Programa Conte Sua História
Entrevista de Terri Valle de Aquino
Entrevistado por Jonas Samaúma e Lucas Maná
Rio Branco, 06 de novembro de 2023
Entrevista número PCSH_HV1384
Transcrita via Transkriptor
Revisada por Larissa Mesquita Colejo
P/1- Queria agradecer sua presença enorme por estar contando a história pro Museu da Pessoa. E começar assim, da sua origem… ia perguntar como foi… O que é que você sabe da história dos seus pais? Como foi que eles se conheceram? Como se deu o seu nascimento?
R- Sim. Mas eu acho que minha família, materna e paterna, forma uma boa mistura étnica do Brasil, né? Porque, enfim, é como todo brasileiro, tem uma mistura com índio de algum lugar, ou seja, até do nordeste. E a minha avó materna parecia uma Índia, enquanto que… a minha avó paterna parecia uma índia do sertão, daqueles lugares chamados Jaguaribe, rio que serviu de refúgio para índios no Ceará quando houve as matanças de índio por lá no na virada do século XIX para o século XX, essa coisa toda... E na realidade, minha família é fruto de duas migrações de nordestinos pra Amazônia, a primeira no início do século, no estabelecimento dos seringais, na região do aumento da produção de borracha, veio a turma do… veio meu avô materno, e por aqui casou-se com uma portuguesa de Trás-os-montes, aqui nessa floresta. Esses portugueses vieram para os seringais também aqui na região. Portugueses pobres, camponeses de Trás-os-montes, sabe? E meu avô encontrou a esposa dele, que é a mãe da minha mãe, era uma portuguesa de trás-os-montes. E no entanto, meu avô era aquele sertanejo amarelo, filho de família Nordestina, que já nasceu no Pará, em Santarém, migrando, fugindo da seca de oitenta e sete, 1987. Sabe aquela seca das décadas de setenta do século XIX? Essa galera já foi atingida por essas grandes secas do Nordeste, essa população… O meu avô é dessa população migrante da seca, que depois foi recrutada pra ir pra...
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Entrevista de Terri Valle de Aquino
Entrevistado por Jonas Samaúma e Lucas Maná
Rio Branco, 06 de novembro de 2023
Entrevista número PCSH_HV1384
Transcrita via Transkriptor
Revisada por Larissa Mesquita Colejo
P/1- Queria agradecer sua presença enorme por estar contando a história pro Museu da Pessoa. E começar assim, da sua origem… ia perguntar como foi… O que é que você sabe da história dos seus pais? Como foi que eles se conheceram? Como se deu o seu nascimento?
R- Sim. Mas eu acho que minha família, materna e paterna, forma uma boa mistura étnica do Brasil, né? Porque, enfim, é como todo brasileiro, tem uma mistura com índio de algum lugar, ou seja, até do nordeste. E a minha avó materna parecia uma Índia, enquanto que… a minha avó paterna parecia uma índia do sertão, daqueles lugares chamados Jaguaribe, rio que serviu de refúgio para índios no Ceará quando houve as matanças de índio por lá no na virada do século XIX para o século XX, essa coisa toda... E na realidade, minha família é fruto de duas migrações de nordestinos pra Amazônia, a primeira no início do século, no estabelecimento dos seringais, na região do aumento da produção de borracha, veio a turma do… veio meu avô materno, e por aqui casou-se com uma portuguesa de Trás-os-montes, aqui nessa floresta. Esses portugueses vieram para os seringais também aqui na região. Portugueses pobres, camponeses de Trás-os-montes, sabe? E meu avô encontrou a esposa dele, que é a mãe da minha mãe, era uma portuguesa de trás-os-montes. E no entanto, meu avô era aquele sertanejo amarelo, filho de família Nordestina, que já nasceu no Pará, em Santarém, migrando, fugindo da seca de oitenta e sete, 1987. Sabe aquela seca das décadas de setenta do século XIX? Essa galera já foi atingida por essas grandes secas do Nordeste, essa população… O meu avô é dessa população migrante da seca, que depois foi recrutada pra ir pra Amazônia cortar seringa… cortar seringa na Amazônia e... Mas ele, meu avô, já nasceu de família cearense, lá em… como é que chama? Santarém, no Pará. Aí ele ficou lá até os quinze anos, e depois ele foi cortar seringa no Acre, aqui perto, no Porto Acre, ali abaixo. Ele trabalhou com… foi tudo no seringal, sabe? Várias categorias. Não só foi seringueiro, foi noteiro, mateiro, foi comboieiro; foi esses vários tipos de ofício que tinha do seringal. Ele foi de tudo, né? Até cortar a seringa também. Como ele era um cara mais instruído, o patrão levava pra ajudar ele a tomar nota, então ele ia anotando o que o seringueiro estava pedindo e levando mercadoria para ele; era comboieiro. Ele fazia esses serviços no seringal também, além de… quando deixou de cortar seringa. Aí o quando a seringa acabou com a crise… deu a crise, aí ele falou pro patrão dele: “Agora, patrão, como é que é?”. Ele disse: “Olha, meu filho, está vendo o rio? Tem aqui para cima, tem aqui para baixo. Eu não tenho mais condição de movimentar meu seringal, eu tô falido! Então o senhor escolhe pra onde o senhor quer ir… Cê quer ir pra cima? Vai” - era Porto Acre, “Quer ir pra baixo? Desce” - Boca do Acre (inaudível), Lábrea, Manaus… enfim. E aí meu avô sumiu no rio… E depois foi trabalhar como oficial de justiça em Porto Acre, foi um dos primeiros oficiais de justiça trabalhando no fórum, tirando documento. O pessoal não tinha certidão de nascimento, sabe? Existia muito a coisa de batismo dos padre, o padre andava fazendo (inaudível), tinha muito documento na floresta feito pelos padres… que era o batismo, né? Se você tem o batismo, dá pra tirar certidão de nascimento e tudo por lá e tal. Então, meu avô fazia esse trabalho de dar cidadania. É uma coisa que ele fazia até por uma coisa política, sabe? Não era só espontaneidade, porque ele achava que… primeiro que ele achava que ele tem que fazer o bem, porque ele só colhe o bem. E quanto mais tu faz isso, o bem para os outros, mais vem bem pra tu. Se tu faz o mal, o mal volta para você… então é melhor fazer o bem às pessoas, e essas pessoas podem te ajudar depois, quando for preciso. Então ele foi dando muito documento… Aí quando ele veio para Rio Branco, aí que ele foi fazendo esse trabalho. Tipo, o pessoal não faz agora essas coisas de tirar de título, cidadania, (inaudível), aquelas campanhas? O meu avô fazia cotidiano, porque eles vinham… Primeiro que os seringueiros também estavam descendo para as cidades, aí tinha muito ex seringueiro aqui em Rio Branco, nas colônias, na periferia, que veio dos seringais…
P/1- Aí abarcava?
R- É… Essa galera vinha sem documento. E meu avô tirava documento pra eles tudinho e não cobrava, porque esse era o trabalho dele como oficial de justiça. O que ele tinha que fazer era bater aqueles dados “tec tec tec”, né? Ele fazia certidão, registrava no cartório, entregava tudo ali dentro. E os caras não tinha aquela ideia da burocracia e da justiça. E meu avô era o que recebia eles, quem assinava era até o juiz, o contador, mas ele é que fazia os papel pro cara assinar. Tá entendendo? Uma coisa desse tipo assim… E ele teve essa família, com essa portuguesa, teve vários filhos e filhas. Quatro filhos… ou cinco filhos, e duas, três filhas… quatro filhas, alguma coisa assim, família grande…
P/1- Só um segundo Terri…
(corte)
E aí você estava contando então desse processo do seu vô, do seu pai… Ia te perguntar, como é que que era o Acre nesses anos quarenta, anos cinquenta? Como é que você lembra?
