P/1 – Eva, bom dia!
R – Bom dia!
P/1 – Quero fazer primeiro as perguntas de praxe: seu nome, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Eva Furnari, eu nasci em 15 de Novembro de 1948.
P/1 – Aonde?
R – Em Roma, na Itália.
P/1 – E você veio para o Brasil com qual idade?
R – Olha, eu vim no final de 1950. Então dá o que? Dois ou três Anos de idade. Engraçado, seu sempre errei essa data. Existem informações equivocadas na internet e o equívoco é meu! .
P/1 – Qual é o nome e atividade dos seus pais?
R – Meu pai é Francesco Furnari, que na Itália se diz Fúrnari, e não Furnári. Ele já é falecido e era químico. Chamava-se na época químico industrial e fez diversos trabalhos nesta área.
P/1 – E sua mãe?
R – Minha mãe é Irma Furnari. Ela era formada como secretária. Mas ela tinha dons artísticos, não tinha nada de secretária .
P/1 – E porque que eles resolveram imigrar?
R – Olha, são histórias antigas. A gente nunca sabe exatamente as histórias, mas do que eu sei, eles gostava de viajar, eram aventureiros. Então eles se casaram em 1936 e assim que se casaram, foram para a África, onde moraram por quase 10 anos. Passaram por Asmara.
P/1 – Ah, que legal! A Marina Colasanti também nasceu em Asmara.
R – Também! No mesmo lugar e na mesma época que o nascimento da minha irmã, que é mais velha do que eu. Os meus pais ficaram em Asmara mais tempo que os pais dela. Muito interessante, não é?!
P/1 – E você tem quantos irmãos?
R – Tenho uma irmã mais velha e mais dois irmãos no meio. Eu sou a caçula.
P/1 – Então seus pais já vieram com os filhos?
R – Os meus pais foram para a África porque na época do Mussolini existiam as colônias, o qual ele queria que os italianos ocupassem. Era um lugar paupérrimo, seco, quase sem recursos – não tinha como viver ali. Então minha mãe e meu pai foram neste pacote. Tinha até um livro sobre Eritrea e Asmara, fazendo propaganda para os italianos fosse para lá. Ai eles ficaram na África durante a segunda guerra, em1945, e quando a Itália perdeu a guerra, eles perderam as colônias, então eles tiveram que sair da África. Meu pai na África tingia peles e mandava para a Europa. Essa história eu nunca contei para ninguém, viu, José?! .
P/1 – Olha que bacana!
R – Eles viveram na África pouco mais de dez anos. Meus irmãos nasceram em Asmara. E quando a Itália perdeu a guerra eles perderam tudo e tiveram que voltar.
P/1 – Perderam tudo?
R – Tudo. E ai foram para Itália. Eu nasci em Roma e depois eles vieram para o Brasil, vamos dizer que em uma aventura.
P/1 – E em Roma você lembra em que bairro eles moraram?
R – Não faço nem ideia!
P/1 – Eva, vocês vieram de avião ou de navio?
R – De navio. Era bem demorada a viagem. Viemos e moramos no bairro de Moema (São Paulo).
P/1 – E seu pai veio trabalhar com químico.
R – Isso, como químico.
P/1 – E a sua mãe tinha dons artísticos, ela desenhava também?
R – Ela desenhava, mas não era uma pessoa como eu, obsessiva por desenhar. Ela tinha o dom, mas não se debruçou sobre isso com a obsessão que os artistas costumam ter. Aliás, o meu avô foi pintor. Eu não cheguei a conhecer, era o pai dela, mas eu tenho duas pinturas dele. Ele morava no norte da Itália, numa cidade muito pequena, e pintava aquelas montanhas.
P/1 – Então você foi morar em Moema. Você tem lembranças dessa casa ou apartamento que vocês foram morar?
R – Era uma casa térrea, que hoje não existe mais, pois virou um prédio. Eu me lembro do portão. Era um portão de ferro que com quatro anos de idade eu enfiei a cabeça. . Me apavorei! Eu ainda sou meio orelhuda , então a cabeça entrou, mas na volta....ai meu pai veio me salvar. Me lembro do portão, pra você ver como a memória das crianças é uma coisa diferente.
P/1 – E do que você brincava, com os seus irmãos ou pessoal da rua?
R – Eu era uma criança mais introspectiva, mais quieta. Gostava de brincar de bonecas, isso eu gostava! E observava bastante as formigas, a vida, os caminhos. Eu tinha uma coisa com as formigas.
P/1 – E as suas bonecas, viraram nomes de personagens depois?
R – Não. A criação posterior é de uma outra natureza. Mas pode ser que até tenha a ver. Eu fazia casinhas com livros em pé. Fazia quartos, roupas, camas, costurava roupas.
P/1 – E você fazia casas com livros?
R – Isso. Os livros eram paredes. E eu usava qualquer coisa para mobiliar essa casa. Me lembro de um móvel de boneca, que alguém fez e me deu. Depois isso tudo se perde. É uma pena.
P/1 – Falando então em livros de história, quem contava histórias pra vocês a noite?
R – A minha mãe. Ela era uma pessoa que valorizava os livros. Só que os livros que nós tínhamos eram aqueles trazidos por ela. Todos em italiano. Eu me lembro que tínhamos um grande volume dos contos de Andersen (Hans Christian), com umas ilustrações belíssimas e padrões estéticos que influenciaram os meus desenhos. Tinha também um livro alemão muito antigo, que eu tenho até hoje. Depois eu fui pesquisar o autor e é um livro de 1906, então deve ter sido um livro da infância da minha mãe. Esse livro é de um médico que ficava muito penalizado com as crianças doentes. Imagina, naquele tempo a medicina não tinha muitos recursos, então ele contava hiustórias para essas crianças. Tem um conto específico que eu gosto bastante, que é sobre uma criança doente. E é um livro alemão, com aquela letra gótica, ilustrações em preto e branco. É um livro pequeno.
P/1 – E a sua mãe lia esses livros para vocês?
R – Lia. Depois desses, lia livros de em italiano, uma coleção. A gente lia muito livro em italiano. Esses a gente lia em família, em voz alta.
P/1 – Em família?
R – Os livros eram lidos em família. Não era um livro que ela lia só para mim, era para todo mundo – 4 filhos.! – Então ela tinha esse hábito e o valor da educação dos livros. Valores europeus mesmo.
P/1 – Então os primeiros livros que você toma contato são esses da sua mãe?
R – São esses. Diferente do pessoal daqui, que tem muita influência de Monteiro Lobato, eu não tive. Na época, minha mãe não se interou do Monteiro Lobato . Ela era de origem alemã, mais fechada. Então eu tive mais influências europeias.
P/1 – E você é bilíngue?
R – Falo Italiano. Foi a minha primeira língua.
P/1 – E sua mãe cultivava o hábito de se falar italiano em casa?
R – Cultivava. Inclusive nós falávamos muitas palavras erradas. Porque nós aprendemos o português na escola, e não em família. Falava “imbigo”, “mindingo”, tem uma coleção de palavras que eu errava .
