Projeto: VLI – Estação de Memória: Porto & Pesca
Entrevista de Shiley Barbosa Aires
Entrevistado por Luiza Gallo e Ane Alves
São Luís, 01/10/2025 (Rio dos Cachorros)
Entrevista nº: VLI_HV016
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Miriam Allodi
Revisada por Ane Alves
P1 - Primeiro, Shyley, quero agradecer demais por nos receber aqui na sua casa, no seu quintal e contar sua história pra gente. E queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Bom dia! Eu me chamo Shiley Barbosa Aires, tenho 48 anos, moradora aqui da Zona Rural de São Luís, na comunidade Rio dos Cachorros, que é uma das comunidades que pertence à Reserva Tauá-Mirim. Que se Deus quiser vai ser uma reserva. Ainda não é, mas vai ser se Deus quiser. E o que mais?
P1 - E que dia que você nasceu?
R – 22/02/1977.
P1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R – Sim. Eu nasci na madrugada. E a pessoa que ajudou a minha mãe, porque eu nasci em casa mesmo, foi a minha avó, por parte de pai, Dioneide Pires. A minha avó, hoje ela não está mais aqui com a gente, vai fazer três anos que ela faleceu. E é isso.
P1 - Ela era parteira?
R - Também.
P1 - Ela fazia partos?
R - Também. Minha vó, assim, quando eu a conheci, ela era parteira, era rezadeira, gostava de dançar tambor. Só que aí já pro final, lá quando eu estava com meus 20 e poucos anos, ela mudou de religião. Então, essa parte toda ela esqueceu, aí ela era testemunha de Jeová, até quando ela faleceu.
P1 - E teve alguma complicação no parto ou foi tudo bem?
R - Tudo tranquilo. Ela disse que eu parecia um quiabim quando nasci. Foi ligeiro.
P1 - Por quê?
R - Porque foi rápido, muito rápido o nascimento, não teve complicação alguma. Graças a Deus!
P1 - E você tem irmãos?
R - Nós somos sete filhos da minha mãe. Só os últimos que ela teve na maternidade, os outros tudo foi em casa. Nesse pedacinho de chão, bem aqui mesmo.
P1...
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Entrevista de Shiley Barbosa Aires
Entrevistado por Luiza Gallo e Ane Alves
São Luís, 01/10/2025 (Rio dos Cachorros)
Entrevista nº: VLI_HV016
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Miriam Allodi
Revisada por Ane Alves
P1 - Primeiro, Shyley, quero agradecer demais por nos receber aqui na sua casa, no seu quintal e contar sua história pra gente. E queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Bom dia! Eu me chamo Shiley Barbosa Aires, tenho 48 anos, moradora aqui da Zona Rural de São Luís, na comunidade Rio dos Cachorros, que é uma das comunidades que pertence à Reserva Tauá-Mirim. Que se Deus quiser vai ser uma reserva. Ainda não é, mas vai ser se Deus quiser. E o que mais?
P1 - E que dia que você nasceu?
R – 22/02/1977.
P1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R – Sim. Eu nasci na madrugada. E a pessoa que ajudou a minha mãe, porque eu nasci em casa mesmo, foi a minha avó, por parte de pai, Dioneide Pires. A minha avó, hoje ela não está mais aqui com a gente, vai fazer três anos que ela faleceu. E é isso.
P1 - Ela era parteira?
R - Também.
P1 - Ela fazia partos?
R - Também. Minha vó, assim, quando eu a conheci, ela era parteira, era rezadeira, gostava de dançar tambor. Só que aí já pro final, lá quando eu estava com meus 20 e poucos anos, ela mudou de religião. Então, essa parte toda ela esqueceu, aí ela era testemunha de Jeová, até quando ela faleceu.
P1 - E teve alguma complicação no parto ou foi tudo bem?
R - Tudo tranquilo. Ela disse que eu parecia um quiabim quando nasci. Foi ligeiro.
P1 - Por quê?
R - Porque foi rápido, muito rápido o nascimento, não teve complicação alguma. Graças a Deus!
P1 - E você tem irmãos?
R - Nós somos sete filhos da minha mãe. Só os últimos que ela teve na maternidade, os outros tudo foi em casa. Nesse pedacinho de chão, bem aqui mesmo.
P1 - E como você descreveria o jeito da sua mãe?
R - Minha mãe é uma mulher lutadora, batalhadora, guerreira mesmo. Ajudou muito meu pai a criar esses filhos. Ela é marisqueira, mas também ela lavava bastante roupa pra ajudar, porque como a gente era uma comunidade bem simples, a profissão era a pesca e lavoura. Então, tinha aqueles... Porque, tipo, um pescador sempre é lavrador, porque é uma coisa pra… Como é que se diz? Cumprir a outra. Porque nem todo tempo a gente fica pescando. Tem um período que a gente fica em casa, então é um período que a gente vai pra lavoura, plantar ali, milho, mandioca, feijão, essas coisas.
P1 - Você cresceu fazendo isso?
R - Fazendo isso, ajudando meus pais a plantar. Isso aí a gente plantava bastante, capinava, e os filhos tudinho.
P1 - Desde pequenininha?
R - Desde quando dava pra gente ir mesmo. Tipo, não tão pequena, porque a gente não... Mas acho que aos 6, 7 anos, a gente já começou já ajudando.
Eles também tinham um período que tirava pedra, o meu pai, a minha avó, ela também, no caso, ela quebrava aquelas pedras. E aí, a gente ia ajudar ela, botar, carregar as pedrinhas para ela quebrar. Que hoje em dia é outro tipo de pedra. Mas essas pedrinhas mesmo, pedra mesmo. Eles usavam muito para fazer casa, essas coisas. E aí, eles vendiam bastante aqui, eu me lembro. Hoje em dia não tem mais essa cultura de quebrar pedra, não.
P1 - E aí as casas são feitas…
R - A gente, pra fazer, tem que comprar mesmo, que antigamente tirava mesmo aqui, no solo. Mas hoje em dia, não, porque também não tem mais esses lugares. Porque, tipo, o território da gente... A gente foi perdendo, a comunidade, o pessoal mais antigo, foi perdendo uma parte do território onde ficavam essas pedreiras. Então, hoje em dia, tem outras pessoas que tomam conta, pra fazer outras coisas.
P1 - E o seu pai, como você descreveria ele?
R - Meu pai? O homem mais guerreiro que eu já vi na minha vida. Tudo que a gente sabe foi ele que ensinou. Me desculpa! É porque hoje ele também não está mais aqui com a gente. A gente fica bem… só um poquinho.
P1 – Claro!
R - Foi o homem que ensinou a gente a ser como a gente é, sabe? Tinha as coisas dele, mas, porém, ele ensinou tudo que a gente sabe, ele ensinou. Ele e a minha mãe, tipo, pra gente não mexer no que é alheio. Essas coisas, sabe?
Os ensinamentos que a gente deveria levar pra vida toda, eles ensinaram direitinho, entendeu? Então, sou muito grata por ter minha mãe ainda. E meu pai, porque ele ensinou pra gente.
P1 - E qual é a história do seu nome? Por que você se chama Shiley, você sabe?
R - Vixi Maria! Rapaz, foi a minha mãe que botou. E aí, os escrivãos ainda complicar00am, porque era Shirley mesmo, não colocaram o R no registro.
P1 - Foram eles, então?
R – Foi, eles que erraram o nome. Aí, ficou do jeito que está hoje. Mas eu já até me acostumei. Mas eu atendo mais por Shirley mesmo, com R.
P1 - E pensando na sua infância, assim, como era o dia a dia? O que você gostava de fazer? Como que era, vocês acordavam cedo ou não? Pequenininha ainda.
R – Pequenininha a gente só brincava. Mas, tipo, como os meus pais tinham, assim, a vida... Era complicado, difícil! A gente teve que ir para São Luís para poder estudar, principalmente as meninas, porque nós somos sete filhos da minha mãe mais do meu pai, quatro sendo mulher e os três homens. Aí, os homens sempre ficaram aqui, mas as mulheres... Pra gente ter um melhor, a gente teve que ir pra São Luís, lá pro centro mesmo, pra estudar.
