Uma infância simples, mas não miserável.
Meu nome é Henrique, filho de Gláucia, neto de Ruth, duas mulheres muito importantes na minha vida. Sou o caçula de três irmãos. Nasci no dia 15 de Abril de 1987 e cresci no Fonseca, um bairro da Zona Norte de Niterói, no pé da favela Vila Ipiranga. Morávamos na casa da minha avó e éramos cinco pessoas num quarto. Nunca me faltou nada, tinha o simples e o suficiente. A minha infância se dá nesse contexto, de uma família pobre, meu pai estava sempre desempregado e muito enrolado financeiramente, e minha mãe era professora da rede pública da educação infantil. Foi uma infância simples, mas não miserável.
Eu só nasci no hospital. O resto foi tudo na igreja! A primeira vez que eu fui na igreja deve ter sido bebê, no colo da minha mãe. Eu, menino, já frequentava a escola bíblica dominical, a escola bíblica de férias, o culto infantil... Minha vida inteira, desde menino, foi na igreja.
Desde pequeno, o evangelho sempre me provocou sensibilidade diante das pessoas e do mundo. Então, antes de conhecer a teologia da libertação, o movimento negro, antes de dialogar com o marxismo latinoamericano na universidade, de desenvolver uma crítica profunda ao capitalismo, antes de todas essas formulações, eu era um menino que, a partir do evangelho, tinha sensibilidade diante da vida e das pessoas. Isso sempre me chamou atenção. Lembro de quando menino como me incomodou o fato de que existia fome no mundo, eu não conseguia entender, não conseguia achar razoável, por quê?
Essa é a minha mãe.
Sempre vi na minha mãe uma dedicação muito grande para com os filhos. Eu lembro de um dia, eu tinha dezesseis anos e estava entrando de férias. Eu tinha ganhado uma bolsa integral para estudar no ano seguinte, era o ano do vestibular e estava feliz porque isso honrava muito do esforço da minha mãe. Fomos numa consulta oftalmológica corriqueira para fazer um ajuste de lente. Chegamos no...
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Uma infância simples, mas não miserável.
Meu nome é Henrique, filho de Gláucia, neto de Ruth, duas mulheres muito importantes na minha vida. Sou o caçula de três irmãos. Nasci no dia 15 de Abril de 1987 e cresci no Fonseca, um bairro da Zona Norte de Niterói, no pé da favela Vila Ipiranga. Morávamos na casa da minha avó e éramos cinco pessoas num quarto. Nunca me faltou nada, tinha o simples e o suficiente. A minha infância se dá nesse contexto, de uma família pobre, meu pai estava sempre desempregado e muito enrolado financeiramente, e minha mãe era professora da rede pública da educação infantil. Foi uma infância simples, mas não miserável.
Eu só nasci no hospital. O resto foi tudo na igreja! A primeira vez que eu fui na igreja deve ter sido bebê, no colo da minha mãe. Eu, menino, já frequentava a escola bíblica dominical, a escola bíblica de férias, o culto infantil... Minha vida inteira, desde menino, foi na igreja.
Desde pequeno, o evangelho sempre me provocou sensibilidade diante das pessoas e do mundo. Então, antes de conhecer a teologia da libertação, o movimento negro, antes de dialogar com o marxismo latinoamericano na universidade, de desenvolver uma crítica profunda ao capitalismo, antes de todas essas formulações, eu era um menino que, a partir do evangelho, tinha sensibilidade diante da vida e das pessoas. Isso sempre me chamou atenção. Lembro de quando menino como me incomodou o fato de que existia fome no mundo, eu não conseguia entender, não conseguia achar razoável, por quê?
Essa é a minha mãe.
