Projeto Vidas em Cordel, Museu da Língua Portuguesa
Entrevista de Ivanete de Araújo
Entrevistada por Cecília Farias (P/1), Janaína Lopes (P/2) e Luiza Gallo (P/3)
São Paulo, 11 de novembro de 2024
Código da entrevista: PCSH_HV1413
Revisão: Nataniel Torres
P/1 - Nete, primeiro obrigada por topar conversar com a gente aqui hoje. Vamos lá! Começa com se apresentando. Me fala seu nome completo, o local em que você nasceu que você nasceu, em que data você nasceu?
R - Tá. Eu sou Ivanete Araújo. Ivanete de Araújo, mas eu não costumo usar o “de”. Não sei por quê. Ivanete Araújo, eu nasci no dia 5 de janeiro de 1973, numa cidadezinha chamada Guariba, interior de São Paulo. E sou filha de baianos.
P/1 - O nome dos seus pais e de onde eles eram lá na Bahia?
R - Meus pais são baianos, de Tapiramutá e Ipirá. Meu pai é Ipirá, Valdemar de Araújo. E minha mãe, Tapiramutá, Rosália Rodrigues Teles Araújo. Mas ambos se conheceram em Guariba.
P/1 - E por que eles vieram? Como é que foi? Eles contam de como foi essa vinda?
R - Sim! Eles contam. Eles foram pra Guariba porque lá é uma cidade de lavoura. Então, época de cana, época de amendoim, laranja. Então, eles foram pra esse momento, pra trabalhar.
P/1 - E eles já conheciam gente que estava indo lá, então?
R - Segundo as informações do meu pai e da minha mãe, eles foram através de turma, que chamava, na época… Até hoje chama assim, é uma turma pra poder trabalhar na lavoura na época da safra. Então, o que tinha naquele momento, naquela safra, fazia o trabalho. Então… E até hoje a cidade de Guariba acolhe pessoas oriundas do Norte, Nordeste, pra fazer esse trabalho também.
P/1 - E qual é a memória mais antiga que você tem assim, de pequena? Aquela primeira.
R - Gente, por incrível que pareça, assim, uma das das memórias ótima que eu tenho, era a chuva. Eu era bem pequena, a chuva no telhado… Eu vou chorar! É boa essa memória. Essa memória é...
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Entrevista de Ivanete de Araújo
Entrevistada por Cecília Farias (P/1), Janaína Lopes (P/2) e Luiza Gallo (P/3)
São Paulo, 11 de novembro de 2024
Código da entrevista: PCSH_HV1413
Revisão: Nataniel Torres
P/1 - Nete, primeiro obrigada por topar conversar com a gente aqui hoje. Vamos lá! Começa com se apresentando. Me fala seu nome completo, o local em que você nasceu que você nasceu, em que data você nasceu?
R - Tá. Eu sou Ivanete Araújo. Ivanete de Araújo, mas eu não costumo usar o “de”. Não sei por quê. Ivanete Araújo, eu nasci no dia 5 de janeiro de 1973, numa cidadezinha chamada Guariba, interior de São Paulo. E sou filha de baianos.
P/1 - O nome dos seus pais e de onde eles eram lá na Bahia?
R - Meus pais são baianos, de Tapiramutá e Ipirá. Meu pai é Ipirá, Valdemar de Araújo. E minha mãe, Tapiramutá, Rosália Rodrigues Teles Araújo. Mas ambos se conheceram em Guariba.
P/1 - E por que eles vieram? Como é que foi? Eles contam de como foi essa vinda?
R - Sim! Eles contam. Eles foram pra Guariba porque lá é uma cidade de lavoura. Então, época de cana, época de amendoim, laranja. Então, eles foram pra esse momento, pra trabalhar.
P/1 - E eles já conheciam gente que estava indo lá, então?
R - Segundo as informações do meu pai e da minha mãe, eles foram através de turma, que chamava, na época… Até hoje chama assim, é uma turma pra poder trabalhar na lavoura na época da safra. Então, o que tinha naquele momento, naquela safra, fazia o trabalho. Então… E até hoje a cidade de Guariba acolhe pessoas oriundas do Norte, Nordeste, pra fazer esse trabalho também.
P/1 - E qual é a memória mais antiga que você tem assim, de pequena? Aquela primeira.
R - Gente, por incrível que pareça, assim, uma das das memórias ótima que eu tenho, era a chuva. Eu era bem pequena, a chuva no telhado… Eu vou chorar! É boa essa memória. Essa memória é ótima, é boa. A chuvinha no telhado, e um mingau… Eu era nova, eu era bebê assim. É um reflexo que passa. Eu tomava mingau, e a minha mamadeira era de vidro. Engraçado! E o mingau assim, não tinha caroço, era aquele mingau bem… Era bem gostoso tomar. Eu lembro. Eu não tenho mais outras lembranças, mas eu lembro dessa. É muito interessante. Lembro dessa e lembro eu com sete anos, a minha mãe fazendo, eles chamam pudim de pão. Eu não sei se vocês já ouviram falar. E aí, eu chegava tarde, de tarde da escola, e tinha a forma com o pudim de pão, pra comer com café. Essas duas coisas.
P/1 - E você estudava ali perto, dava pra ir a pé? Como era o cotidiano de ir para a escola?
R - Dava pra ir a pé. Eu morava numa… Em Guariba, num bairro chamado João de Barro, na Rua do Meio. Nasci em casa, eu não fui para o hospital. Nasci naquela rua, naquele endereço: Rua São João, número 280. E aí, eu ia para a escola, Escola Estadual de Primeiro e Segundo grau José Pacífico. Engraçado. E estudava ali, lembro de algumas professoras, que é a Dona Maria José, que me ajudou no meu ensino fundamental. Eu lembro também bastante disso. Assim, é muito bom, essa lembrança. E de primeiro, o colégio, você entrava… Eu entrava, saía no final da tarde, umas cinco meia, e vinha pra casa. O uniforme era um jaleco branco, a saia plissada azul, uma meia branca, conga ou kichute.
P/1 - E histórias da escola, alguma curiosa, que marcou?