P1 - E vocês iam e voltavam?
R - Não, a gente ficava lá. A gente ficava. Tinha uma senhora, amiga da minha mãe, e aí, ela, tipo, que ajudou a criar a gente. Assim, que a gente ficava lá pra estudar com ela, eu e as minhas irmãs, todas.
P1 - E como foi esse momento? Como era pra você ficar lá?
R - Era bem triste, porque a gente ficou longe dos nossos irmãos, dos nossos pais, da nossa comunidade. Mas era preciso também, porque a gente precisava estudar, e aqui, o estudo aqui era muito difícil. A gente estudava aqui até o jardim, aí daqui, a gente já tinha que sair, porque senão não estudava. Porque não tinha escola. Só até o 4º ano.
P1 - E aí, vocês voltavam no final de semana?
R - Sim, no final de semana. Aí, eu comecei a trabalhar cedo também, pra poder ajudar no estudo. Para mim mesmo, não ganhando salário. Mas eu recebia um custo pra poder estar botando crédito nas carteiras, que antigamente era aquele passe escolar que a gente tinha que comprar, e aí eu tinha que ajudar também os meus pais, porque era muito filho, aí só na pesca e na lavoura. Tipo, o que o pai pescava, era para a gente manter mesmo a casa, e o da lavoura também, a mesma coisa.
P2 - E você é uma das mais velhas?
R - Eu sou a segunda, a segunda dos filhos. Meu irmão, é um menino, o mais velho.
P1 - E o que você fazia? Que outro trabalho você fazia?
R - Eu comecei a trabalhar em casa mesmo de família, doméstica mesmo. Até brinco, eu digo: olha, se eu tivesse naquele tempo assinado minha carteira, eu já estava aposentada fazia tempo. Mas, infelizmente, não.
P1 - Isso lá em São Luís?
R - Sim, lá no centro. Eu estudava lá, numa escolinha bem ali mesmo, no centro mesmo de São Luís. E aí, ficava, pra não vir, ter aquele custo, aí eu ficava lá.
P1 - Era naquela casa mesmo que você trabalhava?
R - É, eu ficava na casa mesmo, pra ficar mais próximo da escola.
P2 - Você ficava na casa que você trabalhava?
R - Sim, ficava. Ficava. Aí, só vinha no final de semana pra cá, pra casa da minha mãe.
P1 – Como que era chegar aqui?
R - Ah, muito bom, menina! Nesse tempo a gente tinha muito rio. Aqui tinha muito rio, hoje em dia não, acabou tudo. Essas empresas, acabaram com tudo. Mas... Eita, era só correr quando vinha, era só alegria. Eu juntava com meus irmãos, o dia todo brincando, banhando. Assim que era.
P1 - E o que vocês faziam lá no rio?
R - Brincava de pega-pega, correndo, se jogando no rio. Assim que era. Era diversão boa demais. Pena que meus filhos não chegaram a ver e nem a curtir esses momentos, assim. Hoje não existe mais. Até o brejo está morrendo. Porque a gente tem muita fábrica de fertilizantes, então, quando é período de chuva, eles acabam descendo pro rio. Aqui, onde era o rio. Pro leito do brejo, aí está matando tudo. É muito forte.
P1 - Como que é pra você ver essa situação?
R - É muito triste. Porque a gente tinha tanta fartura, e hoje a gente vê que a gente não tem. Porque eu me lembro quando a gente era pequena, passava o dia todo tomando juçara ou era buriti. Hoje em dia a gente não tem mais, pra gente tomar um copinho, a gente tem que comprar. E olha o preço! E pra falar que nem é a nossa mesmo, nativa do lugar. É dessas que eles compram aí pra fora, que hoje em dia eles chamam açaí. A nossa é juçara, do Maranhense mesmo, é juçaara. Aí, a gente tem que tomar açaí dos outros, porque a nossa está indo embora.
P2 - E qual que é a diferença da juçara e do açaí?
R – Rapaz, o sabor é diferente. Tem gente que diz que não é diferente, mas é! É muito diferente. Agora, tipo assim, quando a gente coloca, dá uma incrementada, nas duas, aí fica perfeito. Mas quando não, a gente… Quem é acostumado a tomar juçara, sabe que não é.
P1 - Tem uma que é mais doce e outra que é mais amarga?
R - Mais ou menos isso. Não é nem que é amarga, não é amarga, mas é um gostinho mais diferente, um pouquinho.
P2 - Mas é a mesma planta? Ou não?
R - É a mesma. Só muda o que eu lhe disse, que é do mesmo jeito, os pés. Mas uns chama de açaí, que lá no Pará é açaí, e pra cá é a juçara. Mas a gente aqui, maranhense da gema, sabe quando é a do Pará. Tem uma coisa ali diferente, não sei te explicar.
P1 - E você estava falando dos rios. Como é a sua relação com as águas, com os igarapés, com o brejo?
R – Rapaz, acho que é uma conexão boa. Eu sempre, assim, eu mais jovem, eu sonhava, eu me casando lá nos rios. Não sei se eu não tenho um noivo aí, um marido aí nessas águas. Porque eu sonhava muito eu me casando com um índio. Será? Se eu sou casada lá nas águas?
P1 - Então desde menina você sonhava se casando lá nas águas?
R - Nas águas. Até hoje eu ainda sonho. Por isso que eu digo, não é possível, que é o mesmo sonho, então... Devo ser casada aí nas águas aí nesses brejos. Eita, senhor!
P1 - E como você sonha?
R - Tipo assim, eles vinham me buscar, aí descia, pra cá pra trás. Que hoje não tem mais os rios. Mas tinha uns rios... Esse dos meus sonhos, é um rio bem largo. E aí, eles vêm de canoa. E eu sei que eu me caso por lá. E é um sonho, que diz assim, não que foi só uma vez não, ele tem continuidade... Essas terras aqui, elas são assim bem... Como é que se diz? Tem um... Oh meu Deus! Fugiu agora... Tipo assim, uns encantados, algumas coisas assim. Apesar de já estar se perdendo, mas ainda existe ainda.
P1 - E antigamente era ainda mais?
R - Mais, mais e mais mesmo.
P1 - Que histórias que você pode contar pra gente?
R - Que da minha infância?
P1 - É, desses encantados, dessas lendas... ou se você já viu, sentiu...
R - É, assim, até os 13 anos, eu sempre via algumas coisas. Mas aí depois, passando o tempo, aí não... E também eu comecei a frequentar a igreja. Aí, tinha umas coisas que eu olhava, que eu achava que não era muito legal, muito bacana, aí eu fui tentando esquecer. Assim, eu já não vejo mais. Não vejo. Mas ainda ouço alguma coisa, assim. Tipo assim, a gente está num local e aí a gente percebe que tem alguém, assim, junto com a gente, vendo. Isso aí eu ainda, vejo. Vejo, não! Sinto ainda. Mas em olhar, não. Mas quando eu era criança, olhava.
P1 - E perto das águas, isso já aconteceu?
R - Sim. Perto das águas também.
P1 - A mesma coisa?
R - Sim. Assim, no meu ver, assim, aqui era, assim, tipo uma terra indígena. E aí, assim, como se tem, assim, um... Não aqui, no nosso tempo, mas tem, tipo uma aldeia. É tipo assim, a gente percebe. Não só eu, porque eu pensei que era só eu, mas tem gente com mais idade que também tem o mesmo sentimento, entendeu? Então, eu creio que tem! Nos encantados tem!
P2 - Tem alguma lenda aqui da região?
R - Não, a única mesmo, só pelo nome da comunidade, que é Rio dos Cachorros, porque era... Lá no ponto final tinha uma casa. Que antigamente as casas eram bem escassas, até mesmo quando eu já era… Tipo, tinha essa casa aqui, era longe uma da outra. E lá no porto tinha uma casa, onde tinha três cachorros, que servia como ponto de referência para as pessoas quando vinham descendo... Vinham pescar no braço do rio… Bem aí na beiradinha do mangue, tem um poço, ele ainda existe, mas está bem... Já quase no seu fim de vida. E aí a água era natural, aí o pessoal pegava água pra encher seus galões pra retornar de novo para a pesca. Então, aí, por isso esse nome Rio dos Cachorros. Porque aqui era um lugar pequeno, mas tinha vários nomes. Tinha Santa Rita, Santa Cruz, Livramento. E aí, Rio dos Cachorros. Mas aí, quando passou esses postezinhos aí, que puxaram a energia, a eletricidade, a energia. E aí, pra não ficar esses vários nomes, aí foi colocado só Rio dos Cachorros.