R- Rapaz, eu lembro… É que eu morava assim quase num terceiro bairro da cidade… terceiro ou quarto. Era… o meu universo era a cadeia velha. Era ali a cadeia velha, e o colégio acreano ali do lado, ali perto. Então esse era o meu universo… A cadeia velha, entendeu? Ali eu era um menino de bairro, então a gente tinha a turma do nosso bairro. Eu estava sempre ligado com essa galera da nossa idade… turma… tá entendendo? Eu era ligado com essas turmas da minha rua. E a gente tinha até liderança no nosso grupo, sabe assim? E aí tinha uns grupos inimigos que a gente tinha que enfrentá-los, e às vezes tinha alguns invasores, que queriam penetrar e ser dono do nosso grupo. E a gente não aceitava o cara… Precisava alguém do grupo ir lá brigar, e quem ganhava era o líder do bando de menino da rua. Então era… a gente era… eu tive uma infância assim, muito de jogar bola também, alguma coisa assim de futebol, sabe? Assim de jogar… isso era coisa de turma também. A minha infância foi muito bonita, cheio de energia, cheia de vida, cheio de movimento, e eu adorava. Eu acho que foi a minha parte mais bonita da minha vida a infância. Eu ajudei a salvar duas crianças da infância…
P/2- Como é que foi isso?
R- Foi incrível que… Uma de morrer afogada no igarapé, esse igarapé que passa ali pertinho do canal da maternidade. Lá na boca dele com o rio, às vezes enchia. E ali tinha uma ponte de pranchão… Sabe assim de prancha, pranchão? Não era nem de prancha, era um pranchão grande, que você atravessava o igarapé de um lado pro outro. Só que quando enchia o rio, represava o igarapé, e aí às vezes cobria o pranchão. Aí não dava para a gente passar, porque a gente não sabia direito, porque o pranchão não era uma coisa assim reta, era uma coisa meio assim… E a gente não sabia, estava aprendendo a nadar. E aí nós atravessamos e ninguém parou. Nós atravessamos ainda batendo com cabeça na água, sabe? Ninguém teve coragem de parar pra encontrar o pranchão, porque ninguém tinha certeza se ia encontrar, e não sabia se ia virar de novo. Só sabia que tava batendo, batendo… enquanto a gente estava batendo assim, com pé e mão, a gente atravessava. Parava de bater, a gente sabia voltar de novo, bater de novo na horizontal… Aprendendo a nadar, né? E eu não dominava ainda a natação, mas eu já fazia isso pelo menos. Aí na volta, nós não achamos. Aí ele falou, “não tive coragem de parar não”, eu também não, “rapaz, não vou parar, não”, eu falei pra ele. Aí passei direto, primeiro do que ele. Eu cheguei na outra margem, aí fiquei na beira da água. E ele foi atravessar. Eu fiquei ali perto… Tinha uns capins e tal ali, tava segurando o capim… Aí aí ele foi e quando chegou mais perto de onde eu estava, ele foi tentar ver se encontrava pranchão, mas não encontrou, e foi pra um buraco… Aí ia lá em cima e voltava, ia lá em cima e voltava… e cada vez que ele voltava, ele vinha mais pra perto de mim. Aí eu fui descendo também, segurando os capins, e peguei na mão dele e puxei. E nisso estava cheio de menino, quando viram ele morrendo, correram tudo e me deixaram sozinho com esse amigo. E ele que tinha me chamado pra ir buscar uma marmita da família dele. E eu fiquei com aquela coisa de… Aí passou um bocado de tempo, eu encontrei esse cara da minha infância, o nome dele era José José Clemar, encontrei ele no Rio de Janeiro. Aí ele foi, me levou na casa da família dele, acho que era Campo Grande, pra me mostrar o filho dele, que ele deu o meu nome para o filho dele, porque ele lembra que eu salvei ele. Todo mundo correu, e eu fui o único que fui tentar pegar na mão dele e puxei ele, entendeu? Aí ele botou o nome do filho dele no meu nome, o filho dele mais velho.
P/1- Você estava contando da sua juventude, de como era o Acre. Como você brincava?
R- Rapaz, ali na cadeia eu sentia floresta mais perto, ali na cadeia velha. Não uma floresta assim, tipo grande floresta, mas principalmente campo. Sabe, assim, campo, árvores? Tinha muito perto onde eu andava, então eu tinha essa relação com a natureza também muito forte. As brincadeiras nossas, também ia sempre muito explorar igarapés, e subir em lugares onde outras pessoas não subiam, arriscando a vida (risos)... Menino é foda, né? É um risco grande, principalmente menino criado solto, livre, como eu era, entendeu? Eu sentia muito isso, sabe? A casa era o lugar da segurança, da limpeza, da comida, da fartura, das coisas… Eu gostava muito de ter… Minha mãe era uma mulher limpa, ela gostava de limpeza. A casa, a gente podia até dormir no assoalho, a casa dela era um brinco. A gente não entrava de sapatos, era todo mundo descalço dentro, aquela coisa… assim, só usava para sair, né? Essa coisa assim, essa limpeza, esse cuidado… Eu dizia: “Poxa, que bom ter uma mãe assim, que zela, que cuida, que faz comida, uma mãe que vive pra cuidar da gente. E o vovô pra sustentar a família” - que era o pai dela. Então esse lado acreano foi predominando na minha vida. Agora essa ideia de índio era muito… assim, na minha infância não tinha muito que aqui no Acre tinha índio, sabe? Não tinha essa ideia da minha infância. A ideia de índio que eu tinha da minha infância era uma ideia dos índios das revistas em quadrinho, era a ideia do índio do faroeste americano, que passava do cinema. Aqueles filme que o índio sempre estava em pé de guerra, que o índio sempre estava atacando, o índio sempre estava… E na realidade, o índio que estava sendo invadido, mas as revistas em quadrinhos transformavam o índio no invasor. E os artistas todos do lado do branco… e também tinha alguns aliados índio, o tonto do Zorro era um aliado, não é? Era um índio bom, porque ele era aliado do branco e do protagonista das histórias em quadrinho. Mas a na maioria das vezes, o índio, inclusive expressamente, fisionomicamente, estava raivoso, em pé de guerra, querendo matar, atacar branco… mostrando aquela rebeldia sem causa… Uma brincadeira, uma metáfora da rebeldia, “sem calça”... sem causa, né? Fala “sem calça”, então brincando, né? Enfim…
P/1- Era essa a ideia que você tinha… E qual que foi o primeiro contato que você teve com o mundo indígena mesmo?
R- É, pois é… o primeiro contato é, então… Aliás, essa coisa assim, como é que se constitui a categoria índio para os habitantes da cidade? Esse foi o tema que eu escolhi, é o que caiu na prova do mestrado de antropologia. Eu escolhi esse tema, porque exatamente eu me lembrava da minha infância. Como é que eu concebia a minha concepção de índio? Eu, como morador da capital do Acre, morando ali sem conhecer nenhum índio do meu estado. O índio estava muito afastado da cidade, da capital, entendeu? Muito distante, geográfica e socialmente, politicamente. O índio estava entregue na mão dos patrão, eles simplesmente terceirizaram o indigenismo. Os índios foram diretamente ao patrão, tá entendendo? Alguns teve mediadores, e aqueles que tiveram mediadores conseguiram também preservar mais a sua língua, a sua cultura, a sua tradição, a sua ancestralidade... que é a sua bebida sagrada, suas plantas de poder, as suas medicinas da floresta, as folhas medicinais perfumosas da floresta, que os (inaudível), os conhecedores de ervas e plantas medicinais da floresta… Você vai lá coletar, não é? Tem esses grandes mestres conhecedores, e às vezes usa famílias de plantas, não só aquela planta específica. Eles usam famílias, porque eles classificam as plantas da mesma maneira que eles classificam a eles mesmo, (inaudível), o quente e o frio, as várias oposições, eles vão combinando… o doce e o amargo, esses tipos de classificações. Então, isso é um ensinamento muito fino, eu mesmo não tenho pesquisa nesse sentido. Eu só tenho interesse, porque eu tinha uma doença, aí eu fui me tratar com os (inaudível), aí eu tive essa relação. Primeira coisa que ele falou pra mim: “Txai, nós vamos mexer com coisas sagradas, e você vai receber sonhos. É muito importante você lembrar os seus sonhos, porque nós vamos mexer com coisas espirituais. Vai vir sonho para você, presta atenção no sonho, tem que decifrar o sonho. Presta atenção… A dieta é essa, você vai passar os dias aí sem comer carne, (inaudível), sem doce. Mas é pouco tempo, não é uma dieta prolongada, não… Enquanto você estiver tomando com esses banhos, tiver tomando essa medicina da gente, chás, então tu fica”. Não é igual Muká, pelo menos pro (inaudível) é três meses de dieta, no mínimo. Já (Inaudível) é um ano, a referência do (inaudível) de dieta. Mas, enfim… É isto.