R - Sim. Eu era bem magra, eu sofria, na época, não tinha bullying, né? Mas eu sofria algumas coisas assim na escola, por ser magra, meu apelido era Canhão. Horrível! E Olívia Palito. Tinha esses apelidos. Eu não gostava. Teve uma vez que eu precisei me defender na escola, sempre me batiam, e ninguém tomava providências. E aí, a minha mãe, além de boia fria também, ela trabalhava como costureira. E ela separou do meu pai, eu era bem nova, tinha sete, oito anos. Então… E aí, ela falava para mim, eu chegava em casa machucada, aí uma vez ela falou para mim… Ela me bateu, quando eu cheguei em casa machucada. E ela falou:... De novo. Meu Deus! Tem que cortar. Meu Deus do céu! Tem como cortar, né? Tipo, a história, sabe, de mim. Porque eu vivi ela. Aí, eu apanhei, ela me bateu, e falou: “Você está apanhando, porque quem pode te bater sou eu que sou sua mãe. A partir de hoje, a próxima vez que você vier reclamando que você apanhou na escola, toda vez que você apanhar lá, você vai apanhar aqui em casa. Você vai apanhar duas vezes, Ivanete. Não estou criando filho para ser saco de pancada de ninguém”. E eu fiquei com medo, porque minha mãe era muito brava. Hoje ela não está entre a gente, mas ela era muito brava. Aí, eu lembro que passou um tempo, aí eu na escola, eu fui entregar o caderno para a professora corrigir a matéria e voltar para minha carteira, que era assim. E puxaram a carteira, eu caí, eu estava de saia plissada, caí de mau jeito. Riram muito de mim, e a pessoa que fez isso era um menino, o nome dele era Jader. Aí, eu peguei e falei: “Eu não gostei do que você fez”. Ele falou: “Vou te pegar na saída”. Aí, eu criei coragem. Falei: “Eu vou te pegar na saída”. E aí, quando saiu, eu fiquei naquela se eu voltar em casa machucada, minha mãe vai me bater, então eu vou me defender. Aí, juntou a turminha, a turma do “pega, pega, pega”. Aí, eu estava com uma mochila, uma bolsa, que era daquelas de carregar na lateral, umas bolsas… Joguei a minha bolsa, e ele veio pra cima, e eu bati muito nele. Eu não aconselho meus filhos fazerem isso, mas eu precisei me defender. E a minha mãe foi chamada na direção, eu lembro disso, assim. Minha mãe foi chamada na direção. Eu cheguei em casa, falei: “Mãe, o menino fez isso, isso e isso para mim, e ele falou que ia me pegar na saída” “E você fez o que?” “Eu bati nele!” “Muito bem, muito bem! Agora vai, tira seu uniforme, vá tomar um banho. E eu preparei o seu café” Não tinha… Depois que meu pai separou, a gente… Antes da separação, da minha mãe e do meu pai, eu escolhia o que comer, e depois que minha mãe separou, eu tinha que adaptar o que tinha para poder comer. Aí, chegou a carta que eu tinha que entregar para minha mãe ir na escola. Minha mãe foi para a direção. Eu estava estudando, aí chamou. Isso foi no outro dia. Aí, me chamaram para a direção, que a minha mãe estava na direção, que foi chamada na direção, e que a direção queria conversar, a diretora queria conversar comigo e a minha mãe, junto com os pais do aluno. A minha mãe ouviu tudo. “Olha, sua filha foi muito agressiva, machucou, arranhou toda a cara dele, tá, tá, tá" Minha mãe falou: “É mesmo, e venha cá? E quando a minha filha servia de saco de pancada, vocês não me chamaram na escola? Escute aqui…” Eu não esqueço até hoje. “Escute aqui, vocês não tem o que fazer não? Porque eu tenho o que fazer” “Mas nossa, dona Rose, a Nete, ela foi muito agressiva” “Eu disse a ela, que não era para apanhar de mais seu ninguém aqui, tá entendendo? De se ninguém aqui dentro, porque se ela apanhar aqui, ela vai apanhar lá em casa. E tu tá ouvindo, né Ivanete? Se eu te pegar apanhando aqui dentro, você vai apanhar lá em casa. Quando chegar a surra vai ser maior”. Aí, a direção falou: “A senhora não pode fazer isso, pedir pra tua filha bater” “Ah, e eu posso pedir pra ela apanhar? Eu posso dizer a ela que ela pode apanhar, e vocês não fazem nada. Dê licença, que eu tenho mais o que fazer. Ivanete pega tuas coisas e vamos embora” “Ela está no horário de aula” “A mãe dela sou eu. Vocês não me chamaram aqui? Eu perdi o meu tempo aqui, eu tenho mais que fazer. Simbora, Ivanete! Vá, levanta!” Levantei e saí. “Repete para a diretora, repete para a senhora diretora aqui” “O que mãe?” “Eu vou falar, tu repete" Aí… “Eu não vou mais apanhar" Aí, eu falei olhando pra ela. Ela falou: “Não, fale olhando pra ela" “Eu não vou mais apanhar” “Isso! Senhora entendeu? Tenha uma boa tarde! E o senhor, leve seu filho pro hospital, porque quando ele bateu na minha, expôs a minha, eu também tive que ajeitar do meu jeito" E ficou assim. Foi marcante para mim. Daquele dia eu não apanhei mais de ninguém, e pra mim foi libertador. Eu gritava: “Eu não vou apanhar de ninguém!” Horrível! Mas era a forma de defesa que eu tinha naquele momento. Hoje eu não educo os meus filhos assim. Mas naquela época eu acho que foi necessário, até para eu criar coragem. Porque eu tinha medo de ir para a escola, às vezes me dava medo, me batiam muito, que eu… Sabe, assim… “Mãe, eu não vou pra escola" “Por que tu não vai?” “Eu estou com dor de cabeça" “Deixe de onda, toma um remédio e vá para a escola" Era assim.
P/1 - Que idade você tinha quando isso aconteceu?
R - Sete pra oito anos. E antes da separação deles, a minha mãe, ela era muito brava, assim. Hoje, o que eu sou, eu devo muito a ela. Mas ela era muito brava. E o meu pai tinha que me levar pra roça, que meu pai carregava a turma. Ele tinha que me levar pra roça, pra mim fugir das surras da minha mãe. Então, tinha época que eu não ia mesmo pra escola, porque meu pai me levava pra roça. Que eu apanhava muito, assim. Muito! E ela nervosa, ela gritava que não era a filha dela, que tinha achado na lata do lixo. Ela tinha essas formas de me educar, que era muito agressivo, sabe! E ela tinha problema de alcoolismo, ela bebia muito. E depois que eu fui ficando mais velha, eu fui entendendo também o porquê. Ela era dona de casa, muitas vezes trabalhava na roça. Tinha um pessoal que trabalhava também na roça, e aí dividiu a casa. Então, na casa colocou várias beliches pra ter aquele povo, aqueles homens que trabalhavam na roça, pra pagar pensão, comida. Ela lavava toda a roupa dos pensionistas, e meu pai ficava meio com amantes, essas coisas. Ia pescar com os amigos, mulheres. E aí, isso foi meio que desgostando ela. E aí, ela passou a ser alcoólatra, ao ponto de não conseguir mais largar a bebida. E fazer coisas que não lembrava. No outro dia ela falava: “Eu não lembro o que eu fiz" Sabe?
