - Ele ri. O pessoal abandonou esse morro no dia que ele tremeu, mas eu já sabia que ele tremia. O meu sogro me falava que ele tremia. Aí tem o Amolar, até ali o morro do Amolar, aí vai, tem o cemitério, aí arrodeia aqui, tem a baía do Joga Saco, com aquela baía encantada. Daquele morro que tem no meio da baía, sai um bicho tão grande, tão grande, que ele levanta onda como se fosse mar.
P - Aonde?
R - Tem o morro do Amolar, né? Aí a senhora vai, tem o cemitério. Aí vira o cemitério pra ir pra Taquaral. Desse lado aqui tem a baía do Joga Saco. Fala baía do Joga Saco. Ele tem um morro bem no meio dela. Aquela baía ali é encantada. Um dia falei pro meu marido: “Vamos lá pescar”. “Vamos”. Só que ele mentiu pra mim que ele sabia remar. Aí nós fomos. Aí já tinha pego bastante peixe. Aí falei pra ele: “Vamos embora, Jonas. Começa a remar”. Ele remava de pá. “Você não falou que sabia remar, homem?”. Aí eu olhei pra trás e o troço vinha. Dona, aquela onda vinha forte. Ah! Mas eu bati remo que essa canoa atracou no barranco e eu corri. Ainda larguei ele na canoa onda. Veio que jogou canoa com peixe lá quase no pé do barranco do morro. Falei: “Tá vendo, bicho? Você ser mentiroso, a gente ia ser comido por esse troço, que nem nós sabe o que é”.
P - E você chegou no barranco?
R - Cheguei lá e corri longe dele na canoa. “Quer morrer, morre você. Eu, não”. Ah! E eu falo pra Rabelo, ele fica quieto: “Tá mentindo pra mim, velha”. Falo: “Tô mentindo nada. Você que vai lá”, falo pra ele. “Vai”. Ele cai na risada. Rabelo é um grande homem, nossa. Eu falo para ele: “Você está igualzinho um coronel, só barriga”. Eu falo : “Sua filha tá bonita”. Eu falo que Márcia é filha dele. Eu falo: “É, sua filha está bonita, você fica barrigudo, você vai ver que é bom para a tosse. Aí ele fala: “Vou caminhar amanhã. Amanhã eu caminho”. Ensinei para ele que ele tinha que tomar caldo de osso, tutano, aí a Márcia falou: “Ih! Pra ele virar moçaria. Ele está só no osso para emagrecer, acabar com a barriga”. Duas, três semanas e ele larga de mão também.
P - Rose, você estava contando antes para a gente que você conheceu uma pessoa lá perto do porto. Quem que foi?
R - Conheci?
P - É, que estava lá escondido.
R - Ah, tá. Como que eu esqueço o nome dele? Ora, eu esqueço o nome dele. Que homem bonito, hein? Sepa do homem. Ora, como que é o nome dele, meu Deus? Ele era guerrilheiro, né?
P - Che Guevara.
R - Che Guevara. Na Bolívia, mataram ele à traição. Então, nós estávamos tomando banho na cacimba da saúde, que lá tem uma cacimba, que a água é... Como que tem saúde quem toma banho naquela água lá. Aí, eu saía do colégio ia tomar banho, nós tomávamos banho tudo nu, para não molhar a roupa, para não apanhar da manhã, quando chegaram em casa. Aí, eu falei para a minha prima, para a Jurani. Eu falei: “Jurani, eu vou lá fazer uma necessidade e volto”. Eu entrei e ele estava sentado numa pedra, quieto. Eu olhei para ele assim. Aí, fui chegando mais perto, conheci. Aí, eu falei: “Você é a Che Guevara, né?”. Ele fez para mim assim. Ele fez assim para mim. Não tinha maldade. Aí eu fui perto dele. Aí ele falou pra mim: “Como que eu faço pra comer?”. Aí eu falei: “Você tá com fome?”. Ele falou: “Eu tô”. Aí eu falei: “Meio dia eu trago comida pra você”. Aí tinha que esperar a mamãe dormir pra poder apanhar a comida. Aí eu peguei aquelas latas de leite ninho, a mãe tinha bastante, lavei bem, botei arroz, botei feijão, botei carne. Aí botei numa sacola,______. Eu andava, que tinha a quinta, atravessei a quinta pra ficar mais perto. Fui lá, levei pra ele. Aí ele me deu um dinheiro, ninguém trocava aquele dinheiro que ele me deu. Ninguém. Falei: “E agora o que eu faço?”. Ele queria cigarro e fósforo com aquele dinheiro, mas ninguém… Aí eu falei: “Puxa, vou ter que arrumar dinheiro. Vou vender garrafa”. Peguei bastante garrafa que a mamãe tinha e vendi na cervejaria. Comprei duas carteiras de cigarro e dois pacotes de fósforo, duas caixas de fósforo pra ele. Levei. Aí eu falava: “A janta eu não posso trazer, porque eu não posso sair escurecendo a casa de uma mãe. Ela não pode achar falta de mim. Mas comida eu trago pra você”. Aí no quarto dia ele pegou confiança em mim. Ele falou: “Você conhece o fulano?”. Eu falei: “Conheço. Conheço ele e conhece o irmão, que é o doutor Wilson e… O outro que ele mandou entregar a carta. Não foi para o doutor Wilson, foi para o irmão do doutor Wilson. Doutor Salomão Baruchi. Aí ele falou: “Você entrega para mim?”. Eu falei: “Eu entrego”. Ele falou: “Vou te dar um presente”. Eu falei: “Tá”. Aí peguei a carta e entreguei para o doutor Salomão Baruchi, a carta dele, o que tinha escrito na carta, não sei, do jeito que ele me deu dobrado o papel, entreguei. Aí, no outro dia, quando levei a comida pra ele, ele me deu duas notas desse tamanho, Eu falei: “Eu não quero, ninguém troca esse dinheiro, eu não quero. Aí ele falou: “Tá bom”. Aí ele falou: “Depois da manhã, o que eu tô esperando vai chegar, aí a hora que vocês virem trazer a comida, eu vou tentar dar um presente”. Falei: “Tá. Aí eu fui alegre, pensando, falei: “Ele vai dar uma escapada aqui, vai comprar alguma coisa”. Falei: “Como que eu vou chegar com isso na casa de mamãe? Vou tomar uma surra”. Que mamãe batia, que mamãe não tinha... Aí tá, entreguei a comida pra ele, ele falou: “Vou te dar esse presente”. Puxou o cordão, arrebentou o cordão com crucifixo desse tamanho, assim, me deu. Aí guardei, você vê 14 anos, guardei até os 34 anos. Aí, na mudança pra cá, perdi tudo. E mataram ele lá na Bolívia, à traição. Aquele homem, acho que não era fácil pegar ele pra matar, não. Cepa do Bugre. Lindo, maravilhoso. Aí ele me contou que ele tinha separado da mulher, que tinha duas filhas, falou o nome das filhas, tudo. Falei: “Tá bom”. Aí, depois de muitos dias, eu contei para a mamãe. O quê? A mamãe falou: “Você abre sua boca, a polícia vai te prender, vai prender seu pai porque você é de menor, seu pai vai viver na cadeia por causa da sua língua. Você conheceu ninguém, se você tivesse conhecido ele, tinha te matado”. Falei: “Ah não, deixa de bom”. Mas eu conheci ele. Eu queria ter uma máquina de fotografia para mim tirar fotografia com ele. Como eu queria. Muito bonito. Bonito, bonito, bonito. Mais claro do que eu, pouca coisa. Muito bonito.
