P/1 – Bom, seu João, primeiramente gostaria que o senhor me dissesse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento
R – Meu nome é João Bosco. Eu não tenho sobrenome, portanto, tem uma história que justifica isso. Eu nasci no dia dois de setembro de 1943, entretanto, na certidão de nascimento tá dois de novembro de 1943. Eu nasci na cidade de São José de Piranhas, no estado da Paraíba, área rural
P/1 – E o senhor diz que tem um porquê de não ter sobrenome, o senhor pode dizer?
R – É, rapaz! Quando eu fui registrado a primeira vez, meu pai colocou, era João Bosco Coelho meu nome, até por conta dele, era Izito Coelho de Souza. Mas quando ele faleceu, a gente é de família muito pobre, quando ele faleceu um primo dele chegou e perguntou pra minha mãe, disse: “Nanzinha, você é casada, a gente vai fazer um documento pedindo ao Governo do Estado e cabe uma indenização a ele”, porque meu pai sofreu um acidente quando ia pro trabalho lá no DER, lá no Estado da Paraíba. Ela disse: “Ahhhh Raimundo, mas eu não sou casada”, casada no civil, no oficial, eram casados apenas na igreja. Aí ele falou: “Nós vamos ter que dar um jeito nisso aí”. O meu pai era um homem muito inteligente e até por isso, era muito trambiqueiro. Raimundo pintava e bordava. Neste caso ele foi muito positivo porque trouxe alguma vantagem pra gente, embora fosse justo, digamos, era justo, porque afinal de contas meu pai morreu quando ia trabalhar. Entra dentro do conceito de acidente de trabalho também, é trajeto. Bem, aí o que ele fez? Ele alterou o livro de certidão de nascimento lá da cidade. Ele era o dono do cartório, alterou o livro e fez esse trabalho, ele e uma irmã minha, fizeram esse trabalho à noite, foi tudo muito apressado, até para ganhar tempo pra não deixar passar, perder os prazos, etc. Aí ele registrou todos nós, nós éramos 11. Ele registrou todos nós novamente, e aí teve uns que ele passou por cima do sobrenome. Meu nome é João Bosco, eu posso até justificar porque João Bosco, e a minha irmã Maria do Carmo ficou só Maria do Carmo, então foi por isso que eu perdi o sobrenome. E felizmente, no caso lá do documento deu certo, minha mãe recebeu um valorzinho muito pequeno, mas ajudou, pagou algumas dívidas que meu pai tinha, que ela tinha, como eu disse, gente pobre, mas essa é a justificativa de eu ter só João Bosco. E por que João Bosco? “De onde vem a origem do nome? É da família Bosco? É da Itália?” Não, não tem nada disso. É que minha mãe era devota de São João Bosco e dois dias antes de eu nascer ela sofre uma queda e caiu por cima da barriga, e ela ficou com medo que eu pudesse ter sido afetado com a queda. Aí fez a promessa, pessoa muito crédula, muito crente, fez a promessa com São João Bosco, que se essa criança nascesse viva, se fosse homem seria João Bosco, se fosse mulher seria Joana Bosca. Que lá na minha região tem Joana Bosca, conheci umas. E João Bosco então, tem pra chuchu, muitos. Então daí, nasci vivo, estou aqui! Embora minha mãe diz que eu tinha marca nos cotovelos, no braço, mas nasci vivo sem nenhum problema
P/1 – E qual o nome do seu pai e da sua mãe?
R – Izidro Coelho de Souza e minha mãe, Leandra Tavares da Silva
P/1 – E o senhor pode falar um pouquinho deles pra gente?
R – Ah, posso, posso. Eu tenho um orgulho muito grande dos meus pais. Muito grande mesmo. E o principal orgulho que eu tenho é da herança que eles deixaram, deixaram pra mim e pros meus irmãos uma grande herança, que é a honestidade. Não quero dizer que, não estou falando de mim, estou falando deles. Mas o meu pai era uma pessoa pobre, mas extremamente honesto. Foi um homem que trabalhou muito, trabalhou a vida inteira, tinha uma dedicação enorme para os pais, cuidou dos pais dele, o vô Jesuíno e a mãe Ritinha, cuidou desse pessoal até o último momento de vida. Ele dedicava-se muito, até, de certa forma, ele largava um pouco a família pra cuidar dos pais dele. E era justo, minha mãe compreendia, mas ele se dedicou muito e felizmente meus irmãos têm esse mesmo comportamento. Foi um homem que morreu muito cedo ainda, ele foi autodidata, ele escrevia, sabia escrever, sabia se comunicar, mas nunca foi pra escola, foi um autodidata, repito. E morreu muito cedo, morreu com 54 anos, em 1957, deixou os filhos ainda muito jovens. E foi uma pessoa que deixou uma relação de amizade muito boa, era muito respeitado. Ele era barbeiro de profissão. Ué, se ele era barbeiro por que foi trabalhar no DER? Era barbeiro nos finais de semana, na segunda-feira que era feira lá na minha cidade. Mas ele foi trabalhar no DER, ele apontava caminhões basculantes que traziam terra, faziam algum trabalho burocrático porque ele sabia ler, apenas por isso. Porque não era comum lá as pessoas saberem ler na época. Então foi uma pessoa excepcional, muitos irmãos também. A minha mãe. Minha mãe tinha o apelido de Nanzinha, Leandra Tavares, mas era Nanzinha, pouca gente sabe que minha mãe tinha esse nome. E ela foi uma mulher muito batalhadora. Minha mãe era negra, meu pai era branco, já teve que batalhar pelo preconceito que os outros tinham, que a família do meu pai tinha porque ela era negra, negra assim, dentro das características negras, embora fosse bem morena não era, como nós falamos, negro retinto. Mas era negra, vai, as características de negra. E ela já teve que superar, quer dizer, ganhar argumentos do espírito pra poder suportar aquele preconceito do meu pai ser casado com uma negra. Teve muitos filhos, minha mãe era como se costuma dizer, era muito parideira, nossa senhora! Era todo ano, todo ano, né? Minha mãe teve 13 filhos, dois não sobreviveram e teve dois abortos, então sobreviveram 11. Infelizmente dois já viajaram nessas alturas. Aliás, os dois melhores. É incrível isso, mas foram os dois melhores, a minha irmã Rita, morreu solteira ainda, bastante jovem, uma pessoa muito dedicada, era modista de primeira linha, e o meu irmão José que morreu muito cedo também, que era uma pessoa excepcional. Deixou dois filhos, ainda bem que os filhos continuam com a mesma personalidade dele, o mesmo caráter, também trabalhadores, mas não creio que sejam tão bons quanto foi o meu irmão (risos). São ótimos eles, mas José era o exemplo pra gente. Exemplo de família, de dedicação, brincalhão. Mas essa foi minha mãe que morreu com 82 anos, então viveu bastante
P/1 – E como é o João nessa escadinha de irmãos? É o mais velho?
R – Rapaz, olha. Tem a minha irmã Luzelira, Maria, Antonio, Mercedes, eu sou o quinto. Neste meio teve uma outra menina que foi daquelas que também não sobreviveu, morreu cedo, que era Fátima
P/1 – E como é que era na sua infância uma casa cheia de irmãos?