P/1 - Você teve irmãos?
R - Eu sou eu e mais seis irmãos, irmãs, tudo mulher. Uma nasceu morta. Uma vontade que ela teve de comer um feijão, um feijão que ela passava sempre, e todo dia cozinhava naquela casa o feijão. Ela ficou com vergonha de pedir, e meio que… Eu não sei o que aconteceu. ela fala que ela perdeu por conta disso. Ela teve vontade de comer esse feijão. Tanto é que tentou fazer em casa, mas ela não… Não era a mesma coisa. O cheiro não era o mesmo, então nasceu a falecida. E eu, a minha irmã, a Ivanilsa, a outra veio, a Iranilda, depois deles separados, aí tiveram um relacionamento, aí veio essa minha outra irmã. Que ela tem hoje trinta e poucos anos. Ela é nova de tudo. Só que eu saí de casa com 12 anos, fui mãe solo com 15 anos, trabalhei bastante na roça, que é o que eu aprendi fazer correndo da surra da minha mãe. Então, eu aprendi a trabalhar na roça, eu comecei a ter gosto por todo final de semana ter o meu dinheiro. E aí, fui mãe solo com 15. Aí, tipo, minha mãe ficava com o meu filho pra eu trabalhar. E aí, fora isso, eu fui trabalhar também em Ribeirão Preto, interior também da cidade de Ribeirão Preto. Lá eu trabalhava como doméstica, trabalhei pra vários patrões. Teve um momento que eu fiquei desempregada, não queria voltar pra casa, não queria voltar pra casa da minha mãe, que a gente já não… A gente não se dava mais assim, tanto, como mãe e filha, sabe? Era só longe uma da outra, tinha um carinho pela outra. A gente se aproximava, ela queria me bater, eu desobedecia. Aquela coisa toda. E aí, passou-se um tempo, eu não queria mais voltar. Eu voltava de 15 em 15 dias. Eu tinha que voltar com dinheiro, pra ajudar a minha mãe. E eu me lembro uma vez que eu fiquei desempregada, eu dormi na rua de Ribeirão Preto, rodoviária, nas avenidas. E aí, eu lembro que tinha uma casa de uma patroa, no bairro do Guaicurus, eu falei que eu… Era um quintal grande, bonito, cheio de jardim, dessas coisas. Aí, eu queria varrer, lavar o quintal, a troco de um café da manhã e um almoço. Aí, eu falei: “Eu prometo, eu não entro na tua casa, só me deixa lavar. E você…” “Quanto você cobra?” “Ah, eu só preciso de um café da manhã e um almoço" E aí, a pessoa me deu, me deixou assim. Aí, foi numa dessas que eu conheci uma patroa muito boa, que ela deixou. Aí, fui mostrando o que eu sabia fazer, lavar, passar, cozinhar. Uma casa muito grande, gigante. Mas eu acabava meio que dando conta da minha tarefa, que tinha mais empregados na casa. E essas lembranças também eu tenho. Mãe com 15 anos, de Ribeirão arrumei um parceiro lá, em Ribeirão Preto, onde eu tive minhas outras filhas. Eu já era mãe solo do menino, aí tive minhas outras filhas. A Giovana, de um relacionamento também de um namorado que não assumiu. E aí, quando eu conheci um rapaz, o pai da Nielli, ele falou: “Não, eu assumo a Giovana também" E aí, o Diego continuava com a minha mãe, eu cuidando. Quando deu o Diego, com oito anos, o Diego veio ficar comigo, e ficou nós todos, a Giovana, o Diego. E aí, a Nielli. A Niele eu engravidei porque eu quis. Na época, eu falei: Caramba! Ele cuida de dois filhos, eu vou engravidar. Pra também dar um filho, ou uma filha para ele. Aí, engravidei da Nielle. Só que depois que eu tive a Nielli, e eu descobri traições, eu vivi violências domésticas, relacionamentos abusivos. A ponto de menosprezar. “Se eu largar de você, quem vai querer você com esse monte de filhos? Quem vai querer você com a barriga coberta de estrias" De eu dar a resposta para ele também. Apesar de nunca ter me importado. Eu queria ser feliz independente do relacionamento. Eu queria ser feliz assim, sabe! Mas quando ele me feriu com palavras, eu encontrei também palavras para ferir ele. E até me desculpa, eu vou falar. Quando ele disse pra mim. “Quem vai te querer cheia de filhos, com a barriga coberta de estrias" Eu disse a ele: “As minhas estrias apaga na luz, agora o tamanho do seu, nem no escuro" E aí, a gente ficou… Se fechou um para o outro dentro de casa. Tipo, eu não me trocava na frente dele, nem ele se trocava na frente. Nós ficamos praticamente dois a três anos separados de corpos, tudo, dentro de casa. Assim, uma loucura! Mas eu consegui viver. E ele me batia, batia. E aí, veio a memória da minha mãe. E aí, eu vivi esse relacionamento abusivo, a violência doméstica. Aí, veio a minha mãe na memória de novo. Aí, ele me bateu. Eu morava num cortiço. Aí, ele me bateu, ele falou: “Olha, eu vou trabalhar, e a turma vai querer brincar comigo, eu vou falar que eu não quero brincar com ninguém porque eu estou nervoso, bati na mulher" E eu sempre sofrendo esse tipo de agressões. Aí, teve um dia que eu revidei. Falei: Ah, não, se eu tiver de me machucar, então eu vou me defender. Eu fui pra cima dele. Ele veio pra cima de mim, e eu fui em defesa. E cortei toda a cara dele na unha, bati, soquei. Tudo que tinha direito naquele momento de defesa eu fiz. Aí, ele falou:... Quando tudo passou, ele falou: “Como é que eu vou trabalhar assim? Olha pra minha cara, olha pra mim. Como é que eu vou trabalhar desse jeito?” Eu falei: “Você vai chegar na empresa e vai dizer: Não brinca comigo hoje, que eu estou nervoso. Hoje eu apanhei da mulher" E falei pra ele: “A partir de hoje eu não vou apanhar mais você. A partir de hoje eu não vou apanhar mais de você. E tem mais. Se você subir, eu desço. Se você for pra esquerda, eu vou pra direita. Porque se você pode, eu também posso. Se você pode ter uma mulher, eu também posso ter um relacionamento que eu quiser. Então, acho bom… Você fica na sua que eu fico na minha" Chegou um momento que não deu. Falei: “Olha, não dá mais, procura o teu caminho que eu vou procurar o meu" Foi quando eu entrei para o movimento, e fui entender a importância da luta. E que mulher não tinha que se comportar dessa forma. Que eu achava que tinha que ser desse jeito, que o marido tinha que bater, e você tinha que estar lá, com o prato de comida pronto pra ele comer, sabe! Não. Aí, eu fui entender no movimento, que não é assim! Os respeitos, eles são mútuos. É importante. Me separei. Ele vivia dizendo “quem ia me querer, que ia me querer, quem ia me querer”. Hoje eu tenho um…. Eu moro com um companheiro já há 17 anos. Quase a idade da Ocupa Mauá. Porque foi mais ou menos isso, assim, quando tinha um mês de relacionamento a gente ocupou a Mauá. E aí, ele nunca encostou um dedo em mim, me chama de vida o tempo todo. Há 17 anos. Se a gente conversa no telefone, ele fala: “Oi, minha vida, tudo bem? Boa tarde! Boa noite! Como é que você está?” Quando termina. “Tchau vida, te amo!” “Eu também te amo" E é 15 anos mais novo do que eu. Para quem dizia que eu não ia conseguir. Construí uma família. E eu quero aproveitar esse momento, e dizer para a mulher: Ela é feliz como ela quiser. Ela é feliz se ela quiser ficar só, ela é feliz se ela quiser ficar com outra mulher, ela é feliz se ela quiser ficar com outro homem. Depende dela. A escolha é dela. O que não pode ela ficar presa num relacionamento que deixa cada dia ela doente, cada dia ela menos, cada dia ela diminuída. E aí, voltando pra minha história. Conheci o movimento de moradia, através de uma luta. Morava em situação de rua, embaixo do Viaduto do Glicério, em São Paulo.
