Entrevistadora
Hoje, 4 de outubro de 2024. Estamos aqui no Impact Hub. No Núcleo Ubatuba Museu da Pessoa.
E vamos conversar com o Beto. Gostaria que você iniciasse falando o seu nome completo. Data de nascimento.
Por favor.
Betão
Bom, meu nome é Carlos Alberto da Silva. Mas sou conhecido como Betinho desde os 2 anos de idade. É até interessante, porque eu tenho guardado isso em casa ainda, que é um cartão que minha mãe fez de aniversário.
E está escrito, né? A todos peço desculpas se a velhinha não se apagar, pois hoje faço um aninho e ainda não sei assoprar. Betinho, 1980.
Seria no fato 82, quando estava fazendo 2 anos. E ali começou essa saga Betinho, né? Beto, Betão.
E nunca soube o meu nome direito, nem as pessoas da minha família. As pessoas chamavam lá, ligavam, Carlos. Quase ninguém atendia, porque quem é Carlos, né?
Depois vou descobrir na escola que meu nome era Carlos Alberto. Mas desde então era Betão. Comecei a desenhar com 6 anos de idade, porque minha irmã escrevia, ela era 2 anos mais velha que eu.
Então ela fazia meio que uma inveja, né? Falando que eu não sabia escrever. E era difícil mesmo, né?
Entender aquelas letras, como que ligava a letra, como que formavam frases. E daí eu comecei a olhar para as figuras, e comecei a achar as figuras mais fáceis de fazer do que as letras. Então aprendi a desenhar antes de escrever.
Que depois fui ter um sério problema na escola, porque eu não queria mais escrever. Então tudo que a pessoa falava, eu ficava mentalizando e criava em desenhos, né? Até a quarta série, que ela mostrou um desenho do meu pai, e falou, seu filho é louco.
Porque ele fez um desenho maluco de um livro que eu li, e ele lê o livro, mas não tem palavras escritas, né? E daí, desde então, o pai começou a dar mais caderno, mais livros, mais folhas, deixar mais à vontade. Me levou também a um colégio interno, para falar, ó, você tem que começar a escrever, para parecer com uma pessoa...
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Hoje, 4 de outubro de 2024. Estamos aqui no Impact Hub. No Núcleo Ubatuba Museu da Pessoa.
E vamos conversar com o Beto. Gostaria que você iniciasse falando o seu nome completo. Data de nascimento.
Por favor.
Betão
Bom, meu nome é Carlos Alberto da Silva. Mas sou conhecido como Betinho desde os 2 anos de idade. É até interessante, porque eu tenho guardado isso em casa ainda, que é um cartão que minha mãe fez de aniversário.
E está escrito, né? A todos peço desculpas se a velhinha não se apagar, pois hoje faço um aninho e ainda não sei assoprar. Betinho, 1980.
Seria no fato 82, quando estava fazendo 2 anos. E ali começou essa saga Betinho, né? Beto, Betão.
E nunca soube o meu nome direito, nem as pessoas da minha família. As pessoas chamavam lá, ligavam, Carlos. Quase ninguém atendia, porque quem é Carlos, né?
Depois vou descobrir na escola que meu nome era Carlos Alberto. Mas desde então era Betão. Comecei a desenhar com 6 anos de idade, porque minha irmã escrevia, ela era 2 anos mais velha que eu.
Então ela fazia meio que uma inveja, né? Falando que eu não sabia escrever. E era difícil mesmo, né?
Entender aquelas letras, como que ligava a letra, como que formavam frases. E daí eu comecei a olhar para as figuras, e comecei a achar as figuras mais fáceis de fazer do que as letras. Então aprendi a desenhar antes de escrever.
Que depois fui ter um sério problema na escola, porque eu não queria mais escrever. Então tudo que a pessoa falava, eu ficava mentalizando e criava em desenhos, né? Até a quarta série, que ela mostrou um desenho do meu pai, e falou, seu filho é louco.
Porque ele fez um desenho maluco de um livro que eu li, e ele lê o livro, mas não tem palavras escritas, né? E daí, desde então, o pai começou a dar mais caderno, mais livros, mais folhas, deixar mais à vontade. Me levou também a um colégio interno, para falar, ó, você tem que começar a escrever, para parecer com uma pessoa normal.
E você desenha longe dessas pessoas normais, e está tudo bem. Ou você vai estudar nessa escola aqui, para poder aprender sobre isso. E daí, desde então, não parei mais, né?