R – Pois é, Lucas. A minha história tem algumas quedas, algumas quebras, na rotina normal das pessoas. Eu tinha dois anos e meio, aí eu saí da minha casa e fui morar com meu padrinho. E a razão principal, alguns lá falam: “Você tava com fome, então foi pra casa do seu padrinho?”, que ele era bem de vida, era rico. Não foi. Na gravidez do meu irmão José, a minha mãe adquiriu uma doenças nos nervos e ela sofria muito, então, chegou o momento que ela teve que ir pro hospital. Isso foi em março de 46 e ela foi pro hospital. Eu nasci e até essa data eu vivia à margem de um rio, esse rio era periódico na verdade, que por sinal é onde vai passar uns dos braços da transposição do rio São Francisco agora, a 200, 300 metros de onde eu nasci. E a água do açude de Engenheiro Ávidos, de Boqueirão, subia um pouco, fazia represa até ali. Então, para passar pra casa do meu avô, o pai da minha mãe, era necessário passar pelo rio, ou passava de canoa, ou passava a pé. Tinha duas passagens, uma delas dava pra passar a pé, a água vinha na coxa, acima do joelho, dava pra passar. Mas a outra não, a outra (sem som de 0:10:53 a 0:10:59) ... passar uma vez pra casa do meu avô. Eu não era uma criança muito dócil, era muito agitado, então ela ficou com medo que eu fosse pra casa do meu avô, aí as meninas, minhas irmãs, não tivessem o devido cuidado, eu me desprendesse delas e fosse pro rio e pudesse me afogar. Então fui pra casa do meu padrinho de batismo e lá fiquei durante o período que ela ficou, quase um mês que ela ficou no hospital. Muito bem. Aí meu pai foi me buscar e fui pra casa. Quando cheguei em casa, isso é a história que eles contam, eu birrei. Eu não queria comer, dei uma de esnobe, não queria comer, não dormia, chorava muito. Depois minha mãe dizia: “Também pudera, lá você tinha”, que tinha minha irmã adotiva, meu irmão adotivo, mais a minha mãe, que era minha madrinha, mais outras mulheres que estavam, primos que participavam da família também, então era muito cuidado, tomava dois, três banhos por dia com sabonete cheiroso, tudo. E lá na minha casa não tinha, minha mãe não tinha isso. Leite mesmo era escasso, era lasqueira. A gente tinha uma vaca e essa vaca dava leite suficiente para o meu irmão, meu irmão José, e dificilmente sobrava pra mim, a vaca tava já apartando, o leite era pequeno, minha mãe até dizia que eu era meio cheio de argumentos. Ela dizia: “Não João, o pingo de leite que tem é pra José”. E eu dizia: “Ah, então me dê um pingo do pingo de José” (risos). Ganhava, claro. Então, minha mãe disse pro meu pai: “Izidro, leve esse menino pra casa do padrinho dele pra ele ficar mais uns dias, aí fica 15 dias lá, 15 dias aqui, uma semana lá, uma semana aqui, pra ele desacostumando, porque desse jeito ele vai ficar doente, ele não tá se alimentando”. Bem, meu pai fez isso, combinou com meu pai adotivo, aí fui pra láe nunca mais voltei, só saí da companhia deles com 17 anos
P/1 – E como era essa infância, quais eram as brincadeiras lá na casa do seu padrinho?
R – Rapaz, as brincadeiras são brincadeiras que aqui não se vê, até porque aqui vivemos na cidade. Lá era na região rural, meu pai adotivo, Antonio Pessoa de Abreu, um homem inteligente, muito esperto, muito trabalhador, ele trabalhava nas terras do pai e nas terras do sogro. Naquela época em que eu fui pra lá, em 46, ele já tinha comprado um pedacinho de terra, um sítio chamado Terra Molhada, mas era muito pequeno, ele só ia lá cuidar. E a vida na roça lá era muito interessante. Criança não faltava porque naquela época as famílias eram muito numerosas, né? Tinha os meus primos, tinha o Chico Pessoa. Era meu primo e a gente brincava muito. Tinha João, tinha outros, tinha o outro Bosco, o Otássio e tal, então tinha muita criança pra brincar, não faltava, qualquer casa que se ia tinha criança pra brincar. E as bricandeiras comuns naquela época eram: de se esconder, e tinha onde se esconder porque aquelas casas, eram casas grandes, brincava dentro de casa, tinha sótão, então tinha muito a tal brincadeira de se esconder; jogar peão, mas tinha, quando era menorzinho tinha o cavalo de pau. O cavalo de pau é que, vez por outra a gente vê ainda o cavalo de pau, pessoal bota na cabeça de um cabo de vassoura, um cavalinho de plástico na cabeça, aqui seria o cavalo de pau. Nós fazíamos aquilo ali com carnaúba, com folha de carnaúba. E eu, muito habilidoso, era muito habilidoso, até costumo brincar com as pessoas, paraibano tem habilidade com instrumento cortante, né? Então pegava, não sei se vocês já viram a folha de carnaúba, quando ela desprende da planta tem uma parte mais larga, então a gente pegava aquela parte mais larga, dava um corte nela, dava uma ajeitada, fazia as orelhas do cavalo e ali mesmo dobrava, né? Dobrava e já botava o cabresto que era exatamente para amarrar. E esse animal aí, a gente andava, dava vida pra ele, a partir das próprias pernas. Era uma brincadeira muito boa. E eu fiz cavalos muito bons. Ou então carrinho, eu já tava maiorzinho, brincava de carrinho. Tinha um rapaz que também foi meu irmão de criação de certa forma, José Ciriaco, chamava ele de compadre Zé, então ele fazia carrinho, eu ficava, ainda hoje eu fico pensando: “Poxa, como é que a gente tinha a habilidade de fazer aquilo lá”. E não tinha ferramenta, né? Depois quando eu fiquei maiorzinho também fazia, fazia carrinhos bons, arrumados. Mas aí já tinha o serrote, já sabia fazer as próprias rodas, pegava camaru, uma planta parecida com a cerejeira, tem o cheiro da cerejeira, pegava camaru, cortava, é uma planta mole, era mais fácil de serrar e fazer as rodas dos meus caminhões. Era uma brincadeira que a gente... Fora isso era tomar banho no açude, logo cedo se aprende a nadar, né? Logo cedo se aprende a nadar, até brinco com as pessoas. Elas falam: “Po, você sabe nadar?” “Claro que eu sei nadar” “Mas lá não tem água!” “Pois é. Não se aprende a nadar em lugar que não tem água”. Então lá tinha água, e muita água porque a gente brincava de mergulhão. Mergulhão é assim, pega uma pedra e jogava, e assim, não era fácil pra quem tinha o fôlego curto, né? Então o camarada tinha que mergulhar e ficar lá no chão pegando a pedra, que aí é vitória. Todo mundo, três, quatro lá pegando a pedra, até alguém chegar e pegar nela. Então era uma atividade boa. E com isso a gente ganhava inclusive preparo físico que a gente não sabia, mas estava adquirindo preparo físico e energia
P/1 – E as lembranças da escola, seu João?
R – Primeiro eu fui pra escola quando eu comecei a acompanhar a minha irmã adotiva, a madrinha Alaíde, que ela era mocinha nova naquele tempo e eu acompanhava ela, meu pai muito ciumento com medo dela namorar no caminho, olha! A gente morava do outro lado do riacho e a escola lá do outro lado, e esta escola, de certa forma, foi uma iniciativa, a primeira escola lá do lugar foi uma iniciativa do meu pai, de Antonio Pessoa, a minha mãe era Vitalina Maria, e meu pai era uma pessoa um tanto quanto antenada, eu diria. Ele era um empreendedor, uma pessoa que não olhava pro hoje, olhava pro amanhã, e sempre valorizou o estudo, conhecimento. Ele não era um homem culto, até porque não tinha estudado muito, mas tinha estudado um pouquinho, sabia ler, sabia escrever, e valorizava por demais. Tanto é que ele contratou uma professora da cidade, professora estudada mesmo, trouxe pra casa, sustentava ela, vivia lá em casa e pagava a Albertisa pra dar aula, os dois filhos dele, mas tinham os outros que estudavam e não pagavam nada porque o pai pagava. Isso durou um certo tempo. E eu acompanhava a minha madrinha Alaísa, aí depois a Albertisa foi embora, chegou um primo do meu pai, também Antonio Pessoa, esse pessoal, essa família é da família Pessoa lá, de Umbuzeiro, João Pessoa, Epitácio, assim por diante. E eu ia acompanhar a minha irmã. Não entendia nada do que era dito lá porque era criança com três, quatro anos, mas naquela mesma escola eu já comecei a perceber o que era o falar, o que era os números que colocava lá. Tanto é que os números eu aprendi lá naquela escola, eu não era matriculado, nem nada, aprendi naquela escola. Mas assim, para o primeiro, segundo, terceiro, quatro ano aí eu estudei numa escola, era um grupo escolar que o Antonio Pessoa, excelente professor, ele tinha o ensino médio, ele não tinha graduação, ele tinha ensino médio. Mas ele tinha uma cultura muito avançada para aquela época. Naquela época era raro uma pessoa ler clássicos da literatura. Ele lia os clássicos da literatura, punha a gente pra fazer pequenos teatros, era uma coisa, ele já fazia isso. Então ele era professor, esse sim era pago pelo Estado, era professor do Estado, fez um concurso, mesmo que precariamente, fez um concurso, deu aula muitos anos e se aposentou enquanto professor. E ali eu pintei e bordei, desenhei etc e tal, eu nunca fui um garoto, um aluno de tirar dez, mas também nunca fui reprovado. Eu estudava pouco, mas minhas notas eram sempre boas. As meninas ficavam muito chateadas comigo até porque tinha determinado momento que meu professor dizia o seguinte. Eu tava no segundo ano, eu prestava atenção na aula, isso eu fazia, prestava atenção na aula, ficava observando e alguns dados que eu considerava importantes eu guardava na memória, ainda hoje tenho alguns. E tem uma pergunta que o segundo ano não sabia, aí eu não respondia, eu ficava na moita. Aí ia pro terceiro feminino, terceiro masculino, quarto feminino, quarto masculino. Quem sabe? Ah, lá vai o Paraíba lá e eu respondia. E as meninas mais velhas do que eu ficavam safadas da vida comigo, mas eu tinha essa característica de aprender e guardar na memória, minha memória sempre foi muito boa. Mas eu estudei ali, eu fiz esse quarto ano umas três vezes porque era o que tinha pra estudar, mas eu não era um aluno excepcional. Eu era colaborativo, muito colaborativo, esses três anos que eu fiz o quarto ano ajudava bastante na escola, é natural porque os outros não sabiam, então eu já sabia, ensinava, pegava a lição. Era uma escola mista, ia do primeiro ao quarto ano, todo mundo junto. Separava apenas os meninos e as meninas não podiam sentar na mesma carteira, em cada carteira eram duas pessoas, né? Eram 36. Eram 18 carteiras, portanto 36 alunos, nem sempre enchia. No começo do ano enchia, sobrava, às vezes, precisava trazer algumas cadeirinhas de fora, mas à medida que o tempo ia passando, as pessoas iam se afastando e diminuía, era sempre 20, 20 e poucos. De 20 era difícil diminuir, mas era espaço pra 36 alunos. E eu participei disso muito bem na Escola Real Mista Riacho do Meio
P/1 – E um pouquinho mais velho, o senhor disse que saiu de casa aos 17 anos, é isso?