P/1- Txai, como a gente não precisa ir numa cronologia, eu fiquei pensando, já que você entrou nesse assunto, pra você contar da sua sua dieta.
R- Sim…
P/1- Aí depois a gente volta um pouco, mas você já pode já contar como é que.
R- Na realidade, pra mim chegar na minha dieta… Qual dieta? Você está dizendo o Muká?
P/1- É.
R- Não, mas vamos mais um pouco por outra trilha, vamos dizer assim. Deixa essa pra depois, eu acho que pro fim, talvez… Vamos pegar a trilha, porque é uma trilha… então…
P/1- Quando você foi fazer o mestrado?
R- Isso aí é minha… Pera aí, antes disso! Isso aí foi a minha… a minha formação aqui. Meu avô… ainda tem uma história do meu avô, que marcou um pouco a minha vida pra sempre (risos)... porque meu avô, aos dezesseis anos, ele decidiu que eu tinha que estudar no Rio de Janeiro. Aí meu avô… era sessenta e dois, era campanha, o Acre passou a estado… em sessenta e dois mesmo, isso foi no começo de sessenta em dois. Em outubro de sessenta e dois, ia haver uma eleição pra quem ia ser governador do Acre, pela primeira vez estado. Era um território federal que o governador é nomeado pelo presidente da República, agora os acreanos que iam escolher seu governo. E meu avô, ele era dessa turma mais trabalhista, PTB… dessa coisa do PTB do Vargas, essa coisa mais varguista, oposicionista. Meu avô era dessa galera trabalhista aí, mas dessa linha Vargas, Getúlio Vargas, que era o guru dele político assim. E ele foi… o professor acreano, que estava no Rio de Janeiro, no Pedro II, se candidatou a governador do Acre, contra o cara, o mineiro, que era Guiomar Santos, que tinha criado o estado do Acre, um projeto dele. Ele era um deputado federal, já tinha sido ex governador do Acre, nomeado pelo presidente da República, e foi um chefe político local do PSD. Então era o PSD e o PTB aqui a disputa, antes de sessenta e quatro, né? E tinha a UDN, aquela turma que ficava denunciando só roubo… a UDN é aquela coisa de denunciar roubo dos outros, ou do PSD ou do PTB. Eles ficavam dizendo: “Ah, são corruptos, são corruptos…”, e eles nunca ganharam eleição. Sempre um corrupto ou outro é que ganhava (risos), e eles ficavam nessa linha UDN, em cima do muro. A única coisa que dizia é que os outros eram ladrões, né? E a galera também não votar só nessa conversa fiada… E ladrão todo mundo é, até vocês. Vocês não são porque nunca chegaram lá (risos), e nem vão chegar! Entendeu como é que é essa coisa assim? Então tem essas coisas… então era esses três partidos. Eu me lembro de assistir comícios no meu bairro, com essas partidos, isso é uma lembrança da minha infância… Como também é lembrança da minha infância, essa coisa do meu pai me levar pra pescar no São Francisco, pra a gente pescar longe, andar no meio da mata com ele. Depois ele me levou lá em Xapuri, também no meio do seringal, da floresta, também me apresentou. Então já fui em Xapuri, e aí que eu também conheci a floresta, de verdade mesmo, a floresta grande ali… foi em Xapuri, porque aqui eu via aqueles pedaços de floresta. Agora, quando eu deparei em Xapuri, eu disse: “Isso aqui é floresta!”, dá até medo (risos). Mas é isso… O pessoal falava que tem muita cobra, tem muita onça, que tem não sei o que… Eita! Negócio aqui não é brincadeira, não.
P/1- Mas esses comícios, você sentia que te influenciava também esses movimentos políticos?
R- Olha, eu era da parte do meu avô. Meu avô era… Eu via a conversa dele, gostava da conversa dele, eu achava… Eu era do PTB também. Assim, eu torcia pro PTB, mas (inaudível) de nada. Mas eu ficava lá, eu e a galera da rua… Às vezes a gente ia no PSD de baladeiras, sabe? Metia a baladeira nos caras lá (risos). Tavam falando mentira, aí a gente chovia pedra em cima deles, da galera. Todo mundo de baladeira, e ninguém via. Uhum. Ficava assim, meio afastado, né?
P/1- E na universidade, você se envolveu assim também politicamente?
R- Não, isso aí… Essa coisa, meu avô aí, como eu te disse… O meu avô, ao fazer isso, o Zé Augusto chamou ele, candidato: “Parente, eu quero que você tire título de eleitor. A gente vai fazer uma campanha do Acre pros acreanos. Vamos eleger uma acreano, já que agora nós podemos eleger. Por que nós vamos eleger uma pessoa de fora? O Acre pros acreanos”. Sabe, ele tinha esse “acreanismo”, entendeu? Ele mesmo estava fora (risos), mas ele querendo ser governador, e andando conversando com todo mundo… Chegou no meu avô e pediu para ele: “Olha, eu quero que você me ajude, tirando o título de eleitor dessa galera toda. E não cobre nada deles”. “Não, eu não faço isso. Aqui é meu serviço, eu não faço nada disso, não. Tamo junto… E vou pedir voto para você! Não vou pedir dinheiro, não, vou pedir voto para você pelo meu trabalho”. Aí ele disse, “Pô parente, vou contar com você, você é um homem de verdade, dessas pessoas que eu ando atrás, desses que tiram o título, desses que tiram documentos… Você vai fazer um papel, um trabalho, muito importante para minha campanha, de documentar o máximo de acreanos possível, porque é com eles que eu vou conversar”. Assim, o Acre pros acreanos. Foi nesse tom que ele levou a campanha dele, e ganhou do cara. Aí quando ele ganhou, ele mandou chamar meu avô lá no palácio, aí falou assim: “Parente, eu quero dar um emprego pra um filho seu. Você me ajudou muito na campanha, você ajudou muito mais do que aqueles que só falava, porque você tirava documento. Era isso que estava precisando pra gente ganhar a eleição. Então, quero dar um emprego para um filho seu”. Meu avô: “Não, não quero emprego pra um filho meu, não. Eu quero que você me dê uma bolsa de estudo para o meu neto”, que sou eu. Aí ele falou: “Não, isso é fácil, parente! Eu vou te mandar ele lá para o Pedro II, onde eu dava aula. Lá tem internato, vou mandar ele para lá… Isso é mais fácil do que arranjar emprego seu filho”, (risos) ele falou isso. Aí fui, rapaz… aí meu avô me mandou com dezesseis anos para o Rio de Janeiro. Minha mãe ficou com pena de mim, pediu para o meu avô pra me levar, pra eu não ir sozinho, porque eu era muito criança. Saindo do Acre com dezesseis anos, ainda ingénuo, meio perdido… inseguro. Com dezesseis anos você ainda tem uma certa insegurança, às vezes a família dá muita insegurança. E eu tendo que enfrentar o mundo aos dezesseis anos, então eu fiquei muitos anos longe daqui. Aí eu fui pra aquele colégio que o governador me ajudou… Quando eu cheguei lá, não tinha mais internato. O internato foi só até sessenta e dois. Sessenta e três não tinha mais internato no Pedro II. Então não podia ficar, porque eu tinha que ficar num colégio internato, interno… Sabe aquele tempo dos colégio interno? Aí me mandaram para para o Instituto Petropolitano de Ensino, em Petrópolis. Cheguei lá, e era uma religião Adventista. E eu tinha ido com um colega meu daqui, o Nei, e ele não gostou desse negócio de Adventista. Ele falou: “Rapaz, olha, nós saímos do Acre, cara, para vir aqui pra esses crente, adventista, querendo doutrinar a gente? Eu sou contra isso”.