Entrevistadora
Isso em que cidade? E conta um pouco da sua constituição familiar.
Betão
Então, eu sou de Caçapava. Caçapava, interior de São Paulo, Vale do Paraíba. É uma cidade que foi muito significativa para mim, porque brinquei muito na rua.
É uma cidade bem rural, mas também tem muitos pontos que foram habitados por escravistas, né? Então, tinha muita fazenda de leite, de gado, de arroz. Então, eu cresci brincando nessa linguagem mesmo assim.
É uma cidade que tem bastante artistas, então eu via muitos murais assim mesmo. Então, fui muito próximo a essas pessoas, porque tem escola de samba também, né? E meu pai tocava sanfona, então ele sempre estava no meio das artes.
Então, fui crescendo nesse ambiente, né? A minha família é uma família que eu sou o sexto de sete irmãos. Hoje, eu tenho meu pai que está falecido, minha mãe é falecida e tem dois irmãos falecidos.
E eu cresci no meio deles, né? Então, eu tinha três irmãos, que são os homens, e quatro mulheres. Três mulheres e quatro comigo.
Desculpa. São três mulheres e quatro homens. E, através dos meus irmãos, eu comecei a experimentar a questão das tintas, das cores.
Um pouco, acho que eles que me montaram como eu sou, na verdade. Meu pai e minha mãe, pelo carinho, pelo amor, pelas questões de como eles viviam mesmo assim, de dar a liberdade, de deixar eu criar, ele começou a me criar desde criança, como eu seria hoje mesmo assim. Eu tenho um irmão que é um cozinheiro, então, ele me explorava para estar na cozinha, porque ele falava que as cores vinham dos alimentos, né?
Então, ele ficava cortando um monte de coisa, me mexendo na cozinha. Hoje, eu vejo que ele me escravizou, mas tudo bem. Foi por uma boa causa.
E tinha um irmão que trabalhava com funilaria e pintura. Então, ele me levou aos 11 anos para trabalhar na oficina. Então, eu limpava a oficina, lixava alguns carros e, no final de semana, todas as tintas e o compressor era meu.
Então, meu primeiro grafite foi feito com uma pistola de pintura, na parede, e foi a capa do Edge, do Iron Maid, que já foi para extravasar, que era o desafio. E tinha um irmão que também é canhoto, eu sou canhoto, só que ele foi obrigado, por ser canhoto você é obrigado a usar sempre a mão direita, então, acabei ficando ambidestro também por conta disso. Então, ele esculpia, ele modelava, então, fui aprendendo um pouco com cada um.
Eles foram me ensinando, eles iam tirando aproveito, mas, ao mesmo tempo, iam me ensinando. Então, foi nessa junção que eu fui crescendo.
Entrevistadora
Troca bonita, hein? E essa parte da alfabetização, como é que aconteceu?
Betão
Então, foi porque a minha mãe teve que parar de estudar na segunda série. Ela tinha mais irmã, teve que cuidar das irmãs, era a irmã mais velha, então não teve como estudar. Meu pai começou desde novo, ele veio de Minas Gerais, e, desde novo, começou a trabalhar, começou a trabalhar numa fábrica.
Então, antigamente, o ensino era até a quarta série. Então, estudavam, formavam, e ali começavam a trabalhar e não paravam nunca mais. Então, meu pai trabalhava, e a minha mãe tomava conta dos filhos.
Minha mãe sempre incentivou muito essa questão, para não ter a leitura, não ser muito alfabetizada, ela sempre incentivou a gente a... a sempre estar fazendo isso, né? Então, quando eu cheguei nos 13 anos, aquela época que a gente começa a ficar meio revoltado, assim, né?
Que você começa a querer fazer arte pra rua, aonde eu comecei até a pixar mesmo, assim. E eu decidi parar de estudar, porque todos os meus amigos estavam parando de estudar. E ela teve uma conversa comigo que falou, ok, se você quiser parar, tudo bem, mas amanhã ou depois, se você reclamar por qualquer coisa que você não aprendeu, não me culpe, né?
Porque a oportunidade foi sua. E foi aonde eu falei, ué, poxa, não vou parar, não. Então, meus amigos ficavam na esquina, eu dava a volta, pulava o muro da escola para eles não me verem, para não ficar me zoando, né?