R – Foi. Então a gente se mudou daquele, pra onde eu vim morar com a minha família adotiva e a gente se mudou pra um outro lugar, meu pai comprou umas terras, era um lugar mais centralizado, às margens de uma estrada, a gente chamava de Provisória. Por que Provisória? Porque quando chovia não tinha ponte, então era provisória, não passa carro, então, não é permanente, é provisória. Nem sei porque o pessoal botava, mas depois eu fiquei sabendo que botavam esse nome por causa disso, não era permanente. Foi construído hoje o asfalto. A PB-400, é o nome daquela rodovia. E eu, mesmo morando lá, eu ainda voltava pra escola, no começo, que a gente se mudou em 48. Em 48 eu tinha cinco anos, então eu vinha na segunda-feira de manhã, ficava na casa do meu avô, de um dos meus avós adotivos, Diolino Pereira de Souza e Presentina Maria de Jesus, que eram meus avós paternos. Meus avós maternos por parte da minha família adotiva eram Antonio Pereira de Souza e Maria da Conceição, um nome assim, a minha avó. E eu ficava lá até sexta-feira, na sexta-feira de tarde, depois da aula, meio-dia, aí ia pra casa, ficava sábado e domingo em casa. Isso durou um certo tempo, aí logo que eu, aos sete anos já podia ajudar nos serviços passei a ir a pé pra escola, andava cinco quilômetros e meio, seis quilômetros, todo dia, pra lá e pra cá a pé. De manhã e meio dia. Com fome, né? E hoje eu vejo algumas famílias, no nosso caso lá em São Bernardo, eu trabalho em São Bernardo tem o limite do transporte, se for, me parece que são dois quilômetros, uma coisa assim. Não, 800 metros, menos de um quilômetro, então a criança não tem direito ao transporte público. E as mães brigam, acham muito ruim. Puxa, e eu que andava, sobe morro e desce morre, atravessa rio com água e tudo, pra poder ir pra escola, não tinha isso, tinha a escola que era muito bom. E daquela escola ali saíram algumas pessoas que depois progrediram, se formaram. Nós temos ali, que passaram ali, cinco que se formaram, o que é raro porque a grande maioria parou de estudar no terceiro ano, poucos chegaram ao quarto ano, mas alguns se formaram em médico, odontólogo
P/1 – E o senhor começou a trabalhar com que idade?
R – Ah rapaz, eu costumo dizer assim, eu comecei a trabalhar, em trabalho produtivo, eu tinha seis anos. Que trabalho produtivo era esse? Aguar plantas, o meu pai gostava de plantas, então a gente sempre plantava cana, mamão, limão, cajueiro, coco, então sempre tinha alguma coisa pra fazer. A minha tarefa era aguar as plantas, pegava da cacimba ou do açude e aguava as plantas. E a outra atividade, que essa eu me recordo bem, que era auxiliar quando meu pai ia tirar o leite. Quando o pai ia tirar o leite, então o curral, não sei se vocês já viram aquelas porteiras de curral que tem a madeira que corre em sentido lateral, né? Pois bem, eu ia ajudá-lo, então terminou de tirar leite de uma vaca, aí eu botava mais um bezerro pra ele ir lá. E o bezerro fica ali ansioso pra entrar, ele quer mamar, o bendito, então ele fica atrapalhando a gente, e fuça, e soca para aqui, para lá. Aí eu tirava o pau da porteira, aí entrava. Teve uma vez que deixei entrar dois, levei uma cipoadas (risos). Mas era um trabalho produtivo porque eu ajudava meu pai. Então isso eu guardo como sendo o princípio do meu trabalho produtivo. Sempre trabalhei, felizmente sempre trabalhei na roça, cuidando de animais, gostava muito, gostava e precisava, né? Até porque quando eu era menino e depois como rapazinho eu saí de lá aos 17 anos praticamente, eu fiz isso. Mas mesmo depois quando eu voltei pra lá, no ano de 63 que eu fiquei lá, eu cuidava dos animais, aquela vida de vaqueiro, né, que eu fui vaqueiro. Eu costumo dizer que eu fui vaqueiro, mas eu era muito ruim, nunca derrubei um boi! Que vaqueiro é esse que não derruba o boi, né? Nunca derrubei o boi, derrubava na mão, mas no mato lá, correr atrás do boi como faziam os meus conhecidos lá, pegava o cavalo, corria e derrubava o boi. Já botava na carreta, trazia, eu não tinha essa capacidade não. Agora, no curral pra derrubar, pra cuidar do animal, isso eu fiz muito. Eu ficava impressionado, naquele tempo eu já ficava impressionado como é que eu, um menino, eu conseguia derrubar um animal de 150 quilos, né? Mas tinha a tática, o jeito, e a força não era muito. Era forte sim, para o meu tamanho eu era forte, mas não era só a força, era o jeito. É pegar o animal, ia dobrando e jogava no chão. Eu dava conta do meu recado, né?
P/1 – E por que o senhor saiu de casa aos 17 anos?