(corte)
P/1- Você estava contando do trabalho do seu avô e de como ele começou a compor família…
R- É, então… Meu avô então foi essa pessoa que veio no início do século XX, e que constituiu família e teve muitos filhos. A última mulher dele, que é minha avó, eu não cheguei a conhecer, porque ela morreu de parto da minha tia, eu não era nem nascido ainda quando ela morreu. Enfim, às vezes eu tinha até inveja dos colegas da minha rua que tinha avó, né? E eu só tinha avô. E avó parece que tinha um chamego diferente, contava mais história do que os avô. Eu achava meu avô mais sério comigo, porque eu era o mais velho. Com os meus irmão ele era muito carinhoso, os três mais novos, mas comigo ele já tinha aquela coisa de adolescente mais velho, e que é preciso ter uma outra relação e tal, mais tranquila, e conseguia negociar com ele bem… coisa de dinheiro, sabe? Eu mesmo ganhava dinheiro, entregava na mão dele: “Tá aqui, meu avô, dinheiro que eu ganhei jogando peteca, ganhei fazendo qualquer coisa, carregando água para as vizinhas…”, que a minha mãe pedia para mim carregar água para casa, eu era o responsável de ir botar água dentro de casa. Era esse o meu trabalho na família, carregar do poço do vizinho e levar pra minha casa. E a minha mãe queria que eu fizesse isso pras vizinhas, que não tinha filho do meu tamanho, aí a minha mãe falava pra eu fazer. E eu falei: “Ah, eu não vou trabalhar de graça, não. Só se me pagarem… Fala com ela se ela quer me pagar. É ela que está pedindo para senhora? Agora a senhora vai lá com ela e diz que ele só vai se a senhora pagar” (risos). Aí elas: “Não, vou pagar!” (risos). Aí me pagava, e eu dava para o meu avô guardar: “Toma aí, avô”. Aí quando eu chegava para ele para pedir dinheiro, eu digo: “Me dê aí tanto”, aí ele nunca chegou e fez nenhum problema comigo, sempre me dava, porque ele está me dando o que era meu (risos). Eu conseguia negociar bem com ele as coisas, não roubava dinheiro dele, não mexia… tinha uma consideração, está entendendo? É essa coisa.
P/1- Que mais você tem de lembrança do seu avô?
R- Meu avô?
P/1- É.
R- Uma pessoa nutridora, que trazia comida para casa, e era a minha fortaleza e da nossa família, era ele, porque o meu pai morreu muito cedo, eu tinha doze anos. Então aí meu avô, foi quem, até os dezesseis anos, ele que me criou. dos doze aos dezesseis. Com dezesseis anos, ele me mandou para o mundo, entendeu? Ele me jogou no mundo. E depois eu conto essa história, porque tem a ver com esse jeito dele mesmo, de trabalho dele, de formiguinha, de tirar a documentação pros seringueiro, pros colonos, pros da periferia, que estavam chegando sem de documentos, vindo da floresta… Então ele foi um cara… era assim, ele não cobrava nada, aí essas pessoas iam levar lá em casa cacho de banana, abacate, manga, macaxeira, batata… eles iam levar pro meu avô: “Tá aqui, olha. O senhor fez isso pra mim de graça... A gente quer agradar também, trazendo essas coisas pro senhor”. Eu me lembro na minha infância, que eu fui criado com ele, sempre assim, gente chegando na minha casa oferecendo caixa de banana pro meu avô, oferecendo coisas que ele trazia da colônia, sabe? Porque meu avô não cobrou nada, ele não gastou dinheiro, ele trouxe uma coisa que era dele, que ele produzia. Então, eu sempre tinha essa essa… A minha, a casa, a minha infância, era três gerações dentro de uma casa, uma família extensa. O meu avô, que era a geração mais velha, a geração da minha mãe, e as primas dela, que não tinham mãe nem família, eram agregados mas primos… e a nossa geração de criança. Três geração convivendo ali dentro, com variações de idade. Eu, com meus irmãos, era dez anos mais novos, era uma geração outra. Enfim…
P/1- E o seu nascimento?
R- O meu pai já veio de uma outra migração de nordestino para a Amazônia, em meados da década de quarenta, do tempo da guerra, da Segunda Guerra Mundial. Aí tinha os soldados da borracha, então meu pai se engajou nessa onda do Governo brasileiro e Governo americano, de produzir borracha aqui na Amazônia. É que teve um programa governamental para aumentar a recuperação de seringais ativo, aumentar a produção da borracha, porque as colônias que produziam, as colônias inglesas da Malásia, naquela região ali da Ásia, caiu na mão dos japoneses, então os americanos incentivaram o Governo brasileiro. Meu pai veio nessa segunda geração, nessa segunda migração, entendeu? E aqui encontrou minha mãe, que é fruto da primeira, chegando do Nordeste, do Ceará, do sertão… serviu em Recife, com dezessete, dezoito anos. Aí depois de lá, veio bater aqui como soldado da borracha, se engajou como soldado da borracha, em vez de se engajar para ir para Itália, ele podia ter ido pra Itália. Ele preferiu o soldado da borracha, e veio para a Amazônia, dessa onda do Governo americano e brasileiro, que influencia essas populações e transumâncias.
P/1- Ele veio como soldado da borracha do Ceará?
R- É, pra cá, pra trabalhar nos seringais, né? E chegou aqui, acabou nem indo para o seringal, porque aqui ele chegou, estava vindo do exército, tinha servido, então ele tinha muita experiência. Tinha servido mais de ano lá no Recife, então ele tinha muita experiência dessa vida militar. E aqui abriu vaga, quando ele chegou, pra Guarda Territorial. Aí ele se engajou na Guarda Territorial, ele fez concurso e entrou. Não precisou ir pro seringal, ficou aqui em Rio Branco mesmo, na guarda. E nessa guarda ele ficou aí a vida dele toda trabalhando, até quando eu tinha doze anos, ele morreu de um acidente. Na realidade, há muitas versões… a mais correta é de que ele foi assassinado por um companheiro de farda também, que teve inclusive que sair daqui por causa que essa episódio que aconteceu com meu pai. Foi uma coisa muito triste pra mim, foi uma coisa muito triste, marcou a minha vida, vamos dizer assim, no sentido de que eu fui uma pessoa antes do meu pai, e outra pessoa depois que ele morreu. Aí já comecei a sentir mais medo, sentir mais… aquela segurança absurda que eu tinha, aquela confiança, eu já comecei a pensar de outra maneira: “E agora meu pai me deixou com doze anos, e agora eu estou sozinho, sem orientação, como é que eu vou… “, tem o meu avô, que não é igual ao meu pai, mas ele acabou preenchendo esse lado, de pai, de dono. Eu acabei… então eu tenho uma relação muito mais, que eu lembre, muito mais com o avô do que com o pai.