Porque é o CDD... Então, foi indo, né? E cada vez fui querendo me aprofundar mais dentro dessa questão do estudo, né?
Tentei fazer algumas faculdades de artes, mas achei meio que parada pelo mundo que eu queria, que era o mundo do grafite. Foi até interessante, porque quando eu comecei a pintar, eu comecei a fazer desenho na parede, logo depois eu comecei a conhecer a pixação através das revistas, né? Foi aonde eu comecei a sair para pixar também.
Eu pegava uma lata, saía, pintava o nome, e não conhecia a história direito do grafite, né? Depois que comecei a aprofundar sobre isso mesmo, até um dia que eu pintei a casa da dona Zélia, que era uma mulher que morava quase perto de casa, e ela vendia caldo de cana, pastel frito, e uns docinhos, umas balinhas, e eu escrevi lá, Betão, no muro dela. Um dia, ela passando pela rua, falou, pô, conheço sua mãe, conheço sua família.
Meu pai era bem conhecido, porque tinha futebol, tinha bar, a minha mãe também.
Entrevistadora
Tinha carnaval.
Betão
Casa de carnaval, né? Minha mãe era baiana, então sempre gostou de festa. Minha casa sempre foi aberta para todo mundo, né?
Por isso que até hoje minha casa é sempre aberta, sabe? Não sei ter panela pequena, sempre é grande, sempre esperando uma visita, a cena em casa. E ela falou, poxa, conheço você, sei que você pinta, já vi alguns desenhos.
Isso eu com 13 anos, 14 anos. E por que você, ao invés de fazer isso, escrever Betão, você poderia ter escrito o nome da minha pastelaria, né? Porque agora eu vou ter que trabalhar muito para pintar isso, e você acabou me prejudicando.
E aquilo ficou na minha cabeça como, nossa, eu não acredito que estou fazendo isso, né? Estou conhecendo uma cultura que quer ajudar as pessoas, e eu estou prejudicando uma pessoa. Daí eu comecei a pegar umas tintas que tinham no quintal de casa, fui no oficina do meu irmão lá, peguei umas tintas.
Um dia saí 11 horas da noite em casa, pulei a janela e passei a madrugada inteira pintando a frente da casa dela. Fiz uma pastelaria, um pastel com caldo de cana. E no outro dia ela foi atrás de mim, com dinheiro, assim, disse assim, não precisa, para você começar a ver que você pode ganhar sem prejudicar o outro.
E aí comecei a me aprofundar sobre isso, né? O que seria o grafite? E cada vez fui me aprofundando.
E eu lembro que no 15 anos também dei um balão à minha família, que agora muitos vão ficar sabendo. Alguns já sabem da história, mas sempre falam que eu falo, pô, mas... Não, você não fez isso?
Sim, fiz. Fiquei de jogar bola, eu jogava bola, e eu fui jogar no sítio de um amigo, só que nesse dia eu não fui para o sítio, combinei com meus amigos que queria ir para São Paulo, porque eu queria conhecer o grafite de perto, né? Porque antigamente não tinha muitas latas de spray, os caps não eram tão legais, que são os bicos, né?
Então eu pegava do perfume do meu pai, até o dia que não tinha mais como ele espirrar perfume, o que está acontecendo, né? Então tudo é a culpa do Beto. Sempre a culpa era do Beto, até quando eu não estava em casa era...
E eu catei, peguei um ônibus com esse dinheirinho que eu ia juntando, porque eu trabalhava na oficina, de vez em quando eles davam um dinheirinho, e fui para São Paulo para achar um grafiteiro pintando, porque eu queria conhecer um pouco mais sobre as técnicas, né? E foi nessas andanças assim, fui parar lá no Grajaú, e lá estava o Marcola, que é um grafiteiro das antigas, junto com o Binho, com toda essa nata assim, que são os old school mesmo assim, e ali um garoto ficou vendo ele lá admirado, falando, fazendo perguntas, e dele, pô, mas o que você está fazendo aí, garoto? Tipo, vendo você grafitar.