R – Então, eu quero até mencionar um pouco o meio disso daí. Eu tinha nove anos quando o meu pai adotivo, que era um homem meio diferente de boa parte do pessoal de lá, e também de boa parte dos homens, ele era aquele tipo de nordestino que não levava desaforo pra casa. Isso era cabal. Era um homem muito forte, um cara tamanho um pouquinho acima da média, era da tua altura, forte, o cara era forte, robusto, não tinha barriga, nada, era robusto mesmo. E ele, extremamente trabalhador e isso dava pra ele um pouco esse direito de não levar desaforo pra casa. E vez por outra ele tava arrumando umas encrencas. O irmão dele, que é o Padre Zé arrumava as encrencas pra ele cuidar. Ele ia lá pra apaziguar, às vezes era obrigado a bater em alguém, levava pancada também. Mas esse instinto dele levou a ele ter uma desavença com o vizinho, e já não foi apenas não levar desaforo pra casa, o camarada quis matar ele, feriu ele, ele findou ferindo o camarada, tanto é que no dia seguinte ele morreu. Então, ele não podia ficar ali. E eu que queria estudar, e ele que queria que eu estudasse parou. Então eu com nove anos, em 1953, começo de 53, era dia 25 de janeiro de 53, eu fiquei meio que condenado a continuar semianalfabeto. Eu sabia ler, sabia escrever, porque ele queria que eu estudasse. O meu irmão, Moacir, ele não queria estudar. Pai arrumou uma casa de um amigo pra ele ficar na cidade de Cajazeiras estudando, se matriculou, tudo direitinho, o pai pagava, tudo. Era pago, não era gratuito, não. Não tinha escola gratuita lá no colégio, não. E ele fugiu lá da casa do nosso amigo, fugiu três vezes, porque não queria estudar. Até que o pai disse: “Você não quer, então você vai ter que trabalhar na roça. Eu queria que você se formasse, você não quer, você vai ter que trabalhar na roça. E ele: “O João vai se formar, o João vai se formar, eu quero o João doutor!” Ele tinha essa convicção. E mais, queria que eu fosse doutor e queria que eu fosse político também. Ele gostava muito de mim, não era meu pai, era meu padrinho, mas a gente se dava muito bem. E ele queria que eu estudasse, mas à medida que ele saiu de casa a gente ficou meio sem norte. Tanto é que três anos depois, porque foi em dezembro de 55, vendemos aquela propriedade lá, aí eu fui morar na casa da minha irmã adotiva, minha irmã Alaíde, com minha mãe, aí meu irmão também já era casado. Aí mudou bastante nossa vida. Ficamos ali até 58, em 1958 ele foi julgado, ele se apresentou, que ele fugiu, não se apresentou logo, ele fugiu, se apresentou só em 58, então de cinco anos, três anos e meio ele ficou fora fugindo da polícia, ficava lá no Ceará, Pernambuco, sem produzir. E a terra dele, que era uma terra boa, que ele vendeu, eu lembro até o valor, 460 contos, falava-se contos, era mil. Não lembro o valor, era mil réis, naquela época já era cruzeiro, mas chamava-se contos, que não era mais porque em 43 que foi criada a nova moeda, o cruzeiro. Bom, aí em 58 se apresentou à polícia, foi julgado, condenado a 18 anos e meio. Aí eu lá fico pensando, puxa, que justiça foi aquela porque ele quase se matou, o cara praticamente rachou a mão dele com um machado e ele, 18 anos e meio de detenção. Muito bem. Ele foi pra detenção, ele ia ficar ali? Não ia. Ele era uma pessoa que tinha uma liderança muito aguçada. Quando ele entrou lá na cadeia em Cajazeiras, em pouco tempo ele ficou presidente da sala livre. Por ele ser criminoso, diferente de ladrão, por ele ser criminoso tinha um tratamento diferente, olha só. Tinha um tratamento diferente. E aí a gente começa, quando a gente lê ou ouve histórias do cangaço, a gente vê que era diferente. O ladrão tinha um conceito, o assassino, principalmente aquele que era legítima defesa ou assassinava por vingança, essas coisas, tinha um tratamento diferente. Aí duas semanas depois ele era o presidente da sala livre. Lá em Cajazeiras, nem tinha sido julgado. Quando ele foi julgado, pegou 18 anos e meio, aí foi forçado a ir pra João Pessoa, pra penitenciária. Isso foi no dia primeiro de maio de 1958. Ele foi pra João Pessoa, foi julgado dia 31 e dia primeiro ele foi pra João Pessoa, ficou lá na penitenciária. Xaveca daqui, xaveca dali, conversa com um, conversa com outro, duas semanas depois, igualmente duas semanas depois ele era o presidente da sala livre. Presidente da detenção daquele grupo de detentos que estavam cumprindo pena. E qual é a diferença? Do mesmo jeito, é penitenciária e como tal são todos iguais, é verdade. Mas para o presidente era diferente, uma das diferenças era assim, ele não fazia faxina, o presidente não fazia faxina. E pai não era mesmo pra fazer faxina, ele sabia fazer porque ele sabia fazer tudo, ele era um artesão, ele lidava com couro, ele era ferreiro, o que quisesse fazer ele fazia. O homem tinha muita habilidade, muita inteligência, mas ali, não vou fazer isso, não vou fazer isso, começou, ele pagava pro pessoal, tinha dinheiro, né? Pagava pro pessoal fazer a faxina, até que ganhou esse respaldo dos outros, e podia também sair, podia almoçar fora. E ele foi ampliando esse direito a ir, como ele conversava, as pessoas acreditavam muito nele e minha mãe ia pra lá, minha mãe ia visitá-lo, meu cunhado ia visitá-lo, distante, são 450 quilômetros da capital. E ele ia dormir no hotel com eles, dormia no hotel, almoçava fora. Aí um dia ele disse: “Isso aqui tá ruim demais”, aí foi embora. Fugiu da cadeia. Aí quando ele fugiu da cadeia foi um período que morreu um tio meu, tio dele também, irmão da mãe dele, e morreu o sogro dele. Então foi um período ruim, a minha cunhada suicidou-se, minha cunhada mulher do meu irmão, então a gente tinha mesmo de sair de lá. Aí ele mandou comprar um carro e a gente viajou e veio pra cá. Pai era uma pessoa tão avançada que naquele tempo, quando ninguém nem pensava em bicicleta, ele tinha uma bicileta. No mato, lá no sítio, né? Mas a bicicleta cansa muito, como ele ia fazer a feira, todo sábado ia, a estrada era muito ruim. Não, isso não presta, aí comprou uma moto. Tinha duas motocicletas na cidade, uma era dele. Ele era muito avançado. Em 1951, no final de 51, ele comprou um jipe zerinho, ele tinha dinheiro pra comprar uma caminhonete, naquela época não tinha agência lá na cidade, né? Não tinha agência lá em Cajazeiras, cidade grande, mas não tinha agência. Em Fortaleza tinha, ele pegou 120 mil, foi pra Fortaleza junto com outros, ele era devoto de São Francisco, aí visitava Canindé que é o lugar que tem muitas romarias, lá em São Francisco de Assis, e na passagem por Fortaleza compraram os carros. Não tinha a caminhonete que ele queria, ele queria caminhonete Ford 52 não tinha, aí ele comprou o jipe, era o que tinha. Esses dias agora no aniversário lá de São Bernardo eu vi um igual ao dele, embora fosse mais velho aquele lá, o nosso era 52, modelo 52
TROCA DE FITA
P/1 – Então, seu João, o senhor estava falando da compra do seu pai
R – É, aí meu pai comprou um carro, nós compramos um carro, era um jipe 54. Bom, foi em 58, era um carro velho? Não era não, um carro bom. Foi na verdade o último jipe que veio importante porque a partir de 55 já passou a ser produzido aqui em São Bernardo, a ser montado aqui já com uma lataria diferente, aquela lataria também era produzida aqui, os motores ainda eram de lá, motor de quatro cilindros, motor ainda de lá. Só em 58 que passou a ser fabricado aqui o motor de seis cilindros. Mas a lataria continuava sendo a mesma, com pequenos detalhes, até o fim quando a Ford comprou, produziu alguns. Então naquela época, em 54 era aquele que tinha um capô mais alto. O 53 e o 53 os que tinha os capôs mais altos, foram as duas séries, o motor era mais rápido, mais força, tal tal tal. Nós pegamos aquele carro, pai estava escondido em Pernambuco, então o meu cunhado, padrinho chicola e o meu primo Antonio, sobrinho do meu pai que era motorista, vem até Pernambuco, até ali na terra do Luís Gonzaga, onde nasceu e se criou Luís Gonzaga, bem pertinho, lá em Exu, pertinho de Tabocas. Ali pai pegou, viemos, meu primo veio conosco até Piraporinha, aliás, até Juazeiro, de um lado é Juazeiro e do outro lado é Pernambuco. Em Juazeiro, na divisa lá de Pernambuco, tem um rio que divide, o São Francisco, então do outro lado é Petrolina, lembrei agora, do lado de Pernambuco. Então, aí Antonio ficou e nós viemos. Nessa época, hoje eu começo raciocinar, lembrar um pouco por onde nós passamos, nós passamos em Canudos, lá em Canudos de Antonio Conselheiro, nós passamos por lá. Nós saímos de Juazeiro, aí viemos dormir em Euclides da Cunha. Em Euclides da Cunha que também é nas proximidades, homenagem da cidade ao grande escritor que escreveu Os Sertões. E daí viemos embora, pai dirigindo. Olha só esse homem, um cara condenado a 18 anos e meio. Ele passava pela polícia assim, rapaz, nem tchum. Aí ele encontrou uma forma, ainda lá na Bahia, ele perguntou para o policial: “Me diga, por que eu tenho que parar toda hora? O documento tá legal, por que eu tenho que parar toda hora?”