Sempre vi na minha mãe uma dedicação muito grande para com os filhos. Eu lembro de um dia, eu tinha dezesseis anos e estava entrando de férias. Eu tinha ganhado uma bolsa integral para estudar no ano seguinte, era o ano do vestibular e estava feliz porque isso honrava muito do esforço da minha mãe. Fomos numa consulta oftalmológica corriqueira para fazer um ajuste de lente. Chegamos no hospital, o médico começou a me examinar. O residente em medicina fez aquele exame clássico das letras e eu não enxerguei nenhuma letra. Ele fez um exame mais profundo e decidiu chamar o seu professor, o responsável pelo departamento. Naquele momento eu me desesperei, entendi que tinha alguma coisa diferente acontecendo com a minha visão. Senti a minha mãe segurando firme a minha mão, a gente louvou, a gente cantou junto, uma canção da nossa tradição de fé, enquanto esperava pelo médico responsável.
Eu chorava, e percebia minha mãe com os olhos lacrimejando enquanto a gente cantava juntos. Esse momento é muito forte pra mim. Naquela hora “H”, em que a fragilidade da vida se materializou no meu corpo e eu não iria aproveitar as férias, não iria encontrar meus amigos na praia, nem dormir na casa da minha avó, não iria fazer nada daquilo porque eu estava adoecido. Quando a vida falhou, quem estava ao meu lado era aquela mulher simples, segurando a minha mão e cantando comigo. Essa é a minha mãe.
Eu brigo com Deus
Eu tive uma inflamação grave e aguda no nervo e, em um mês, perdi grande parte da minha visão, foi desesperador. Os primeiros dias foram os piores porque era tudo novidade. Eu não andava sozinho, então era levado para a escola e para a igreja, porque tinha dificuldades de me reconhecer nos espaços. Perdi a dimensão do futebol, não conseguia ver os jogos do Flamengo, ficava com a cara colada na televisão tentando enxergar alguma coisa. Depois, com o passar do tempo, minha visão foi voltando gradativamente. Lembro da minha alegria quando voltei a ler, tinha confiança e certeza que eu estava recuperando a minha visão. Ao mesmo tempo, entendi que não seria mais como antes, foi uma informação que os médicos já tinham me dado, jamais veria como vi antes.
Não me senti abandonado por Deus. Isso sempre foi muito tranquilo para mim;perguntar a Deus o porquê das coisas, não ter nenhuma resposta e continuar crendo. Eu brigo com Deus, mas ao brigar com Deus, estou reafirmando Deus na minha vida. Então, eu chorava no colo de Deus a minha inquietude diante da minha própria condição, mas não buscando exatamente uma solução imediata, lamentava com Deus essa imprevisibilidade que constitui a vida. Eu não pensava em Deus como alguém que observava a minha dor, eu pensava em Deus como alguém que sentia a minha dor, gemia comigo e participava comigo da minha condição. Então, a minha fé não se perdeu, talvez ela tenha se aprofundado quando a imprevisibilidade constitutiva da vida se materializou em mim, no meu nervo e no meu corpo. Deus nunca foi para mim uma solução imediata para problemas complexos.
Na adolescência, a igreja deixou de ser um lugar para onde “meus pais estão me levando”, e passou a ser o lugar onde eu queria estar, os amigos que eu queria ter, a minha fé. Foi quando a minha vocação pastoral brotou.
Nesse contexto de um adolescente na igreja, alguém me chamou para pregar num culto no lar, era uma segunda-feira à noite, e ali eu preguei. Eu me realizei. Quando aquilo acabou, escutei: “Nossa, você prega muito bem! Pode pregar amanhã? Pode pregar depois de amanhã? Pregue para as crianças... Pregue para as senhoras... Pregue na vigília.”. Comecei assim e a minha agenda lotou, eu virei um adolescente pregador do evangelho. Eu só não sabia que ia me apaixonar tanto por esse exercício de ler e interpretar a bíblia, de usar a palavra como forma de tocar os corações das pessoas. A palavra sempre foi uma força em mim, eu sempre falei e sempre fui falado. Eu falo palavras e as palavras me falam, tem hora que eu e a palavra somos a mesma coisa. Palavra para mim é matéria prima, é a arte. Isso tem haver com ser pastor? Então, eu quero isso para a minha vida!