Mas você não quer ir para casa? Não, pô, mas minha cidade está longe e tal, e aí eles acabaram me adotando por esse dia, acabaram falando sobre grafite, explicando várias coisas, falando sobre a linguagem do hip hop, até essa questão de eu ir viajar sem autorização, sem falar com meus pais que isso era uma coisa ruim, né? E foi me dando uma aula, passei a noite na casa da galera, tudo pintando, desenhando, aprendendo muitas coisas do ..., me levaram na rodoviária, me colocaram no ônibus, e tchau. E ficaram olhando para ver se eu não ia descer do ônibus ainda. E ali foi uma vivência que eu vim já meio que construindo, sabendo o que eu queria para a minha vida. Então, vai ter um Senai, todo mundo queria fazer Senai, fazer empilhada, e eu, não, não quero, quero arte, arte. E cada vez fui descobrindo que o grafite não estava dentro das galerias, não estava dentro de escolas, universidades, que estavam na rua, então eu tinha que conhecer a rua para poder transmitir isso. E depois fui descobrindo que o grafite também não estava na rua, estava dentro de mim, como está dentro de todas as pessoas, essa questão de você soltar para fora o que você tem, é a expressão. E ali veio, foi um pouco do meu ensinamento, então acho que a minha escola foi um pouco da rua mesmo, a vivência.
O rap fala um pouco sobre isso, a gente gosta muito de Paulo Freire, então como outros, Sérgio Vaz, tem vários outros escritores que falam muito sobre isso. Hoje em dia, quando as pessoas falam em uma batalha de rap, as pessoas têm um pouco de preconceito ainda, acham que a criançada só está usando droga ou não está sabendo de nada. Mas, na verdade, as criançadas que estão em uma batalha de rap, elas têm que ler muito o livro, têm que ter muitas palavras na cabeça, têm que saber gramática muito para poder calcular o tempo, como ligar uma palavra na outra, e são menos de um segundo, sabe?
E é toda linguagem, como no grafite, você tem que aprender algumas coisas, como na dança também, o b-boy, quando eles vão fazer aqueles movimentos, eles começam a perceber que tem que fazer uma faculdade para preparar o corpo, senão vai ficar com o corpo dolorido, vai se quebrar mesmo, como a música também, que é o DJ, que são os quatro elementos de hip hop. Então, sempre me cercando dentro disso e não deixando minhas raízes, que era o samba, que é o forró bem tocado com a sanfona. Na verdade, eu gosto de escutar de tudo, tudo que tem letras que fazem sentido.
Quando a letra não começa a fazer sentido, não é a minha praia.
Entrevistadora
Continuando, Beto, então você foi se formando e foi se profissionalizando?
Betão
Sim, fui se formando e fui se profissionalizando, fui viajando.
Entrevistadora
Você sempre foi na arte, você tinha esses bicos de trabalhar com seu irmão, mas seu foco desde pequeno era a arte?
Betão
Era a arte. Com 16 para 17 anos, minha cidade, Caçapava, foi muito forte em bicicross também. O skate também tem uma história muito grande, tem vários livros, revistas que falam sobre o skate de Caçapava, tem um bar lá que foi muito famoso, que é uma marca, na verdade, que é a Poço, e sempre foi muito famoso, e o bicicross também. Então, Caçapava ganhava muitas medalhas, e eu tentei correr no bicicross, mas não era pra mim. Mas, como eu tinha muitos amigos, comecei a grafitar capacete, bicicletas, então sempre estou envolvido com essa galera. E cada vez foi mais me profissionalizando isso, montei uma primeira lojinha de design, que era com um amigo antes de entrar no quartel, que acabei servindo no quartel também, que foi uma experiência bem louca na minha vida, porque eu tinha uma lojinha, fazia grafite, e acabei tendo que servir o quartel.
Fui dispensado, na verdade, mas depois de nove dias por morar perto do quartel, dois quilômetros do quartel, fui convocado, chamei o sargento de recruta, porque não sabia o que era, e ele, sim, você vai chegar lá, tinha hora pra chegar numa quinta-feira, cheguei em casa, minha mãe estava com a malinha toda pronta, euu cheio de tinta, não, mãe, tem um capacete pra entregar. Minha vida era arte, sempre fui trabalhando, fazendo uns trabalhos, arte. Tentava entrar numa fábrica, começar a fazer aquele movimento contínuo, sempre ia falar, não, não é minha vida, não vou conseguir, não é pra mim, e sempre indo pra arte, e acabei servindo o quartel.