. Aí o policial disse: “Olhe, faz o seguinte, a hora que você for passando você fala o número da placa do carro”. E foi assim, aí nós viemos. Passamos aqui por São Paulo, viemos, fomos pra Mato Grosso até Águas Claras. Em Águas Claras, a estrada praticamente acabou porque ali era só o sertãozão, só tinha fazenda. Águas Claras era bem pequenininha, hoje tem faculdade, tudo. Quando foi pra atravessar o Rio Paraná nós atravessamos em cima de uma barca, uma barcaça do trem. Então os carros ficavam esperando, os caminhões, do lado de cá, em São Paulo e pra lá não tinha ponte, a ponte foi construída depois com Jupiá etc. Passamos, depois que nós passamos, aí já era noite, que nós haviamos dormido em Lins, pertinho de Lins, em Promissão. Aí nós dormimos lá, era uma estação de trem, aí no outro dia conseguimos chegar em Águas Claras. Dali pra frente íamos pra Campo Grande e o pessoal aconselhou: “Olha, o senhor não vai conseguir chegar até lá, é muito difícil, as estradas são ruins demais, então o senhor vai, o melhor é botar o carro em cima da barcaça do trem”. Aquele lastro, o carro era só lastro. Carregava dormentes, carregava madeira, tal. Pai botou lá e fomos pra Campo Grande. Lá em Campo Grande ele tinha um parente, ficamos na casa desse parente uns 10, 12 dias, ele ainda deu uma andada ali no entorno, não gostou do lugar, mês de dezembro, muita chuva, chovia. Campo Grande naquele tempo, 1958, não tinha um palmo de asfalto, nada, nada, nada. Não tinha asfaldo de nada. A cidade parecia uma sede de fazenda, Campo Grande naquela época. O que tinha de importante lá? Eram exatamente os órgãos federais, tinha aeronáutica, já tinha quartel do exército, isso tinha mesmo. Agora, era uma cidade muito atrasada, muito atrasada. Eu lembro que um domingo, dia de feira, aquela feira enorme que não acabava mais aquela feira. Eu ficava impressionado que eu nunca tinha visto berrante, berrante assim de mais de metro. Muito, muito material produzido no couro, equipamentos produzidos no couro, cada serviço artesanal, fiquei impressionado, né? Eu gostava da roça, gostava daquilo lá, gostava de cavalo, afinal de contas eu era um vaqueiro, né? Então, ficamos ali uns dias, aí o pai disse: “Olha aqui não dá” porque a ideia dele era comprar um pedaço de terra, um sítio pequeno onde desse pra produzir alguma coisa e onde ele pudesse também trabalhar com comércio, que ele era muito afeito ao comércio, vendia de ouro a fumo, meu pai era muito bom comerciante. E não achava rapaz, ali não achava, não agradava, mãe também não se agradava. Aí tá bom, vamos pra Goiás. Aí vamos pra Goiás. Goiás, passamo de volta por São Paulo. Na vinda a gente chegou lá em Presidente Epitácio. Do lado de Mato Grosso é XV de Novembro, hoje não tem mais também. A gente entrou, um bocado de quilômetros, era dez a 12 quilômetros dentro do rio, da barcaça, uma barcaça grande, 12, 15 carros, caminhões, pra chegar em São Paulo, em Ponto Epitácio, já dentro do Estado de São Paulo pra cidade de Presidente Epitácio, aí daí viemos, passamos São José do Rio Preto, aí fomos pra Anápolis. Em Anápolis paramos uns dias, pai também não encontrou, andou praqui, prali, pracolá, nós fomos até Goianésia pra ver se encontrava um terreno também nada, nada. Ali também não tinha asfalto, tá certo? A gente foi ver asfalto quando saímos de Anápolis. A Praça João Pessoa acho que já era asfaltada, até eu lembro porque eu digo pras pessoas, toda cidade que se preza tem que ter uma praça, ter um próprio municipal com o nome de João Pessoa, afinal de contas, né? Aí a Praça João Pessoa bem cuidada, né? Brasília estava em construção naquele tempo. De Anápolis pra Brasília já tinha asfalto, um asfalto muito ruim. Aí dormimos em Luziânia, não, em uma outra cidadezinha vizinha de Brasília hoje, virou cidade satélite. Aí voltamos, passamos por Luziânia, viemos pra Minas Gerais, entramos, passamos em Pirapora, também não tinha ponte. Olha meninos, era curioso, o pai era ótimo motorista, uma habilidade danada. E eu ia na frente, passamos em cima da ponte do trem, do trem, e o jipe tem bitola muito estreita, né? Os caminhões passavam uma rodeira de cada lado do trilho, né, e o jipe não dava, não pegava, então uma roda vinha em cima do trilho e a outra vinha embaixo, por onde os caminhões passavam. E era assim. E se cai aquilo dali? O carro não ia sair dali. O pai tocava, vinha tocando, dirigindo e eu dizendo pra ele, chamando pra vir: “Tá vindo pra cá”. Isso 200 metros de ponte, sei lá quanto, muito longa a ponte até chegar do outro lado, lá em Pirapora, que a gente entrou no lado oposto, Pirapora era cidade, dormimos por ali, viemos. Aí nós fizemos uma parada maior lá em Minas Gerais, na cidade de Porteirinha, nós moramos cinco meses em Minas Gerais. Ele comprou um sítio, pegou aquele jipe, deu de entrada e completou com dinheiro, ele tinha dinheiro, e nós moramos ali cinco meses. O sítio era perto da cidade, sítio Barreiros. Lá no sítio tinha uma bodega, tinha uma venda, nós chamávamos bodega. Lá tinha uma venda, e eu com 15 anos fui cuidar da bodega, olha só. Eu cuidava do gado, a gente tinha gado também, pai não queria ficar preso lá na venda, então botou eu pra cuidar da venda e eu, além de eu vender, ele me ajudava no final de semana, né? Porque ali passava muita gente, era uma estrada oficial, passava muita gente e eu ficava ali à noite também. Dormia ali de medo de roubaram, pegava, eu tinha a cartucheira, uma faca, uma peixerona de dez polegadas que eu tinha, olha só, o que eu ia fazer se o ladrão batesse lá? Bom, se bateu lá ele ia receber um tiro de cara porque eu não ia ter espaço pra dialogar com o camará. Bem, mas nunca teve problema nesses meses que nós ficamos lá. Foi ali que eu aprendi um pouco da história e da vivência do pessoal do`s Gerais, uma região ali perto da Ribeira, por ali, então eles trabalhavam muito com couro, com produtos de couro e alimentos, produzia alimentos. Os Gerais é uma região lá em Minas que a parte alta ela é pouco fértil. Hoje os agrônomos equalizam ela com calcáreo e fica fértil igual as outras, mas naquele tempo o pessoal não usava isso, então aquilo lá era só amaigoso, o pessoal chamava de amaigoso, um capim que só era útil quando secava, quando ele era verde ele era amargoso e o gado não comia, quando secava o gado comia. Porém, nas áreas baixas a terra era por demais fértil, e era ali que moravam as pessoas, pessoas moravam ali, ali eles tinham casa de farinha, tinham engenho, as fazendas eram sitiadas ali, ali que era o lugar. E foi ali que eu comi a melhor rapadura, talvez a melhor carne, a melhor carne de boi. Eu digo: “Mas como é que essa carne é tão boa assim?” “É porque aqui esse gado é o gado dos Gerais, é um gado que sofre muito sol, o sol aqui é muito quente, então a carne já vem meio cozinhada” (risos). Ali nós moramos cinco meses, aí nós voltamos pra Paraíba. Até aí eu já estava completando os meus 17 anos também. Quando foi 1960, o meu irmão, aí o meu irmão legítimo, ele veio pra São Paulo trabalhar no interior, tinha parentes, a minha irmã já estava trabalhando, meu cunhado, outros parentes, aí ele veio aqui pro interior de São Paulo trabalhar na lavoura. Aí voltou lá, em 1960, aí ele disse: “Olha João, eu queria que você fosse morar com a gente, você agora também não tem o que fazer”. Porque eu trabalhava, eu não tinha terra, mãe tinha terra, mas a terra era distante da casa do meu cunhado, então não dava pra tocar lá. E eu comecei a ficar meio numa situação de marasmo mesmo, né? Ele disse: “Olha, você podia morar com a gente? Diga lá pros seus parentes”, as famílias se gostavam muito, né? “Mas diga lá pra dona Vitalina que você vai morar com a gente”. Aí eu vim morar com o meu pessoal, com a minha família legítima. O mais velho daquela turma ali e as minhas irmãs Mercedes, Maria, Joselira, já tinham casado, o meu irmão mais velho estava aqui em São Paulo, no interior, então nós viemos pra cá. Isso foi em 1960, junho de 1960, comecinho de junho. Era eu e meus irmãos mais novos, Francisca, Rita, Francinalva, Vera e Geralda. Minha mãe, já que não era tão jovem assim. A gente veio de ônibus, durante a viagem chovia demais, rapaz, foi o período que estava sendo construída a Rio-Bahia, a BR-116, estava sendo construída, então tinha muito barro, muita lama. Então nós gastamos nove dias de Cajazeiras, lá da nossa região, até aqui, a estação do Brás, o ônibus parou no Brás. Nove dias. Teve um dia lá na Bahia, de Feira de Santana a Santo Estevão são 30 quilômetros. Ficamos o dia inteiro pra andar 30 quilômetros por causa dos atoleiros. Não era sempre com o nosso carro, com o nosso veículo, mas porque os outros estavam atravessados. Foi muito tempo. Mais um dia pro interior, foram dez dias de viagem da Paraíba pra cá
P/1 – E pra que lugar o senhor foi?