P - Rose, por que você acha que a pesca... Eu não sei se você sabe o porquê, mas eu queria saber o que você acha. Por que você acha que a pesca foi proibida com rede?
R - Olha, porque na época tinha o frigorífico La Pesca, aqui embaixo, no Ladário. E ele cresceu muito depressa. Ele cresceu muito depressa. Meu marido pescava pra ele. Às vezes até eu ia com meu marido quando eu queria sair um pouco da cidade, eu ia com meu marido pescar. E puseram na cabeça do deputado, do senador, que a pesca era predatória. Mas a pesca é o único apetrecho seletivo. Porque se a senhora faz malha 14, vai pegar peixe pequeno. Mas se a senhora faz malha 20, 22, 24, é só peixe de 10, 12 quilos pra cima. E tirou muito peixe, dona. Tirou muito peixe. Tinha viagens que a gente vinha com 28, 32 toneladas. Era lancha e achata. E não era só uma lancha, não. Eram cinco, mas a nossa era maior, que trazia peixe. Aí ficou, que fechou por cinco anos, aí fechou. Quando deu os cinco anos, fechou por mais cinco e isso está até hoje. E só não está proibida a pesca de uma vez que eu falo para os pescadores: Faz pé, bota pé. Não aceita, não aceita, não aceita”, porque eles falam que vão fechar por três anos, nunca mais vai abrir, nunca mais vai abrir. E outra, agora o governo quer tirar todos os ribeirinhos. Tiraram o ribeirinho, dona, vai ficar pros poderosos, fazer mansão, como aí pra cima tá feito. Por que os animais tão vindo pra cidade? Porque tão acabando com o habitat deles. Tão acabando. Os animais eram a mesma coisa que nós. Se a senhora é acostumada num silêncio, aí muda um vizinho barulhento aqui, outro vizinho barulhento aqui, pronto, acabou o seu sossego. A senhora não come sossegada, não dorme sossegada, não trabalha sossegada, quer dizer que vai desnorteando a senhora. Até a senhora se aborreceu, sai daqui, né? Ou perde a cabeça, faz as coisas com o vizinho ou com o outro. Mesma coisa os animais. Mesma coisa os animais. Aqui eu botava no muro milho, coisa, me entregaram para o Ibama. O Ibama proibiu. Estou dando de comer aos animais que estão com fome, lá no mato eu não tenho o que eles comerem. Aqui no fundo eu tenho quatro pés de goiaba. Eu não tiro goiaba. Só tenho um que eu tiro para doce. Todo ano eu faço 30, 35 quilos de doce para vender. O resto eu deixo para os animais comer. Eu tenho pé de mamão e não tiro uma mão para comer. Eu deixo para os animais comer. De noite eu nunca acordo, porque ainda ponho nesse muro aqui, que eu ponho banana, laranja para os macacos que vêm de noite comer. Macacos eles nem ligam, mas passarinhos eles não querem que dão de comer.
P - E vêm bastante macaquinhos?
R - Tem, mas tantos são _____, aqueles macaquinhos. De noite eu esqueço, tem dia eu esqueço, depois eles começam a chorar e eu sei que é eles. Aí eu vou na geladeira, pego as bananas e venho deixar aí no muro pra eles. E pão, se não passar manteiga, eles não querem também. Tem que passar manteiga. Aí eles comem. Agora a vizinha daí também põe. Ela fala: “Não, dona Meire. Vamos pôr junto, porque os animais estão com fome”.
P - E me conta como é que foi a mudança? No começo você vendia na lona. Aí como é que foi aprimorando o negócio?
R - Foi o prefeito, o doutor Fadá, ele desceu lá na praia para comprar peixe, que a gente já era amigo, que eu trabalhei muitos anos na casa da mulher dele, que eu saía do Cats Lanches, às quatro horas eu ia para casa da mulher dele, fazia limpeza na cozinha, batia a roupa da máquina, limpava a cozinha tudo para ela, a área de serviço, fazia chá, que ela tomava muito chá. Deixava chá de capim cidreira, chá de losna, tudo assim na geladeira, nas vasilhinhas, aí eu ia embora. Aí o doutor Fadá: “O que é isso, negra? Que desespero é esse?”. Falei: “Agora vem uma enxurrada, vem e leva tudo o peixe, a gente tem que estar amarrando na lona pra não precisar carregar lá pra cima”. Ele falou: “Escolhe um lugar que eu vou fazer pra vocês trabalharem”. Aí eu falei: “Só ali. Arruma o barranco, a gente fica ali e ele fecha”. Tamo ali. Ele entregou pra nós ali. Em 1984. Ele fez e entregou pra nós ali. Ninguém queria mexer com peixe. Aí ficou eu, minha mãe e meu irmão, que morreu. Aí meu filho quis vender peixe, eu arrumei uma banca pra ele. Aí aquele negrinho também que tá lá, queria vender peixe, eu fui e falei com o doutor Fadá, que era a única que tava fechada. Aí o doutor Fadá deu pra ele. Aí tem pessoas que ficam: “Ah, mas por que só sua família?” Porque ninguém na época queria vender peixe, fedia, tinha vergonha. Então, quem quis trabalhar, ficou, quem não quis, pegou destino.
P - E a senhora ficou?
R - Eu fiquei. Fiquei. Ih, dona, sou muito querida. Sou muito querida. Muito querida.
P - E conhece bastante gente.