No começo a gente sofria bullying com o nome, mas hoje é tranquilo. Quando a gente vinha da escola, o pessoal, “lá vem a carrocinha.” Por causa do nome. Mas hoje já é tranquilo. Muito gente já pega ele.
P2 - E quando chegou a energia elétrica aqui?
R - Eu acho que já tem o quê, uns 30 e poucos anos. Eu era adolescentezinha quando chegou.
P2 - E o que mudou na chegada da energia elétrica?
R - Ixi, mudou bastante, porque naquele tempo a gente, tipo, a comida, tinha que passar o sal, quando chegava com o peixe, ou a carne mesmo, era salgada, que não poderia. Só mesmo fresco é o que a gente comia no dia. Depois veio o rádio, meu pai adorava um radiozinho. Mas depois, que a gente custou bastante a ter uma televisão. Então, mudou muito! E fora que a gente era na lamparina, então à noite... Só que pensando bem, naquele tempo era melhor.
P1 - Por quê?
R - Tipo, era Lamparina, mas era muito bom minha irmã!
P2 - Vocês contavam histórias à noite?
R – Não, a gente brincava era aí no relento, a noite todinha. Correndo, brincando de pegador, de pega-pega, rouba-bandeira, essas coisas, no quintal. Aqui não tinha esse tanto de casa, era livre, não tinha esse tanto de carro também. Menina, era bom demais! A gente ia dormia era quase de manhã! O pai brigando, “ eh, tá na hora de dormir menina!” Aí, corria. Ó, nesse periodo, de noite, a gente ainda ia pro rio tomar banho. Mas era muito menino, também. Muito menino! Se juntava os de mamãe, mais o da Dona Joana, ali, aí fazia a festa, todo mundo ia banhar nos rios.
P1 - De madrugada?
R – Ora, não! Era bom demais! Muito bom! Tivemos uma infância boa.
P2 - Enquanto vocês estavam brincando, os adultos ficavam fazendo o quê?
R - Ah, só na rodada de conversa mesmo. Dentro de casa.
P1 - Você lembra se eles contavam muitas histórias?
R - Não, eles eram mais, assim... Não era muito de contar história, não, pra nós, não. A gente aprontava mesmo.
P1 - E rádio, o que vocês gostaram de escutar?
R - Era mais música. E papai o jogo. Acho que aqui é FM, AM e FM, só. Que pegava.
P1 - E tinha algum cantor, assim, que lembra muito sua infância?
R - Eu gosto de forró. Amo forró! Mas eu acho que dessa época lá da infância, mais era Raça Negra, essas coisas assim, que eu me lembro bem. Mas eu não garrava muito para negócio de música, não. Eu não sou muito festeira, não, gente.
P2 - Tinha algum programa de rádio que seu pai escutava, que você lembra?
R - Então, o que eu me lembro mesmo que ele escutava, era mais o jogo mesmo. Que antigamente era televisionado, não. Era no rádio. Isso ele gostava muito. Do jogo, mas...
P2 - Ele torcia pra algum time?
R – Flamenguista. Ô time ruim! Mas era do coração dele, o Flamengo. E só também pela Copa. Eita, meu Deus! Não perdia, não.
P1 - E na escola tem alguma professora marcante?
R – Sim, no meu ginásio, era professora Roseane. Eu estudei em Pedrinhas, era do quinto ano. Estudei lá. Estudei durante dois, três anos, porque eu reprovei, um ano. Então, eu estudei lá. Aí, quando saí de lá, a gente ia para o centro mesmo, para terminar, concluir.
P1 - E os amigos da escola, você lembra de alguma história com eles?
R - Tem várias.
P1 - Algum apronto...
R - Eu sempre assim... Quando a gente estudava em Pedrinhas, porque tinha várias outras crianças daqui mesmo da comunidade, que a gente ia. Aí, a gente ia pra escola, tinha um... “Pedrinhas”, era o único ônibus, só tinha um. Era só um ônibus. Aí, a gente ia andando lá. Aí, tinha... Nesse tempo tinha uma gangue, aqui em São Luís, que eles chamavam, “Gangue da Bota Preta”. Moça, a gente tinha muito medo dessa gangue. Aí, teve um tempo que elas passavam nas escolas, aí diz que cortava o biquinho do peito das meninas. Ei, Clóvis, tu te lembra dessa gangue? E aí, a gente tinha muito medo. Eu me lembro uma vez, que a gente estava na escola, e a gente recebeu um bilhete, a direção da escola recebeu, que eles estavam passando nas escolas. E a gente ficou com tanto medo, imaginando como é que… A gente veio a pé de lá. Com medo. Por dentro do mato, todos os estudantes, era bastante menino. Isso aí ficou na minha memória, sabe? A gente veio, todo mundo com medo dessa gangue. Aí, pra gente não topar ela na estrada, a gente veio por dentro do mato. Porque tem a estrada… a via aqui, ferrea. E a gente veio beirando ela, com medo.
P1 - Todo mundo junto?
R - Todo mundo, todo mundo. Homens e mulheres vieram. A gente com medo. Porque foi um bilhete, eles mandaram um bilhete pra escola.
P1 - E a pesca? Você contou que sua avó começou a te ensinar.
R - Minha avó, eu comecei a mariscar com a minha avó.
P1 - E como que era isso? Que lembranças você tem desse momento?
R - São lembranças boas. Tipo, eu me lembro muito bem quando a gente ia... Tipo, ela dizia: hoje não tem nada, vamos lá pro mangue pra ver se marisca um pouco. E aí, a gente saía. Ela sempre me levava. Pegava o cofinho, um landoá, que eu me lembro. Que é feito com uma madeira e fica tipo um saco mesmo, aí fica assim, a boquinha, feita com a madeira e a parte… Tipo um saco que fica. E a gente ia para o rio. No caso, é do mangue mesmo. E aí, chegava lá… Eu achava incrível, até hoje, assim, eu fico me perguntando, como é que ela fazia, porque era ligeiro. A gente ia com o cofinho, não demorava muito não, a gente voltava pra casa e vinha cheinho. E ela pegava o peixe com a mão mesmo, ficava assim, pegando nas barreiras. Eu ia, mas eu tinha medo, pouco de bicho, de peixe mesmo morder. Mas ela não, ela pegava mesmo o peixe. E a gente, com esse landoazinho… Quando ela não conseguia com a mão, ela levava o landoá embaixo das barreiras e quando ela puxava vinha o peixe. Tinha peixe grande, não era só peixinho pequenininho não. Era incrível mesmo a ligação dela lá com o mangue lá. Tem camarão, caranguejo também, que a gente pegava. Agora, o caranguejo, o papai ainda levava a gente. Porque o meu pai, ele pescava mais no rio mais aberto, de canoa, botando as redes mesmo. Aí, já, a minha avó, não, era mais no rio mesmo, uma coisa mais pro momento. Tipo, amanheceu, aí ela ia, a gente ia lá, e pegava o almoço, ou jantar, entendeu? Assim que era.
P2 - Era só pra vocês mesmo, não era pra vender?
R - Não, só pra... Até o meu pai. O meu pai, ele pescava, tinha vezes que ele passava dois, três dias pescando. Mas nunca foi pra vender. Nunca foi. Só para suprir mesmo e dava para as pessoas que moravam perto. O meu avô, também, o pai da minha mãe, ele também era pescador, e era do mesmo jeito. Ainda que a gente fazia assim, porque tinha período que não tinha farinha, porque tem os seus períodos, pra fazer a colheita, pra fazer o plantio. E aí, quando não tinha, a gente trocava por farinha. Mais era farinha mesmo. Mas pra vender não, era sempre pra suprir mesmo as necessidades da família.