P/1 - Antes, então… Que eu quero muito ouvir isso de como começou o movimento. Mas duas coisas, como é que foi essa saída de casa aos 12? E depois, como é que foi a sua vinda para São Paulo? Quando você decidiu? Daí a gente já vai encaixando.
R - Bacana! A minha saída de casa, aos 12 anos, foi quando eu comecei a trabalhar em Ribeirão Preto. Porque eu queria sair da roça. Eu peguei gosto por trabalho. Deixei de estudar. Não aconselho ninguém a fazer isso. Mas eu deixei de estudar. Por que eu fiz isso? Porque eu fugia da surra da minha mãe, e meu pai me levava. E aí, eu comecei a ter gosto por dinheiro. Todo final de semana eu tinha o meu pagamento, porque na cana, ou no algodão, dependendo da safra, todo final de semana você recebe o que você trabalhou durante a semana. E aí, eu gostei da ideia. E quando eu ia para a escola, eu passei a estudar à noite. E quando eu ia para a escola, eu dormia na sala de aula, na quinta série, porque eu não dava conta, eu levantava muito cedo, e aí quando era oito horas, eu roncava assim, debruçada na cadeira. Então, eu falei: “Não, então eu vou sair, vou trabalhar em Ribeirão Preto" Foi antes do ECA, então podia, podia estudar à noite, podia trabalhar. E foi aí que eu… Aos poucos eu fui me afastando de casa, eu fui pegando gosto de ficar… “Ah, eu vou trabalhar em Ribeirão Preto e volto de 15 em 15 dias. Eu vou trabalhar e volto de um mês" E foi assim. É na cidade de Guariba, até hoje tem isso, sabe? Você pode, porque na cidade não tem geração de emprego e renda. Então, você pode sair, você pode trabalhar, e você pode voltar. Com a família. Em diálogo com a família. Então, eu acabei fazendo isso. Vim pra São Paulo, com essas indas e vindas de emprego, de trabalho. Foi onde eu conheci o pai das meninas, sabe! E aí, com 22 anos, eu vim para São Paulo. Então, aos 18, 19 anos, eu conheci ele. Com 20 anos a gente foi morar junto, 22 anos, eu vim para São Paulo. Ele veio na frente, ver como é que era, e aí a gente veio. Aqui eu morei em cortiços, pensões, no Cambuci, na Miguel Teles Júnior, fui pra Vila Guarani, também morar numa casa, não podendo mais pagar o aluguel, aí foi que eu vim morar em situação de rua e na rua. Com 22 anos. Foi 3 a 4 meses morando na rua, embaixo do Viaduto do Glicério, com as filhas, porque o menino eu mandei para a casa da minha mãe de volta, porque eu pensava assim: o menino, ele já estava um pouco mais de idade. Por exemplo, já estava com nove, dez anos. Eu tinha receio, medo de violência, de perder para o tráfico, essas coisas. E a menina, as meninas, elas eram bem pequenas, então eu tinha esse controle. Então, eu falei: o menino vai para casa da minha mãe, eu vou ficar com as duas meninas. Aí, fiquei morando em situação de rua, na rua, com elas. E foi aí que eu conheci o movimento de moradia.
P/1 - Como foi isso?