P/1 – Engraçado, porque as crianças falam mesmo “imbigo”, só aprendem depois de muita correção.
R – No caso, a minha família não corrigia, porque não sabia também .
P/1 – Nesse mundo de histórias, já apareciam histórias de bruxas também?
R – Não. . Tinha. Será que tinham histórias de bruxas? A minha mãe é filha de Austríacos e Alemães, e na cultura dela a figura da bruxa é importante. Ela chegou a fazer bonecos de fantoche e tal. Tinham muitas bruxas nesses bonecos. Isso não é tanto da cultura italiana, é mais da cultura alemã mesmo. Inclusive, muitos anos depois eu fui morar em Santo Amaro, quando nasceu a minha filha, e eu frequentava uma livraria alemã e descobri que o meu desenho tem muita influência Alemã, por incrível que pareça. No meu desenho tem influência do Wilhelm Bulch, que no Brasil é o Juca e Chico. Quando eu comecei a frequentar essa livraria, eu levei um susto! Até uma certa ingenuidade das histórias tem influência germânica.
P/1 – Eva, e o que surge primeiro? O livro ou o material escolar, o desenho?
R – Material escolar?
P/1 – Lápis, canetas...você começa a desenhar primeiro do que aprende a ler?
R – Eu acho que o lápis. Eu era meu analfabeta como pessoa . Uma criança meio desajustada. Não no sentido emocional, mas até por ser uma criança bilíngue, tinha certa dificuldade com a língua. Então comecei desenhando. Desenhava muito. Desde que eu peguei em um lápis. Eu tinha uma relação profunda com desenho. Não com as palavras.
P/1 – E você desenhava aonde? Papel de desenho, folha solta...
R – Tudo, tudo o que aparecia na minha frente. Papel de pão, capa de caderno, caderno, tudo! Os meus cadernos da escola eram todos cheios de desenho.
P/1 – Tem a história de um homem palito que você conta, como é?
R – Ah, o homem palito! . A gente nunca sabe o quanto as memórias são verdadeiras.! As vezes a gente tem uns pedaços e completa. Eu acredito que estava no segundo ano primário, não sei o que corresponde hoje em dia, mas naquela época eu deveria ter uns sete anos de idade. E eu lembro de ter desenhado um homem palito e eu achei que ele merecia uma roupa. Ele estava muito magro para o tamanho da cabeça. Quando eu desenhei a roupa, eu fiquei muito surpresa porque eu achei que eu sabia desenhar! . Eu achei que aquilo ficou com cara de gente mesmo. E isso ficou marcante pra mim.
P/1 – E que lembranças do primário, que hoje é o fundamental I você tem?
R – Eu estudei em colégio de freira. Colégio Nossa Senhora Aparecida, que hoje chama Consa. Era um colégio bacana. No meio do primário eu passei para o colégio Alberto Ponte
P/1 – Ahhh, o Alberto Ponte! Tem um outro escritor que estudou lá, o Lalau.
R – O Lalau! Eu encontrei com ele atualmente! Ele faz uma dupla com Laura Beatriz, não é?! Muito bacana o trabalho dele. Eu estudei no Alberto Ponte bom novinha, e ali era um outro tipo de colégio. O colégio de freira é mais fechado, com um tipo de educação. O Alberto Ponte era um excelente colégio com mais diversidade. Todo tipo de gente e realmente uma postura bem democrática. Eu não era a melhor aluna do mundo. Era muito encabulada, mas consegui! . Tenho lembrança de uma professora que se chamava Tânia, Sônia, alguma coisa do tipo. Professora de filosofia que eu adorava. Era casada com o professor Sérgio, de geografia. Era um bom colégio, eu lembro das festas dos estados: a gente pintava um painel.
P/1 – Painel?
R – Eles dividiam os estados por turma, e eu pintei um painel grande. Me senti muito importante! . E era uma maneira muito inteligente de estudar. Porque se fazia essa festa dos estados e cada classe estudava a geografia, comidas típicas. E olha, eu vou fazer um depoimento aqui, viu?! Eu sou mais a favor daquela geografia antiga, geografia física, que não misturava a geografia humana, o que eu acho que é mais simples. Eu acho que faz menos confusão na cabeça da criança.
P/1 – Me fala um pouco da sua formação com leitora. Depois dessa influencia materna, quais outros livros foram aparecendo na sua infância?
R – Eu lembro de ler A Moreninha, do Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar, O Guarani, tinha um monte de coisa. São as coisas tradicionais.! Eu tenho oito graus e meio de hipermetropia, e minha família não se deu conta que eu tinha dificuldade de ler.
P/1 – É mesmo? Conta melhor essa história.
R – As letras embaralhavam, eu lacrimejava, lacrimejava. Olha, eu acho que todas as coisas na vida são bênçãos de Deus. Eu acho que isso acabou me levando para o lado da imagem. Por mais que nessa época eu ainda não inventasse histórias, como eu tinha dificuldade em ler, eu acho que inventava histórias, olhava muito para as ilustrações.
P/1 – Mas descobriu-se com quantos anos que você tinha hipermetropia?
R – Com 18 anos .
P/1 – E qual foi a emoção de colocar os óculos?
R – Ah, eu pensei que ia cair! . Usar óculos era perturbador. Mas eu ia fazer vestibular e pensava que ia me dar muito mal se não usasse. Mas eu acho que essa dificuldade foi um presente. Fez parte da minha vida e esses empecilhos te levam a encontrar alguma solução para aquilo.
P/1 – E como foi a sua formação visual?
R – Bom, eu desenhava muito. Fazia até caricatura dos professores . Foi uma formação muito autodidata e aos 14 ou 16 anos a minha família começou a achar que eu tinha jeito. Nós tínhamos um senhor no bairro, não me lembro se ele era alemão ou russo, que era um grande aquarelista. Ganhei um pincel, um estojinho de aquarela, papel canson. E eu ia lá uma vez por semana e ele colocava na minha frente uma caixa postal ou uma fruta e eu tinha que copiar. Eu lembro que o teste para eu entrar lá era desenhar um cartão postal com margaridas. Ele queria saber na verdade se eu tinha condições mínimas para desenhar e depois pintar. Eu fiz duas ou três vezes, com sombra, um negócio sofisticadíssimo. . Ficou muito bom, até ele levou um susto! A aquarela é uma tinta delicada. Ela depende de uma experiência para ser executada. Você não domina a aquarela no primeiro momento. E então eu comecei a fazer essas pinturas, o problema é que ele não falava português. A única coisa é que ele falava é que o desenho estava “duro”. Pelo sotaque, deve ser alemão.! Não falava mais nada. Ficava lá pintando na prancheta dele e eu do lado, fazendo as minhas, por uma ou duas horas. Fiquei dois anos pintando. Na época eu não entendia o que ele queria dizer com “está durro”, depois eu descobri que era falta de água . O grande segredo da aquarela é você dominar a porcentagem de água. Você precisa se entregar e ter muito amadurecimento, com tudo na vida.Eu descobri isso muito mais tarde, pintando. Ele não deixava olhar muito para o desenho dele, mas a tinta parecia muito mais macia. A minha aquarela era uma pastilhinha dura. O dele era uma coisa cremosa, me lembro até hoje.
