“Meus sonhos são os sonhos compartilhados com os meus ancestrais”.Me chamo Iraê. Tenho 22 anos e carrego no nome e no corpo o território Tremembé, no Ceará. Cresci entre a água da chuva que invadia as estradinhas da aldeia e as palavras que, no início, me escapavam. Lembro da água escorrendo pela estrada, misturada com a bosta dos cururus e dos cachorros, e de nós, meninos, mergulhados na alegria do inverno, sem medo de sujeira nem de riso. Era uma infância feita de rabada do macaco, pega-pega e o som da mata.
Meu pai, agricultor e professor, era presença constante na escola. Minha mãe também dividia seu tempo entre a roça e o cuidado com a casa. A educação foi plantada em mim com a mesma dedicação que se planta feijão no quintal. Mas não foi fácil, não. Fui reprovado no segundo ano porque não sabia ler. Foi um baque. Mas também foi um divisor de águas. Aquele ano me ensinou que a leitura não é só letra: é vida. A professora Glaciane, a titi, me fez desinstalar o desinteresse. Depois dali, eu li o mundo.
Minha família é pequena, mas é tudo pra mim. Somos cinco e, entre os conflitos e os carinhos, a gente se entende. Minha avó... ah, minha avó. É uma força bruta e doce. Diz que não está velha, que ainda não vai morrer. E eu acredito. Ela é o espelho que me diz que o tempo não me limita.
Tive muitos trabalhos. Cuidar do território foi o primeiro. Depois vieram os empregos remunerados: IBGE, monitor de escola, projetos de pesquisa. Mas a conquista que mais me atravessa é o terreiro. Um terreiro de umbanda no meio da mata, sem parede, com o chão de areia e o teto de folhas. Eu não sonhava com isso, mas os Encantados sonharam por mim. E eu aceitei o sonho. No começo, achei que não dava conta. Só três anos de experiência como médium e já fui chamado a liderar. Era medo e certeza ao mesmo tempo. Mas eles me disseram: “Você não está só.” E não estou. Dançamos, bebemos, curamos juntos. O terreiro...
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“Meus sonhos são os sonhos compartilhados com os meus ancestrais”.
Me chamo Iraê. Tenho 22 anos e carrego no nome e no corpo o território Tremembé, no Ceará. Cresci entre a água da chuva que invadia as estradinhas da aldeia e as palavras que, no início, me escapavam. Lembro da água escorrendo pela estrada, misturada com a bosta dos cururus e dos cachorros, e de nós, meninos, mergulhados na alegria do inverno, sem medo de sujeira nem de riso. Era uma infância feita de rabada do macaco, pega-pega e o som da mata.
Meu pai, agricultor e professor, era presença constante na escola. Minha mãe também dividia seu tempo entre a roça e o cuidado com a casa. A educação foi plantada em mim com a mesma dedicação que se planta feijão no quintal. Mas não foi fácil, não. Fui reprovado no segundo ano porque não sabia ler. Foi um baque. Mas também foi um divisor de águas. Aquele ano me ensinou que a leitura não é só letra: é vida. A professora Glaciane, a titi, me fez desinstalar o desinteresse. Depois dali, eu li o mundo.
Minha família é pequena, mas é tudo pra mim. Somos cinco e, entre os conflitos e os carinhos, a gente se entende. Minha avó... ah, minha avó. É uma força bruta e doce. Diz que não está velha, que ainda não vai morrer. E eu acredito. Ela é o espelho que me diz que o tempo não me limita.
Tive muitos trabalhos. Cuidar do território foi o primeiro. Depois vieram os empregos remunerados: IBGE, monitor de escola, projetos de pesquisa. Mas a conquista que mais me atravessa é o terreiro. Um terreiro de umbanda no meio da mata, sem parede, com o chão de areia e o teto de folhas. Eu não sonhava com isso, mas os Encantados sonharam por mim. E eu aceitei o sonho. No começo, achei que não dava conta. Só três anos de experiência como médium e já fui chamado a liderar. Era medo e certeza ao mesmo tempo. Mas eles me disseram: “Você não está só.” E não estou. Dançamos, bebemos, curamos juntos. O terreiro não é só meu, é nosso. É dos Encantados, dos vivos e dos ancestrais.
Tive que sair da bolha do território para estudar em Sobral. Foi difícil. Sair de um lugar onde tudo é nosso para um onde somos minoria, estranhos. Mas fui, voltei, fui de novo. Hoje estudo, trabalho com cultura e ainda sonho. Sonho junto com os que vieram antes de mim, com os que foram apagados e com os que ainda virão. Meus sonhos são compartilhados. Quero uma clínica no território, quero continuar a caminhar nessa estrada de barro, folha, palavra e fé. Minha história está sempre em construção. Cada vez que a conto, ela muda. E talvez seja isso: viver é recontar-se. E enquanto eu puder falar, dançar, escrever, cuidar da terra e dos meus, sigo inteiro, guiado pelo que me move: o coletivo, a memória, o sagrado.
Chilito
Ganhei um sonho, um ser pequenino,
parecia frágil, doce, menino.
Era um sagui, ou algo assim,
trouxeram pra casa, ficou pra mim.
Cabia na palma da mão da mãe,
tão pequenininho, tão coisa de bem.
Tomava na seringa seu leite quente,
e virou da família, um ente presente.
Corria solto, comia no chão,
vinha brincar com a nossa refeição.
Demos a ele amor de verdade,
foi o caçula da nossa irmandade.
Mas um dia a tristeza chegou, subiu numa ripa, o fio o pegou.
A gente diz: não foi o choque não,
foi a raiva que tomou sua mão.
Se mordia, se feria devagar,
e a gente sem jeito, sem como curar.
Tivemos, chorando, que o deixar ir,
com dor no peito, sem resistir.
Hoje eu penso, com mais clareza:
devia ter deixado ele na natureza.
Talvez, na mata, tivesse vivido,
e esse fim triste tivesse sumido.
Desde então, nunca mais bicho do mato,
só gato, cachorro, só o que é de fato
pra viver com a gente, do lado de cá,
porque com silvestre... não dá mais pra arriscar.
Mas Chilito ficou, ficou como marca,
lembrança bonita que nunca se apaga.
Toda vez que falo da infância que eu tive,
essa história volta e nela, ele vive.
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