P/1- E qual foi a memória mais afetiva que você tem com o seu pai?
R- Rapaz, eu tenho muitas memórias… memória afetiva é ele me dá uma surra (risos). Porque eu era muito danado, e cada vez que ele me batia, mais danado eu ficava. A minha memória é essa. Meu pai me instigava a ser corajoso, entendeu? E essa coisa do sertão… essa coisa de que você pode apanhar, mas não corre. E quando chegar em casa, ainda vai apanhar de novo… Eira desse jeito. Aí me amarrava também assim, no pé da mangueira com corrente, porque eu era impossível, eu era danado demais, era uma coisa que era a explosão de energia que… realmente a infância foi uma coisa muito… Essa pré… assim, eu eu gostei muito dessa pós-infância, depois dos doze. Aí mudou minha vida, aí eu comecei a estudar, coisa que eu não fazia muito, aí eu comecei a analisar: “Eu não tenho pai, então eu tenho que estudar, é a única coisa que me resta”. Aí eu tomei gosto por isso mesmo… Minha mãe nunca mandou estudar, meu avô também nunca me mandou. Eu que uma vez, tinha dificuldade no início, eu cheguei para ele e pedi para ele pagar aula particular de matemática para mim. O professor, era até um professor negro, que era músico, lá da dessa Guarda territorial, que meu pai serviu, um sargento. Ele era o Sargento Aquino da Guarda territorial, Seu cearense também, todo mundo conhecia ele como Seu Cearense. Então essa imagem que eu fico, que o Seu Cearense era o meu pai. Os vizinhos chamavam, “Ô Seu Cearense”, ele era mais conhecido assim, mais do que como Francisco, Chico, Alexandre também, que era Francisco Alexandre de Aquino. Aí o pessoal ou chamava Sargento Aquino, ou Seu Cearense. Aí ele tirou meu nome, ele que me deu o meu nome também, então ele tirou o meu nome de um filme, que o personagem era Terry, e escreve Terri, só que é com y. Terry é Terrence, né? Aí ele viu esse nome em português mesmo, aí ele botou o i mesmo, Terri… mas ele disse que viu no filme. Eu ainda me lembro de falar isso para mim. Ela me ensinou as capitais do Brasil, principalmente do nordeste: Ceará, capital Fortaleza; Pernambuco, Recife; Paraíba, João Pessoa; Rio Grande do Norte, Natal… Eu aprendi com meu pai esses nomes da capital do Nordeste, até porque eu nasci lá também. Mas enfim, meu pai conheceu a minha mãe, fruto da primeira geração de imigrantes nordestino, que vieram para a Amazônia, vieram fazer fortuna, riqueza, na Amazônia, saído daquelas secas nordestinas. E meu pai já veio nesse outro contexto de guerra, e se engajou na própria forças armadas aqui mesmo, local, que era a Guarda Territorial de Fronteira do Acre, do território federal do Acre. Não era nem Polícia Federal, não tinha Polícia Federal, nem polícia estadual. Era Guarda Territorial, que chamava, era a segurança aqui das forças armadas do território federal. Então (inaudível) como ele já estava bastante tempo aqui, ele ganhou uma licença prêmio, ele já estava engajado, aí ele levou minha minha mãe e minha irmã, que tinha dois anos, pra conhecer a família dele lá em Jaguaribe. E essa travessia levou três meses, final da guerra, por água! Eles saíram aqui de Rio Branco, foram bater em Fortaleza, e de Fortaleza ainda foram para o Rio Jaguaribe…
P/1- Sua mãe grávida?
R- Ficou grávida na viagem, entendeu? Durante essa viagem não tinha… eu brinco até, durante a viagem, três meses viajando, você fica contemplando, você até cansa de contemplar a beleza do rio e da floresta que está no seu entorno. É isso que tu vê, né? Eles não tinham pra fazer muita coisa, não tinham pra fazer nada, me fizeram como lua de mel, viajando no rio. Eu acho que meu espírito vem das água, tanto que as águas levaram o meu pai também. Eu tenho alguma coisa que tem a ver com essa coisa dos espíritos das águas, sabe? Assim, eu sou filho das águas brancas, isso é o hino do mestre Lineu. Eu me sinto filho assim, espiritualmente, da onde eu vim, das águas brancas. A água branca… o que quer dizer branca? Essas águas amazônicas, vamos dizer assim, águas branca, porque tem as águas pretas do rio Negro, essas coisas… Então sou filho das águas brancas. Só que eu nasci no lugar onde não tinha água, a água era pouca, era o Sertão. Aí eu tive que nascer no Sertão, minha mãe chegou grávida, aí teve que esperar pra poder me ter. Ela chegou por três meses, sei lá, quatro meses de gravidez, porque ela ficou grávida na viagem, e eles levaram 3 meses para chegar em Fortaleza. Imagino que lá no sertão demoraram mais um tempo pra chegar também em Jaguaribe. Então não sei nem como eles chegaram naquele tempo em Jaguaribe… não sei se pelo rio, parece… bom, eu não sei. E… como é que é? E eu nasci nesse lugar, meio-dia o sertão estava pegando fogo. Minha mãe disse que foi nessa hora que começou a sentir as dores do parto, nasceu, aí teve que me pegar à força, muito criança, pra poder viajar de volta, né? Deixar inteirar os seis meses, sete meses pra voltar, e enfrentar de novo essa longa viagem fluvial. Então eu enfrentei isso com menos de um ano, essa viagem da volta, ainda mamando. Aí a coisa amazônica dessa viagem da volta foi a minha irmãzinha de dois anos, no Porto de Manaus, ter sido, vamos dizer assim, enfeitiçada, mal olhada… deve ter sido quebrante, né? Não sei o que que é, como é que seria isso, como classificaria o quebrante, como uma magia, uma magia negra… ou como uma coisa inerente da pessoa, de certas pessoas, não de todas, que mesmo quando admira o outro ser, já está passando uma carga de energia negativa, sem saber que está passando. Não é nem por maldade, mas é aquela energia que aquela pessoa está tendo carregada, que joga sem querer até, eu acho. Então essa energia negativa forte pegou a minha irmã, ela começou daí a ter diarreias com vômito… diarreias, vômito, vômito… sabe aquela coisa do quebrante? Aí ficou no Porto de Manaus, aí chamaram rezador… Aí veio um cara e falou: “Olha, precisa de mais sete rezador, porque só um não está dando peso”, e aí ninguém vai juntar sete rezador, porque o navio já estava saindo e tudo. Aí rezou assim mesmo, ele rezou ele mesmo só, e o navio saiu depois. E a criança, antes de chegar no Purus, ela morreu no Solimões - que acima do Negro é Solimões. Ela morreu antes de chegar na foz do Purus, e foi enterrada no Solimões, assim, na beira do rio. Ela ficou enterrada, e eu voltei com a minha família, vindo do Ceará, da terra do meu pai, ter nascido lá no mesmo lugar dele e tal. Estava vindo para o Acre tão novinho, eu mesmo me considero acreano porque cheguei aqui com menos de um ano, não é? Uma vez fui dizer que era cearense, aí uma vizinha da minha mãe me disse: “O que é isso? Você está negando suas origens, você é acreano! Você é uma acreano que não se assume como acreano”. Me deu a maior lição de moral, que eu falei: “Nunca mais eu vou dizer que eu sou cearense! Eu vou sempre dizer que eu sou acreano, eu já aprendi a lição!”. A vizinha da minha mãe me deu uma esculhambação, mas brincando também, ela era muito engraçada e tal, e dizia as coisas verdadeiras, mas de uma forma muito engraçada. Aí eu falei: “Então tá bom, Dona Chichi… Dona Chichi!... eu vou pegar essa lição da senhora, eu nunca mais vou dizer que sou cearense”. Até hoje eu não gosto de dizer que sou cearense, mas estou sempre com o chapéu, agora eu estou usando… Cadê meu chapéu? Eu nem estou com ele aqui, puxa vida! Mas, enfim… eu estou até usando um chapéu do nordeste, que eu ganhei agora, tentando resgatar minhas origens nordestinas, né? Porque eu neguei tanto elas, também muito tempo, porque também não tive muita convivência com a família do meu pai, no Ceará, e depois eles foram quase todos para São Paulo. Foi uma geração já que migrou para São Paulo, sabe? O resto da minha família paterna já migraram do sertão pra… Eles tinham um sítio pequeno, que não dava pra família inteira viver só daquele sítio, só o meu bisavô e alguns dos filhos, mas não dava pra todos os filhos, então os filhos tinham que ir, porque a terra era pequena, entende?