P/1 – Você estava contando do seu professor, em que idade foi?
R – Acho que foi dos meus 14 aos 16.
P/1 – E tinha algum artista que te chamava atenção?
R –Eu não tinha muito contato com artistas. Talvez fossem algumas coisas mais conhecidas. O meu contato foi quando eu entrei na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), que ai eu tive maior contato. No cursinho também, mas principalmente na FAU.
P/1 – Você fez vestibular para arquitetura?
R – Primeiro eu fiz para física.
P/1 – Física?
R – . Eu fiz um ano de física. . Só você que sabe disso .
P/1 – E você não gostou?
R – Eu venho de uma família de cientistas. Meu pai era químico, minha irmã é física, tenho um irmão engenheiro químico e outro mecânico. São uns caras bons, fazem umas coisas complicadíssimas. E eu tenho um pouco esse ambiente familiar onde se falava de ambiente, céu, astronomia, matemática, física, muito mais do que arte e literatura. Não se falava de literatura, falava de números, pesquisas. Esse era o meu ambiente familiar. Então nunca me ocorreu que pudesse ser alguma coisa diferente de física ou matemática. . Então eu fiz vestibular científico, e não o clássico, como era para as áreas humanas, entrei em física na USP (universidade de São Paulo) e comecei a frequentar as aulas, mas não entendia nada! Achava que aquelas pessoas estavam falando grego. Me lembro da aula de calculo, em que eu olhava aqueles sinais de integral e falava: “meu Deus do céu!”. Eu tinha um colega na física que, ao invés de assistir a aula, a gente ia fazer outras coisas. Ele queria ser cineasta, e a gente ia ao zoológico filmar os macacos. Fazíamos coisas assim, muito mais interessantes que física e matemática. Eu não tinha vocação para aquilo. Pra quem tem vocação, aquilo é maravilhoso, só que eu continuava pintando e desenhando.
P/1 – Pelo que seu perfil, então nessas aulas que não te interessavam você ficava desenhando?
R – Acho que todos os meus livros eram desenhados! . Os livros mesmo, não era nem os cadernos. Fazia uns desenhos nas integrais. Eu me lembro de ter encontrado um colega que fez cursinho comigo num desses bicos que a gente faz quando é adolescente, e nesse reencontro ele falou: “olha, porque você não faz vestibular para arquitetura? A faculdade é tão legal! Mas tão legal!” . Para você ver, a gente escolhia a faculdade, e não a profissão. Fiz seis meses de cursinho e entrei na FAU. Eu também não sabia exatamente o que estava fazendo lá mas, para mim, aquilo era muito mais interessante.
P/1 – E foi legal?
R – Foi ótimo! Porque ai eu estava em um ambiente em que eu me desenvolvi muito. Era um ambiente de artistas. Para você ter ideia, eu e um colega da FAU inventamos uma coisa que, tempos depois, eu descobri que existe até hoje, que se chama ExpoFAU. Que era uma exposição dos artistas da faculdade. Na primeira edição nós fizemos uma exposição de quadros no salão caramelo e tinha 50 participantes! Então você imagina a quantidade de artistas que tinha lá. Todas as artes visuais se concentravam na FAU, porque não tinha, como hoje, um lugar para essas artes. E era o máximo! O primeiro dia de aula já tirava a gente da postura anterior. Tinha um professor...como era o nome dele...
P/1 – Você cita muito o Flávio Motta.
R – Tinha o Flávio Motta, mas tinha outro professor, que era cenógrafo e trabalhava com uma loira. Era o Flávio Império!
P/1 – Ah, o Flávio Império.
R – No primeiro dia de aula, 150 alunos. Ele pediu para todo mundo deitar no chão do salão caramelo, que era um salão enorme. Pra quem vem da faculdade de física, que tem o ensino super regido, pensa: “gente, onde é que eu estou?”. Era muito interessante. A faculdade tinha uma biblioteca excelente, uma gráfica, oficina que se fazia de tudo. Eu fazia as molduras dos meus quadros lá. Era para fazer maquetes, mas a gente fazia de tudo. Era uma escola muito aberta. De manhã tinham as matérias técnicas, aquelas coisas dificílimas para todo pessoal que estava lá, e a tarde tinham as aulas de ateliê. Foi uma escola muito enriquecedora. As aulas do professor Flávio Motta eram tão cheias, que ele dava aula no anfiteatro, e era um show! Ele dava aula de história da arte e levava todas aquelas imagens, e ai a gente foi entrando em contato com os artistas. Ele é um cara brilhante! Provocava, sabia detalhes interessantíssimos e inacreditáveis. Era um mestre. Inspirava a gente nos desenhos dele. A gente copiava, imitava.
P/1 – Nesta época você já pensava em trabalhar com ilustração, desenho?
R – Não, naquela época a gente não tinha essa reflexão sobre para aonde vou, o que eu quero. A gente ia fazendo. O que eu comecei a desenvolver nessa época foi a carreira de artista mesmo. Eu tinha um grupo que também pintava, trocávamos informações, inventava moda. O Paulo Caruso e o Chico Caruso também estudavam lá. Eu lembro uma vez que, não me lembro se era o Paulo ou o Chico, tinha uma charge que era algo sobre “Deus é um grande arquiteto”,não me lembro. Sei que era um Deus barbudo, coisa e tal. E eu reproduzi aquilo numa parede de dez metros por mais de seis ou sete de altura. Fiz em papel celofane quadrado. Então a gente inventava moda! O pessoal tinha muita liberdade, muito estimulo. A minha produção artística e influências começaram ali, principalmente do Paul Klee. A gente não estava interessado se era um grande artista, desenhista, chargista. A gente queria absorver aquilo tudo. O Flávio Motta também desenhava e tinha influência desse pessoal. A gente molhava papel e escrevia em cima, tinha um monte de coisa! A primeira exposição que eu fiz foi no AACM? Não me lembro direito, depois eu vejo isso para você, era uma associação de amigos do museu de arte moderna, alguma coisa assim. Eu tenho isso nos meus arquivos. Então fiz exposições ali. Era um clubinho, um bar de artistas. Depois fiz exposição em um monte de salões. Salão Santo André, Piracicaba, e existiam essas atividades na escola, era uma coisa fervilhando. Nessa época já começou alguma coisa de livro. Tiveram dois pequenos eventos que me abriram para esse lado, mas ainda não eram publicações. O professor Flávio Motta inventou de fazer uns caderninhos com desenho. E a experiência era fazer com o Joãozinho da gráfica. Ele ficava fora do horário e imprimia esses desenhos para fazer os livretinhos. Eu ainda tenho um em branco e preto. A gente imprimia em resto de papel e encadernava. Nisso já começou uma convivência com o livro, a gráfica e a impressão. A gente não sabia nada, era super ingênuo. E então comecei a fazer pequenas histórias visuais com sequencias de desenhos para adulto, nada para criança. Hoje eu tenho uns dez, quinze cadernos que talvez um dia eu publique. A ideia de fazer esses livros veio com um presente que eu ganhei de uma paquera. Não sei se estou fazendo uma generalização muito grande, mas em geral, ilustradores, desenhistas, são pessoas muito tímidas, introvertidas, que falam pouco – eu conheço muito esse Perfil – não sei se você concorda comigo.