Sofri bastante, um pouco, no começo, por causa, mas foi método de diversão, eu gosto de brincar até hoje, a minha namorada fala que eu sou uma eterna criança, e no quartel me divertia, porque eu brincava soldadinho com meus primos, e lá eu estava brincando com, tinha tudo, tinha arma, tinha farda, tinha amiguinhos, tinha os inimigos, e ia me divertindo, até que um dia, com o major Sunseri, que é um major que tomava conta das obras, me descobriu, e eu estava trabalhando no rancho, porque eu sou cozinheiro também, gosto de cozinhar bastante, e tudo que tinha de pintura no quartel, ele me resgatava, me levava pra pintar, e aquilo foi me fortalecendo cada vez mais, porque acabei pintando coisas que eu não pintaria, como um canhão, fazer um desenho num helicóptero, então ia pintando tudo, às vezes eu tomava alguma punição, porque eu pintava algumas coisas, e o pessoal via eu pintando, e falava, nossa, que que o cara tá pintando, acha que pode, e depois falava, alguém mandou? eu pensei, não, eu pintei o que eu queria, ficava preso.
Entrevistadora
Era direcionado à pintura ou era livre?
Betão
Algumas coisas eram livres, mas você não pode fazer uma pintura dentro do quartel, falando o mal do quartel, então às vezes eu passava dos limites lá dentro, porque eu não queria lutar, eu sou contra armas, eu acho que a arma nos prejudica, só que através da arma eu aprendi uma técnica muito grande no grafite, porque eu acabei mexendo com todos os tipos de armamento lá, e um foi a pistola, que a gente tinha que atirar com a pistola, com uma moeda em cima, e ali tinha que respirar pra poder disparar no alvo certo, e ali eu comecei a aprender essa técnica pra poder fazer com que o cap me desse um traço fino com qualquer cap, sem ter que entupir ele, a questão da respiração, então tirei uma experiência boa dentro do quartel mesmo também.
Entrevistadora
Isso com 18 anos?
Betão
Isso com 18 anos, 19 anos, com 18 serve com 19.
Entrevistadora
Um ano de quartel?
Betão
Um ano de quartel, daí quando eu fiz a promessa que nunca mais teria patrão, nunca mais cortaria o cabelo, então desde já nunca mais raspei meus dreads, deixei crescendo, tenho quem me pague, mas não tenho patrão, porque você tem que decidir, viver livre, explorando de outras maneiras, que eu aprendi ali dentro, a questão da disciplina, mas usando uma forma mais livre também.
Entrevistadora
E o prosseguir desses 19 anos, como é que foi esse adolescer seu?
Betão
Foi que, lembro que antes de adolescer no quartel, eu fiquei de serviço num ano novo, num QG, que a gente tomava conta de algumas casas de alguns generais, coronéis.
Entrevistadora
Caçapava tudo?
Betão
Caçapava tudo, porque Caçapava é uma cidade que é bem militarizada, então muitos quartéis são lá, a gente fala que é uma cidade dormitório, então a gente está entre São José e Taubaté, só que como os quartéis são grandes, a infantaria, que é o ....., que são mais importantes, é em Caçapava, então não teve muita evolução nas questões de escolas, de universidades, de algumas empresas. Eu tenho um amigo que é muito engraçado, ele me falava isso quando eu tinha 18 anos, antes de entrar no quartel. E sempre quando eu paro para pensar, eu falo isso.
Quando eu não vejo uma cidade evoluída, eu falo é porque não tem puteiro. E ele me falava isso, que era o Paulo de Tarso, que era um cara que era estudioso, que era Paulo de Tarso, ele tinha escrito aqui PT de Paulo de Tarso, mas quando ele ia votar na época da ditadura, ele tinha que colocar uma tala na mão. Ele sempre estava com o jornal, e era um cara que era muito estudioso, então ele sempre ficava no bar do meu pai com o jornal, e eu gostava de ir no bar do meu pai, porque eu acabava conhecendo muitas pessoas inteligentes, e esse cara se mudou para uma cidade, e era professor também, e chegou na cidade, e viu que ninguém na cidade não tinha escola.
E ele foi no puteiro para tomar uma cerveja, ler o jornal dele, e viu que as pessoas também não sabiam, então ele montou uma escola dentro de um puteiro. E ele começou a lecionar para essa galera, então ensinava a galera, era legal porque as pessoas saíam da igreja e iam para o puteiro para estudar. E ele falava que Caçapava não evoluiu porque não tinha puteiro.
Porque como os oficiais moravam em Caçapava, então não podia ter puteiro, porque as esposas iam descobrir. Então tudo foi para fora, São José, Taubaté foram crescendo, e Caçapava foi ficando ali, tipo cidade dormitória, a galera ia para fora e só voltava para dormir. Então ali é um pouco como era a minha cidade.