R - Conheço. Nossa, esse Brasil todo. Tem um japonês que fez até um livro sobre mim no Japão, que ele era escritor. Tiramos bastante foto. Tô com peixe, ensinando ele, tudo. Então... Aí ele mandou um livro pra mim, aí eu dei pra essa minha filha que morreu lá na casa dela. Ninguém sabe do livro. Falei: “Poxa vida, vocês são desleixados. É uma coisa que a gente tem que guardar pro resto da vida”. É igual a Coronel Rabelo. Coronel Rabelo, qualquer artista que chega ali, ministro e tudo, ele corre lá na banca. “Vamos lá, te apresentar pra eles”. Eu tenho foto com ministro da pesca, ministro da agricultura, jogador de futebol, jogador de vôlei, com cantora, com artista. Por fim, eu tirei foto… A última foto que eu tirei foi com aquele cantor que fala “eu queria ser um peixe”. Eu tenho foto com ele. Se não, eu ia pedir para o meu filho pegar para te mostrar. Foi a última foto que eu tirei. Falei: “Não quero tirar mais fotos com ninguém, eu quero dinheiro”. Ele falou: “Quer dinheiro, vai trabalhar”. Então, eu sou muito querida, nossa minha! Igual as crianças, agora cinco e meia, vêm as crianças dali, sua avó de um bando de criançada. Eles batem no portão: “Vó! Vó!”. Eu tenho que ter chocolate, biscoito pra dar pra eles. Aí começa a ciumeira: “Ela não é sua avó, é só minha”. “Sou avó de todos vocês”. Ah, e lá na praia também, as crianças do Moinho. Às vezes tá atindo com a mãe. “Vó! Vó!”, só pra dar tchau pra mim. Meu filho que fala: “ A mamãe tem bastante neta. O que será da senhora mais tarde?”. Eu falo: “Não sei, vão me repartir um pedacinho para cada um”.
P - E me conta como é a rotina hoje da senhora na peixaria?
R - Olha, ali para mim é minha casa. Se eu pudesse, eu ia para ali seis horas e voltava cinco horas para casa. Meu filho não deixa. Ficou assim que ali se chega uma lancha com 300 quilos, tem que dividir, porque não tem peixe. Aí tem 10 pintados, vamos dividir por 3 os 10 pintados. Tem 30 quilos de piranha, vamos dividir por 3 a piranha. Fica uma rotina meio ruim, porque um não quer, um quer tudo, outro não quer. Aí, por exemplo, eu que dei dinheiro pra pessoa sair, eu sou a menos favorecida. Porque ele mesmo que foi pescar para mim falou: “Não, dona Meire, vamos repartir, fica chato, porque amanhã a senhora não me fornece, aí eu não posso pedir para ele”. Aí tá bom. Igualzinho ontem, onde chegou o peixe. Esse pescador eu pesco para a minha irmã, mas a minha irmã é luxenta, ela quer pegar o peixe que ela quer, aquela cangaia lá. Aí ele fala: “Não, dona Meire, a senhora pega qualquer peixe que a gente trazer, a senhora pega. Ela não, ela quer, tá, eu vou vender também pra quem quiser”. Ela não pega jaú de jeito nenhum. Pacu ela não pega do Rio, porque o Pacu tá feio, tá magro. Aí eu falei: “Nós somos três. Você trouxe quantos quilos de filé?” “Trouxe 104, então vamos dividir pra nós três. 104, dá trinta e poucos quilos pra cada um. Tem oito pintados, vamos dividir os oito pintados pra nós três. Tá bom assim?” “Tá bom”. Aí até discuti com meu filho, falei: “Olha, você pegou peixe dele, começo de abril. Você vendeu, por que você ainda não pagou ele? Você vai pagar ele, ele vai sair sábado, quinta-feira ele vai fazer compra. Então você se vira para pagar ele. Você para ser desonesto, seja com você, mas com o que você pega dos outros não, vamos pagar!”. Eu falo para ele: “Sabe por que eu ainda estou aqui, Lininho? Porque eu sou honesta comigo mesma, o que é meu é meu o que dele é dele. Eu vendi, eu vou pagar ele. Sabe por quê? Porque se amanhã ele chegar não me vender, a consciência é dele, eu não devo ele. Agora você não. Aí o que ele está falando para mim? Que não vai tirar peixe para você, porque você tem seis viagens que não paga ele”. Aí ele ficou assim. Aí eu falei: “Vai lá que ele vai dar dois pintados para você. Mas paga. Paga. Você em vez de pagar os outros, foi comprar corrente, foi comprar pulseira. Primeiro você paga quem você deve. O que sobrar é seu, meu filho. Assim é a vida”. A senhora vê, eu não ganho muito hoje, mas já ganhei muito dinheiro. Hoje eu não ganho muito. Mas vem meu neto: “Vovó, eu tô passando por isso e isso”. “Quanto você precisa? Quanto você recebe pagamento?”. Eu não vou ligar pra você. “Não, eu ia trazer para a senhora”. Até recebi o pagamento, veio, me pagou, pagou o tio. Assim que a gente faz. Se você ficou sem nada, você tem crédito. Se você pedir para mim, eu te dou. Se você pedir para ele, ele te empresta. Mas paga quem você deve. Hoje eu falei para ele: “Amanhã é quinta-feira. Amanhã você vai pagar ele na minha frente. Quando ele chegar aqui, você paga ele. Quero ver”. Porque tudo, dona, tudo se cria em casa. O ladrão, ele cria em casa. Ele rouba pai, mãe, irmão, tio. Quando o pai, a mãe, o tio não tiver, aí que ele vai partir pra rua. Então, a senhora corta ele dentro de casa. Esse meu filho, que eu vou mostrar foto pra senhora, é meu caçula. Ele judiava do filho dele mais velho. Judiava. Quando foi o dia, eu peitei ele. Eu falei: “Olha, Rafael, eu vou te falar uma coisa, o psicopata, cria dentro de casa. Cria como você está fazendo com o seu filho. Ele tem uma criança hoje, quatro anos. Mas isso aqui dele funciona. Ele te guarda hoje, te guarda amanhã. Hoje ele tem quatro anos. Quando ele tiver dezoito, você tem sessenta. E aí? Como que vai ser? Você vai pegar ele para bater? Essa hora é a hora da vingança”. Mas foi dito e certo, dona. Fevereiro ele me ligou igual louco, 10 horas da noite: “Mãe, a senhora sabe o que que Alan fez? Fugiu de casa”. “Ainda bem que ele fugiu de casa. E se ele te esperasse você dormir, entrasse no seu quarto, matasse você, matava a sua mulher, porque ela também é condizente. Ela saiu dele e ele saiu dela. Ela não devia deixar você fazer o que você fez com ele quando era criança. Por que esse outro é bajulado?”. Ele sentava, ele ficava olhando o pai com a mãe bajular o outro, o Gael, né? Ele não teve isso, dona. Ele teve de mim. Eu liguei meia noite e meia, ele atendeu o telefone: “Onde que você tá, Alan?” “Vó, eu tô dormindo aqui numa praça”. “Aonde?” “Aqui na Avenida Mato Grosso”, ele falou o nome da praça. Falei, “Gael”. Falei: “Alan, vou passar um pix pra você, você toma um carro, vai pra casa da sua mãe. Agora! Depois da manhã eu tô aí. Vou amanhecer aí em Campo Grande, eu quero te ver. Lá na casa de sua mãe”. A mãe estava desesperada, ele bateu na casa. Ele não foi de noite, ele foi meio-dia. Acho que sujo, fedido. Aí ele falou pra mãe: “Só voltei porque a minha avó pediu”. Cheguei lá, dona, mas lavei tanta cara assim meu filho. Eu dei nele de vassoura, de rodo, de panela, de tudo que eu achei. Falei: “O que eu falei pra você, Rafael? Você tá lembrado do que eu falei pra você? Você deu graças a Deus que seu filho saiu de casa, que ele podia ter feito as coisas piores com você”. Resultado, eu fiz ele fazer o ENEM, esse ano o que ele tá fazendo? Faculdade, tá fazendo paramedicina, paramédico. Arrumei serviço pra ele no shopping, ele vai pro shopping, ele vai de manhã pra faculdade, sai meio-dia, almoça na faculdade mesmo, ele lá vai pro shopping. Dez horas o pai vai buscar ele lá no shopping. Eu falo pra ele: “Você ganha bem, você tem dinheiro pra botar combustível na moto e buscar seu filho”. E todo dia onde eu dormir, eu ligo pra ele. “Você vai buscar o Alan?” “Vou, mamãe”. “Então vai”.