P1 - E ainda, menina, você acompanhava a sua avó.
R - A minha avó.
P1 - Você se lembra quando você começou a pegar?
R - Tipo, acho que nesse período mesmo, de 10 anos. Eu tinha mais ou menos de 8 a 10 anos.
P1 - E aí você também pescava com a mão?
R - Com a mão também, hahã. Ela que me ensinou mesmo.
P1 - E como que é a sensação de conseguir pescar com a mão?
R - É boa. É muito boa. Pelo menos a gente vai saber que a gente vai botar algo para suprir as nossas necessidades. Que a gente está ali no momento precisando do alimento. E era muito boa. A minha avó praticamente me ensinou essas coisas. Tipo, roça também, foi ela que me ensinou a plantar, a zelar pela roça. Tudo eu aprendi com a minha avó.
P1 - Você era próxima dela?
R - Bastante. Bastante mesmo.
P1 - O que você gostava de fazer com ela, além disso?
R - Na verdade, topo assim, a gente ia, naquele tempo, o povo, “Vambora!” A gente não gostava muito, a gente queria ficar nas brincadeiras. Mas foi bom também, porque me ensinou, eu aprendi, passei para os meus filhos. Porque eu também trabalho na agricultura familiar. Então, o que eu aprendi eu passei para eles. E espero que eles passem para os filhos deles também, porque senão, com o passar do tempo, a gente vai perdendo. E aí, vamos deixar espaço só pro agro, que não é isso que a gente quer. Então, é muito bom a gente aprender e principalmente a gente botar em prática o que a gente aprendeu lá dos nossos antepassados. Que eles aprenderam com os deles e a gente aprendeu já com eles. E aí, a gente vai tentando colocar para a frente. Apesar que hoje em dia tá assim, tão complicado. A gente está vendo que está pouco, está tudo ficando escasso. A pesca está ficando escassa, os territórios, as comunidades tradicionais, os quilombos, os indígenas, tudo estão perdendo os seus territórios.
Então, está ficando mais difícil. Então, eu acho assim, que a gente tem que lutar mesmo, e é bastante agora, pra ver se futuramente os filhos da gente, ou os nossos netos, ainda tem um pouco daquela essência lá do começo, quando começou a nossa família.
P1 - E quais são esses conhecimentos que você recebeu de geração e também está passando para a sua?
R - É isso, de aprender a pescar. A pesca que eu falo, a artesanal mesmo, não essas outras que eles já ensinam hoje. A artesanal, que foi a que eu aprendi com a minha avó. O meu pai passou para os meus irmãos. Entendeu? Porque ele era mais de levar os meninos, ele não levava a gente não, pra pesca, não. Eu só ia mesmo com a minha avó. Era eu, a minha... Já a minha irmã caçula, ela não aprendeu muito, não. Mas as minhas outras, sim. Então, aí a gente aprendeu com vovó. Então, é isso. Tipo, o meu filho... Eu tenho dois filhos. Tenho dois casais, tenho dois meninos e duas meninas. Um dos meus filhos, ele já aprendeu também com o meu pai, e ele gosta. Então, é tipo assim. Aí, tipo, não vai perdendo aquela essência de lá, do comecinho, do que o meu pai aprendeu, aí foi passando para os meus irmãos. Eu acho muito bom, muito válido, a gente não deixar se perder.
P1 - Shiley, você tem esse conhecimento assim, de saber pelo tempo, pelo vento, quando vai vir a chuva? Qual é o melhor momento de pescar? Qual é o melhor momento de plantar?
R - Eu vou mais no plantio. Tudo tem seu período, sim. Tipo, eu faço canteiros aqui mesmo na minha casa, na minha residência ali. Então, do ano passado pra cá, asim, mudou. As mudanças climáticas que o povo fala, estão aí. Então, eu não consegui fazer os meus canteiros, produzir. Não consegui. Porque eu não sou de usar muito negócio de adubo, essas coisas. Só mesmo pego folha, essas coisas, pra gente está plantando. No caso, o que eles chamam de orgânico. Então, eu não consegui. Acho que por causa das mudanças mesmo. A quentura. Então, eu não consegui plantar. Há uma mudança, assim, que só Deus para explicar mesmo. A gente tá vendo mesmo que está tudo mudado. Já esse ano, teve bastante chuva. Mas, porém, chuva demais, também atrapalha. Não tem como a gente plantar. Principalmente os canteiros. Porque não pode ser nem de mais nem de menos. Tem que tudo ali está harmonizado, uma coisa com a outra. Então, eu não consegui. Tá bem? Agora em pescaria, tudo tem seu tempo. Eu não sei te dizer bem, assim, que está com um tempinho que eu não vou mais assim pescar, porque eu tenho muitas tarefas. Eu ultimamente, já está com mais de 5 anos, que eu estou na presidência da União daqui, da comunidade, então eu tenho que sair muito. Então, eu não tenho mais tempo pra estar no rio pescando, entendeu? Aí, vem muita demanda. É uma coisa pra cá, tem que fazer uma viagem, fazer… Aí, não tem como eu estar... Aí, eu vou de vez em quando. Aqui mesmo, próximo, só.
P2 - Fala um pouquinho pra gente daqueles cursos que você faz, que você vai viajar nas comunidades. O que eles passam nesses cursos?
R - A gente tá... É formação política, tá fazendo esse curso. E aí, são de dois em dois meses, que a gente participa dessa formação política. É mostrando mesmo as vivências. A gente fala com essas comunidades que são impactadas pela ferrovia e também pelo campo. Porque como eu estava falando, a maior parte dos territórios, as pessoas estão perdendo seus territórios para o agro, o agronegócio. Tem comunidade que a gente vai assim que... Meu Deus! Foi em junho, a gente foi uma, em Açailândia, e aí, praticamente, as pessoas perderam seu território todinho para o agro. E é triste, porque não só as pessoas, como os animais. Não falo doméstico, falo animais mesmo silvestres. Estão perdendo seus territórios. Tipo, é uma pontinha de mato, se você ver, é mais fino do que isso aí, essa ponta de mato, esse matinho que está bem ai. Os animais ficam, e é triste, é doído. A Mãe Terra está chorando muito por causa disso. E é por isso que a gente está vendo tantas tragédias acontecendo. Uns lugares chovendo demais, outros secos demais. E é por causa disso. Porque não só a gente sofre os impactos, como os seres que não têm nada a ver com as coisas, estão sofrendo demais. E eu fiquei assim, bem... É assim, a gente fica bem… Como é que se diz? Comovida com as histórias. E é todo tipo de bicho, é cobra, macaco, é tudo, tudo, tudo. E não é diferente aqui não, a gente ainda não perdeu totalmente o nosso território, mas a gente já vê que os bichos… Tipo, eles estão destruindo, desmatando, e cada vez mais eles estão chegando mais próximo das casas, entendeu? E aí, do jeito que a gente tá vendo, a gente vai acabar que vai ficar, tipo, que nem Açailândia, e outros territórios que estão do mesmo jeito. Porque a gente, quando vem aqui… Eu não sei se vocês vieram por aqui, pelo Itaqui. O tanto de mangue que eles já derrubaram, destruindo. E assim, a gente vai pra cá, vai pra cá, do mesmo jeito. E aqui, quando tem fruta assim, ó, fica cheio de macaco, vê tanto do macaco.
P1 - E aí?
R – E o jeito ficar, porque eles também estão perdendo o território deles, o espaço deles está ficando pequeno, minúsculo. Então, eles têm que vir pra onde está… Tentar se abrigar.
P2 - Esse curso é uma iniciativa do governo?
R - Não, é a “Justiça nos trilhos” com o pessoal do GEDMMA, aqui da faculdade. Não é do governo, não.
P2 - E como você chegou nesse curso?