P/1- E aí você cresceu no Acre nos anos quarenta?
R- Eu nasci num lugar bonito que até hoje eu acho mitológico. Sabe como é que chamava o lugar? Chamava Liberdade, entendeu? O Sítio da Liberdade. Inclusive, está no meu documento oficial de certidão de nascimento. Meu pai tirou minha certidão de nascimento em Jaguaribe, eu já vim com o documento já, desde criança, registrado lá no cartório de Jaguaribe, no Sítio da Liberdade. Eu achava bonito, eu sou da Liberdade, desse sítio, onde nasceu meu pai também.
P/1- E aí você tinha quantos meses, quando fez essa travessia do Ceará pro Acre?
R- De três meses, a travessia foi de três meses.
P/1- E você tinha quanto tempo?
R- Eu acho que eu tinha sete meses… seis meses. Não me lembro. Eu tinha menos de um ano, vamos dizer assim.
P/1- E seus pais contaram alguma coisa?
R- Sim. Essa que eu estou contando é o que ouvi da minha mãe, o que eu ouvi do meu pai… do meu pai menos. porque eu não cheguei a ter conversas assim de adultos com meu pai. Ele me tratava como um adolescente rebelde, que ele tinha que domesticar. e ele usava… O meu avô não concordava com as brutalidades dele, com a forma dele educar com pancada, com peia. Meu avô não gostava disso, não. Uma vez ele saiu de casa, por causa que ele me deu um tapa que eu voei. Meu avô falou: “Faça isso com o menino, não, rapaz. É seu filho. Como é que se faz isso?”, falou essas coisas pra ele. Meu avô sentiu, não sei se ele respondeu alguma coisa, sei que meu avô acabou saindo de casa, que a gente morava com ele, né? Ele era nossa força. Meu pai vivia destacado, ia pros municípios lá, ia pra Assis Brasil, lá na fronteira, na tríplice fronteira, ia pra Tarauacá, ia pro Juruá. Ele vivia assim, e a gente era criado pelo avô, mas depois ele voltava…
(corte)
Eu não quero ficar aqui nesse colégio, não. Nós viemos juntos. Agora, se tu quiser ficar, tu fica. Eu vou sair”. Falei: “Não, mas nós viemos junto, vamos ficar, vamos ficar junto”. E ele falou: “Não, não vou. Eu já decidi.” Isso tinha um mês, lá no colégio, que o governador mandou a gente, esse Colégio Instituto Petropolitano de Ensino, dos adventista da última hora. Aí lá não podia… domingo era… de sábado não podia fazer nada. Não podia comer carne, eles era tudo… eles são… como chama? Come só comida natural, natureba, né? Como é que chama isso?
P/1- Naturalistas?
R- É, comida natural, essas comidas… aham, porque tem a ver
P/1- Vegetariano?
R- Vegetariano! Isso. Carne não podia. Não podia nem jogar bola, futebol com os pés, só podia jogar vôlei com as mãos.
P/1- É mesmo?
R- Aí a única coisa ruim que eu achei, eu falei para o meu amigo: “Rapaz, só tem uma coisa ruim aqui desse colégio pra mim, é não ter futebol”. Eu amo futebol, sabe? A comida, eu me adapto. Essa comida deles, eu acho saudável, boa, muita verdura. A gente cuidava da horta também do colégio, essas coisas… Aí meu amigo, tramando, fugiu. Ele preparou tudo, aí na última semana ele foi e falou pra mim: “Agora é definitivo. Tu vai ficar, eu vou. Vou lá pra casa da tua tia, vou ficar por lá e vou pedir pra voltar pra outro colégio. Vou ficar aqui não, vou pra outro colégio”. Ai eu falei: “Não, rapaz, vamo ficar juntos”. Ele falou, “Não, não, não…”. Aí, tá bom, “Eu vou contigo, então”, aí nós fugimos do colégio. Fugiu assim, não dissemos que iríamos fugir, nós fomos passar o fim de semana com os nossos parentes lá no Rio, e de lá nós voltamos só para pegar nossas coisas, porque a gente queria conversar com o governador também. Aí eu me lembro de ter encontrado o governador carioca, ali no largo da carioca. Ali tinha uma embaixada do Governo do Acre, que tava virando estado. Era a representação do Governo do estado do Acre, lá na Senador Dantas, já perto do Largo da Carioca. Aí eu fui lá para conversar com o governador, cheguei: “Governador, é o seguinte, olha, eu não queria sair, meu amigo que quis por causa da religião, ele não quer misturar religião. Eu estava, eu… por mim, a única coisa que eu acho ruim é não ter futebol, mas tudo bem, que eu posso abrir mão do futebol quando eu estiver lá. Mas a religião pra mim não vai fazer a minha cabeça. E se eles falar de Deus pra mim, está bom, é bom, não tem nada contra. É, então é isso. Agora eu queria que o senhor me mandasse embora, lá no Acre também a gente estuda, governador. Lá o colégio acreano é um bom colégio. Eu estou vendo aqui nesse colégio daqui que eu estou, eu tenho uma boa base lá do colégio acreano. Lá estuda, é bom o colégio, é bom o estudo… Meu avô que inventou essa de me trazer para cá. Eu não queria, entendeu? Eu não queria vir. Eu vim porque é força maior, a família que manda. Meu avô decidiu, a minha mãe obedeceu, e eu tenho que obedecer também. - A coisa é assim, né? É patriarcal - Então, mas eu quero voltar pro Acre”. Aí ele falou: “Meu filho, é o seguinte: você quer voltar pro Acre? Como assim voltar pro Acre? Eu tenho um compromisso com o seu avô. Qual vai ser a minha cara com o seu avô mandando você de volta pro Acre? O que eu vou dizer pra ele? Eu tenho um compromisso, cara, político com ele. Eu não posso fazer isso com ele. Você vai ficar aqui! Você é de menor, e seu avô é que manda em você. Eu vou te mandar para outro colégio”. Aí mandou para o Modelo, lá em Friburgo. Rapaz, quando cheguei lá no colégio, não tinha nem lugar para mim dormir, e eu fui dormir na casa da diretora. Eu ia constrangido nesse colégio Modelo, morando num quartinho da casa da diretora, comendo na mesa da diretora com a família, entendeu? Era um intruso ali, eu me senti um intruso: “O que é que eu estou fazendo aqui, meu Deus? Como está difícil, nada está dando certo” - no começo, né? Aí eu tinha um padre que dava aula de religião, do Colégio Anchieta, era um filósofo. Aí ele foi lá, o Padre Eudson. Padre Eudson, dava religião pra gente. Aí eu fiquei amigo desse padre, ele ficou legal comigo, sempre foi muito legal como pessoa, ele tinha coisas bacana, não sei o que, todo empolgado… Contava uma coisa para ele, ele: “Pô, bacana isso aí…”. Então ele falou: “Rapaz, tu não quer conhecer lá o Colégio Anchieta? Lá joga bola, rapaz. Tu disse que gosta de jogar bola, lá joga rapaz. Lá está escrito assim, quando você chega no campo de futebol: “mens sana in corpore sano” - mente sadia, corpo sadio. Lá é turma do futebol, joga vôlei, joga futebol de salão, joga basquete, jogo todos os tipos de esporte que você queira desenvolver. Vai lá pra tu conhecer, pra tu ir jogar bola com eles. Tu que gosta mais de futebol do que de vôlei, do que de basquete, essas coisas… Rapaz, eu fui e me apaixonei pelo colégio, esse o colégio dos meus sonhos quando eu saí do Acre. Era um colégio grande, Txai, com muita gente. Tinha do primário à filosofia dentro desse colégio. Gerações, entendeu? Era uma coisa incrível. Claro que tinha os setores, os caras de filosofia tinham o canto deles, ninguém entrava lá na clausura. Agora, eles entravam