P - Dona Rose, eu queria que você me contasse o dia que você viu uma onça.
R - A onça, a jaguatirica. Então, ali atrás, não sei se você olhou ali atrás. Ali atrás, tudo que tem plantado ali, fui eu. Eu que plantei. Aí eu plantei 6 palmeiras e 6 coqueiros. Na hora que vocês saírem, vocês vão ver. Eu torei esse ano. Começo esse ano a palmeira que eu tinha aqui. Tava rachando toda a parede da minha casa, eu torei ela. E eu fazia muda. Todo esse mundão tem muda de palmeira que eu dei. Tudo, coronel Rabelo tem lá no Amolar, tudinho. Aí todo dia olhava, estava cheio de coquinho, não tem mais um coquinho. Aí um senhor falou: “É rato, dona Rose, que está comendo”. Aí eu comprei veneno de rato, botei tudo assim. Cinco horas, arrodeava assim. Chegava lá de manhã e olhava: “Tá, não comeu. Comeu o veneno, não subiu”. Aí olhei tudo, botei a mão no pé da palmeira e olhei pra cima, dona... Ela dormindo até de língua de fora. Aí uma cepa da jaguatirica. Eu calculei uns 80, 90 quilos, dormindo no pé da palmeira, até de língua de fora. Falei: “Misericórdia!” Eu andei de ré até lá dentro da banca. Bati, tranquei, corri no orelhão, liguei pra florestal e pra televisão pra ir pegar ela lá. Deu trabalho, hein! Quase ela comeu o cabo Rondon, que nessa época ele era cabo. Ela deu lá, ela pulou certinho nele e caiu no espinheiro. Ficou todo machucado, o espinheiro feriu tudo ele. Aí que pegaram ela na rede. A bicha é feia. Só o urro dela mata. Pessoa que sofre do coração morre. Só com o urro. Mas é muito bonita. Muito bonita. Eu vou falar pra senhora, eu queria morar no mato. Morar lá. Eu ia fazer uma boa casa, toda telada pra mim morar lá, pra mim olhar esses animais. Meu filho trabalha do outro lado do rio, ele é guarda portuário. Ele fala: “Mamãe, eu não saio de dentro da minha casa, mãe, nem com a guarda em forma. Lá eu vejo ela passar no meio do mandiocal, de cabo largo”. Eu falo, “meu filho, se você correr atrás dela, bater um pau, uma lata, ela vai correr de você. Só que ela vai correr pra cá, ela vai dar toda essa volta e vem pra ver do que ela correu. Essa hora que ela te pega”. Então ele fez escada pra casa, aí de noite ele tira a escada, bota num outro lugar. Falei: “Ela sobe escada, ela escala arvoredo com bicho na boca não vai subir uma escada?”. Ele dormia de janela na tela, hoje a janela é fechada. Eu falo Uma tela, meu filho, é um copo d'água pra ela, rasgar a tela e entrar pra te pegar”. Ainda ontem à hora que ele chegou, que ele fica dois dias aqui. Ele fica segunda e terça. Hoje ele foi embora seis horas, o carro veio pegar ele pra atravessar o rio. Ele falou: “Mãe, essa noite essa bicha urrou, hein! Essa bicha dava cada urro que dava até medo. Ele falou: ‘Da meia-noite pro dia eu não dormi mais com ela braba”. Falei: Mas é assim, é o tempo virando e os animais ficam bravos”. E a vida vai. Eu gosto muito da vida. Tenho, dona, como eu amo a vida. Por mais dura que ela seja, nem que eu tenha que comer um copo de jacuba a meio dia, mas eu quero viver. E já morri várias vezes. Que agora, depois de velha, eu tenho "silicópio". Eu desmaio do nada. Andando, assim... E o papo, ó! Então, o doutor, que é meu cardiologista, doutor Gustavo, que eu falei pra ele: “Doutor Gustavo, a gente nasce de cabeça, né?”. Ele falou: “É”. Falei: “A gente morre do pé pra cima”. “Por que, Rosemary?” “A hora que eu começo a passar mal, que eu sei que eu vou desmaiar, meus pés começam a morrer, vem subindo a morte, vem subindo…” A morte é uma coisa gostosa, dona! A senhora não sente, é um sono tão pesado. Uma coisa gostosa, a morte. Nós vamos para outra vida. O que apodrece é isso aqui, que não vale nada. Mas nós permanecemos vivos em outra dimensão. A ressurreição. A senhora reencarna em outro corpo. Nós vivemos nesse mundo, nós temos três vidas. Nós temos que passar pelas três vidas. Na última, nós morremos. Às vezes, no dia que nós morrermos, nós já temos em quem reencarnar. Nós praticamos tão... Que coisa boa! Vou ensinar uma coisa para a senhora. A senhora, todo dia antes de dormir, arrependa do que a senhora fez. Se a senhora não se sentiu bem, a senhora fez aquilo para qualquer... Arrependa! Porque