R – Nós paramos inicialmente em Santópolis do Aguapeí, que era exatamente a cidade onde morava minha irmã. Mas nós fomos depois, logo a seguir, nós fomos morar no município de Luiziânia, é onde a gente arranjou terra pra trabalhar. Meu irmão já tinha isso encaminhado, arrumou terra pra trabalhar e nós fomos tocar roça, cinco alqueires de roça. Cru de tudo, eu nunca tinha feito aquele trabalho, né? Mas a gente aprendeu logo e fizemos casa, eram 13 famílias ali, e das 13 famílias tinha dois só que não eram paraibanos, o resto era tudo paraibano e conhecidos. Arqui e um que é o Silvestre, que a mulher dele chamava ele de Siliveste. “Ô Siliveste!”, chamava ele de Siliveste (risos), mas era Silvestre, que era lá de Juazeiro, e o Arqui que era de lá, era um velhão, uma pessoa ótima, era um negro bom, danado o cara. Ele tinha sido jogador de futebol, era muito bom jogador de futebol. O pessoal dizia pra gente: “Esse daí era bom, era zagueirão. Era beck de fazenda mesmo”. Naquele tempo lá ele já tinha uns 55 e ainda ia fazer pelada com a gente! E jogava, a bola bateu no pé dele, ele sabia o que fazer com ela, né? Morreu também já o Arqui. Ele morou lá com a gente. Ensinou muita coisa pra gente. E ficamos ali, isso foi 1960. Em 61 o meu pai adotivo faleceu, coincidentemente ou não, mas morreu assassinado também. Ele e o desafeto, digamos, os dois morreram juntos, um agarrado no outro. Foi no dia 31 de maio de 1961, uma data que pra mim não é boa. Então, meu irmão veio pra cá, aliás, foi pra lá pra Paraíba, aí quando ele voltou da Paraíba eu fui visitar minha família. Eu fiquei sabendo por carta, demorava uma semana, duas semanas pra se ter notícias
P/1 – Como é que foi receber uma notícia dessa por carta?
R – Ah, muito triste. A princípio eu não queria acreditar. Até porque a notícia chegou muito quebrada. A notícia certinha mesmo só fui ter quando meu irmão voltou, meu irmão legítimo no caso, voltou que foi lá, visitou minha família adotiva. Ainda hoje eles são muito amigos, muito muito muito, parece a mesma família, e não são. Quando ele voltou, me contou a história toda, eu fui pra lá, visitei minha mãe, minha irmã, meu irmão, meus sobrinhos e fiquei lá 51 dias, em 1961. Aí voltei, quando eu voltei vim tocar roça aqui no interior, de novo. Saí daqui no final de 62, eu voltei lá pra Paraíba, um tio meu tinha comprado um carro, um jipe, queria que eu fosse pra lá, eu fui pra lá. E foi portanto o ano de 1963 o último ano que eu passei lá na Paraíba. Foi talvez um dos melhores momentos porque eu já era rapaz, já não era mais garoto, podia namorar inclusive, já namorava, gostava de baile, aproveitei bem, foi um ano que eu aproveitei bem. Não tinha tanta responsabilidade porque eu tava na casa do meu cunhado, a minha responsabilidade era trabalhar porque o suprimento da família era meu cunhado, ele era bem de vida também. Aliás, uma das pessoas mais interessantes que eu já vi, mais proba e mais decente, generosa, ele foi Expedicionário, tanto é que esses dias até lembrei dele. Ele foi Expedicionário, ele esteve inclusive em Monte Castelo, no combate de Monte Castelo, não se machucou, nunca teve ferimento. Tá vivo hoje, tá com 92 anos, completando agora, eu acho que amanhã que ele completa 93 anos, não está mais tão lúcido quanto era, uma pessoa excepcional, excepcional, uma pessoa que olha, se o mundo tivesse 5% de pessoas igual a ele, o mundo seria diferente
P/1 – E conta pra gente, seu João, quando é que o senhor foi pra São Bernardo? Como é que foi?
R – Pois bem. Aí eu fiquei o ano de 63 lá, foi um ano, inclusive, que choveu muito, foi o primeiro ano do açude, uma barragem que tinha sido iniciada em 31, a primeira vez que ela sangrou foi em 63, portanto 40 anos depois. Mas aí eu também não tinha muita coisa pra fazer lá, a terra não era minha, eu via que não valia a pena ficar lá e eu falei pra mãe: “Mãe, eu vou embora de novo”, aí vim. A minha família escreveu pra mim dizendo que meu irmão havia sido intoxicado com veneno, aí não podia mais tocar a roça. Aí eu vim, veio comigo um rapaz. Aliás, foi curioso, era pra minha mãe adotiva vir comigo, aí daí ela não veio, a passagem dela e da minha sobrinha sobraram e eu fui pra cidade ver se conseguia vender a passagem, era de um dia pro outro, não consegui. Quando eu tava perto da, momentos antes de pegar o ônibus, na rodoviária, aí chegou um vizinho meu: “Joãozinho, eu vim pra ir com você”. João de Adelina. Eu falei: “João, você vai comigo pra São Paulo?” “Sim”. Ele tinha minha idade. “Você tem como ir, João?” “Não, não tenho. Agora, assim, você está com as passagens da dona Vitalina, então eu pego uma passagem dessa e chega lá eu lhe pago. Eu não tenho nada, não”. Eu disse: “E pra viagem, você tem algum dinheiro?” “Não” “Então vamos embora”. Eu tinha um pouquinho, então vamos embora, nós vamos sofrer junto daqui pra lá. Almoçamos e jantamos normal. Viajamos pra Mirandópolis, a minha família já tinha se mudado daquele lugar que morava, foram morar em Guaraçaí, uma fazenda lá às margens do Rio Feio, Fazenda Perez. Nós puxamos, eu e o João, o nosso galo de briga, pegamos um caminhão até uma certa altura pra lá, nós puxamos a pé, andamos mais de três horas a pé pra chegar na casa da minha mãe. Chegando na casa da minha mãe, a alegria do pessoal porque chegou o pessoal, um filho que chega, um irmão que chega é sempre interessante, mas aquela tristeza porque meu irmão estava doente. Estava doente, eu meio abatido, ele tinha sido intoxicado de veneno. Em 61 eu também havia sido intoxicado de veneno junto com ele, aliás foi a primeira vez que eu fui no médico, eu tinha 17 anos, a primeira vez que eu fui no médico. E o meu irmão que tinha 20 anos nunca tinha ido no médico também. Nós nos intoxicamos jogando veneno em líquido na nossa lavoura de algodão, cinco alqueires de algodão, e depois jogando veneno em pó. Aí ficamos doentes, foi uma maratona que eu tive que romper de madrugada porque minha mãe me chamou tava mal, aí eu saí de madrugada, peguei o meu revólver, a minha peixeira e saí naquela invernada, eram três invernadas, até pegar a estrada e dda estrada pra lá fui à procura de uma pessoa que tinha caminhão. Trouxe o caminhão, aí fomos pra cidade de Ibrauna, no interior de São Paulo, cidade antiga, tanto quanto histórica. Lá em Braúna encontramos um médico que nos medicou e, de certa forma nos salvou. Mas que diferença, hoje as pessoas vão antes de nascer, nem nasceu já vai no médico, que tem o pré-natal, tá cuidando do feto, né? Diferente daquele nosso tempo. Aí meu irmão tava mal, minha mãe disse: “Olha, eu acho que o bom seria a gente ir embora”. Eu falei: “Vai embora mesmo”, meu irmão: “Não vou embora não”. Ele tinha tido prejuízo naquele ano, terra ruim, prejuízo, ele disse: “Não, vou tocar mais um ano” “Não, não, não”. Aí