nos nossos cantos, eles eram os chefes ali, subchefes. Tem uma estrutura pra tomar conta dos estudantes. Então, aí eu achei aquele colégio maravilhoso pela mens sana in corpore sano, pela alegria, pelo esporte, pelo futebol... ali eu podia dizer: “Esse é o colégio dos meus sonhos”. E pelo estudo também muito melhor, e pelo lugar também. Eu ia ficar numa coletividade, eu não ficaria na casa da diretora como intruso. Não sai do Acre para morar na casa de outra família.. está entendendo como é que é? Eu quero ficar em uma coletividade, que todo mundo é igual a mim. Aí estava falando com o padre também disso, das minhas dificuldades, e o padre incentivando: “Então vamos. Quem sabe vamos conversar com o diretor da escola. Vamos conversar com ele, o Padre Raul Laranjeiras”. Aí eu fui, ele me levou para conversar com o Padre Raul Laranjeiras. Eu falei: “Padre Raul Laranjeiras, eu queria estudar no seu colégio. Eu posso pegar uma bolsa do Governo do Acre, que está pagando lá no meu colégio onde eu tô, esse Modelo, pra pedir transferência para pagar para o senhor aqui no seu colégio? Aqui que é o meu colégio, aqui é o meu canto, que é o meu lugar, eu quero aqui! Se o senhor concordar, eu quero esse lugar. Não é o governador que está escolhendo, não. Quem está escolhendo sou eu. Esse é o meu lugar”. Ele era jesuíta, aí eu fiquei lá com os jesuítas, durante até a universidade, a PUC, estudei com os jesuítas. Toda a minha trajetória é jesuíta, então eu tenho muita influência dos jesuítas na minha vida. Essa coisa do jesuíta que mais me marcou pra mim é o que eu chamo de perseverança no teu trabalho, sabe? Está há muito tempo, eu estou aqui há quarenta e oito anos. Ainda estou aqui, viajando para as aldeias, participando de oficina, participando de identificação de terra… Eu estou aqui fazendo ainda esse trabalho que venho fazendo há muito tempo. É preciso trabalhar pra isso. Sobreviver. É verdade… Mas enfim, essa… toda a minha a história, porque eu também estudei da PUC, Sociologia e Política, numa época muito importante. Foi em sessenta e sete, sessenta e oito, que pra mim sessenta e oito foi aquela abertura política. Nós achamos que nós íamos derrubar a Ditadura, e que a gente ia criar uma democracia no Brasil, que a gente ia mudar o Brasil, que nós ia ser essa geração da democracia, que a gente não ia concordar mais em permanecer naquilo.
P/1- Como é que era a Ditadura aqui no Acre?
R- Aqui no Acre eu não sei, porque eu estava fora. Eu saí em sessenta e três… Txai, eu, pra mim, os jesuítas me preservaram dessa… Eu estava no Colégio Anchieta, eu não sabia, lá nem conversavam sobre isso, não estava sabendo nada. Eu só soube que houve uma revolução quando veio um estudante do Rio de Janeiro se esconder lá no nosso colégio, que era amigo do jesuíta lá do Colégio Santo Inácio, família do Santo Inácio, que era muito ligado com jesuíta, pegou e mandou o filho dele, que estava envolvido com política, pra se esconder lá no nosso colégio. Ele chamava Luís Raul, e esse Luís Raul é que me disse: “Olha, está acontecendo isso e isso no Brasil, nós estamos virando uma ditadura. Vocês aqui não estão nem sabendo, vocês estão tudo alienados”. Eu disse: “É mesmo! Nós estamos alienados, não estamos sabendo o que é que está acontecendo no Brasil. Nós estamos preservados aqui nessa loucura toda. Aqui é o nosso mundo.
(corte)
P/1- Aí você conseguiu trocar de colégio. Na hora, o padre te mandou ir para o mundo, aí você…
R- Na realidade, o meu mundo foi a PUC, estudar Sociologia e Política, fazer universidade, aquela coisa, primeira geração a entrar na universidade, sabe? Isso pra mim foi um grande prêmio. Sair desses colégios internos, e agora estar livre na universidade. Quando eu entrei, eu comecei a morar sozinho, a me virar, a dar aula de matemática, porque eu era bom aluno de matemática, então sabia matemática, esse primeiro grau, aí eu dava aula particular em casa, dava aula em colégio… E aí quando eu comecei a dar aula em colégio, aí melhorou minha situação financeira. Mas já depois de dois anos, né? E aí as coisas vão, vão chegando, vai aparecendo a oportunidade pra você. Até que descobri o Colégio Santo Inácio, dando aula no colégio que eu estudei, só que era um ginásio orientado para o trabalho, de noite, pra aquele pessoal da… Era época de Conselho Ecumênico, Vaticano II, e os jesuítas são muito ligado ao papado, e estava nesse espírito dos pobres, de fazer trabalho com os pobres. Isso que era coisa importante, entendeu? Até queria fazer científico… Aí o padre chegou para mim: “Meu filho, ciência não é o nosso melhor.Tem cientistas Jesuítas e tudo, tem o Padre Teilhard de Chardin, que é o grande filósofo teólogo, um pensador católico. Tem caras que pensam, grandes pensadores jesuítas, cientistas também, mas são poucos. Nosso trabalho agora é o que o Papa está pedindo, que nós abra também o nosso espaço de colégio para os filhos da pobreza. Ali, o Santo Inácio é do lado da favela de Santa Marta. E a Santa Marta vinha assistir, o pessoal da Santa Marta vinha ter aula ali no Santo Inácio à noite. O pessoal do que trabalhava em bares, os caras que trabalhava de manhã, de tarde, de chegar de noite. Seis horas acabava o expediente dele, ele entrava às seis, saía às seis, e ia para estudar lá no Santo Inácio também. Então era para pobreza, esse espírito do Vaticano II, papa João XXIII já tinha até moído, virou santo… aquele espírito jesuíta de voltar para a pobreza, é esse que é o nosso trabalho, isso que o mundo está precisando de nós, e o Brasil também. Não é só ser professor, é também fazer coisas da vida… que também ia ser professor, de outra maneira. Então essas coisas… Em sessenta e sete, sessenta e oito, foi uma discussão política, e eu muito ingênuo, saindo do do colégio interno, que não sabia nem que tinha havido revolução em sessenta e quatro. Só sabia através do refugiado do meu colégio, do estudante que veio dizer que é que está acontecendo no Brasil, porque os padres também não contavam muito pra gente. Eles não envolviam a gente em política, eles preservavam, de certa forma, a gente das turbulências políticas, da nação. Então eu acho que a universidade, sobretudo, não só a universidade em si, que é uma experiência que todo jovem brasileiro devia ter, da geração, isso nem todos conseguem… É raro, e no meu tempo ainda era mais raro ainda gente que vem da pobreza chegar à universidade. E eu, por essa sorte do destino, do meu avô, que entrou no meu destino, e traçou pra mim o meu destino de ir estudar fora. Aí me formei lá e saí muito sem experiência…Fui ter experiência de campo no Maranhão, três meses na Baixada Maranhense, como ajudante de pesquisa, pra mim ver como é que faz pesquisa de campo, aprender a fazer pesquisa de campo. Passei três meses na Baixada Maranhense acompanhando o Bumba meu boi, sabe? Eu ia, gravava os Bumba meu boi, depois eu passava