R - Eu participo de uns movimentos que, tipo, eu comecei a participar através da Dona Máxima, que morava aqui. Hoje também não está mais com a gente, ela faleceu, já vai fazer dois anos. Então, ela sempre participava desses movimentos. E aí, eu comecei a ir com ela. E aí, até hoje, já está com mais ou menos uns sete anos. E aí, quando foi esse ano, o meu filho fez esse curso. E aí, ele estava me falando, “ó mãe, é bom…” Porque eu sempre…. Também. Só que eu não tinha feito. Aí, eu participo na feira. Que a gente tem uma feira na UFMA, que é da Resex Tauá – Mirim. E aí, eles fizeram uma oficina. E eu faço comida para vender na feira, daqui das coisas que a gente tem. E aí, eu fui! Aí, eu vi lá. Aí, eles me chamaram pra fazer o almoço pra eles, para a oficina. Aí, eu fui. Eu gostei! Eu digo: me interessei. Eu digo: ah, quando tiver uma vaga aí eu quero participar. Ele: não, vai abrir outra turma no outro ano. Que no caso foi ano passado. Aí, eu comecei, já está no quinto. A gente participou agora do quinto.
P1 - E que comidas você faz para vender na feira?
R - Eu? Comidas típicas.
P1 - Quais são?
R - A galinha caipira, torta de camarão, torta de sururu, peixe frito, feijão com verdura. Assim, varia...
P1 - E com quem você aprendeu a cozinhar?
R - Com a minha vó, que ela era boa de cozinha. E também com as pessoas que eu morei, eu ia aprendendo. E eu gosto muito de pesquisar. E aí, eu vou botando os meus dotes. O pessoal gosta bastante da comida. Que a gente tem um grupo, “Dama da Roça”. Aí, a gente leva essas comidas. Quando chega lá… “Qual é o grupo?” E Dama da Roça. Quando eu chego lá, a fila já tá enorme. Faz fila.
P1 - E vocês são as que fazem as comidas?
R - Eu e a minha irmã. Aí, às vezes, quando a minha irmã não pode, aí tenho que chamar outras pessoas pra me ajudar. Mas eu faço a comida.
P1 - E você pode contar pra gente qual que é a história, e a história de luta inclusive, da Resex Tauá-Mirim?
R - Da Resex, já está com mais de 20 anos essa luta pela preservação. Decretação da Resex. Há mais de 20 anos, acho que 21 ou 22. Eu não acompanhei do comecinho, porque nesse período eu passei um período for a. Então, quando eu vim, já encontrei. Mas a gente tá aí com... Teve um lançamento da campanha, inclusive, fechou ontem, com o pedido, aquelas assinaturas. A gente já estava com 63 e uns quebrados, de assinaturas, já. Que é pra gente fazer… Tipo, vão fazer um histórico, pra levar pra COP que vai ter.
Então, a gente vai lá pra ver sensibiliza as pessoas. Pra ver se a gente consegue o decreto da reserva. Essa reserva aqui são 12 comunidades, que fazem parte da RESEX (Reserva Extrativista Tauá Mirim). Que pega aqui, são seis daqui, da zona rural de São Luís, com mais seis das ilhas. Aí, estamos aí, querendo ver se vai dar certo. Que Deus abençoe que vai dar certo, né não? A gente precisa. A gente está precisando mesmo. Porque a gente está vendo aí, que a cada dia que passa, a gente está ficando sem os territórios, as comunidades sem direito de plantar. Ó, bem aqui, o meu pai tinha umas tres linhas de roça, atrás. Já no ponto de colheita, já. Quando um belo dia o pessoal foram, invadiram, passaram… Assim, destruíram tudo! Tudo, tudo. Aí, meu pai ficou bem triste. Bem triste mesmo. Aí, tipo assim, eu acho que isso aí agravou a situação dele, que levou… Quando pensa que não, meu pai terminou falecendo. Entendeu? A gente tinha muita, muita, muita área de plantio. Hoje, aqui, a gente não tem mais. Me lembro muito bem, quando a gente era pequeno, todo mundo que morava aqui, tinha sua roça, seu pedaço ali plantado. E hoje a gente não tem mais esses terrenos pra plantar.
P2 - E os rios que você estava contando pra gente que acabaram?
R - Praticamente o brejo, já secou. Porque o leito do rio, era cá pra cima, aí passou a BR, aí mais aqui embaixo já passou a férreo. Tudo isso vai impactando. E aí, acabou que foi assoreando o rio, foi secando, foi secando. Criou tipo uma capa assim de... Tipo uma ferrugem. E aí, foi morrendo. Porque a nascente dos rios era pra lá, entendeu? E aí, foi morrendo, morrendo, morrendo, morrendo. Aí, ó, o brejo tá todo... Ainda tem uma parte de brejo aqui e outra mais ali embaixo, só. Mas as outras partes, já morreram tudo. Tudo mesmo. Buriti, a gente tinha. Tinha juçara, o Buriti, a Bacaba. Tudo aí nesse brejo, hoje em dia não tem mais.
P1 - Você morou em São Luís?
R - Sim.
P1 - E aí, você voltou pra cá com quantos anos?
R - Eu morei uma boa parte lá. Eu já estava... Tipo, assim, eu passei um período lá em São Luís, para os estudos. Aí, depois eu voltei, retornei pra cá. Tipo na adolescência, 16, 17, tudo eu fiquei aqui. Aí, depois quando eu já fui fazer o ensino médio, eu retornei de novo pra lá. Porque era bem difícil aqui, a gente só tinha um ônibus pra atender essas comunidades tudinha aí. E era lá... E fora também o capital, que a gente não tinha. Então, a gente tinha que ir mais... Quem queria mesmo estudar tinha que ir pra fora.
P1 - E aí, você voltou pra lá e ficou mais quanto tempo lá?
R - Fiquei mais ou menos... Eu tinha 19 anos, quando eu fui. Eu voltei mais ou menos com uns 23 anos, 22, 23. Aí, fiquei fazendo uma escala entre ida e vinda, ida e vinda. Porque eu comecei a trabalhar, aí eu ia e vinha pra cá.
P1 - E você já tinha filhos nessa época?
R - Já, minha primeira filha.
P1 - Como você conheceu o pai dela?
R - Essa é uma parte que eu não gosto muito não. Não gosto nuito, não! Não gosto muito de falar, não. Vamos pular essa?
P1 – Vamos!
P2 - Mas hoje em dia você tá solteira?
R - Não, já me casei, tá o que, com 20… Dentro dos 24 anos.
P1 - Aí com outro?
R - Outra pessoa.
P1 - Outra pessoa. E você teve os seus outros filhos com essa outra pessoa?
R - Tenho dois o primeiro, mais dois do segundo.
P1 - E você se tornou mãe com quantos anos?
R - 22.
P1 – E como foi se tornar mãe?
R - Eita, uma maravilha. Apesar dos... Mas foi bom demais. Muito bom ter meus filhos, as bênçãos que Deus me deu. E ser mãe é… Sei lá, minha irmã! É uma coisa, assim, que deixa os olhos brilhando. É muito bom! Uma sensação boa.
P1 - E eles ficaram com você lá?
R - Não, no tempo que eu tive ela, eu vim pra cá, eu fiquei morando com a minha mãe. Aí, depois eu fui para trabalhar mesmo, porque eu já tinha a nenê. A primeira é uma menina, que é a mãe da bebezinha. E aí, eu ficava assim, lá e cá, lá e cá, entendeu? Ela ficava, a minha mãe tomava conta dela. E eu ia trabalhar.
P1 - E foi você que ensinou ela as tradições da comunidade? A lavoura, a pesca? Ou foram seus pais?
R - Não, foi eu. Não, porque quando eu, tipo... Ela estava com dois, três anos, aí eu já não fui mais. Eu já tinha ela e o outro. Eu tive ela com 22, com 24 eu tive o segundo. Aí, eu já fiquei direto mesmo. Eu mesma foi que ensinou eles mesmo. Só que nesse período, eu passei um tempo, 14 anos fora. Aí, eu já morava em outra cidade, mais o meu marido, que ele foi pra trabalhar, então a gente teve que ir pra lá. A gente morava, não sei se vocês conhecem, numa cidade chamada Dom Pedro. Eu morei 14 anos lá.
P2 - Quanto tempo?
R - 14.
P2 - E nesse período que você morava lá, você trabalhava em alguma coisa?