R - Chegou um grupo de pessoas, um mutirão, entregando um pedaço de papel. “Venha participar da reunião pela moradia. Grupo de base, hoje, Rua Tamandaré, tinha o número, às 19h00" Aí quem foi, nessa época, foi o pai das meninas. Ele que conheceu o movimento, o grupo. Aí, a gente participou de umas três reuniões. Fomos para a primeira ocupação. A primeira ocupação foi dentro de um hospital, na Rua Itapeva, antigo Hospital Matarazzo. Veja bem, que interessante assim, eu ficava na rua, ali era bom até um certo ponto, a rua. Porque eu passava fome para pagar aluguel, e na rua existem os anjos da noite, que não permite que você passa fome, que leva o alimento, o pão amanhecido, mas que é bem vindo, o chocolate na garrafa pet, a marmita. Em época de festa também é comemorado, eles lembram dos moradores em situação de rua. Então, eu achava bom nesse ponto, porque eu não passava fome. Mas eu não tinha a minha privacidade. Uma janela para abrir, uma porta, um banho para tomar. O banheiro era de vez em quando. Eu tinha o cabelo mais comprido, então imagina. Então, banho, era de vez em quando que eu tomava. Então, quando eu fui para o hospital, eu achei uma maravilha, assim. No começo eu tive medo por ser hospital. Eu achava que eu ia pegar uma bactéria, que eu ia pegar uma doença. Hospital desativado. Aí, foi quando ele me sacudiu, pai das meninas, falou: “Olha, a gente volta para a rua. Só que é o seguinte: eu vou fazer alguma coisa errada, porque eu não quero ficar na rua. E se eu for preso, você não vai me abandonar lá" Foi quando eu olhei, e falei: “Caramba, aqui está maravilhoso! Vamos ficar aqui! Olha o tamanho dessa janela, uauuu!” Isso mesmo! Foi bem isso mesmo! E fiquei num quarto de internação, que foi minha casa por nove meses. Uma gestação, nove meses. Nove meses, a moradia. Aí, de lá, tinha um despejo já programado. A gente foi morar também num prédio ocupado, na Rua Ana Cintra, 123, esquina com a Avenida São João. Morei ali. E junto com outros companheiros, a gente ocupou também a Armênia, que era a antiga… O imóvel era da antiga Secretaria do Estado. Secretaria de Segurança Pública do Estado. Aí, a gente ocupou ali para os outros também, que precisavam da moradia. Mas eu permaneci ali, por mais uns dois anos, na Rua Ana Cintra, 123. A gente conseguiu fazer com que a CDHU comprasse o imóvel. Só que a CDHU não queria reconhecer as famílias ali como demanda, prioridade, essas coisas. Depois de muita luta, reconheceu alguns moradores. E eu permaneci na luta. Como não tinha esse acordo, eles queriam tirar a gente dali e levar para um outro atendimento. A gente queria ali. Aí, algumas famílias foi encaminhada para o Pari, Canindé, Unidade Habitacional. E aí, ficou algumas famílias que não tinham para onde ir mesmo, e que queria ali. A gente fez estrategicamente um aniversário, porque tinha seguranças da CDHU tomando conta do prédio. Aí, fizemos um aniversário com bastante gente. Aí, quando os seguranças foram ver, o prédio estava reocupado. A gente fez isso para garantir o atendimento das outras famílias que estavam ali, esperando a moradia. Ficamos ali por mais um ano e pouco. Veio a ordem de despejo. A gente ficou na rua, ali na Rua Frederico Steidel, a gente fez barracas mesmo, assim, tipo um alojamento. Nós construímos ali para 97 famílias. Aí, a gente ficou morando ali. Tinha um senhor, que ele era completamente antissocial. Nossa, ele vivia tirando a nossa paz ali, sabe! Na rua Frederico… Acho que ele mora ali até hoje. Tirava a nossa paz constantemente. E a partir dali, a gente conseguiu o programa do Parceria Social. Que era na época que a Marta estava no poder, administrava municipal. E aí, a gente, através de muita luta, a gente conseguiu parceria social. Porque ali já era conselheira municipal de habitação, a gente já conseguiu alguns atendimentos. E o Parceria foi um desses. A gente conseguiu garantir o atendimento de 97 famílias.
P/1 - E tem toda uma dinâmica própria, né? De lidar ali ocupação. Tem as regras que têm que ser bem pensadas e cumpridas, para a coisa acontecer. E é muito ser humano diferente convivendo ao mesmo tempo. Então, tem algo que você lembra desse período? Alguma história?
R - Da minha parte, dentro da ocupa, você está dizendo, é isso, né?
P/1 - É! Causos, às vezes.
R - Tem um caso. Ainda no Hospital Matarazzo, foi ali que eu acordei pra coordenação. Acho que é importante. Teve um momento, porque assim, a ocupação, ela parte dos coordenadores, mas a estrutura de alimentação é das famílias que fazem parte do trabalho de base, que está ali no trabalho de base. Então, por exemplo, pra manter a cozinha coletiva, é com nossas doações. Então, quem tem, leva, quem não tem, come junto. Mas quem tem é importante levar. E aí, chegou um momento que foi feita uma assembleia, e a coordenadora falou: “Gente, a partir de amanhã não tem comida na cozinha”. E eu, muito tímida pra conversar, veio, saiu, no desespero, veio, por que? Aí, no meio do povo. “Por quê?” “Porque não tem comida. Então, a partir de amanhã está suspensa a cozinha coletiva, porque não tem comida. Acabou a comida. Quem abastece a cozinha somos nós, com quilinhos, cada um doa um quilo. E não tem mais. Acabou!” Falei: Meu Deus! E agora? Fui pro quarto, para o meu espaço. Conversando com as mulheres do meu corredor. Aí, falei. “E agora?” Tinha a Aparecida, sobrenome dela, Aparecida Aranha, Maria Aparecida Aranha. Aí, eu falei: “Não tem comida na cozinha, vamos pedir!” Porque eu fui moradora em situação de rua, e eu tinha coragem de pedir, eu só tinha vergonha de falar, mas pra pedir eu conseguia. “Vamos pedir!” Aí, ela falou: “Ah, Nete, eu tenho vergonha" Aí, eu falei pra outra. “Vamos pedir?” “Ai, eu morro de vergonha" E foi quando eu falei: “Vamos fazer assim meninas, eu peço e vocês me ajuda a carregar" Eu já estava naquela fé que eu ia conseguir tudo, eu ia conseguir muito. Eu falei: “Então, eu vou pedir e vocês me ajudam a carregar. Cada um de vocês leva um carrinho, e vamos lá! Vamos pedir!” E o Hospital Matarazzo, fica ali próximo a Bela Vista, na rua Itapeva, tal. E aí, eu fui naqueles mercados vizinhos pedir. Então, o arroz que tem aquele furinho, o gerente doou, o feijão, a bolacha. E naquele dia tinha feira. E tinha também um lugar que vendia frango ali. Aí, eu fui pedir as carcaças do frango. “Tem como doar para a gente as carcaças, pé, o que não for vender, doa pra gente" Aí, o rapaz doou pra gente bastante carcaça. Teve um carrinho só com carcaça. Aí, passei na feira, peguei aquelas frutas que fica com machucadinho, a gente pegou bastante. E vamos embora agora, que isso aqui dá pra algumas horas. Que era muita gente. Aí, cheguei, falei: Olha… Falei pra coordenadora. “Não tinha comida, a gente foi atrás. Agora acho que da pra…” E ninguém tinha comido ainda. Era uma hora da tarde, ninguém tinha comida ainda. Aí, falei: “Dá pra gente comer agora, né?” Aí, ela falou: “Qual que é os seu nome?” Eu falei: “Nete" “Que grupo é o seu, nete?” Eu falei: [Sinimbu]. “Sinimbu? A coordenadora da Sinimbu sou eu, nunca te vi lá" Eu falei: “Porque é o pai das minhas filhas que participa" “Quem é?” “Fulano" “É fulano?” “É!” “Ah, que legal, Nete! Seja bem-vinda! E olha, você quer fazer parte da coordenação?” Falei: “Que isso?” “Olha, Nete…” Eu lembro até hoje a palavra dela. Coordenadora, era Odete, o nome dela. “Nete, a coordenadora, não é que ela tem que fazer para, ela tem que fazer com, porque a luta não é para você, ela é com você" E eu carrego isso até hoje comigo. A luta não é para mim, ela é comigo, contigo, conosco. E aí, eu falei: “Tá! Eu quero ajudar. Você vai me explicando e eu vou fazendo" Ela: “Tá bom! Tudo bem!” Aí, eu lembro que eu levei a comida para a cozinha, aí eu estava saindo, aí juntou um grupo e falou: “Vem cá, vocês! Ajuda a gente cozinhar" Ela falou: “Não, elas foram buscar, você vai cozinhar, e você vai lavar as panelas no final. Tudo bem assim?” Então, fez a divisão de tarefas ali, naquele momento. E esse momento foi muito marcante para mim. E aí, como é que eu comecei… Aí, quando foi a noite, teve a reunião de coordenação. Eu desde sempre tenho um problema de memória. Eu tomo remédio para memória, mas se você perguntar o nome do remédio, eu não lembro. Eu tenho problema de memória. Então, eu carrego comigo sempre um caderno para anotar, se não eu esqueço. E eu fui para a reunião com o caderno, e conforme ia falando, eu ia anotando, para mim não esquecer o que tinha sido dito naquele dia, e tal. “Nete, você quer ser a secretária do nosso movimento?” Eu falei: “Mas o que que faz uma secretária?” “Registra a ata, relatório. É isso, aquilo, aquilo outro" Eu falei: “Mas eu não sei fazer. O que é isso, ata?” Então, foi explicando tudo para mim, sabe! E aí, que eu fui me aprimorando dentro da luta. Eu fui entendendo que eu tinha problemas com a questão da moradia, estava sem a moradia, mas tinha pessoas que precisavam do meu incentivo. Através de trabalho de base, através da minha história. E aí, foi onde eu me inseri ali, junto com as companheiras, a maioria era mulher. E participei, passei a fazer parte do movimento de moradia. Passei como coordenadora, secretária, coordenadora geral. E assim foi indo a minha construção dentro da luta.