P/1 – Tirando Eliardo, que fala a beça, o resto é mais introspectivo .
R – Então tinha esse rapaz que, para me paquerar, me deu três desenhos. E os desenhos eram uma pequena sequência. Não chegava a ser uma história, mas tinha uma sequência. E aquilo foi um vulcão na minha cabeça. Falei: “Meu Deus do céu! Desenhos também podem fazer histórias!”. Isso foi um ponto marcante na minha história, que tem alguns pontos marcantes: homem palito, aquarela, e esse: a FAU como um todo na minha formação e esse presente. Acho que Deus escreve certo por linhas tortas. O amor não deu certo, mas isso me deu um clique! Eu pegava os restos de papel da gráfica e organizava, encadernava, mandava por espiral ou costurava. E ai, começou uma familiaridade com o livro. Como trabalho de conclusão de curso na FAU, eu fiz um trabalho com livro infantil. Sabe que não sei se tenho esse trabalho? . Pra você ver que eu não sou uma pessoa que guarda as coisas.
P/1 – Que interessante!
R – Era a análise de um livro que existia, onde se analisava desenhos estereotipados. Fazia-se também uma pequena história para crianças, onde o desenho germânico começou a aparecer. O meu desenho de adulto era uma coisa completamente diferente. Tinha influência de Picasso, Paul Kee, uma série de pessoas. E os livretos já tinham uma estética diferente. Ao sair da FAU eu continuei com esses livretos, mas sem nenhuma intenção de publicar. Mesmo antes do final da FAU, eu comecei a trabalhar no museu Lasar Segall. Um professor do cursinho era curador do museu e me convidou porque o Maurício Segall, filho do Lasar Segall, tinha intenção de fazer um ateliê de arte lá. E então fui convidada a conceber e determinar as filosofias deste ateliê, junto com outro grupo. O Maurício Segall era uma pessoa muito atuante e tinha a filosofia de fazer no bairro do museu um local onde as pessoas pudessem se reunir gratuitamente. Tinham algumas coisas de gravura, fotografia e a ideia era preparar arte com materiais pobres. Teve fotografia com caixinha de sapato, tinha um amigo meu que ensinou a preparar têmpera com a clara do ovo. Preparava-se tinta com pigmento, fazia-se a tela. Era muito interessante! E ai eu comecei trabalhar no museu e fui estudar. Me deparei com um grande educador espanhol, chamado (Victor Loguerfelt? 49:13), aonde eu aprendi grande parte do que eu sei sobre educação artística, que é uma área espinhosa: ensinar ciências exatas e humanas é uma area mais simples e mais fácil. Na arte, você pode ensinar técnicas, porém não existe uma matéria fixa. O desenvolvimento do aluno é de dentro para fora. Você precisa provocar uma manifestação, acolher aquilo, compreender e conduzir. É uma coisa de duas mãos, muito mais complexa. Então eu fui me aprimorar, pois decidimos que no ateliê iríamos ter xilogravura, modelagem com argila, desenho e pintura, e eu não tinha prática em xilogravura, fiz cursos em cerâmica. Foi no úlçtimo ano da FAU que eu comecei a trabalhar. E então eu casei. Nasceu a minha filha e quando ela tinha uns dois, três anos de idade?
P/1 – A sua filha Cláudia?
R – Isso. E então eu comecei a fazer essa ponte, de tudo que eu já tinha produzido de livros, imagens, porque eu pensei que era possível fazer para criança. Nessa época eu comecei a frequentar essa livraria alemã, para procurar coisas para a minha filha.
P/1 – Então também tem o impacto do nascimento da sua filha?
R – Tem. Esse foi outro ponto importante. Nessa livraria eu encontrei um autor que fazia livros sem texto. Como ele chamava. E tinham dois ou três livros dele lá. Era ele a mulher quem faziam os livros. E ai eu fiquei maluca com aquilo. Eu achei que poderia fazer aquilo. Nesse meio tempo sai do museu, também haviam acontecido algumas discordâncias ideológicas – Deus escreve certo por linhas tortas, afinal, tinha outro trabalho para fazer – e acabei saindo de lá, mas aprendi muita coisa lá, foi uma experiência muito fértil. Sou muito grata ao Maurício Segall, ao Cabral, que era o meu colega de trabalho. Sou fundamentalmente grata a essa convivência. Decidi sair,porém eu não fazia ideia de como produzir aquelas histórias.
P/1 – E como você foi parar na editora Ática?
R – Foi uma longa peregrinação. Eu comecei a frequentar a livraria Capitu, no bairro de Pinheiros, que é longe da minha casa. E lá descobri que existiam editoras brasileiras e estrangeiras, eu não sabia nada! . E então comecei a anotar o nome das editoras e telefonar, mas não sabia nem o que eram direitos autorais. Liguei para muitas e achei que, nesse começo, eu poderia trabalhar como ilustradora. Não tinha a certeza de que eu poderia fazer histórias, ou que eu era capaz. Então a minha pergunta era: “vocês precisam de ilustrador ai?” . Uma coisa desse tipo, bem pouco elaborada. Eu lembro que teve uma anedota no meio do caminho. Uma pessoa do outro lado da linha me perguntou: “que tipo de ilustrador? Lustrador de móveis?”
P/1 – Então você era animada, ligava mesmo.
R – Eu era cara de pau. Era tímida mais ia, ia, ia. Eu seguia a intuição e tomava atitudes. Tentei diversas coisas e não consegui nada. Ai a minha irmã tinha uma amiga, Maria da Graça. É uma educadora portuguesa muito bacana, amiga da minha irmã desde o colégio e tal, que informou para a minha irmã que na Ática eles aceitava ilustradores novos. E a Ática foi pioneira nessa produção, não é?!
P/1 – Sim, sim.
R – Faziam um trabalho muito bacana. Liguei e marquei um encontro com a Regina. Era Regina que ela chamava, a editora da época?
P/1 – Ah sim! Ela era famosa. Era Regina....ih! fugiu!
R – Bom, de qualquer forma, ela foi muito acolhedora. Me acolheu e tal. . Bom, neste momento não foi tão acolhedora . Eu tinha feito um portfólio com um monte de ilustrações que eu achava que poderia ser interessante em um livro infantil. Inclusive em branco e preto, ou numa cor só. Os livros aqui no Brasil ainda era de muita má qualidade, a Ática era a melhor, mas tinha muito livro preto e branco, porque saía mais barato e tal – eu ainda tenho alguns desenhos desse portfólio – mostrei para ela e ela falou “ai ai ai ai...mais ou menos!”. Senti que ela não ficou muito entusiasmada com o meu desenho, talvez por ser uma coisa muito tímida, ainda muito europeia. Estavam acostumados aqui com aquelas coisas mais coloridas. E ela disse para eu deixar o telefone que, se eles precisassem, me ligaria. Mas eu senti que não tinha rolado. Ai eu timidamente falei: “olha, eu também tenho uma coisa assim, que é só com desenhos”. Não sabia nem falar que era uma história sem texto, ou....