diante do seu arrependimento é a sua salvação. Eu arrependo todo dia. Todo dia antes de eu dormir, eu rezo. O Salmo 90 é 121: “Que Deus nos guia, nos livre de toda maldade da face da terra”. Leia o Salmo 121 antes de sair de sua casa. Se a senhora quer que tudo dê certo na sua vida, reza o Salmo 91, 91 dias 91 dias a senhora reza ele. Tudo vai dar bem na sua vida. Seu caminho vai abrir que é uma beleza dentro da sua mente. Aquelas pessoas que por inveja, por maldade, se atentam a alguma coisa, aquela pessoa vai ficar tão ressentida que ele não vai ter coragem de pensar nem em pensamento em fazer maldade. Eu passo isso para meus filhos e para meus netos. Então, a senhora vai dormir descansada, a senhora arrependeu. Se naquela noite, por ventura ou desventura, a senhora morrer, a senhora tem sete dias para desencarnar. Desencarnou e vai encarnar em outra pessoa. Assim é a nossa vida, é a nossa passagem. Eu falo para esses crentes que moram aqui. Trabalham feito burro, tem dia tão como o louco, vendem doce, vendem salgado, vendem… Falta vender a vida. Eu falo: “Gente, Cristo pregou no deserto, descalço, com suas vestes brancas. Deus não precisa de dinheiro. Deus precisa do nosso arrependimento”. A senhora não olha ele nas fotos. Tanta maldade que fizeram com ele. Ele com sede, deram um mirra pra ele tomar. Quando só pregaram ele na cruz, não ficaram satisfeitos. Botaram aquela coroa de espinho na cabeça dele. Cada mexida que ele dava na cruz assim, eram duas, três costelas que quebravam dele. Imagina a dor que ele passou. Agora vocês trabalham pra dar dinheiro pra pastor Já viu o pastor andando à pé? Tudo de carro, tudo de carro. E vocês, burro, deixam de comprar um pão, um copo de leite pra dar pros seus filhos, pra levar as coisas pra pastora? Eu sou espírita. Desde os oito anos, eu sou espírita. Minha mãe me botou na mocidade pra ser católica. Eu mentia que eu ia, eu ia pro centro espírita. Era minha vocação ser espírita. Eu ajudo o centro espírita, eu dou 150 por mês pra ajudar a pagar a água e pagar a luz. Não que eles me pedem. Eu dou de coração. Todo dia, 28, 29, eu levo. 150 eu boto na caixinha. Nem eles sabem o que eu tô dando. Eu boto na caixinha. Agora tem gente que tem uma alucinação, dona.
P - Dona Rose, eu queria te perguntar. É um pouco distante, mas depois nós volta. Porque eu fiquei curiosa. A senhora estava falando das suas andanças por Ladário, por Corumbá, e eu fiquei pensando, se você conseguiu notar, fiquei pensando para perguntar para a senhora, se mudou alguma coisa na chuva? Chove mais? Chove igual?
R - Chove menos. Chove menos, tem chovido menos. A senhora sabe por que está chovendo menos? Muita queimada. A terra está muito quente. Muito quente. “Ah, queimou, queimou”. Não. Aqui está quente. E o calor chupa toda a água. Então, é difícil a chuva. A senhora, quantos anos a senhora tem?
P - Trinta.
R - Trinta. Eu vou ensinar a senhora. A senhora vai olhar para o céu. Tem poucas estrelas, está vindo chuva. Não sei quando, mas vem chuva. E outra coisa. A senhora olha a posição que a lua está. A lua não pode nascer aqui, nem aqui. Ela tem que nascer aqui. Vem chuva. Formiga. A senhora viu formiga carregando as coisas para a casa dela. Ela entra ali, mas ali não é casa dela. A casa dela tá aqui, tá lá, tá bem longe. Então ela tá armazenando porque o tempo tá vindo. Semana retrasada eu falei pros meus filhos lá, falei: “Olha, não faz gasto pra sábado e domingo que pode chover”. “Ah! Como eu sou São Pedro” “Não. Eu já menti para vocês? Não preciso mentir. Eu não ganho nada com o tempo. Eu não sou meteorologista. Não ganho nada de ninguém. Só estou avisando vocês para não fazer despesa. Você não vai tirar para pagar quem está trabalhando, quer receber”. Coronel Rabelo vai falar para a senhora que eu falo para ele da mudança de tempo e tudo. Ele fala:”E aí, dona Rose, como que está?” “Está assim, assim, assim”. Quando não estou muito boa, eu falo: “Ah, eu lá quero saber de nada, de tempo, de nada”. Só eu faço previsão do tempo. Ele fala: “Ah, é assim, né?” E eu falo: “É assim mesmo”.
P - E o rio? O rio está igual era antes ou não?