P/1 - E sempre no mesmo movimento?
R - Não! Não foi no mesmo movimento. Eu comecei como Fórum dos Cortiços Sem Teto de São Paulo, que é a coordenadora era a Verônica Kroll. Depois a gente formou juntou, através de uma ocupação na zona leste, do Hospital das Mulheres, desativado. Ali nasceu o movimento sem teto do centro, MSTC. E ali, eu fui coordenadora geral do MSTC. Por algumas questões assim… Foi conflito de ideias. Nasceu o MMLJ. Aí, hoje eu estou no MMLJ. O MSTC, com a companheira Carmen. E o Fórum de Cortiços, continua com a Verônica Kroll.
P/1 - E tem uma articulação entre os movimentos, uma conversa, vocês chegam a dialogar estratégias também?
R - Existe uma conversa sim, com os movimentos organizados. É importante, até mesmo quando tem uma pauta única e a luta precisa ser maior. Então, é importante a gente se unificar para buscar aquele, aquele propósito. Aquela proposta, aquela reivindicação, moradia. Vamos pegar um exemplo: O Fundo Nacional de Habitação, nasceu através da luta. O Ministério das Cidades, nasceu através da luta. Muita luta! De todos os movimentos. Nós estávamos lá, todo mundo junto, brigando, indo para Brasília, colocando a importância de ter um olhar para o déficit habitacional, por conta da falta das políticas públicas, voltado para moradia. Então, é importante. E existe sim, esse diálogo. Somos todos autônomos. Se, por exemplo, amanhã o MMLJ falar: “Olha, vamos acampar na porta da prefeitura" Como já foi feito. E feito! E os outros movimentos têm as suas lutas também. Agora, quando tem uma pauta única, se junta todos.
P/1 - E como é que foi o processo aqui da Mauá? A ocupação, a organização para isso?
R - Nós estávamos, como eu disse, no Parceria Social. E um dos imóveis era ali na Rua Santa Rosa, 129, se não me falha. Pra quem esquece, até que eu estou bem!
P/1 - Está lembrando muita coisa, viu! O nome da escola, das professoras…
R - Coisas que marcam. Eu esqueci até de falar da minha professora de atletismo, que é a Belinha. A professora Belinha, de atletismo.
P/1 - Você gostava?
R - Eu amava ela. Ela mesmo gravidona, ali. Ela estava ali à disposição para poder me ajudar nos treinos. Era bem legal!
P/1 - Você gostava de treinar?
R - Gostava. Gostava muito. Tanto é que a minha mãe me pagou uma aula de… Quando eu era criança de datilografia. Eu desviei a verba, eu paguei aula de artes marciais. Eu gostava! Eu amava! Mas aí, a pergunta é?
P/1 - Se quiser, a gente fala de artes marciais agora também.
R - Não. A pergunta é?
P/1 - Da Mauá?
