Me chamo Conceição Aparecida de Andrade. Sou filha do Sudeste, nascida em Guarulhos, São Paulo, mas fui adotada com afeto e calor pelo sertão pernambucano. Vivo aqui desde 1992, e posso dizer com toda certeza: tem pedaço meu espalhado por essas paisagens de sol estalando e gente forte.
Minha infância foi de rua, poeira, riso alto. Brincava de peão, de bola, de carrinho de rolimã. Nunca me contentei com o “de menina” que tentavam me empurrar. Era tudo meu: as brincadeiras, os livros, o mundo. Comecei a ler com quatro anos. Não sei como explicar, mas a leitura me escolheu. Eu devorava livros como quem precisa respirar.
Minha mãe teve papel nisso. Mulher de leitura, de gráfica, de ideias. Trabalhava na montagem das letras em Petrolina, no jornal Farol. Foi ela quem plantou em mim a importância da palavra. E ainda tinha minha tia, que era babá da filha da filha de Monteiro Lobato. Era de lá que vinham os livros, como presentes sem aviso. Li o Sítio do Picapau Amarelo antes mesmo de saber quem era o autor. Me encantava com o impossível, com o faz-de-conta, com a possibilidade de outros mundos.
Estudar, pra mim, foi um caminho natural. Eu lia bem, interpretava bem, era boa em matemática. Com dez anos, já ensinava outras crianças. Dava aula para quem queria entrar no ginásio. Naquela época, precisava fazer um curso de admissão. Não era igual hoje, que se passa de ano sem cerimônia. Tinha que merecer. E eu sempre corri atrás do que eu queria. Sempre.
Com 14 anos, terminei o ginásio. Logo arrumei emprego. Trabalhava numa loja de bijuterias na 25 de Março, em São Paulo. Pegava condução cedo, descia na Estação da Luz e ia andando até o trabalho, atravessando o Viaduto do Chá. Era um tempo de coragem. Hoje, penso naquela menina e quase não acredito que era eu. Mas era. Com a cara e a coragem.
Depois, fui fazendo cursos: contabilidade, letras. Casei, me separei e resolvi recomeçar. Vim para Pernambuco, terra da minha mãe....
Continuar leitura
Me chamo Conceição Aparecida de Andrade. Sou filha do Sudeste, nascida em Guarulhos, São Paulo, mas fui adotada com afeto e calor pelo sertão pernambucano. Vivo aqui desde 1992, e posso dizer com toda certeza: tem pedaço meu espalhado por essas paisagens de sol estalando e gente forte.
Minha infância foi de rua, poeira, riso alto. Brincava de peão, de bola, de carrinho de rolimã. Nunca me contentei com o “de menina” que tentavam me empurrar. Era tudo meu: as brincadeiras, os livros, o mundo. Comecei a ler com quatro anos. Não sei como explicar, mas a leitura me escolheu. Eu devorava livros como quem precisa respirar.
Minha mãe teve papel nisso. Mulher de leitura, de gráfica, de ideias. Trabalhava na montagem das letras em Petrolina, no jornal Farol. Foi ela quem plantou em mim a importância da palavra. E ainda tinha minha tia, que era babá da filha da filha de Monteiro Lobato. Era de lá que vinham os livros, como presentes sem aviso. Li o Sítio do Picapau Amarelo antes mesmo de saber quem era o autor. Me encantava com o impossível, com o faz-de-conta, com a possibilidade de outros mundos.
Estudar, pra mim, foi um caminho natural. Eu lia bem, interpretava bem, era boa em matemática. Com dez anos, já ensinava outras crianças. Dava aula para quem queria entrar no ginásio. Naquela época, precisava fazer um curso de admissão. Não era igual hoje, que se passa de ano sem cerimônia. Tinha que merecer. E eu sempre corri atrás do que eu queria. Sempre.
Com 14 anos, terminei o ginásio. Logo arrumei emprego. Trabalhava numa loja de bijuterias na 25 de Março, em São Paulo. Pegava condução cedo, descia na Estação da Luz e ia andando até o trabalho, atravessando o Viaduto do Chá. Era um tempo de coragem. Hoje, penso naquela menina e quase não acredito que era eu. Mas era. Com a cara e a coragem.
Depois, fui fazendo cursos: contabilidade, letras. Casei, me separei e resolvi recomeçar. Vim para Pernambuco, terra da minha mãe. Aqui, reencontrei minhas raízes. Fiz concurso, fui contratada, depois concursada. Dei aula, fui gestora. Trabalhei em escolas de Petrolina, Santa Cruz, Caetitu. Me envolvi com educação como quem se envolve com missão.
E foi aí, em 1997, que a cultura bateu à minha porta de um jeito novo. Conheci Luzia Barbosa, uma força da natureza em forma de mulher. Trabalhávamos juntas numa escola. Ela fazia faculdade de História e começou a trazer objetos, lembranças, relatos para dentro da sala de aula. Eu, como gestora, dei apoio. E juntos, com alunos e comunidade, começamos a construir o que viria a ser o Memorial Sertanejo.
Era um projeto simples no início. Usávamos as aulas de agosto, mês do folclore, para montar exposições com a comunidade. As senhoras levavam bordados, panos de prato, receitas de doces. Os senhores traziam rádios antigos, ferros à brasa, liquidificadores manuais. Tudo virava material de aula, de memória, de afeto. A gente fazia desfile com roupas antigas, mesa de chás, exposição de objetos. E cada peça trazia uma história. Uma vida.
Lembro do dia em que apresentaram o Toré dança indígena com roupas de cipó. E lembro do cheiro dos chás, do sabor dos doces de goiaba, das benzedeiras com olhos de sabedoria. A escola virou casa da memória, e o povo começou a se reconhecer ali. O espaço foi ficando pequeno. As peças se multiplicavam. Então Luzia, essa sonhadora incansável, decidiu: era hora de criar o museu.
O Memorial Sertanejo é, hoje, esse espaço de resistência, de lembrança, de recomeço. Um lugar onde a história do povo caboclo, sertanejo, agricultor, ganha voz, ganha parede, ganha cuidado. E embora eu esteja menos presente, por conta do excesso de trabalho, sigo apoiando sempre que posso. Ajudei a fundar. E quando a gente ajuda a nascer, nunca se desliga de verdade.
O maior desafio foi aprender a ver o sertão com os olhos de quem mora aqui. Quando cheguei, nunca tinha pisado na caatinga. Só conhecia pelos livros. Mas hoje, vejo beleza onde antes só havia secura. O povo nordestino me ensinou generosidade, força, sabedoria. Pernambuco me deu chão, cultura, e um povo que acolhe como família.
O que me dá mais orgulho? A persistência. Essa palavra mora em mim. Persistência de não desistir dos sonhos, mesmo quando parece impossível. Persistência de quem sabe que memória também é alimento. Persistência de quem acredita que cultura não é luxo é base, é raiz, é necessidade.
Ainda sonho com mais reconhecimento. Que o Estado olhe com mais carinho para o que fazemos. Que a cultura não seja vista como enfeite, mas como força. Porque se não fosse o passado, eu não estaria aqui. Se não fosse minha mãe na gráfica, se não fossem os livros de Monteiro Lobato, se não fosse o sertão me ensinando a resistir, quem seria eu?
Me orgulho de ser mulher, professora, fundadora, leitora, sertaneja por escolha. Orgulho de ter feito parte de um projeto que conta histórias. Porque é isso que somos: histórias esperando para serem contadas. E enquanto houver alguém disposto a escutar, eu sigo contando. Com palavras, com memória, com o coração.
Recolher