Eu quero ir para casa e ele também
Onde eu cresci, tinha duas escolas particulares muito baratas. Meus amigos eram da escola particular, e eu era estudante da escola pública. Aquilo mexia com a minha sensibilidade. Na oitava série, consegui uma bolsa em uma escola particular ali em Niterói. Eu lembro bem de não ter dinheiro para o lanche no recreio, eu não tinha um real. Então, revezava, cada dia pedia para um amigo emprestado, tinha dia também que eu não pedia. Eu acho que essa questão social sempre me habitou.
Eu fui aluno do Marcelo Freixo. Lembro de um projeto chamado “O que é a loucura?”, do primeiro ano do ensino médio, era um projeto multidisciplinar que debatia com a gente o conceito de loucura na história. A escola nos levou ao hospital psiquiátrico penal. Do início ao fim da visita eu conversei com um menino que estava lá, ele devia ter uns dezoito anos, no máximo. Era jovem, negro, pobre e com histórico de várias privações e dependência química, a gente só conversou, conversou, conversou… Quando chegou no final da atividade e Freixo chamou a gente para ir embora, o jovem me perguntou assim: “Para onde você vai?”. Nunca foi tão estranho dizer o óbvio: “Vou para a casa”. Eu tinha uma casa para voltar. Um abismo se abriu entre nós, assim, de repente. Ele fez uma segunda pergunta que mexeu comigo: “Você volta?” Óbvio que eu não ia voltar, como é que eu ia voltar? Eu tinha quinze anos, e fui levado para lá por conta de um projeto da escola. Eu não voltei, mas esse menino não saiu de mim.
Ali eu fiz uma decisão militante de vida, decidi que queria ser alguém que participa da sociedade para transformar a realidade, simples assim. Eu não quero mais que existam esses abismos, não quero. Acho que está errado existir pouca gente com tanto dinheiro e tanta gente lutando para sobreviver. Então, eu quero me organizar coletivamente. É isso que chamo de político, quero me organizar coletivamente para incidir no mundo, para reduzir abismos, para que eu possa ir para a casa e ele também. Isso que para mim é política.
Púlpito, palco e parlamento
Eu reivindico que a fé é política. Um pastor engajado politicamente, participante de movimento estudantil, do movimento negro, dos direitos humanos. Fui vereador em Niterói, trabalhei na comissão de Direitos Humanos junto com Marcelo Freixo, era um espaço importante em que os dramas brasileiros e cariocas se materializavam: a violência do Estado; o genocídio da juventude negra; as mães desesperadas pela morte dos seus filhos.
A igreja que eu pastoreio hoje, a Igreja Batista do Caminho, é um espaço de militância. Ela cuida, acolhe, sinaliza e desenvolve projetos, tem um curso pré-vestibular comunitário chamado ‘Marielle Franco’. A minha igreja é um espaço que eu reivindico como um espaço político de militância. A igreja, o partido, o movimento negro e os direitos humanos, assim como a minha caminhada como artista, eu vejo tudo como expressão política.
Uma questão que me atravessa desde sempre, é a potência e, ao mesmo tempo, a fragilidade da vida. Tem uma dimensão da morte que é como aquela música do Toquinho “Às vezes eu fico pensando na vida e, sinceramente, não vejo saída, como é por exemplo que dá pra entender, a gente mal nasce e começa a morrer”. Tem um padecimento, um falecimento, que é próprio da vida. Isso me angustia, mas eu guardo certa resignação. É a vida que se esvai, é a vida que se vai, é a vida que tem o seu ciclo, é nascer e começar a morrer. Agora, a morte provocada, a morte induzida, no sentido da eliminação violenta da vida, me causa rebeldia. A morte provocada por uma engenharia desumana, à essa morte eu declaro guerra.
Então, eu tento responder a esse espetáculo frágil que é viver com essa perspectiva do amor e do amar. Estou falando do amor que sofre, que grita, que se inquieta, que trás uma paz mas que não deixa em paz. Estou falando do amor que tem uma gestação de esperança, uma dor que aponta o futuro, que nos faz chorar a dor do mundo, como se essa dor fosse nossa. Aquele amor que é enquanto se faz, ou nas palavras de bell hooks, o amor que não é, o amor que faz, o amor só é à medida que acontece. Talvez essa seja a única coisa que pode conferir sentido à experiência potente e débil que é viver.
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