R - Na roça mesmo. A gente plantava ali tudo, da farinha, que é a mandioca, do arroz, tudo isso a gente plantava. A gente vivia era da lavoura mesmo. Pra lá não tem mangue, mar, não. É açude, que eles fazem pra lá. Mas aonde a gente morava, não tinha açude. Então, a gente vivia mesmo era da lavoura. Sobrevivia do plantio mesmo que a gente plantava.
P1 - E por que vocês voltam pra cá?
R - Porque eu queria vir por causa da minha mãe, dos meus irmãos. Eu queria vir embora mesmo. E aí, eu voltei. Está com mais de sete anos. Sete não. Já está com nove anos que eu estou de volta aqui. Assim, o vir pra cá, foi um período bem complicado, porque a minha irmã, a quarta, ela faleceu de parto. E aí, ela tinha 2 filhos, 3 com o bebê, porque o bebezinho sobreviveu, graças a Deus. Então, a minha vinda foi mais pra isso, porque os meninos dela ficaram sem... Ah, minha mãe aqui. Aí, tinha a casa, eles tinham uma casa, ela morava só eles 3, a minha irmã, mais os filhos. Não, 4, porque tinha o pai da neném. Era uma menina. Era não, é! E aí, tipo, foi assim... Aí, eu tive que vir logo pra ajudar com as crianças.
P1 - Você ajudou a criar?
R - Sim, ela mora comigo, a neném. Vai fazer 10 anos, ela. E aí, por isso a gente veio logo. Eu já estava com vontade de vir mesmo, mas não corrido. Porque foi corrido. Ela faleceu em dezembro, quando foi em março eu já tive que vir. Se eu pudesse vir logo antes, tinha que vir. Mas aí, a gente tinha um período. E aí, por isso que eu vim logo.
P1 - E nessas duas grandes mudanças de você ficar um tempo fora daqui, como foi voltar?
R - Minha irmã, foi bem desafiador, mas a gente contorna tudo. A gente tem um poder, mulher tem o poder de contornar as coisas. Então, meu marido já ficou bem mais, assim, apreensivo, por mudanças, negocio de emprego, essas coisas. Mas, eu não. Depois que eu botei na cabeça, eu vou embora… Enquanto eu não vim, eu não me sosseguei. Mas, graças a Deus, que a gente foi indo, foi indo… Tipo, ele era diarista, conseguiu uns empregos. Assim, serviço mesmo na diária. E eu já tive que ficar mais com as crianças, porque tinha a bebê. Mas bem desafiador. Mas graças a Deus, Deus deu força pra gente e hoje a gente tá aí. Ela...
P2 - Nesse momento que surgiu o Dama da Roça?
R - O Dama da Roça? O Dama da Roça era da Dona Máxima, esse grupo... Porque a pessoa que vendia a comida lá na feira, era ela. Ela que vendia, Dama da Roça. E aí, quando ela faleceu, aí ficou um período sem ninguém vender. E aí, o pessoal chamou, se eu não queria dar continuidade no trabalho dela. E eu digo: oxi, vamos! E aí, deu certo! Espero que futuramente eu coloque aí um restaurante, “Dama da Roça”, lá. Para homenagear a Dona Máxima e a gente levar à frente.
P1 - E você se tornou presidente da União?
R - Já tá com seis anos. Seis anos, porque são quatro anos, a eleição, o mandato são de quatro anos. Eu tô no segundo.
P1 - Foi reeleita?
R - Reeleita. E aí, a gente... Esse negócio de Presidente de União de Moradores é bem complicado.
P1 - Por quê?
R - Minha irmã de Deus, a gente anda demais. É reunião pra cá, reunião pra lá. Mas até que a gente, tipo, a gente vai conseguindo se adaptar, se organizar, se reorganizar, porque... E aí, é desse jeito.
P1 - E o que vocês conseguiram nesse tempo que você tá na presidencia?
R - O prédio lá onde é a União de Moradores, é um prédio bem antigo, já vai fazer 45, não, 55 anos. Ele é de 70. Da década de 70. Então, ele estava bem precário. Então, depois a gente conseguiu um recurso… Infelizmente, a gente tem que ir atrás do... Porque pelo poder público, é bem difícil a gente conseguir. Não que a gente não vá em busca, mas... É mais complicado do que pelas privadas. Então, pela empresa privada, eu consegui um recurso, onde eu dei… A gente melhorou um pouco a estrutura. Porque ela já estava bem antiga, bem...
Tipo, se não tivesse feito, ela talvez já teria caído. Porque como é bem antigo… Não é feito com as estruturas… Que hoje em dia a gente faz uma casa de alvenaria, que os materiais hoje são mais resistentes. Naquele tempo, na década de 70, que ela é de 70, era menos resistente. Então, ela estava bem precária. E aí, a gente conseguiu fazer uma melhoria. Não o que a gente esperava, mas deu pra melhorar bastante. Eu acho que isso é um ponto positivo. E fora outras ações. Ee vez em quando a gente consegue umas ações.
É mais difícil, como eu tô dizendo, pelo poder do município, pela prefeitura, é bem complicado a gente conseguir. Q gente consegue ainda pelas privadas. E aí, a gente vai tentando amenizar alguma coisa aqui dentro da comunidade. Com essas ações.
P1 - Quantas famílias moram aqui?
R - São mais de 300. O último censo que a gente fez, já está com dois anos, ou três, tinha 362 famílias aqui na comunidade.
P2 - E vocês tem alguma festa tradicional aqui na comunidade?
R - Tem várias. Tem a de Santo Antônio, que é tradicional, desde quando eu nasci, já existia. Tem a de São Miguel, que foi agora, terminou agora, dia 29, São Miguel Arcanjo. Tem aqui também a do Divino, que vai começar agora, no final de novembro, para dezembro, no comecinho. Tem aqui. Dona Fátima. Aí, tem uma de Santo Expedito, não, Santo Expedito, não. Essa não era muito aqui, o pessoal, depois que veio, mudaram, e trouxeram o festejo de fora, é São Benedito. São Benedito, é!
P2 - E aí, acontecem essas festas, vocês se reúnem, a comunidade mesmo que faz tudo?
R - Sim. Eu vou confessar, eu não sou muito das festas, não. Sou mais reservada. Eu gosto muito, assim, da parte religiosa, eu já sou mais presente. Apesar de ter. Mas tem umas misturadas, aí eu não me envolvo muito. Mas são bons, festejos bons. Da Dona Fátima aqui, mesmo que eu não quisesse, eu estou praticamente dentro do festejo.
P1 - Por quê?
R - Porque é bem aqui, próximo. Aí, a gente… Mesmo sem querer, a gente dança. Entendeu?
P1 - E o forró, você dança?
R – Forró, eu gosto de forró. O forró era o meu forte. Agora menos, mas eu gosto ainda do forró. Não pra estar nas festas. Não sei porque, mas eu amava um forrozinho, dia de sexta-feira, minha irmã, eu passava até de madrugada no forró.
P2 - Quando era mais jovem. Tinha forró aqui?
R - Não, aqui não. Lá em São Luís. Eu ia pra escola e já ficava lá no forró.
P1 - E você já pescou com anzol?
R - Sim.
P1 - Você também sabe?
R – Sei. Na água salgada, sei também. Mas mais na água doce. Aqui também, onde a gente morava também. Porque lá como era açude, açude aí... E aqui a gente tinha rio, a gente pescava na... Tem esses peixes mais... Tipo, a traíra... A gente chama corró, não sei se é. Esses peixinhos assim mais....
P1 - Qual que você gosta mais?
R – De peixe da água salgada.
P1 - Da água salgada?
R - Porque a gente foi criado mais com o da água salgada. E aí a gente... Mas não que eu não coma do outro, que eu como também. Se tiver, pode me dar que eu como, tem disso não. Porque tem gente que não come não. Prefere, “não, eu só como da água salgada.” Eu como dos dois, tudo não é peixe? Mas o da água salgada é mais saboroso.
P1 - E a pesca muda? Dependendo da água que você vai pescar?
R – Tem uma mudancinha.
P1 - Qual que é?