P/1 – Livro de imagem...
R – Não sabia nada! . E ela falou: “então me traz”. Então eu voltei no dia seguinte, levei o que eu tinha...
P/1 – Para a mesma Regina? Regina Mariano, não é?
R – Regina Mariano! Exatamente! Ai ela foi super receptiva, falou que ia conversar com o pessoal e me ligou depois de uma semana e falou: “queremos quatro livros” . Ai eu fiquei nervosa! Fiquei super nervosa!
P/1 – Quatro?
R – Quatro! Fiquei super nervosa! Porque obviamente, era o começo, não só meu, mas dessa grande indústria que tem hoje, com essa quantidade de livros infantis. Ai então ela me pediu para fazer quatro, com o desenho em papel e a tinta no outro, e eu não sabia fazer aquilo! Era para facilitar o trabalho da gráfica.
P/1 – O desenho no papel e a tinha no outro?
R – Mas eu não tinha a menor segurança de dizer que não sabia fazer aquilo e que iria fazer do meu jeito. Ela queria o traço preto no papel, e a cor no outro, tinha que fazer com mesa de luz, sabe? E ficou péssimo o trabalho, porque a canetinha tem o traço duro. Eu fiquei muito insatisfeita com o trabalho. Ele era milhões de quilômetros abaixo do que eu produzia como artista na época, e muito abaixo do que eu sabia que era bom. De qualquer forma, fiquei super nervosa, refiz 500 mil vezes, fiz e deu certo! Por incrível que pareça, o livro fez sucesso! . É a coleção.
P/1 – É o cabra-cega, de vez em quando, esconde-esconde e todo dia. São os quatro.
R – Isso. Coleção peixe-vivo.
P/1 – Então você já começou não com um, mas com quatro livros!
R – E comecei no susto! Inclusive quando eu levei o material para a Regina ela falou: “ mas não são tantas páginas!” Tinha o dobro, não sei ao certo. Mas no fim deu certo. Outro ponto importante que aconteceu foi com o Edmir Perrotti. Naquela época ele fazia critica de literatura, coisa que tem pouco hoje em dia...
P/1 – Infelizmente...
R – E ele então escreveu em um jornal feminista da época, que se chamava Mulheril, uma crítica positiva a respeito do meu trabalho, coisa que me deixou nsa nuvens.! Naquela época eu já havia produzido outros trabalhos bem melhores e estava procurando outras editoras para publicar. E então o Edmir Perrotti foi contratado como editor pelas edições Paulinas para fazer uma edição avulso, terceirizada, e ele me chamou. Ao mesmo tempo, a Cecília Zioni, da Folhinha, viu a crítica do Edmir e me chamou para trabalhar lá.
P/1 – Ai ela te chama para a Folhinha, com a bruxinha?
R – A bruxinha apareceu na quarta ou quinta semana e ficou! E fazendo toda semana, comecei a adquirir prática. Já sabia o que dava certo e o que não dava, desenvolvi técnicas de desenhar em preto e branco, e foi um trabalho que durou uns 4 anos, que derivou para O Estadinho, trabalhos com o Edmir Perrotti e ao livro reunindo as histórias da bruxinha.
P/1 – Antes de fazer os seus projetos próprios, você ilustrou muita gente.
R – Ao mesmo tempo, na verdade.
P/1 – Eu me lembro do Que horta, com a Tatiana (Belinky). Foi pela editora Paulus?
R – Paulus. Foi uma delícia!
P/1 – Esse é um livro maravilhoso!
R – Nossa! E cadê esse livro, não é? Ele merecia estar em catálogo.
P/1 – E não está?
R – Não sei. Nunca mais o vi.
P/1 – Eu tenho há muito tempo!
R – O Que horta é muito legal, não é? Os dois padres...
P/1 – E você também fez o Erico Veríssimo, não é?
R – Esse foi uma das últimas ilustrações que eu fiz para outras pessoas, depois dessa, eu acho que não fiz mais.
P/1 – São quatro ou cinco livros, não é?
R – Acho que sim. São as histórias que ele escreveu em 1950, que eu reilustrei. Eu não gosto de todas ilustrações que fiz, mas gosto do trabalho que fiz lá. Eu levava paralelamente os trabalhos de minha autoria e ilustrações para outras pessoas. Naquela época era um trabalho muito mal pago. Inclusive hoje, o trabalho de ilustração é vergonhosamente pago. É um absurdo como se paga mal.
P/1 – É mesmo?
R – É difícil fazer um movimento, porque são pessoas muito isoladas. A gente tinha um livro a cada um mês e meio.
P/1 – Ai então a gente volta para a bruxinha. Queria que você contasse um pouquinho sobre o personagem e como se abriu esse mundo das bruxas.
R – Huummm! . A bruxinha foi um personagem que surgiu na Folinha de São Paulo, de uma forma muito espontânea. A primeira história é uma pequena bruxa que encontra uma flor, transforma essa flor em bruxa e essa, que era originalmente flor, transforma a bruxinha anterior em flor. Então eu acho que a origem da bruxinha, é que ela já foi uma flor um dia! . Eu retomei essa história e fiz a agora, na última edição reformulada. A bruxinha surgiu de uma forma muito familiar a mim. É um personagem que não fala, e eu tinha uma familiaridade muito maior com a imagem do que com a fala. Surgiu no jornal em 1980, 1981, por ai. E eu fazia a bruxinha com muito interesse e satisfação. A gente sente quando está se fazendo um trabalho e lá existe uma energia, uma coisa. E lá tinha muita energia vital. Com outros trabalhos isso não acontece, e são projetos que não dão certo. As pessoas sentem quando o estado de espírito que a gente está quando se faz um trabalho. Não é nada racional, mas quando isso acontece, são esses os livros que vendem mais. Por incrível que pareça.
P/1 – Ah é?!
R – É! São os projetos que eu estou profundamente envolvida, mergulhada, e lá tem uma vida, uma energia vital. Por incrível que pareça. E ai a bruxinha foi se desenvolvendo, o desenho foi ficando mais sofisticado com as técnicas de preto e branco e sombra. O preto e branco é difícil de fazer porque ele facilmente fica um desenho deprimido, triste. Então eu fui atrás de desenvolver como fazer com que o preto e branco ficasse alegre: pequenas sombras, contrastes, o uso cuidadoso do cinza. E ao mesmo tempo eu fui desenvolvendo a coisa da estrutura narrativa. A história sem texto é extremamente completa de ser feita. Eu faço intuitivamente, é verdade , mas o erro de comunicação numa história sem texto é muito mais grave do que numa história escrita. Você só tem aquele recurso histritural, então se você não der o passo-a-passo muito enxuto, sem coisas a mais nem a menos, a coisa não funciona. Não quero me gabar, mas você pode observar que são poucas pessoas que fazem esse trabalho. Existem duas características importantes na narrativa sem texto, que são: o lado sensível da criatividade e um lado lógico, estruturado que, sem ele, você não conta a história. È um pouco como a arquitetura. Para se fazer uma casa você precisa do lado artístico e o estruturado. A casa precisa ter fundação, parede, estrutura, telhado, e ao mesmo tempo ser algo agradável aos olhos. Pra mim, essas narrativas visuais tem esse aspecto. Eu acho que, para pintar um quadro e por na parede, você não precisa de um lado estruturado, lógico. Livro você precisa, com ou sem texto. E a bruxinha foi uma grande experiência nesse sentido. Durou bastante tempo e depois eu fiz livros com essas histórias que tinham nos jornais, escolhi as melhores.