R - A Ocupação Mauá? A Ocupação Mauá, nós viemos do parceria, do término do Parceria Social. E aqui são três movimentos, que estão aqui agregados, através da gente. Tem a gente do MMLJ, tem o Nelson do MMCR, e tem a Raquel da ASTC SP. Antes, nós éramos MSTC, MMCR, o Nelson, e MST, alguma coisa, que era do movimento do Hamilton. Tinha uma outra sigla que eu não me recordo agora. E aí, a gente tinha ocupado, acampado na porta da prefeitura, reivindicando atendimento para as famílias do Prestes Maia, lá atrás, as famílias que ocuparam em 2002. E os movimentos, eles acabaram meio que sendo isolados, eles foram excluídos. O poder público deixou eles de lado. Olha, para você ver como é que as coisas. Era um governo popular, que ocupava as cadeiras, representantes dos movimentos popular. Mas para nós, como movimento social, independente da sigla do partido, se houver a necessidade de fazer luta, é necessário que seja feito. Não é porque tem um movimento popular voltado para a questão social, que muitas vezes esquece, que a gente vai deixar que continue esquecido. Não! A luta continua. Então, a gente fazia essas lutas diretas, ocupava, sabe! Botava o dedo na ferida, no problema. E isso incomodava quem estava na cadeira. Aí, isolou a gente. O que que eu fiz? Convidei o Nelson. Aí, o pessoal de Hoje o ASTC SP. “Vamos fazer uma luta, a gente tem um prédio para ocupar, esse prédio está assim, assim, assim. Já foi ocupado em 2002, continua fechado, com imposto devendo.” E não é justo. A palavra que eu usei, é o seguinte: não é justo as pulgas viver melhor que o ser humano. Porque aqui era lotado de pulga. E aí, foi quando a gente fez a segunda ocupação, porque a primeira foi em 2002, 2003, por aí. Aí, a segunda ocupação, dia 25 de fevereiro de 2007. Foi isso! E a gente se organizou com os três movimentos aqui, internamente, fazendo as reivindicações. Esse prédio aqui já teve várias ameaças de reintegração de posse. Ele ia ser demolido, ele ia ser demolido para que passasse aqui, ligando a Cásper Líbero a uma área de entretenimento. E estava sendo discutido isso dentro de uma preparação para o Conselho de ZEIS (Zona Especial de Integração Social), aqui na Doutor Couto de Magalhães, um prédio que tem aqui, que o pessoal chama de Instituto do Lula, que é do lado aqui do Teatro de Contêiner. E aí, estavam ali, a secretaria completa, discutindo o Conselho, mas sem a gente. “Vamos ocupar o conselho”. A gente foi ocupar o Conselho, e chegamos lá, fizemos questão de ter o nosso espaço. E mostramos, provamos para o poder público, que esse prédio não é simpático de demolição, e sim de reforma e construção para os moradores que aqui vivem. Fomos para dentro desse conselho, junto com a Simone, a Paula Ribas, e a Simone Gatti, que é importante deixar bem claro. Estava junto com a gente sempre. E aí, a gente apontando, mostrando, que a luta aqui era de demolir mesmo, assim como foi demolido os outros prédios aqui no perímetro. E aí, a gente conseguiu que tirasse essa ideia da demolição. Ainda vivemos às sombras do despejo. O poder público com propostas, mas sem incluir as famílias. E a gente com uma contraproposta, e mostrando para o poder público que tem família, que são famílias que estão aqui, que merece respeito, merece morar aqui. E que se hoje tem uma ZEIS, foi por nós. Através da nossa luta. Esse prédio é uma ZEIS. Zona Específica de Interesse Social através da nossa luta. Então, isso é muito importante para nós. Queremos… Aqui eu… Eu sozinha não, a entidade. Ela cadastrou para o Programa Pode Entrar. E a entidade, ela foi, tá lá, foi habilitada. E a ideia é apresentar esse imóvel para o Programa Pode Entrar, que atendam as nossas famílias. Assim como o Prestes Maia hoje.
P/1 - E como é o cotidiano aqui na ocupação? O dia a dia, a convivência? Quem mora com você hoje?
R - Olha, aqui tem… Quem mora comigo são os meus filhos. Porém, eles estão no interior, junto com o meu esposo, fazendo um trabalho no interior. Exterior. Olha, chique! No interior. E através disso, eu deixei meus filhos lá para estudar. Aí, eu foco na luta aqui, dá um espaço, eu corro para me encher de energia, energia boa, que são os meus filhos, meu esposo. Aí, eu volto para a luta novamente. Então, aqui eu estou desse jeito. Mas aqui o nosso dia a dia é como se fosse uma família. Tem dia que está bom, tem dia que está ruim, e tem dia que está péssimo. Aqui nós temos briga de crianças, aqui nós temos brigas de adultos. Mas aí existe a reunião que chama mediação de conflitos. Aí, através dessa mediação de conflitos. A gente já fez até se abraçar, e dizer: Olha, se a reintegração de posse bater aqui, e o sistema vier bater, vai precisar dar a mão. Então, já começa a se entender agora, porque havendo a necessidade, precisa se entender. Um olhar para outro e falar: Segura forte! Então, é importante. Não tem só briga! Aqui nós somos uma família. Então, festas, umas acabam se doendo com a dor da outra, acaba… Por exemplo: “Ai, eu não tenho com quem deixar meu filho. Poxa, eu estou precisando trabalhar! Então, você fica com meu filho, eu te dou tanto?” “Sim!” Sabe, assim! É muito bacana isso assim. Existe essa essa junção, sabe! Esse companheirismo. “Nossa, tá sabendo, a fulana tá sem uma gota de arroz na casa dela”. “Então, vamos se organizar, porque a gente até então não sabia. Então, vamos entender o que está acontecendo e vamos ajudar a fulana”. “A ciclana, está vivendo um relacionamento abusivo”. “Com quem?” “Com o esposo”. “Convida ele a se retirar, porque no nosso meio não cabe”. “E se ele não se retirar a gente…” Já teve momento da gente sentar de frente com o agente violador, do direito, e dizer: O senhor precisa se retirar, porque aqui não dá. E não foi uma determinação só minha, e sim de um coletivo. Foi aprovado em assembleia. “Ah, não vou sair”. “Ah, vai! Vai!” A gente acompanha, pega as coisas, e ele se retira. Agora, se for muito achar que ele pode, que ele é o tan tan da situação, ele sai, e quando ele refrescar a mente, ele vem acompanhado com a coordenação e retira as suas coisas, mas não fica mais entre a gente. Tá certo! Existe situação que a pessoa, a mulher fala: “Aí, eu preciso dele!” “Tudo bem! Você precisa dele? É você que está dizendo, não sou eu que vou interferir no seu relacionamento. Precisou? Precisou! Tá bom! Ela está autorizando, deixa ele entrar”. “Socorro! Ele está me batendo”. “Vai os dois agora. Porque não foi falta de avisar”. Entendeu? Mais ou menos assim. Que nós não podemos ser coniventes com situações assim, sabe! “Nete, o que pode aqui dentro?” Viver em harmonia, por favor! Não dá tanta dor de cabeça, que dá trabalho. Harmonia é muito bom, faz bem para saúde.
P/1 - E o que você faz de lazer, momentos para se divertir?