E aí, nessa evolução, eu fui começando a entender sobre isso, fui querendo buscar sobre isso, saindo da minha cidade, voltando, viajar, comecei a me interessar em mexer com barro, em esculpir, mexer com madeira, conhecer o que era tinta.
Entrevistadora
Foi diversificando a busca.
Betão
Foi diversificando a busca. E sempre trabalhando nessas áreas. Então, faço grafite, mas vou trabalhar numa cerâmica, porque isso é o que vai fazer comprar tinta do grafite para ir na rua.
Porque até então, o grafite sempre foi proibido. Eu já apanhei da polícia, já perdi muita lata pra polícia. Até um dia que eu basta.
Fui no Centro Cultural, porque eu estava com um projeto dentro do Centro de Cultura de Caçapava, e apareceu um capitão da Proerd, e eu cheguei para ele e falei que sou grafiteiro, dou aula aqui, estou cansado, dos policiais me roubando. Ele disse, como assim, se me roubam? Estou lá parado fazendo uma parede que está toda danificada, que ninguém está olhando para ela.
Estou colocando uma arte na rua, com meu material, os caras vão lá, querem me bater, querem me pintar, e ainda levam minha tinta embora, que eu comprei com o meu dinheiro. Daí ele perguntou, como a gente pode fazer? Só quero um espaço para grafitar dentro da delegacia, e está tudo resolvido, a gente fica por aqui. Ele perguntou, beleza, vamos marcar. Daí foi eu e mais um amigo meu daqui, a gente foi fazer esse grafite, começamos a fazer esse grafite, um grafite que demoraria umas quatro, três horas, a gente demorou oito horas, porque a gente começou de manhã, almoçamos com todos os policiais, onde rolou um debate, onde eu falei aquele me roubou já, aquele, o capitão, não, tipo, deixa eles falarem, eu disse, sim, fala aqui, por que você pegou minha tinta, que eu estava fazendo.
Então, rolou vários bate-papo, que daí eles acabaram devolvendo várias tintas que estavam lá para a gente, ainda acabou pagando a gente. E o melhor de tudo, a gente acabou pegando o dinheiro deles e atrás da delegacia tinha uma biqueira, a gente foi atrás da biqueira, compramos 50 gramas de maconha e voltamos para a delegacia de novo, para pegar o nosso material que a gente deixou lá com o olho bem vermelho, fedendo maconha, para pegar o material e pegar para os caras, e olhamos, o dinheiro foi bem gasto, e nós somos do bem, porque vocês conheceram a gente. E desde então, todo lugar que eu ia para Caçapava, eles passavam davam carona, já cheguei em casa com eles, com giroflex, para assustar minha família, ligue o giroflex de atrás, e foi virando uma amizade, porque eles foram vendo que a gente não estava depredando a cidade, a gente estava ajudando a cidade, a gente estava pegando praça, estavam todas danificadas, às vezes a gente remendava a praça para fazer uma pintura, e isso foi expandindo por vários lugares da região, tipo Tabaté, São José.
Entrevistadora
Existe o reconhecimento do seu trabalho em Caçapava?
Betão
Existe. Existe porque eu dei muito tempo de aula lá. Eu dei aula lá em Caçapava, acho que por uns 15 anos.
Então eu ensinei muitos alunos. Hoje tem vários projetos que quem está na frente foram os meus ex-alunos que começaram essa história quando a gente começou junto. Eu dei aula no GAMT, na Prefeitura de Caçapava, com o DST Ayres.
Entrevistadora
O GAMT é uma ONG?
Betão
O GAMT é uma ONG, que antigamente chamava Grupo de Assistência ao Menor Trabalhador, e depois que começamos a trabalhar lá, que entrou várias outras pessoas também, que a gente começou a modificar o nome, que daí virou Grupo de Assessoramento e Mobilização de Talento. Ao invés de só a gente ensinar e dar aulas, a gente começou a fabricar pessoas que fossem um pouquinho de cada um. Eu dava aula para crianças, eu atendia nessa época acho que 180 crianças por mês.
Então eu não queria que 180 crianças virassem grafiteiros, eu queria que as 180 fossem um pouco mais humanas, que eu aprendesse um pouco delas, sendo elas mesmo assim, e seguindo o caminho. Nesse meio a gente foi surgindo vários professores de grafite. A maioria dos meus alunos hoje em dia fazem faculdade de arte, são tatuadores, são MCs, são DJs, são mecânicos, são padeiros, mas foram tudo nessa vivência mesmo assim da cultura.