fiz uma pressão danada, eles voltaram pra Paraíba e eu fiquei, eu e meu outro irmão José nós ficamos. Meu irmão ficou lá na casa da minha irmã no interior, tocou roça lá no interior e eu vim pra cá, isso foi em junho de 64, logo depois do golpe militar. Eu vim pra cá, parei em São Caetano, que tinha alguns conhecidos, alguns parentes. Em razão da questão política do momento, um desemprego muito grande. Desemprego muito grande, aí não se achava emprego. Eu procurava emprego de tudo quanto era jeito, não achava. Até que um primo meu disse: “João, rapaz, eu to com vergonha de falar pra você mas, eu vou dizer. Vai lá na empresa”, ele trabalhava na Ultralar, disse “lá na empresa tem uma vaga agora e o pessoal amanhã”, era um domingo, eu gostava de ir lá almoçar no domingo, “amanhã vai ter gente nova lá, você podia ir lá rapaz, vai lá”. Aí eu fui, cheguei lá, aí tinha que fazer um teste, claro, fazer a ficha. Fiz a ficha, vai fazer um pequeno teste, tudo bem. Aí disseram: “Olha, agora de tarde vai ter a informação”. Eu morava em São Caetano, na Vila São José em São Caetano, ia pra lá a pé. A Ultralar era uma parte da Ultragaz, a mesma empresa, e era a área onde ficavam os caminhões que distribuíam gás. Aí de tarde eu fui, cheguei lá, eu fui um dos selecionados. Eram poucos. Eu fui selecionado. Aí eu comecei a ter um choque, nunca tinha visto aquilo ali, nunca tinha visto desemprego, porque tinha um rapaz que foi lá conversar com o empregador, disse: “Olha, eu sei que o meu teste não foi muito bom. Eu sei que o meu teste, eu tenho muita dificuldade, mas eu preciso do emprego, meu pai é doente, a minha mãe não consegue trabalhar pra cuidar do meu pai e eu preciso do trabalho. Eu sou arrimo de família, eu preciso de trabalho. O senhor não podia relevar isso?”. Aí o camarada: “Não, não posso, tem que prestar conta quem fez o melhor teste”. Aí eu fiquei meio sensibilizado com aquilo lá. Eu falei: “Olhe, eu to precisando do emprego, mas ele tá precisando mais, ele não pode ficar na minha vaga?”. O rapaz disse: “Não, não pode. Se o senhor quiser fica o senhor, se o senhor não quiser tem outros antes dele”. Eu falei: “Então eu fico”. Fiquei quase três meses trabalhando ali, trabalho que eu gostava muito, eu lavava roda de caminhão. Os caminhões chegavam da entrega, a Ultralar, além de entregar o gás da Ultragaz ela vendia arroz, feijão e açúcar, tinha uns espaços lá do caminhão que o pessoal vendia por onde andava, era um mercado ambulante, feijão, arroz e açúcar. Aí fiquei ali durante quase três meses. Aí entrei na Volskwagen. Entrei na Volkswagen no dia nove de dezembro de 64. Nove de dezembro, eu tinha, logo que eu cheguei, mês de julho, por aí, eu fui lá na fábrica, aí me deram um papelzinho assim, tal época você vem aqui, eu disse não vai nada, né? Aí depois voltei lá de novo, me deram outro papelzinho com data posterior. Papel com papel eu fico com o primeiro, né? Mas eu trabalhava na Ultralar, era um horário muito bom, era das duas às dez, que quase sempre a gente saía antes porque chegava o último caminhão e o encarregado liberava, tá tudo limpo, ele ia lá dar uma olhada, tudo limpo, então pode ir embora. A gente ia embora. Era bom, tinha as caixinhas, que os motoristas pegavam caixinha do pessoal que comprava o gás, dava caixinha, aí eles dividiam com a gente, eu e mais dois, que trabalhávamos lá na lavagem e era compensador porque a passagem, naquele tempo não tinha vale transporte, a passagem não gastava o dinheiro que a gente recebia de caixinha, era mais do que a gente gastava de passagem de ônibus. Bem, quando foi naquela data prevista conforme o primeiro papelzinho eu fui na Volkswagen. Chegou lá: “Tá pegando ainda não, você quer fazer uma ficha?” “Quero, eu to aqui pra isso, faço qualquer negócio”. Que o pessoal falava que era muito bom, que a empresa era ótima. E era grande mesmo, gigantesca, naquele tempo já tinha gente pra dedéu. Aí eu fiz a ficha, quando eu fiz a ficha, eu via que os outros, o pessoal pegava a ficha e falava: “Olha, a hora que a gente precisar a gente chama”. Aí a minha ficha o camarada chegou lá e falou: “João Bosco. O senhor pode entrar aqui?”. Eu entrei lá. “Vamos conversar um pouco seu João. O senhor sabe escrever e sabe ler, né?”, eu digo: “Sei”. Pra vocês terem uma ideia, meninos, da diferença que nós, da relação que a gente, quando eu disse no início da conversa que hoje tá fácil pra ser formar, né, a juventude tem a sua oportunidade de estudar. Então naquele tempo quem tinha o primário, primário completo como eu tinha, arrumava trabalhava mais fácil do que quem era um doutor. Era praticamente um doutorado aquilo ali, pra fazer trabalho comum, né? “Eu sei escrever” “Faça uma carta aí”. O cara não acreditou que eu tinha feito a ficha. Aí fiz a carta pedindo emprego. Era muito comum isso no passado, fazia uma carta, era a maneira que o empregado tinha de saber se a pessoa sabia se comunicar ou não. Aí fiz a carta, e era bom pra fazer carta. Quando eu morava no interior era o carteiro oficial e quando eu vi aquela atriz fazendo carta na Central do Brasil me lembrei que no domingo de manhã quando eu ia pra cidade, quando não tinha uma outra tarefa, se não fosse de manhã era de tarde, mas todo domingo eu tinha que escrever três, quatro, cinco cartas pro pessoal que morava mais distante. Normalmente era baiano e mineiro, e mesmo lá para os paraibanos também. Então escrevi a carta. “Nossa, sabe escrever mesmo. Eu vou colocar você numa lista de pessoas que vão ser chamadas pra fazer um curso de funileiro”. Não sabia o que era funileiro. “Tá bom, qualquer coisa eu topo”. Nove dias depois me chamaram, eu fui chamado três vezes até que fui admitido lá na Volkswagen no dia nove de dezembro de 64. E saí de lá no dia 23 de março 81, fiquei 16 anos, três meses e 14 dias
P/1 – Seu João, agora partindo para um parte mais final da entrevista, por uma questão de horário mesmo, eu queria que o senhor falasse pra gente o que o senhor faz hoje, quais são suas atividades hoje?
R – Hoje eu sou aposentado, eu me aposentei, se bem que foi proporcional pelo INSS e hoje eu trabalho, mesmo assim eu to trabalhando. Queria até falar um pouco do sacrifício que eu tive pra poder estudar, né? Porque lá na Volkswagen consegui estudar um pouco, fiz o colégio dentro da fábrica. A fábrica tinha uma escola, eu fiz o colégio. O ginásio, o antigo ginásio eu fiz prestando exame fora, nas escolas, estudava sozinho, prestava exame, depois fiz o colégio e finalmente consegui fazer o curso superior de terceiro grau lá na Fundação Santo André. Aí eu já era velho, eu tinha 53 anos quando eu comecei a escola, terminei com 57. Mas fiz o curso e hoje eu trabalho na prefeitura
P/1 – Qual era o curso, desculpa?
R – Sociologia
P/1 – E qual foi a sensação de pegar esse diploma na mão?