R - Não. Modificou tudo, dona. Acabou com tudo. O homem acabou com a natureza. Hoje nós somos culpados do que nós estamos passando. Somos culpados do que nós estamos passando. A senhora vê, meu filho plantou mandioca lá, plantou milho. Porco Queixada acabou com tudo numa noite. Com tudo numa noite. Quer dizer, o Queixada, ele toca o focinho dele assim, parece que é arador de terra. Ele levanta tudinho. Eu falei pra ele, falei: “Rubinho, não planta agora, meu filho. Não planta agora. Deixa esses animais sentirem a vazante, aí você planta, você vai colher. Eles estão com fome, tá enchendo pra tudo que é lugar, eles estão com fome. Tudo que você plantar, ele vai vir arrancar, vai comer. Milho ele vai derrubar pra comer a espiga que tá mais lá em cima”. Então isso eu procuro passar, igual é benzer. Eu benzo quebrante. Qualquer coisa, dor de dente, picada de cobra. Não precisa me trazer a pessoa, me mostra a direção que ele tá. Eu benzo. Eu benzo um dente que ele cai. Mas nenhum de meus filhos vai prestar pra me ensinar. Não vou perder meu tempo. Tem vergonha. Não. Pra onde tem vergonha? Eu não tô fazendo maldade pra ninguém, você tá fazendo um bem. Mas não vou ensinar pra nenhum dos meus filhos, porque não vai adiantar. É uma coisa que eu vou ter que levar comigo pro resto da minha vida, dos meus dias. E assim vai. Eu falo pro pessoal: “Olha, nós estamos pagando, nós vamos chegar a uma época... Eu não. Porque até lá eu já morri, mas meus netos, talvez, nós vamos jogar dinheiro, comer o papel e tomar água”. Que nada que a senhora plantar vai nascer. Nós estamos judiando da terra. A senhora vê, eu pronto qualquer coisa, eu vou comer aquilo que eu plantei. Vou. Eles ficam bobos ali na praia de vê. “Ô, dona Meire, você traz galho, pegou?” ‘Pegou”. É como agora, nós vamos sair dali. Eles vão desmanchar, vão fazer coisa melhor. Ontem eu chamei o pescador e falei: “Sid, pode tocar a alavanca e tirar essas mudas de laranja, tudo levar para você plantar lá, porque vão trocar o trator aqui, aí matar tudo, e lá com você não. Pelo menos, no dia que você estiver chupando uma laranja, vai falar que foi dona Meire que deu”. Ah, eu sou uma pessoa, eu vou falar para a senhora, eu posso morrer hoje, eu vou morrer feliz. Muito feliz, eu fiz muita bondade nessa minha vida e quero fazer mais. Muita bondade. E por isso eu sou uma pessoa odiada. Muitos ali não gostam de mim. Porque eu não gosto de mentira, não gosto de malandro. Eu falo para as pessoas: “Me fala a verdade. Nem que eu vá me doer. Mas eu quero a verdade de você”. Para senhora ver, eu estou ali, só naquele lugar ali, 52 anos. Eu não sei nome de lancheiro, não sei nome de... E sei da malandragem de todos eles ali. Todos eles ali, eu sei a malandragem, sei o que eles fazem, fico quieta, olhando, e falo para meus filhos: “Não confia não! Nenhum deles você confia! Nenhum! Não confia! Não confia de jeito nenhum, meus filhos, porque são tudo falso! Eles querem o que você tem! Não confia, não!”. Ali tem gente que passa por cima de mim, não dá bom dia, mas quando está lá, caem, não caem, caem. “Não, dona Meire, pelo amor de Deus, me acode, eu tô passando mal, eu tô assim, assim, assim, assim”. Tem um rapaz que todo dia eu luto com ele: “Poxa, não é seis horas da manhã, cara, o senhor tá comprando bebida, você vai adoecer, vai morrer”. “Dinheiro é meu” “Lógico que é seu, porque eu não te dou bebida. Você quer um prato de comida, um pão, eu compro e te dou. Bebida, não”. Ele veio, vinha ruim, cambaleando, eu tava limpando o pacu e prestando atenção nele. E ele fazia sinal pra mim e eu falei: “Ah!”. Quando chegou perto de mim, ele caiu e começou a estrebuchar. Ele é uma cepa de homem. Aí comecei a gritar, todo mundo só olhava, nem aí. Eu arrastei ele, botei na cadeira, corri, chamei esse meu filho e falei: “Vamos, João Paulo, fulano tá morrendo, acode lá”. Levou ele lá no pronto-socorro, ficou dois dias lá. Aí ele saiu dele lá e falou: “É, dona Meire, a senhora é amiga. Não vou mais beber pela senhora. Porque aqui todo mundo me conhece, todo mundo eu pago bebida, e eles viram eu morrendo e não me acudiram”. Eu falei: “É”
P - E a senhora tem sonhos?
R - Sonho? Tenho. Eu sonho com o que vai acontecer com meus filhos, comigo, com outras pessoas, eu aviso. Esse meu filho tem o quê? Um mês e pouco. Eu acordei cedo e falei: “João Paulo, estão armando uma emboscada pra você. Só que não deu pra mim ver a fisionomia da pessoa. Mas é uma pessoa forte, um homem forte”. “Tá”. Aí ele me levou pro serviço, falou: “Mãe, vou dar aula pras crianças de dança, que é pra festa junina”. Falei: “Tá bom”. Aí eu acordei com o barulho do portão, ele tirando no carro. Olhei no relógio, meia noite e vinte. Olha, ele sabe onde ele foi, saiu com alguma mulher, né? Tá. Depois de meia hora, ele chegou, acendeu a luz do meu quarto, sentou e falou: “Mãe, você não lembra fulano assim assim?” Falei: “Lembro” “Então, ela mentiu pra mim. O marido dela tava preso, saiu. E ele ligou pra mim, passando por ela. Marcou o encontro, eu fui, cheguei lá, era ele. Ele falou pra mim que ele era de facção, que ele podia me matar, isso e aquilo”. Eu fiquei quieta olhando pra ele, não falei nada. “Ele falou que só não fez nada comigo por causa que ele conhece a senhora”. Falei: “Esse foi o sonho”. Passados três dias, encontro com ele no mercado, com o cara no mercado, bati no ombro dele e falei: “Ó, você pensa cem vezes antes de você querer fazer as coisas pro meu filho, porque nós vamos acertar a conta. Vai ser dente por dente, meu filho”. “Safado é você, que você sabe que ela aprontou e está com ela”. “Você não tem vergonha, não? Porque ela te sustenta”, falei para ele. “Não, mamãe, a senhora me desculpa, eu vou pedir desculpa para o seu filho, não sei o quê, não sei o quê”. Falei para o meu filho: “Abre o olho, hein! Que o pior inimigo que você pode ter é um covarde. Porque o covarde é mais valente que o valente”. Ele não pode fazer nada pra senhora agora. Ele vai estudar. Como que ele vai pegar a senhora? Na covardia. Ele vai estudar, estudar... Até uma hora que a senhora tá descansada, ele te pega.
P - Tem alguma mensagem que a senhora queira deixar pro final da sua entrevista?