Entrevistadora
Bela semeadura, hein?
Betão
Eu montei um projeto que chamava Terapia do Abraço, que nenhuma criança é burra, nenhuma criança é tentada, ela é carente de amor. Como eu fui criado com meu pai trabalhando e minha mãe dedicada, o tempo todo eu tinha minha mãe. Às vezes eu chegava com meus amigos da escola, a gente ia tomar café em casa, minha mãe estava lá em casa.
Conforme os anos foram passando, não tem essa acessibilidade hoje em dia. O pai tem que trabalhar, a mãe tem que trabalhar, e o filho fica em casa com o telefone na mão. É aí que nasce a revolta.
Então a gente foi trabalhando nessa questão de dar um abraço, fazendo esse trabalho dentro de fundação-casa, dentro de casa de acolhimento, para poder levar um pouco mais de amor para essas criançadas mesmo assim. E ao mesmo tempo você ia descobrindo que eles tinham potencial. Essas crianças que as pessoas falam que elas são mais hiperativas, para mim elas são ótimas, porque elas têm um turbilhão dentro delas e elas são elas mesmo, elas são verdadeiras. Então a gente foi construindo essa questão de expandir isso. A escola hoje em dia ensina totalmente errado as criançadas. Ela não ensina a criançada a ser elas.
Ela ensina a criançada a ser competitiva. Porque você tem que saber tirar A, B, C, D. Mas a minha matéria é diferente da sua, da dela, cada um tem um jeito de pensar.
E eu sempre trabalhei sobre isso com essas questões da terapia do abraço, que era a questão que a criança não gosta de matemática, mas ela gosta de música. Então ensina para ela música com matemática, porque matemática é música. Até hoje eu dou aula e falo sobre isso, que toda matéria que a gente aprende na escola a gente usa na vida.
Então é só saber como ensinar elas a utilizar isso e não a bloquear elas. E quando a gente é criança, que foi muito bom que meus pais me deixaram livre, essa questão de que toda criança nasce com um nível lá em cima. Ela é o rei mesmo assim.
Eu adoro conversar com meu sobrinho, porque ele sabe de tudo, e sabe. Só que na hora que a criança começa a cantar, a primeira coisa que ele começa a cantar, um adulto chega e fala, aprenda a cantar para você cantar. Começa a desenhar, mostra para o pai, e o pai fala, o que é isso?
Então vai podando a criança desde criança, vai deixando ela, minguando ela, vai tirando a esperança, o sonho, e quando ela fica de maior, o pai chega, você não quer ser nada da vida? Daí a criança tem que responder, pô você me podou em tudo que eu queria ser. Então a arte foi liberada.
A terapia do abraço era mais uma questão disso. Você ensinar ela a ser ela mesma.
Entrevistadora
Essa terapia do abraço, isso tem um embasamento teórico ou é uma criação sua? Eu queria também entender o que vocês faziam, você dava aula de arte nessa terapia do abraço? Era uma coisa mais de um acolhimento?
Betão
Essa terapia do abraço, eu fazia esse projeto em várias escolas, que eu fazia alguns workshops, e isso eu aplicava dentro de alguns lugares que eu dava aula. Nessa mesma época eu dava aula em Caçapava, no Gante, tinha umas turmas na prefeitura, e dava aula no projeto da Petrobras em São José dos Campos. E ao mesmo tempo eu atendia em outros lugares, que eram algumas escolas públicas, municipais, e que eu ia fazendo esse projeto, que eu ia dando aula de grafite e ao mesmo tempo ia conversando com eles.
Então a terapia do abraço funcionava dentro desse âmbito. E foi muito interessante, porque eu tinha um aluno, que era o Mac, ele tinha 21 anos de idade na época, e ele tinha uma filha que estava com um ano de idade, só que eu conheci ele quando ele tinha 17 anos, quando ele começou a grafitar. A gente estava no grafite, ele já aparecia, e a gente se interessava.
E ele nasceu dessa questão da terapia do abraço também. Vários parceiros, vários amigos grafiteiros foram ajudando também, e foi grafitando, e ele fazia um trampo de trabalho, ele trabalhava na nossa SABESP, recolhendo as contas.
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