para eles, depois eu transcrevia tudo do boi, tudo transcrito pra antropóloga. Eu saí do campo com os vários bois gravados, do começo ao fim, transcritos. Todas cantorias, toada, brincadeira… o teatro, aquela coisa toda… E teve uma que foi a mais fantástica das história que eu já vi do Bumba meu boi, que foi a história daquele puxa-saco do padre. Como é que chama o puxa-saco do padre? Aquele que não é padre, não é religioso… O sacristão! A história do sacristão, que é um aliado do padre. Então o sacristão sempre é um cara da comunidade, visto pela comunidade como um traidor que vai dizer ao padre como é que eles são: “Olha, eles ali acreditam em feitiço, eles ali eles fazem trabalho de macumba, eles ali, eles recebem espírito, eles ali são desse jeito…”. E como é que a Religião Católica pode chegar e entrar mais efetivo ali no meio daquele pessoal e transformar eles e outros. E os canadenses, os padres, encomendaram essa pesquisa ao Museu Nacional, eu acho que se chama “Religiosidade popular na Baixada Maranhense”, e a antropóloga me destinou o Bumba meu boi. Eu não fiquei pegando tudo, não: “O teu trabalho é o Bumba meu boi. Tu vai gravar todos os Bumba da Baixada agora esse mês de junho, julho, agosto, setembro… ainda até o fim do ano, os boi passando em outros povoados, apresentando…”. E eu levei um gravador fantástico, que era lá do Museu Nacional, que era dessa equipe de pesquisa do Museu Nacional, que eu era um ajudante. O cara que pegava no pesado, mas que também tinha que fazer entrevista, que tinha que gravar, que tinha que transcrever, fazer esses trabalhos de campo que era preciso fazer lá em campo, no campo mesmo. Quando eu não estava lá fazendo nada, porque o Bumba meu boi não tem todo dia, não, e também lá toda hora. E aí tem as hora… essas hora que você está fazendo nada, está transcrevendo, imerso mesmo na pesquisa sobre isso. Então eu gravava os caras, e depois ainda ouvia o que eles tinham a dizer e transcrevia aquilo no papel, está entendendo? Aí aquilo gravava bastante na tua memória, fazendo esse exercício, né?
P/1- E aí você fez de muito tempo depois?
R- Eu escrevi um trabalho sobre (inaudível) no mestrado, eu escrevi com esse material, eu fiz um trabalho com a matéria lá…
P/1- Que massa!
R- Aproveitando, né? Que tinha esse material comigo.
P/1- Aí você mandou para uma revista?
R- Não, eu não mandei pra nada, não. Esse aí eu… só divulgou lá, só foi trabalho mesmo, de antropologia, um exercício. O outro que eu fiz, que foi também um exercício, aí ele pediu esse… o índio… Como é que se constitui a categoria índio com os habitantes da cidade? Esse tema que eu encontrei, essa história, esse foi publicado. Eu escrevi sobre isso, entendeu? O livro chama “O Índio em Quadradinho”; é o nome desse artigo que foi publicado na revista de Antropologia da UnB. Se não me engano, que ano foi? Setenta e seis, setenta e sete… por aí… setenta e seis, setenta e sete… Setenta e seis! Em setenta e sete eu tava fazendo a dissertação. Então Txai, de certa forma… Aí lá também eu conheci dois amigos, que também viraram antropólogo. Acho que mais por causa deles, eu virei também, influenciado por eles, porque eu confiava deles, eu aprendia com eles, e a gente formava quase esse grupo de estudo. Só que eles falavam muito, eles tinham tempo para ler. Eu tinha que trabalhar, e eles sempre me passavam. Eu li muitos livros, ouvindo eles falando todos os dias. São aqueles amigos que você tira vantagem de estar perto, que o cara está sempre te ensinando, assim como o professor… Tem amigos assim, né? Professor que te ensina de graça (risos). Aí, Txai… Eu tava falando que amigos são esses.
P/1- E foi sobre a tese que você fez do indígena visto pela cidade, né?
R- É. Sim… Esse trabalho, eu aproveitei essa coisa da minha… voltando a minha infância…
P/1- Então, Txai. Pensa numa pra gente fechar a rodada de hoje. Aí tu vai…
R- Deixa eu… eu só quero te chegar até Brasília, aí eu paro. Bom, aí eu, inexperiente, então achei que eu devia fazer… Aí fiz esse trabalho de campo, e gostei muito de fazer esse trabalho de campo, orientado, sabes? Eu não tava lá à toa, sozinho. Tava com orientação do antropólogo, já terminando o mestrado.
Fiz, inclusive, trabalho de pesquisa de campo, com esse material que eu tava coletando pra ela, trabalhando pra ela, na equipe dela. Mas eu que ia pros povoado, eu que gravava, eu que nas festas de Bumba meu boi… Não era ela, não. Era eu, e a maioria das vezes sozinho. Não sozinho, porque logo no meu povoado de Barroso tinha um brincante de Bumba meu boi, que ele era vaqueiro, e ele era apaixonado pelo boi. E ele me levava, que acabou virando meu compadre, me levava para todos os boi, ele era meu companheiro de boi. Eu fui atrás dele, pedi pra… e ele falou: “Ai, eu levo você em todos os bois que tiver aqui por perto!”.
P/1- Mas era ali em São Luís?
R- Não! Era na Baixada…
P/1- Na Baixada do Maranhão?
R- Bequimão, município de Bequimão, no povoado de Barroso.
P/1- E tinha muito boi?
R- Por perto…
P/1- Por perto.
R- É… Em Barroso mesmo, Eu não vi nenhum boi Barroso, mas era tudo nos outros povoados, da região, maiores, mais animado, mais interiorano também. A gente ia para esses lugares mais longe. Mas enfim, o gravador foi uma coisa fantástica pra eles, Txai, porque foi a primeira vez que eles se ouviram cantando. Antes eles só tinham aquele… O som deles era o que? Era caixa, aquele som de caixa, que só botava aquele som, aquela fita, aquela coisa… não sei como é que era o nome daquilo. E eles mesmo não se ouviram, nunca tinham se ouvido. Aí com o gravador, no intervalo eu fui botar pra ver se tinha gravado bem, e como estava meio barulho, eu aumentei o volume. Rapaz, aí o cara tava cantando uma toada… aí o outro cara que estava do meu lado ouviu, veio, se interessou: “Rapaz, como é que é isso aqui? Ah, ele gravou a gente aqui, gravou nós agora que acabamos de cantar!”. Aí foi chamar os outros, e começaram a vir ali. Txai, eles mandavam me dizer que era pra mim gravar, pra depois eles se ouvirem cantando as toadas, mostrando esse teatro, que eles chamavam de palhaçada, mostrando a música do boi, a dança… Eles queriam essa coisa pra ouvir, já que naquele tempo nem se pensava em vídeo. Mas eu estava com um gravador lá do Museu Nacional, que era um bom gravador, e aquilo dava pra ouvir alto. Aí todos os intervalos eles queriam vir, aí eu botava pra ouvir. Aí juntava aquele aglomerado de gente se ouvindo, o que eles tinha acabado de gravar, admirados e tudo… Aí começaram a dizer: “Pô, que legal! Esse rapaz, esse cabeludo aí, tem esse equipamento aqui, trouxe esse gravador bom aqui, pra gente ouvir aqui o que a gente gravou, dá pra ouvir bem e tal…”.
P/1- Eles mesmo se ouviam, né?
R- Isso é fantástico, Txai. Mostrar para eles essas coisas…
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FIM
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