R - Quero. Minha filha, nunca você olha pra ninguém de cara feia. Olha sempre com sorriso no rosto. Porque você vai deixar a mente daquela pessoa torturada. Porque ela vai ficar tão... Toda vida que ela te ver, ela vai falar, por que que fulana olhou pra mim e riu? Sabe por quê? O riso, Nossa Senhora riu porque não foi Judas que traiu o Cristo. Quem traiu o Cristo foi Pedro. Judas era amigo de Cristo. Judas avisou que Cristo ia passar por aquilo. Ela pode olhar na mesa, com todo mundo comendo, quem virou as costas para Cristo foi Pedro. Então sempre a senhora sorri. Dê bom dia, deseja para aquela pessoa que ele vá com Deus, que Deus abençoe ele. Assim como eu estou aqui conversando com vocês, mas estou pedindo que Deus abençoe seu serviço, que não tira de vocês essa dádiva que vocês têm, que vocês estão fazendo bem. A minha, qualquer pessoa que seja você, que eu não sei o seu nome, senhor, que tem um sorriso tão bonito, tão largo, me cativou o seu sorriso. O senhor é muito honesto, o senhor é honesto consigo mesmo. Ela tem um sorriso que me cativou, você também. E a minha irmã, que hoje eu agradeci ela. Falei: “Bibiana, quem que você tirou do purgatório, minha irmã?” “Como assim?” Que ela é... “Você falou bem de mim para aquelas duas senhoras. É, que eu não podia falar mal de você, que você é você mesma”. Falei: “Então, você é você mesma. Obrigada, Viviana”. Ela ficou assim, depois ela falou para o meu filho: “Sua mãe hoje está atacada”. Eu fiquei e falei para o meu filho: “Hoje a loucura dela, os pontos estão certinhos, cada ponto no seu lugar”. O filho dela, quando ela teve aquele Gustavo lá, eu fui com ela para a maternidade. O guri coroava, mas não nascia. Aí eu corria, eu vi o doutor Wilson passar assim e corria. Falei: “Doutor Wilson, minha irmã vai morrer, ela não vai ter aquela criança. A criança tá encaixada, ela não tem força”. O doutor Wilson levou ela pra maternidade. E eu falava pra ela: “Bibiana, essa história de você botar o guri no carrinho, botar a fralda aqui, botar a mamadeira, botar a mamadeira, esse guri vai morrer engasgado, Bibiana. Dá de mamar, pega o seu filho, dá de mamar. Aí vai fazer o que você tem que fazer”. “Ah, o filho é meu, não é seu” “Tá bom”. Mas não foi um dia, eu tô limpando peixe ela vinha, com o cabelo desse tamanho que ela tinha, cabelo ruim. Hoje ela tem cabelo bom, que ela picha. Não tem muito cabelo dela para ficar desse tamanho, de carreira que o Gustavo largado não mão. “Me acorde, Meire! Me acorde! Meu filho morreu! Meu filho morreu!” Peguei esse guri. Falei: “O que que foi?”. Chupei o nariz dele, chupei a boca dele até que ele... Peguei, joguei esse guri atrás no fusca, levei ele lá no pronto-socorro. Chegou lá o médico, falou: “O coração dele parou uns segundos. O que a senhora fez?” “Eu chupei a boca dele, tirei tudo que foi leite que estava pelo nariz”. Cheguei com o guri e falei: “O filho não é mais seu, vou levar seu filho. Vou levar seu filho, você não tem mais filho. Vaca de merda”, falei pra ela. Peguei, fui lá na casa dela, peguei o carrinho, levei. Ela chorava lá, onde ela mora ali. Ela chorava de lá e olhava, ela fazia assim pra mim. Falei: “Você vai comer, hein? Seu filho você não tem mais”. Aí quando foi 11 horas eu falei: “Mamãe, leva o filho pra ela. Ela vai morrer”. Mamãe chegou lá, ela tava fazendo corda pra botar no pescoço. Mamãe falou: “Tá aqui o seu filho. Não faz o que você fez, você vai matar seu filho, não tem mais Meire por aqui. Porque eu não aguento correr, eu não sei acudir ninguém”. Então o Gustavo falou: “Eu tenho duas mães, mas eu gosto mais da senhora, minha tia, do que dela”. Ele era pequeno, dava dez horas, ele ficava lá na minha banca. Me olhava, me olhava... Aí falava: “O que foi, Gustavo?” Ele pegava a camisa dele e falava pra mim assim: “A senhora me deve, né, titia?” “Eu devo de quê, guri?” “A senhora me deve, eu vim a receber”. “Eu te devo quanto?” “Dez cruzeiros”. Aí eu dava dez reais pra ele e ele ia embora. Todo dia ele ia me cobrar dez cruzeiros, que eu devia a ele. A mamãe falava: “Não dá mais dinheiro pra esse tucano”, que ele é narigudo, né? “Não dá mais dinheiro pra esse tucano, ele tá acostumado com essa história que você deve ele, você não deve ele. Não dá mais dinheiro pra ele, não”. Aí ele arrodeava lá por trás pra mamãe não ver ele. Ele falava: “Titia, eu já vim a receber minha dívida”. E é o filho melhor que ela tem. Porque o outro, carne de cara. Foi embora pra Santa Catarina, nem liga pra mãe, nem quer saber se ela existe. Falo: “É, Bibiana, cada um de nós vem com uma cruz nesse mundo pra cumprir”. Eu cumpri, criei meus dez filhos no maior do sacrifício. Cansei de dormir com fome pra ver meus filhos dormirem de barriga cheia. Eu não dormia porque a fome não deixa de dormir. Você não dorme com fome. Mas meus filhos dormiam de barriga cheia. Criei todos meus filhos, eduquei. Tudo. Eu espero que vocês estejam contentes com o que eu contei.
P - Última pergunta. Tem uma última. Eu queria perguntar para a senhora. Como é que foi contar um pouco da sua história?