R – Mas não tanto. Porque, tipo assim, a água do rio, ela já é mais, um pouquinho mais escura, do que a água… Se bem que o da gente aqui, agora é um pouco escuro, por causa da lama. Aí, aqui, na costa aqui, já fica mais escura, a água. Mais do que lá pra fora. Mas eu não vejo tanta diferença, não. Mesma coisa.
P1 - E como é limpar o peixe? Você também faz tudo?
R – Claro.
P1 - Chega o peixe, já limpa, cozinha e come.
R - Sim. E como. Boto um salzinho, né não? Eu costumo fazer isso, eu limpo, coloco um pouquinho ali, um salzinho, deixo pegar um pouquinho lá, enquanto eu vou cortar o tempero e tudo. Aí, depois eu já venho, já lavo ele ali, aí já boto limãozinho pra poder pegar um salzinho. Porque se a gente botar do jeito que está lá, ele fica muito bacaninha não. Se não tiver o salzinho no ponto.
P1 - E você, como foi se tornar avó?
R - Eita, meu Deus! É mãe duas vezes, que o povo diz. É uma sensação muito boa. Muito boa! Veio o Arthur primeiro. O Arthur é do meu terceiro filho. E a Aurora é da minha primeira. Foi sensação assim... O dele porque eu, tipo assim... Ela, eu fui com ela, quando foi ganhar. Aí, tipo, a gente passa um perrengue, que a gente vê o filho da gente ali meio que sofrendo de dor, tudo. Mas quando nasce, meu Deus do céu! O olhinho dela, chegava brilhava, minha irmã! E imagine eu! Ficar ali toda boba, vendo a filha e a neta. Uma sensação ótima! Maravilhosa! E o Arturzinho, eu não fui. Mas quando vi, eita! É o primeiro... Ainda mais quando chama: ei, vovó? Oh, meu Deus! Muito boa! Duas sensações… Acho que é tipo assim, quando a gente vê o filho da gente também, é um amor que a gente não sabe nem explicar o tamanho que é.
P1 - E os quatro moram aqui?
R - Todos quatro. Todos quatro moram perto. O do Arthur ainda mora comigo, mora assim, porque eles moravam numa casa alugada, mas aí, o dono pediu. Aí, eles tornaram voltar ali pra morar comigo. A minha menina, ela tá aqui, mas ela tem a casa dela bem ali, do outro lado aqui, ela mora lá. Que eles estão terminando de construir, era só dois cômodos, aí fizeram mais. Aí, por isso que ela tá… por causa da poeira, ela está aqui com a minha mãe. A minha mãe mora só ela e meu irmão. Aí, eu digo: não, menina, tu fica com a tua avó. Por causa da nenê. Aí, já o outro, meio que casou também, vejo de vez em quando. E tem a minha caçula que ainda mora comigo, tem 15 anos. E minha sobrinha que mora comigo também, vai fazer 10 anos. Que era da minha irmã.
P1 - E você falou que na história aqui da comunidade tinha uma aldeia indígena, você sabe essa história?
R – Não, eu nunca vi ninguém, tipo, falar… Mas eu creio, que é tipo, assim, uma aldeia que não pertence a esse mundo. É tipo encantado, entendeu? Das encantarias mesmo. Por isso que eu disse que não é todo mundo que vê. Além de mim, tem outras pessoas que vê, mas não todo mundo consegue ver, entendeu? Enxergar essa aldeia. Eu creio que mais das encantarias mesmo. Por isso que eu digo, eu sou casada nas águas, mas o marido não é de cá. Entendeu?
P1 - E como foi o Covid aqui?
R - Eita, período complicado, hein! Ninguém podia sair, ninguém podia visitar ninguém. Assim, tipo, não digo que não teve, porque teve. Muita gente pegou o Covid. Mas, porém, eu acho que a gente morar em comunidade, tipo mais afastada, mais cheia de verde, livre, assim, a gente não teve aquele, tipo assim, ninguém faleceu graças a Deus, entendeu? Da comunidade. Então, não foi uma... Que nem em vários estados. Aqui mesmo em São Luís, que teve várias pessoas que faleceram. Perderam... Muita gente morreu no período da Covid. Mas que teve algumas pessoas que sim, que pegaram a Covid. Eu acho que, inclusive eu, peguei. A minha mãe. Mas aí não teve aquele surto, assim, de dizer assim, várias pessoas da comunidade faleceram, chegaram a falecer. Não, não. Teve, não.
P1 - E quais são os seus sonhos?
R – Rapaz, acho que o meu maior sonho é ver meus filhos felizes. Meus netos.
Tipo, eu acho que, tipo assim, um sonho que eu tenho, é esse, da... De construir uma cozinha mesmo pra mim fazer minha comida, pra mim estar… O pessoal comendo, saboreando a comida aqui da região. Eu tenho esse sonho.
Mas em termos assim, eu acho que é ver meus filhos mesmo com seus sucessos, cada qual com a sua vida… Como é que se diz? Com os seus sonhos. Os sonhos não meu, o deles realizados. É isso que eu quero. Pra
quando chegar lá na minha velhice, morrer tranquila. Porque eu tinha muito medo… Principalmente quando eu morava lá na outra cidade, de eu chegar a falecer e deixar os meus filhos pequenos. Eu tinha muito, muito, muito medo. Porque era um território que não era meu, a gente estava lá... Então, era só eu, meus filhos e meu marido. Eu tinha muito, muito medo. Meu Deus do Céu, se eu… Tipo assim, porque eu sou uma mulher que eu… Se eu tenho um problema, eu tento resolver dali da maior forma possível. Já o meu marido, ele não é muito assim. Meu maior medo era de eu ir embora e ele ficar com os meninos lá. Porque ele não ia saber… Assim, levar a vida. Ou então, como vinha pra cá. Entendeu? Eu tinha muito medo disso. Hoje em dia, não! Que tipo assim, já está quase todo mundo engatinhando, cuidando, tomando conta das suas vidas mesmo. Então, aí eu já fico mais tranquila. Mas quero que cada um já fique... Tenha a sua vida ali já resolvida. Dos meus filhos.
P1 - E tem mais alguma coisa que você gostaria de contar que a gente não te perguntou? Ou desses cursos, dos movimentos aqui na comunidade, ou da sua vida pessoal, ou lá em São Luís, ou na outra comunidade?
R - Da outra comunidade, só lembranças, eu tenho muitas lembranças de lá. Tipo, foi um território onde me abrigou, meus filhos. O povo de lá me acolheram bem. Então, a gente tem lembranças, aquele sentimento bom. E assim, que um dia a gente revê as pessoas de lá, do local onde a gente morou. Terra boa! Tipo, a terra de lá é maravilhosa pra plantar, meu Deus do céu, tudo que se plantava lá, dava. Uma terra boa demais, demais mesmo. E daqui, onde eu moro, Rio dos Cachorros, onde eu nasci, onde eu me criei, tenho lembrança da infância, não da minha infância em si, mas do que eu via na infância, que hoje a gente não vê mais, que era fartura, muita água, muita... muito brejo. Passava o dia… “Hoje a gente vai tomar juçara.” Porque tinha muita. Minha mãe, bem aí… Aí, a gente passava o dia todinho tomando juçara. Aí, só dizia: vocês não vão comer essas… Tipo, caju, porque o Caju dá certinho ali com a juçara, mesmo período. E aí, mamãe: não pode comer, que faz mal, vocês vão morrer. Entendeu? Mas era bom demais. A gente tomava banho e comia juçara o dia todinho. Isso eu tenho assim, lembrança e fico triste, porque os meus filhos já não chegaram com essa fartura, que a gente tinha muita fartura. Fartura demais! O dia do pescado também. Hoje em dia está mais escasso, para tipo, um pai de família que pesca, passa, tipo, uma semana... Antigamente o pessoal ia pescar, passava três, quatro dias, quando chegava... Chegava com fartura, que eu me lembro do meu pai, do meu avô, que era o pai da minha mãe. Era fartura mesmo. Botava, assim, umas mensas, assim, jogava o peixe ali. Peixe de tudo quanto era jeito, de tudo quanto era tamanho. Então, eu ainda tenho isso na minha memória. E eu era pequena, eu me lembro muito bem. E essa fartura era grande, da gente comia, passava semanas, e dava para os vizinhos. Entendeu? E hoje em dia a gente não tem. Eu vejo, que tem gente que vai, passa dois, três dias, só traz o de comer hoje, entendeu? Então, essas lembranças, assim, eu tenho. O tempo da fartura. Pra mim é isso mesmo, o tempo da fartura. Que a gente era farto, farto de tudo. E hoje tá bem escasso.