R – Foi maravilhoso. Maravilhoso, cara. Eu sabia, tinha alguns conhecidos brincalhões, né, diziam: “Mas tu vai estudar Sociologia, rapaz? Sociologia só tem uma vaga”, o Fernando Henrique era presidente “e essa vaga já tá ocupada” (risos). Mas foi muito bom porque era um assunto que dizia respeito ao que eu queria aprender. E aprendi um bocado de coisas, aprendi a aprender, a faculdade é um pouco isso, a gente aprende a aprender, sabe como aprender. Se quiser aprender você tem o caminho, né? E eu consegui fazer o curso superior e foi bom demais, uma sensação muito boa. Pena que os meus quatro pais não viram, né? Meu pai adotivo que queria me ver formado não me viu, foi muito tempo depois. Eu fiz um curso mais por uma vaidade, aparentemente uma vaidade. E também como eu pudesse ter como cobrar meus filhos, né? Eu tenho três filhos, a minha filha mais nova, que é a do meio, ela não tem curso superior ainda. Já entrou em faculdade, tudo, passa em todos os vestibulares, mas não conseguiu concluir. O meu filho mais velho é formado em Matemática e o pequeno, que tem 12 anos, deve se formar também
P/1 – Qual o nome dele?
R – É João, João Bosco Bezerra
P/1 – E os outros?
R – Cláudio de Souza Bosco e Raquel Bosco Martins. Eu tenho quatro netos, muito bem, ótimo, beleza. E hoje eu trabalho na Prefeitura de São Bernardo, trabalho com a parte de Comunicação Social. Eu sou supervisor do Setor de Mobilização e Participação Social, que é conversar com os moradores, conversar com as associações de moradores, é um pouco isso que eu faço. Já fiz isso muito, trabalhei 12 anos em Santo André só nessa área. Tenho uma passagem na minha vida que eu tenho um orgulho muito grande, e o meu orgulho é por conta da minha não omissão. Eu fui ter uma visão política só em, eu já era velho, só em 1978, quando eu fiz o colégio é que me abriu um pouco essa questão política mesmo. Embora em 77 um velho conhecido meu, aliás ele fez essa gravação que eu estou fazendo aqui, esteve aqui, José Duda da Costa, uma pessoa excepcional, operário, uma pessoa muito boa. Ele começou a me abrir os olhos, até eu digo Duda foi quem me chamou a atenção pra Política. Ele era comunista, era não, é, tá vivo. Ele era comunista só que nunca dizia que era comunista porque naquela época era proibido mesmo, né? Mas em 78 eu já tava mais atento, mais arisco e comecei a participar da vida sindical, da luta de organização dos trabalhadores na fábrica e um pouco por causa disso foi que eu saí de lá também. E me orgulha muito ter participado da fundação do PT, de ter ajudado na organização partidária, continuo no partido, não vou largar. Já participei de direções, dez anos seguidos da direção de São Bernardo, dez anos seguidos da direção do PT estadual, até Olívia, mulher do Geraldinho, você conhece Geraldinho. Geraldinho foi um dos nossos primeiros deputados. Geraldo Siqueira. Isso é uma coisa que me agrada. Tive muito prejuízo material, muito mesmo. Muito prejuízo material. Mas por outro lado o meu orgulho e a minha satisfação de ter podido contribuir de alguma forma na conscientização de pessoas e na organização da sociedade, eu dei uma pequena contribuição pra tudo isso
P/1 – E seu João, o senhor é casado?
R – Sou, sou casado pela segunda vez
P/1 – Fala o nome da sua esposa
R – O nome da minha mulher é Expedita. Expedita Maria Bezerra Bosco. Ela é minha segunda mulher. Com a primeira eu fui casado durante 16 anos, a gente se separou, eu fiquei uma temporada sozinho, sem casar, tava já pra virar ermitão. Aí encontrei a minha mulher, eu digo pra ela e pras outras pessoas: “Se eu não tivesse encontrado a Expedita eu não ia saber o que é a vida a dois, a vida comum a dois”. Porque com a outra eu não tive a mesma sensação. Ela me completa e, segundo ela, eu também colaboro, contribuo muito com a vida dela, e completo ela ao mesmo tempo. Uma pessoa maravilhosa, muito mais nova do que eu. Quando a gente se encontrou eu tinha 54 e ela tinha 27, exatamente a metade. Foi quando, foi o primeiro ano que eu iniciei na faculdade, ela teve inclusive a compreensão de me tolerar, e tem sido muito tolerante. E nós temos um filho de 12 anos, o João. Um cabra bom, danado, um cara esperto, ligeiro. A gente tá criando o João com todos os cuidados que qualquer pai precisa ter nesse momento que a gente vive e daí pra frente é Deus quem vai determinar. Nós estamos fazendo a nossa parte, do mesmo modo que eu procuro fazer a minha parte enquanto cidadão
P/1 – Tá certo, seu João. Seu João, agora pra gente finalizar, eu queria que o senhor dissesse pra mim qual o seu principal sonho hoje
R – Olha, to completando 70 anos, daqui a 11 dias eu completo 70 anos. Eu não sou uma pessoa sonhadora, não. O meu sonho enquanto cidadão é ver uma sociedade justa, sabe? Este é o meu grande sonho. Tudo o que eu tenho feito até agora é com esse propósito. Se eu levanto cedo é porque eu tenho esse propósito, se eu vou dormir mais tarde é porque eu tenho este propósito. Então meu propósito é exatamente este, meu sonho é ver uma sociedade justa, até isso é um sonho irrealizável, será que é irrealizável? Nós já tivemos momentos piores, momentos muito piores. Eu mesmo citei aqui alguns que a gente tinha mais dificuldades do que tem hoje. Temos dificuldades hoje que não tínhamos no passado. Mas eu não tenho grandes sonhos não, ainda mais material. Eu tenho um apartamento pequeno, mas serve pra mim, serve pra minha família, tá quitado. Eu não tenho ambições pessoais, aliás isso é algo que fez parte da minha vida, exatamente por isso que eu não tenho grandes coisas, né? Porque eu até que ganhei, quando eu trabalhava na Volkswagen por exemplo, eu tinha um salário regular, era bem acima da média dos meus conterrâneos, de pessoas do meu nível intelectual. Depois eu também tive, tive desemprego também, fiquei desempregado. Já fiz trabalhos bastante humildes, mas nunca me abati por isso não. Eu poderia imaginar, olha, o ideal, mas alguma coisa que te complete. Se eu tivesse dinheiro, um dinheirinho pra comprar uma casinha numa cidadezinha pequena do interior eu acharia bom
P/1 – E o que o senhor achou de ter dado essa entrevista, ter contado um pouco da sua história pro Museu?
R – Bem, até pela minha formação e meu comportamento eu gosto muito de História. E eu entendo a história na sua plenitude. Um dia desses conversando com um historiador lá de Cajazeiras, lá na Paraíba, ele disse: “Rapaz, me incomoda muito ver os catedráticos, eles não se preocupam com a história regional, eles só se preocupam com a grande história, com aquela história oficial. A história do homem no dia a dia eles não se preocupam, eles sabem tudo sobre Roma, sobre o Império Romano, mas eles não sabem o que aconteceu há 20 anos aqui no município. Eles não sabem disso, coisas importantes que aconteceram aqui”. Cajazeiras, por exemplo, lá na Paraíba, é até um slogan: “Cidade que ensinou a Paraíba a ler”. Cidade muito desenvolvida culturalmente. E tem também esses catedráticos lá, lá tem universidade, e ele fala que o pessoal não se preocupa. E eu concordo com ele, eu acho que a história só se completa se for contada a partir dos indivíduos, a partir dos indivíduos, do que a pessoa é, do que a pessoa fez, do que a pessoa sabe, do dia a dia, aí ela vai se completar, ela faz amarração entre o homem e aquela história grande, aquela história geral, aquela enorme lá, quem nem sempre é a verdade, nós sabemos que a história é contada, a grande história é contada pelo vencedor, né? Então eu considero esse tipo de trabalho do Museu da Pessoa algo exponencial porque na verdade isso é um banco de dados, um banco de informações. Nunca, ninguém nunca vai ver, mas se alguém um dia quiser ver alguma coisa vai achar, se alguém quiser ver alguma coisa vai achar. O Duda, por exemplo, esse meu amigo. Ele ficou 30 dias pra vir de Pernambuco pra cá, ele nasceu em Garanhuns. 30 dias! O caminhão pau de arara tombou no meio da estrada, né? Ele ficou, teve uma pessoa que morreu tal tal e tal, eles ficaram, levaram 30 dias pra vir de lá pra cá. Se ele não conta essa história quem vai contar, né? Quem nasce hoje vai ficar pensando que sempre teve asfalto daqui pra lá, né? Então eu considero, eu fico satisfeito até porque o meu amigo já tinha me recomendado, só depois que o pessoal esteve lá em São Bernardo é que me alertou pra isso. Mas fico muito satisfeito
P/1 – Então tá certo, seu João. Muito obrigado pela sua participação
Recolher