R - Foi muito bom alguém saber pelo que eu passei nessa vida. Muito bom eu deixar esse legado. Confiei em vocês e confio. Qualquer coisa que vocês precisarem, eu estou à disposição. Vocês sabem onde me achar. E quiser escrever, pode escrever pra mim, que eu aceito. Me telefonar, vocês têm seu telefone. E eu gostei muito de vocês. Porém dele, que tem um sorriso sincero. Olha, é muito difícil, dona, a senhora olhar pra uma pessoa e sorrir. Muito difícil. Sangue não bate. Alguma coisa no seu coração não deixa. A senhora vê, eu moro aqui. Aqui tenho 36 anos, aqui. Quando comprei isso aqui, era um lixo. Tudo caindo. Um dia falei para o meu marido, falei: “Vou fazer uma casa boa para nós morar”. Ele falou: “Não faça conta que eu não pago”. Falei: “Vou te falar alguma coisa que eu quero dinheiro seu. Você nunca deu nada nem para os seus filhos”. Não sou de casa alheia. Mas eu falo para os meus vizinhos, qualquer coisa que acontecer, a hora que for, pode bater naquele portão que eu atendo vocês. Só que eu sou uma vigia. Eu cuido, eu pouco durmo, porque dá dor, né? Que dói. Meia-noite eu já tô de pé, tô lá pra cozinha fazendo as coisas. Quatro horas eu já tô com o meu almoço pronto. Eu vou trabalhar, meu almoço já tá pronto. Eu vejo as coisas estranhas, eu pego, ligo: “Ó, fulano tá rondando aqui”. A penúltima casa aí, dia 17 de dezembro do ano passado, a dona viajou, deixou um senhor dali pra cuidar. Aí tô escutando barulho, tô escutando barulho, que meu filho não gosta que eu saia pro lado de fora. Aí eu tenho um cajado, um pau de goiabeira assim, porque a senhora com piedade de pau, a senhora tá armada, a senhora dá uma no joelho que é pra ele abaixar e falar “ai, ai”, a senhora dá uma na nuca e ele cai, acabou o valente. Aí eu vim abrir aqui devagarzinho, pra o meu filho não escutar, abri aqui devagarzinho. O cara já tinha posto pro lado de fora televisão, batedeira, computador, tudo, né? Aí eu não deixei de me ver, vim de ré, entrei aqui, peguei o celular, liguei pra polícia. A polícia veio e prendeu ele. Aí eu liguei pra ela que ela tava lá em Tibiriçá e falei: “Ó, tavam levando tudo que cê tinha na casa. Cadê o homem que cê deixou cuidando? Eu só não posso entrar na sua casa pra pôr. A polícia levou tudinho, cê tem que vir lá na delegacia pra pegar”. Passados dois dias, ela chegou: “Dona Meire, muito obrigada”. Assim foi aqui. A mulher reformou todinha a casa. Não tem três meses que reformou. Eu tô escutando barulho, tô escutando, liguei pro vizinho daqui: “Vizinho, tão quebrando a casa aí”. “Será, vizinha, tá?” “Se o senhor sair aí fora, eu vou sair, porque o João Paulo estava acordado no computador, fazendo serviço para o colégio”. Aí o vizinho disse: “Estou aqui fora de vizinha, vamos chamar a polícia dona Meire, ele já tinha arrancado toda a fiação da casa”. Já tinha arrancado pia de rosto, lado do vaso do banheiro, pia da cozinha, porta, janela. Até hoje a casa está abandonada, a mulher mora em Campo Grande. Ele ligou, não veio ninguém. Falei pro vizinho: “Não vou cuidar mais de nada de ninguém”. Qualquer dia eu vou cair na pau aqui de ladrão por causa das coisas dos outros. Assim vai a vida. Mas eu gostei muito de vocês. Eu estou aqui à disposição de vocês. E eu sei que o Rabelo vai falar muito bem de mim também pra vocês. Que eu amo aquele homem de coração. Amo ele como um filho meu. Ele e a Márcia. Que ele fala, ele aperta a turma ali. “Quem que fez isso? Quem fez?” “Eu não fui, eu não fui”. “Espera aí que eu vou chamar a Rosemary”. Quando falam em chamar a Rosemery, estão falando, “não, não, não, não, não. Fui eu, fui eu mesmo”. Porque ele sabe que eu presto atenção em tudo ali. Tem mãe que vem largar a criança lá. A criança vem sozinha. “Coronel, fulano está deixando a criança lá”. “Quem que é?” “Não sei, não sei o nome dela, mas amanhã eu pego ela”. Ela lá. “Dona, faz favor aqui. A senhora pega seu filho e vai deixar lá dentro no portão. Porque se acontece alguma coisa, a senhora vai reclamar pra quem? A senhora abandonou seu filho, não deixou lá. Aí o coronel Rabelo, a Márcia que vai pagar pelo que fez? Não, deixa lá”. Aí eu falo pra ele falar, desce pra beira do rio e sobe de volta. Na beira do rio vocês não vão. A água não tem galho nem cabelo. Vocês que caem ali vão morrer. Vocês não vão ver mais sua mãe, não vai ameaçar balé, não vai tocar violino, vai tocar mais nada. Lá no céu não tem. Então, eu sou uma pessoa assim, eu sou uma pessoa de serventia. Gosto muito que as pessoas me tratam bem, que eu não distrato ninguém. A senhora não prestou atenção, mas ali todos os malandros que passam: “Bença vó”. “Deus abençoe, que Deus te faça feliz, te livra das maldades do mundo”. Que tem filho que sai e a mãe não está nem aí. Não está nem aí, dona. Pois a senhora não tem amor naquilo que a senhora guardou aqui nove meses. Passou por uma dor tremenda para botar no mundo. Cuida dele, às vezes a pessoa se larga no mundo, dona. Porque dentro de casa ele não achou nada. Não achou aquela mãe que ao menos dá um beijo no rosto de seu filho, Para ver se meu filho saiu, mas eu já tinha ido lá no quarto: “Vai com Deus, meu filho volta com ele também”. E eu falo para meus filhos: “Não senhor, não senhor, não vi, não sei”. Eu falo “nem sobre tortura, vou falar o que eu vi”. A não ser que seja uma necessidade, sou obrigada a falar, mas do contrário, pode começar a tirar minhas unhas, cortar meus dedos. “Não vi, não sei”. É a única coisa melhor da vida. Você não culpa ninguém, nem é culpado. E a vida vai assim. Que Deus proteja vocês. Que a Virgem de Lucupinha, que é a minha salvadora, é ela. A Virgem de Lucupinha, que é mãe de todas as mães. Eu tenho a imagem dela. Todo ano eu faço o casaco dela de folha de coqueiro. Costuro tudo, a manta dela que é de folha de coqueiro. Você já viu? A Virgem de Guadalupe, que eu falo Lucupinha, mas é a Virgem de Guadalupe. A manta dela é feita de folhagem. Ela é mãe de todas as mães no mundo. Então eu peço muito por ela. E Nossa Senhora Aparecida. Esse ano eu faço a festa dela, se Deus quiser. Já estou comprando. Não vou fazer o que comer. Eu vou agradar as crianças. É com as crianças que eu tenho a coisa. Eu já comprei três sacos de pipoca, já comprei saco de bala. Agora estou comprando todo sábado três caixas de bombons. Vou fazer os pacotes e dar para as crianças. Nossa Senhora Aparecida. E eu falei para meu filho: “Eu tenho fé em Deus que antes de eu morrer, eu vou lá na igreja dela. Se Deus quiser”. E Deus quer. Tenho certeza. Deus quer. Às vezes, de noite, eu fico quieta, pensando. Eu falo para o meu filho: “Puxa, com essa dor na minha mão, eu falo que eu não durmo”. Cristo passou por tanta dor por nós. Aí eu falo para ele que essas dores estão oferecendo para ele. Dorme, eu durmo que não vejo nem a hora. E o meu filho que me acorda. “Mamãe, é quatro horas, você não vai levantar?” Eu falo: “Meu filho, dormi que até a dor acabou”. Ele sofreu por nós, porque que nós não vamos poder sofrer? Vamos! Vamos!
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