P1 - Não podia comer caju?
R - É, a minha mãe diz que não, que não podia comer. Porque ia fazer, ia morrer. Que a gente ia morrer.
P2 - Mas podia não comer o caju, ou o caju junto com a juçara?
R - Tipo, quando a gente comeu a juçara, não podia comer mais nada, a não ser a juçara. Era bom que era fartura, a gente tomava juçara o dia todinho. Mas não podia comer uma manga, não podia comer o caju, não podia comer nada, era só a juçara. Porque fazia mal. E hoje em dia a gente vê que é o contrário, todo mundo come tudo, minha irmã! Come de banana, de laranja, bota tudo no açaí, que o povo diz. Digo: olha, como é que a gente não comia, e agora come? Agora pode.
P1 - E você falou que seu pai, seu avô, ficava um tempo pescando… Uns quatro dias e voltavam cheio de peixe.
R - Sim.
P1 - Eles contavam histórias dessas pescas?
R - O meu avô muito, não. Mas o meu pai... Ave, o meu pai gostava de inventar as histórias. Papai inventava.
P1 - O que ele contava?
R - O papai chegava e inventava, disse que na Ilha dos Caranguejos. Tem uma ilha aí, Clovis sabe onde é. Disse que lá tinha um caranguejo que era maior que essa casa. “Isso não é verdade, pai.” “Menina, é! Eu vi, eu estava assim e assim, e vi, é um caranguejo.” Tem uma história de um tal de Pioco lá, que ele contava também. Tudo pra lá, essa Ilhas dos Caranguejo pra lá.
P1 - O que é o Pioco?
R - Se não me engano, diz que é um macacão. Um macaco bem grandão, que tem só um olho assim na testa. Isso é as arrumações do meu pai. Ele que contava, eu não sei bem, não.
P1 - E vocês tinham medo? Como que era? Ou vocês não acreditavam?
R - Eu meio que não acreditava, não. Mas eu já vi outras pessoas contando. Sobre o caranguejo, não. Mas sobre esse macaco bem grande que tinha lá, ele disse que é maior que um homem e tinha só um olho. Esse eu já vi outras pessoas contando. Então, eu creio que é uma lenda pra lá. Mas do caranguejo, não. Eu nunca vi, só o meu pai.
P1 - Ele era contador…
R – Inventava. Gente boa.
P1 - E tinha diferença pra você pescar com o seu pai, pescar com a sua mãe, pescar com a sua avó?
R - Com a minha mãe, nunca fui, assim. A minha mãe era mais caseira, não era muito de... não. Mas a minha avó, sim.
P1 - Você preferia com ela?
R – Hurum! O meu pai, eu só ia mais era tirar o caranguejo. No período, que tem um período, aí a gente ia. Ele levava, assim, a gente pra tirar o caranguejo. No caso, os caranguejos, nesse período, eles tão mais que andando. E aí, a gente vai só juntar, porque em outros períodos ele fica mesmo enlocado. A gente já ia com ele, mas pra fazer a mariscagem, pesca mesmo, era só mais com a minha avó.
P1 - E Shiley, antes da gente encerrar, eu só queria te perguntar. Se você pudesse deixar uma mensagem pra essas novas gerações sobre a Mãe Terra, sobre esses cuidados com a natureza, o que você diria pra eles?
R - Que a gente tenha cuidado, tenha amor, que nem a gente tem por um filho, por uma mãe. Porque a Mãe Terra, ela tá aí, a gente não vê, mas ela existe e ela quer que a gente cuide do planeta. Então, é mais justo, que ela dá e a gente tem que cuidar. Porque é muito bom a gente ter um pé de manga na nossa porta, um pé de juçara, e a gente não saber nem como foi que nasceu, que plantou, mas que está ali e todos os anos eles estão nos dando aquela fruta. Porque a gente não molha. O mais que a gente não vai deixar é ficar sujo. Mas como é que tem ali? E a gente tem. Então, é mais justo a gente cuidar. Se a gente, todo mundo, preservasse um pouquinho. Mas a gente tem. Então, que a gente tenha esse cuidado, esse olhar especial com tudo ao nosso redor. Com a natureza, com os rios. Que a gente sabe que a gente não vai tirar essas grandes empresas que estão ao nosso redor, mas que eles tenham um olhar também carinhoso, de amor, pela natureza. Pra tipo, assim, diminuir esses impactos. Porque cada dia que passa está acabando com o nosso meio ambiente. A gente tem muita poluição, a gente sabe disso. Então, vamos diminuir mais a poluição.
Vamos trabalhar, vamos crescer, mas com... Como é que se diz? Com responsabilidade com o meio ambiente, com a Mãe Natureza, com os nossos rios. Que futuramente, daqui uns 10, 20 anos, a gente não perca mais do que a gente já perdeu. Eu acho que é isso. Porque se não for assim, como é que a minha neta vai daqui a 10 anos, ela vai ver o que eu vi? Ou a gente pegar o peixe ali no rio? Se a gente não cuidar, não vai ter. Porque do jeito que tá vindo aí esse crescimento absurdo em relação às empresas, que eu digo. Se a gente não cuidar, se a gente não lutar mesmo, daqui à um tempo a gente não vai ver mais mangue. A gente não vai ter o caranguejo, a gente não vai ter o sururu. Se os peixes, um tempo desses, a gente não... Tem várias espécies de peixe, aqui do rio, que a gente não vê mais. Então, se a gente não cuidar, daqui um tempo não tem mais. E aí, como é que a gente vai, esse pessoal da comunidade vai sobreviver? Tem muita gente que mora na comunidade, que trabalha nas empresas, fora né? Mas, tipo, do tempo da minha mãe, do meu pai, esse pessoal. Eles não trabalham mais nisso. Como é que vai trabalhar? Ou também até do meu tempo mesmo, que passou, viveu da pesca, vive da cultura ali do plantio. Como é que eu vou trabalhar numa empresa dessa? Eu não tenho um curso. Não tô falando que tem gente... Tem gente que tem. Mas eu não tenho. Eu não tenho um curso pra mexer numa máquina ou algo assim. Aí, como é que eu vou viver daqui um tempo? Se eu não vou ter um espaço pra plantar minha mandioca, o meu milho, o meu feijão. Ou se eu não vou ter o braço do rio pra me dar o camarão, o sururu, o caranguejo, o peixe. Como é que eu vou sobreviver? Então, é isso que eu acho que a gente... Não só eu como moradora de comunidade tradicional, mas essas grandes empresas que vêm se instalando deveriam ter uma responsabilidade. Fazer umas coisas que não impactassem tanto ao seu redor. Que é isso que a gente tá vendo. Se não, quando pensar que não, a gente não vai ter as maravilhas que a gente tinha. Que eu já digo que a gente não tem mais. Lá quando eu tinha 5 anos, 10 anos, hoje a gente não tem. Imagina daqui a 20 anos, como é que a gente vai ficar? Do jeito que tá, se a gente continuar, se a gente vai estar aqui nesse local. Porque corre o risco de a gente não poder mais ficar, entendeu? Porque as grandes empresas estão só chegando, só chegando. É isso, gente.
P1 - Como foi para você dividir, lembrar um pouco dessas histórias e dividir aqui com a gente?
R - Muito bom, né? Espero que tenha dado certo.
P1 - Claro.
R - Porque tipo, o nervoso ainda não passou não.
P1 - Não passou?
R – Nã! Eu tô aqui, mas eu estou nervosa. Fico mexendo a perna. E foi muito bom a conversa com vocês. Pra mim é uma conversa mesmo. Muito bom!
P1 - Obrigada pelos ensinamentos.
R - Eu que agradeço vocês. Vocês vieram de longe pra ouvir um pouquinho. Mas está aí. Espero que tenha dado certo.
P2 - Muito obrigada.
R – De nada!
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