P/1 – Quais livros?
R – Tinham dois da editora FTD: Bruxinha 1 e Bruxinha 2, coisa muito antiga, já não está mais no mercado. O Bruxinha e Gregório, que já teve nomes mais cumpridos, mais curtos, dependendo da edição. Pela editora moderna, O amigo da Bruxinha e A Bruxinha atrapalhada, pela editora Global. Agora que eu estou na editora Moderna, eu resolvi dar um nome para essa bruxinha, a gente ainda não sabe direito se funciona ou não, e resolvi pegar todo esse material e fazer quatro livros. Dos quatro, dois estão prontos e os outros dois eu já tenho todas as histórias pensadas. Eu fiz quatro grandes grupos: ela sozinha, com amigos, com o gato...tem algumas variantes nisso ai. Mas peguei as melhores histórias, fiz novas, e com a experiência que eu tenho hoje. Estou muito satisfeita com o resultado. Naquela época eu achava que, depois de quatro anos de publicação, que tinha acabado o trabalho com a bruxinha, porque a vida é movimento! As vezes a gente tem dificuldade de abandonar alguma coisa - recomeçar é sempre algo difícil - e aconteceu isso com a bruxinha. Essa retomada não é “vamos fazer tudo outra vez”. É um cuidado, uma coisa amorosa com aquilo que foi, vamos dizer: uma roupa nova para aquilo que já existia.
P/1 – E esse mundo que começa com a bruxinha, continua até hoje, não é? São vários outros personagens.
R – Ah é! Tem a bruxa Zelda e...
P/1 – A bruxa Zelda tem até traduzido para italiano, não é?
R – É! Tem um livro em italiano. Tem a bruxa Zelda, quem mais? Ah! Tem a Sorumbática. Ah! Tem mais um livro da bruxinha. . Esqueci!
P/1 – Tem o Trucks...
R – O Trucks! É que tem mais dois livros da bruxinha que eu esqueci..
P/1 – O Trucks foi a única experiência de livro seu vertido para teatro?
R – Não. Tem alguns. Tem o Pandolfo Pereba, o Cacuete.
P/1 – Ah, o Cacuete virou peça? Nossa!
R – Uma peça belíssima! Não está mais em cartaz, mas foi um trabalho muito bom. . Tem mais alguns personagens, mas não estou lembrando bem.
P/1 – Bom, então para você os anos 80 foram muito produtivos. Sobre este período, o que você queria destacar além do trabalho da bruxinha?
R – Eu acho que destacaria o começo da década de 90, que foram as brincadeiras de palavras: Você troca?, Não confunda.
P/1 – Você poderia contar a história do Você troca?
R – Foi a minha iniciação nas palavras. Comecei a fazer livros com texto através de brincadeira com as palavras, jogos, coisas curtas. Isso eu gostava. Foi uma coisa sem querer. Depois que eu vi que dava muito certo com as crianças. . Elas acabam fazendo rima e o professor faz um trabalho em cima disso.
P/1 – As crianças leem e depois querem escrever, não é?! Isso tem um impacto muito interessante.
R – É porque tem um estrutura interessante. Na época eu nem tinha percebido. Essa brincadeira é quase da cultura popular.
P/1 – A gente está com o Você troca? aqui, você não quer ler um trechinho pra gente?
R – Vamos ver. . Deixa eu ver um que eu goste: “você troca um mamão bichado por um bichão mimado?” . Tem diversas! “Você troca um tutu de feijão por um tatu de calção?”. “Você troca um coelho de chinelo por um joelho de cogumelo?”. Nesse eu exagerei um pouco! !
P/1 – Mas o desenho do joelho de cogumelo é ótimo!
R – É. Ai vai juntando o desenho engraçado com o texto engraçado. O desenho pode ser engraçado. Fica uma coisa meio misteriosa.
P/1 – E a partir do você troca veio uma sequência de livros nessa linha, não é?! Inclusive o Travadinhas.
R – Foi uma sequência pela editora Moderna, onde eu comecei a explorar mais essa coisa da palavra, principalmente em jogos. Ai teve um momento importante: Eu estava inventando uma história da bruxinha, apareceram os outros personagens, e na minha fantasia – eu fecho os olhos, as histórias visuais são criadas assim.!
P/1 – Ah é? Conta pra mim.
R – Ah. Fecha os olhos e vai pensando imageticamente o que acontece. Um personagem, um lugar. É uma coisa sutil, de acolher o que acontece com o personagem. Eu não vou mentalmente criando fatos. A verdade é que se acolhe o personagem. Deixa ele meio livre. E nisso apareceu uma trupe de gente! Vinha vindo, vinha vindo! . Essa história eu já contei. E ai eu os identifiquei e pensei: “não não, estou fazendo a história da bruxinha!” Mas eles insistiram e eu acolhi , e era o pessoal de uma cidade que se chama Piririca da Serra. São quatro livros sobre uma cidade bem pequena, que tem a casa da bruxa, a casa de um cientista e tem um menino que mora na cidade e é assistente do cientista. É um embate entre a visão científica e o mundo exotérico, da magia, que é um replexo da minha vida.
P/1 – Até porque a sua obra passa muito pelo caminho do simbólico, não é?
R – Muito! Eu acho que não passa pelo real. Uma coisa até junguiana (de Carl Jung). Não que seja, mas o Jung transitava nesse universo simbólico.
P/1 – E de qual caldeirão vem toda essa inspiração, de tantas coisas legais e diferentes?
R – Pois é, eu não sei explicar, viu?! Na minha família tinha um pouco dessa coisa da brincadeira. Eu tinha um irmão que era muito engraçado – ele que seria o escritor da família.
P/1 – Ah é?!
R – É! Ele fazia redações da escola muito bem. Eu nem sabia escrever direito e ele fazia ótimas redações. Ele falava coisa muito engraçadas, como, em inglês, “a dog nhec-nhec my pernation”. . “O cachorro mordeu minha perna”. Ele fazia traquitanas para aparar a luz da cama, desligar a vitrola, passava horas fazendo isso. Então tem essa coisa do gosto pelo humor e quase um caminho mental que a gente pratica. Na criação você entre um pouco numa seara que você não conhece direiro, então você acostuma a entrar no caos e não ficar apavorada. No começo a criação é caótica, então, já acostumado com essa fase, você passa para uma fase mais estruturada. Muita gente para de criar por conta desse momento caótico.
P/1 – Ah é?!
R – Não suporta o caos das ideias. As ideias com cara de joelho, as ideias ruins, as ideias péssimas. Não espera amadurecer a ideia para ver o que vai adiante. Como se não levasse a brincadeira a sério. . Quando você acredita e bota fé, uma hora começa a encaixar tudo!
P/1 – E Eva, a partir de qual momento você consegue (não é resolve.!) fazer só os seus livros?
R – Foi a partir do livro da Bruxa Zelda, em 1996. Eu comecei a pensar “eu posso muito mais do que estou fazendo!”. Então comecei a fazer um desenho mais demorado. Foi economicamente complicado porque eu comecei a fazer um desenho mais demorado, levei longos três meses para fazer . Hoje eu levo seis meses, um ano para fazer, na época não podia. Como eu acreditava que deveria me dedicar mesmo, comecei lentamente a parar de fazer ilustração para os outros e focar no meu trabalho. E deu certo!
P/1 – Deu!
R – Deu! . Por sorte, e com a ajuda lá de cima também.
P/1 – Mas você direcionou, porque tem gente que não acha que é possível.
R – É. Tem que acreditar.
P/1 – Eva, todo mundo que vem aqui conta algumas histórias de livros. Porque é que esse livro foi feito, você quer contar a história de algum livro específico?
R – Então vou contar duas: uma é da família gorgonzola.
P/1 – Ah tá!
R – Eu fui convidada para um congresso e estava numa reunião.Naquela época fazia muitas visitas e em muitos lugares. Nunca sabia o que ia acontecer, era sempre uma surpresa. E nessa foi uma surpresa maior ainda! Sei que me colocaram no meio de um negócio onde estavam discutindo alguma coisa que não tinha nada, nada a ver comigo! Não me lembro o que era. Sei que era um congresso de livros, mas era alguma coisa técnica sobre blá, blá, blá, blá. E eu perguntava “o que eu estou fazendo aqui?!”. Ai eles estavam discutindo há duas horas e chegava a minha vez que falar. E o que eu ia falar? Do meu trabalho. Pensei “meu Deus do céu!”. E o pessoal empolgado lá com o assunto deles. Enfim eu fiz um recreio para eles! . Enfim, falei, eles gostaram, mas fiz a hora do recreio deles e depois tive que assistir mais uma hora de reunião deles. Mas ai, nessas duas horas, o que eu fiz? Tinha uma caneta Bic e papel na mão, comecei a desenhar. E saíram uns desenhos incríveis! Eu ainda tenho esses desenhos. Completamente diferente dos que eu costumava fazer. Não sei se eu captei alguma coisa do ambiente. Tem uma palavra em italiano em português não existe, mas é quase mesquinharia, coisa pequena. E eles ficavam discutindo isso! Acho que isso refletiu no espírito dos desenhos. E ai eu pensei “o que eu vou fazer com esse pessoal?”. E ai, me lembrei dos problemas de matemática – eu adoro matemática! – da minha época. Eram sempre com a Dona Maria na feira, que comprova uma dúzia, dúzia e meia, ou não sei o que. E eu pensei: “nossa, mas isso dá muitas histórias, não é?!”. Eu comecei a escrever os problemas e esses desenhos casaram perfeitamente. Foi a combinação da onde surgiu a família Gorgonzola, que vem dessa reunião, mas tem influência dos desenhos que crianças me enviam, ou entregam quando eu raramente visito escolas. E isso me influenciou novamente. Aquela coisa espontânea, torta, que pinta a pele de verde, porque não prestou atenção em que cor estava . Eles são muito engraçados, e é um engraçado muito genuíno.
P/1 – E essa fase começa então com a família Gorgonzola?
R – Isso. Onde eu alcancei uma coisa que eu queria a muito tempo, que é a liberdade de desenhar. A gente fica com uns estereótipos do que é bom para a criança, do que é bom para publicar – essas bobagens todas - que atrapalha muito. E a família Gorgonzola, como tem muitos sketches, me dá muito liberdade para criar. Nem sempre eu retomo essa liberdade, mas eu estou sempre em busca dela.
P/1 –Eva, você poderia contar um pouco dessa sua releitura do mundo de conto de fadas, com Tartufo, Rumboldo...que também é um núcleo, não é?!
R – Ah,tá! É, acho que tinha história de príncipe e princesa na minha infância. É um símbolo, não é?! Eu tenho um pouco de mania de perfeição, tem o lado bom e ruim nisso , e eu acho que as histórias de príncipe e princesa tem um pouco desse lado da perfeição. Das ilusões que podemos ser perfeitos. Além de ser simbólico, esse é um ambiente para questionar essa coisa da perfeição, que é o Pandolfo Perereba.
P/1 – O Rumboldo é o rei que acha defeito em tudo?
R – Não, é o Pandolfo Perereba, que dá nota para as pessoas.
P/1 – Exatamente! Num determinado momento ele conhece a moça....
R – Isso! Porque muitas vezes a questão amorosa não tem a ver com a perfeição, não é?! Mas na nossa sociedade isso está atrelado.
P/1 – É ali que você põe qualidades e defeitos, que são os mesmos?
R – Isso. Na última, na última página. Na última edição. Eu fiz essa brincadeira.
P/1 – Ficou muito legal! E gostaria que você contasse um pouco da história do Felpo.
R – O Felpo é a outra história que eu ia falar. Eu tenho uma amiga chamada Ângela, dona da livraria Casa de Livros, amiga minha há mais de trinta anos, e que faz feira de livros. Um dia nós estávamos almoçando juntas e ela falou: “nessa semana eu preciso organizar uma feira com diversos gêneros literários”. Ai, de brincadeira, eu respondi: “Eu ponho isso tudo num livro só!” . Foi assim que começou.
P/1 – Nossa!
R – É, foi uma brincadeira. E esse tipo de desafio eu gosto. É um desafio enorme inventar uma história que passe por diversos gêneros literários. O Felpo eu acho que é a terceira versão, eu não fiquei satisfeita com as primeiras. E eu adoro desenhar coelhos – não o bicho em si – e o Felpo foi se humanizando. Foi aparecendo esse monte de problemas que ele tinha.
P/1 – Você usa cartas. E hoje em dia as cartas estão sumindo, por conta dos e-mails. Você ainda escreve e recebe cartas?
R – Recebo cartas escritas a mão e repondo poucas, viu. Não tenho tempo. Algumas respondo na mão.
P/1 – Então o carteiro ainda vai na sua casa para levar coisas além de contas?
R – Vai! . A editora manda, as crianças mandam.
P/1 – E na história do Felpo a carta é fundamental, não é?!
R – É fundamental! É ela quem monta a históra.
P/1 – Você poderia só ler o comecinho do Felpo para a gente?
R – “Na toca 88, da rua de espinhos, na cidade de Rapidópolis, morava um coelho solitário que não recebia visitas, não tinha amigos, nunca queria saber de conversa com ninguém. Os vizinhos já estavam acostumados. Diziam que ele vivia no mundo da lua. Quer era distraído e desligado e que tudo isso se podia entender, porque ele era um poeta. Ele era o famoso poeta e escritor Felpo Filva”.
P/1 – Eva, infelizmente estamos chegando ao fim da entrevista. Eu queria te perguntar sobre essa relação com os leitores. Eu sei que eles te escrevem. Você criou alguma relação no passado com os leitores? Como eles aparecem na sua vida?
R – Olha, eu já tive muito mais contato. Hoje vou bem pouco às escolas – não dá tempo – eu tenho mais trabalho com os livros, que pedem um desenho mas sofisticado. Mas é como se eu tivesse uma familiaridade com o universo das crianças. Como se eu tivesse mantido uma conexão, e até um lado infantil, apesar da idade que tenho. No universo infantil eu sou capaz de, digamos assim, perceber o que acontece. Eu tenho um hobbie que é estudar educação. Então eu acompanho, de maneira indireta, o que as crianças estão fazendo hoje, como elas se divertem, qual é a natureza hoje das coisas.
P/1 – Conta um pouqunho como é um dia seu de trabalho no ateliê.
R – Eu sou uma pessoa disciplinada. Gosto de horários, gosto de rotina. A aventura fica por conta da imaginação . Eu acordo as seis horas da manhã, todos os dias. Faço meditação, tomo café, faço caminhadas, trabalho. Tenho o horário de almoço fixo e hora para dormir. Eu não consigo sempre, é claro. Num mundo cheio de solicitações é difícil. O mundo hoje está muito interessante e tem coisa demais, então é necessário escolher. E para escrever e desenhar é necessário disciplina. Como é muito trabalho, você só consegue fazer um pouco em cada dia. Então a maneira que eu encontrei é a disciplina. Eu estou cada vez mais organizada. Eu tinha uma rotina, mas não era tão organizada. Já que os meus filhos estão grandes, e tal, é mais fácil e para mim, muito agradável. Eu gosto da rotina. Ai eu sento e crio! .
P/1 – “Eu sento e crio”. Eu sei que você tem coleção de nomes, que você gosta de fazer listas, isso te ajuda no processo criativo?
R – Eu tenho essa criatividade exagerada e eu não consigo dar vazão a tudo que eu crio, porque para finalizar um projeto demora muito.! Então tenho muitas ideias. Muito mais do que eu consigo realizar. Vamos ver se agora eu consigo ser menos perfeccionista e soltar mais, sabe?! Eu tive uma experiência recentemente, que foi o último livro que eu fiz. Posso falar do meu último livro?
P/1 – Ótimo, vamos falar dele!
R – É o Listas Fabulosas, que é um livro de listas. Apesar de ser tão disciplinada, às vezes as coisas ficam todas caóticas, e um dos meus recursos é fazer listas. Eu tenho muitos cadernos e cadernos onde eu tenho que me organizar, e as listas me ajudam nesta organização. Por isso, eu tenho familiaridade e um amor por listas. E nesse livro eu conto a historia de um rapaz chamado Gromio, muito solitário, que quando pequeno fazia as listas felizes e depois começa a fazer as listas fabulosas. Ai então ele resolve fundar um clube das listas na garagem dele.Só que o clube é só ele! .
P/1 – Cadeiras vazias!
R – Ai ele coloca um anúncio no jornal e consegue mais 12 sócios. E após um ano eles publicam um livro de listas, e ai eu conto uma lista de cada um desses sócios. As listas são insanas! Eu posso ler a primeira para vocês.
P/1 – Oba!
R – São os piores jeitos de se fazer alguma coisa: 1. Fazer a lição de casa de ponta cabeça. 2. Lavar roupa com suco de uva. 3. Escovar os dentes com doce de leite. 4. Dormir de olhos abertos. 5. Tomar água em copo furado. 6. Encher a banheira com conta gotas. 7. Jogar futebol com bola de gude. Então só tem coisas desse tipo: uma pior que a outra! Eu me diverti muito fazendo, inclusive com os meus filhos. Me lembro que a primeira versão foi num restaurante, pedindo a opinião deles. Eu fiquei muito satisfeita. Os desenhos são engraçados. Eu fiz com lápis de cor – comprei uma caixa com 120 cores, da Caran d’ Ache! – fiz em papel especial com um monte de técnicas que eu já venho acumulando. E tem muita influência do desenho das crianças também, já está bem incorporado.
P/1 – Eva, para finalizar, eu queria que você contasse como está o seu momento criativo em 2013.
R – Eu sempre invento coisas. Eu sou aquela pessoa que inventa moda e as vezes nem tenho tempo de administrar tanta coisa que eu invento. Mas estou com projetos novos. Acabou a minha entre safra – tirei umas férias – e agora estou mexendo nas minhas gavetas e arquivos de computador, escolhendo alguma coisa nova para fazer. Estou escrevendo muito. Escrevo alguma coisa para adulto também, mas não sei se vou publicar. E sempre assim, não posso contar a ideia nova porque é segredo. Eu adoro segredos!
P/1 – E a sua produção agora está toda na editora Moderna, na biblioteca Furnari?
R – Tive a honra de ser convidada pela editora Moderna como autora exclusiva. Pra mim fica uma coisa muito mais organizada e focada. Eles re imprimiram os livros com uma qualidade impressionante e na medida que os contratos nas outras editoras acabam, eu os levo para a Moderna. E com isso eu tenho a chance de dar uma melhorada no livro, repaginar, mudar uma coisa ou outra, os textos todos são revistos, e a estética muda em 20, 30 anos. Os padrões são outros e eu estou muito mais madura. Tirei 16 livros do mercado e com os novos, estou bem satisfeita com o resultado, e tenho uma relação tranquilo com a editora. Uma relação fraca.
P/1 – E para terminar, nós fazemos essa pergunta para todos: O que você achou de contar a sua história aqui no Memórias da Literatura?
R – Eu preciso dizer, José Santos, que você é um grande entrevistador. Você arrancou coisas de mim que ninguém arrancou!
P/1 – Obrigado .
R – Contei detalhes que nunca tinha contado antes. Foi um delícia. Super gostoso! Acho que as pessoas vão gostar de saber detalhes. É difícil misturar a Eva, pessoa pública, com a pessoa que escova o dente, vai ao supermercado, trabalha e tudo mais. Então nesses momentos é que eu acabo lembrando do que eu fiz e tudo mais. E a gente é uma espécie de mito para as crianças, não é?! Eu tenho dúvidas se deve-se desconstruir esse mito porque as crianças gostam do mito. Daquela pessoa que ela fala “quero ser assim quando crescer”, ou “quero trabalhar desse jeito”, ou fica empolgado com coisas da cultura. Eu acho que tudo isso é muito legal para as crianças e adultos que leem o meu trabalho, mas eu não posso me confundir com o mito. Eu não sou nada mais do que sou como pessoa, só porque tenho essa obra. De certa forma, essa obra me constitui e faz o que eu sou n dia-a-dia, mas eu não sou mais do que qualquer outra pessoa. Aos olhos de Deus eu sou tão falível como qualquer outro. E aqui nessa entrevista apareceu um pouco as coisas desse outro lado.
P/1 – Tá ótimo, Eva! Muito obrigado.
R – Obrigado.
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