R - Eu, particularmente, eu gosto muito de sair com a minha família. Eu gosto de tirar um lazer com a minha família. Então, às vezes, eu estou tão aqui focada, que eu não consigo sair. E aí a minha filha mais velha, Giovanna, fala: “Mãe, alugamos um rancho e eu estou te esperando. Vem!” Eu vou! “Filha, mas eu tenho…” “Mãe, só está faltando você. Você vai vim, ou não vem?” Sabe! E uma coisa que eu acho importante dizer também, que de primeira eu não pensava em mim a minha vida era em volta do coletivo. Eu deixei muitas vezes de viver, em prol do coletivo. Aí, eu viajei uma vez, primeira vez de avião. E eu escutei a comissária de bordo falar: “Máscaras cairão sobre as suas cabeças, primeiro você e depois os outros" Aí, eu falei: “Nossa!” Falei: É ruim, hein! De repente, Deus me livre guarde, meu filho está aqui do lado, eu vou eu, para depois meu filho. Aí, eu fui entender o porquê. Porque se eu tiver bem, eu vou conseguir ajudar. Então, eu preciso estar bem espiritualmente, estar bem de estrutura, saúde, pra mim poder ajudar o próximo. E parece que não, mas aqui acaba mexendo no psicológico da gente. São muitos problemas. Teve uma época, o meu filho mais velho, ele sofreu dois acidentes. O primeiro ele teve a perna esquerda amputada, o segundo acidente ele ficou cadeirante, ficou com algumas sequelas. E eu me lembro que no primeiro acidente dele, eu eu estava aqui, ele estava no interior. E a família bateu na porta, e eu tentando arrumar um jeito, como eu ia fazer para ver meu filho? A família bateu na porta, quando eu atendi, um casal e a criança. “Vai, fala para ela" “Você bateu na minha cara. Conta para ela que você me bateu. Dona Nete, ele me bateu" E eu estava, assim, completamente estragada, espiritualmente. Cruzei meus braços. Gritava, gritava e gritava. Eu falei: “Escuta…” Assim, ó, nesse som. Não é sempre, mas nesse dia foi nesse som. Eu estava acabada, eu tinha informação que meu filho corria risco de vida. Aí, eu falei: “Escuta, o que acontece com vocês? Vocês querem separar? O que está acontecendo? Por que você bateu na cara dela?” “Porque ela falou isso e isso pra mim" “Não podiam dialogar? Olha o exemplo que você está passando pro teu filho. Ele pode fazer isso com a futura esposa dele?” “Não, Dona Nete, Deus me livre!” “Ah, e você pode fazer com a mãe dele? O que vocês esperam da vida? Vocês estão aqui só para passar uma chuva, por conta do endereço, para buscar o seu futuro. Mas esse é o futuro? O que vocês querem?” “Verdade, Dona Nete" “Oh, fulano, me respeita, me perdoa" “Não, mas foi você que começou" “Oh, esse foi você que começou, vai começar de novo. Vamos parar com esse ‘você começou’ e vamos entender que existem erros, e os dois lados estão errados, e se não entender essa parte vai ficar difícil. Quem sofre é a criança. Vocês deixam de ser esposos, mas e os filhos? E se não quiser também, está tudo bem. Só não quero que desrespeitem na frente da criança" Aí… “Não, está certo! Você me perdoa?” “Perdoo" “Da próxima vez, bata com mais calma, procura saber primeiro como é que eu estou, que agora eu vou dizer para vocês. Já resolvi o problema? Dá um abraço em vocês. Prova que vocês se amam" Abraçaram, se beijaram. Falei: “Eu estou com o meu filho correndo o risco, tive a informação que perdeu a perna esquerda, e eu estou caçando um jeito, como é que eu vou fazer para ir lá? Porque eu estou sem estrutura psicológica". “Meu Deus” Falei: “E desse jeito” “Mas já me ajuda se não brigarem tanto aqui dentro" E essa conversa valeu tanto, diálogo assim, sabe! Que eles aprenderam a se respeitar. Tem a diferença, sentar para conversar. E de vez em quando em assembleia eu passo, é importante, sabe! Não é obrigado a viver. Se não quer, não é obrigado a viver. Mas deixa o espaço livre. Para que a pessoa possa ter liberdade de dizer um para o outro que não dá. E isso!
P/2 - Nete, como você se cuida?
R - Em que sentindo?
P/2 - Colocando a máscara primeiro em você? De oxigênio. O que te faz bem?
R - Espiritualmente, eu converso muito com Deus. Eu não vou para a igreja, por conta… Eu não me apego à placa. Então, eu me tranco no meu quarto, e troco uma ideia com o Senhor Jesus na minha vida. A conversa é muito boa, sabe, assim. Me alivia. Principalmente quando eu estou mal da mente. Não tem psicólogo melhor. Como aqui também não tem psicólogo na rede pública, então tem que buscar o Divino Espírito Santo. E eu tenho que olhar para mim, e dizer para mim, por mais que eu não esteja bem. A minha pressão antes de ontem chegou a 19 por 16. Ela já chegou 24 por 13, por 14. Ontem, ela estava 19 por 16. É uma dor de cabeça super chata, que não passava de jeito nenhum. E aí, eu resolvi, lógico, eu tenho meus medicamentos que eu tomo para pressão, essas coisas. Eu resolvi eu conversar comigo, entendeu? Porque eu acho que é importante. Não existe pessoa melhor para mim confiar os meus segredos, a não ser a mim mesmo. Então, eu conversei comigo, sabe! Eu sento na minha cama, muitas vezes eu olho para o espelho, e eu converso, vocês não tem ideia de como eu dialogo comigo. Eu falava: “Caramba, eu não acredito que eu fiz isso. Poxa vida, cara! E aí, você vai fazer o quê?” Porque nós também temos problemas pessoais, e não são poucos, são vários. Aí, eu falo: Meu Deus, como é que eu vou lidar com isso? Aí, eu vou para o espelho. “Calma! Começou assim e assim, assim. E se você tentar por aqui”. Eu converso comigo. Parece mentira, mas é verdade. Eu dialogo comigo, não tem coisa melhor, sabe! E gosto de sair só, não sou muito fã assim, de muitos barulhos, essas coisas. Engraçado, não sou! Então, eu resolvo ficar com a família. E na hora que a família tá todo mundo. “Uh, uh, uh!” Eu falo: “Gente, então para mim aqui deu, to indo pro meu quarto, obrigada!! E no outro dia eu fico. Mas é com a minha família, entendeu? É desse jeito que eu me cuido.
P/2 - Nete, você falou que teve filho aos 15 anos, né? Eu queria saber como foi esse processo, o que a maternidade representou para você? Porque ao longo da sua vida você teve vários momentos, né? E aí, eu queria saber como chegou esse primeiro filho, qual foi a grande mudança na sua vida?
R - Bom, primeiro eu não sabia nem como que eu ia fazer, sabe assim, porque por eu ser de família completamente conservadora, meu pai e minha mãe, então meu pai… Meu pai não, mas a minha mãe não me preparou nem na época que eu fui mocinha, não sabia nem como usar um absorvente, o paninho, que na época era assim. Não sabia! Imagina eu grávida. Não fiz o pré natal, não fiz! Quando eu fui entender que tinha que fazer, já estava prestes a ter. Tomei uma surra da minha mãe, de oito meses, porque a minha mãe, como eu disse, tinha problemas de alcoolismo, então, ela me deu uma surra e eu fui parar no hospital, e teve que encaminhar para cesárea urgente, assim, sabe! E quando ele nasceu, eu não entendia, não sabia. Eu sabia que eu tinha um filho, mas eu não sabia o que fazer, sabe! Chorava, porque dá o peito, dói. E eu não tinha essa preparação nenhuma. E fiquei naquela. “Como que eu vou cuidar? E agora, o que eu vou fazer?” Em alguns momentos a minha mãe me ajudou, ela me explicava. Depois que eu tive ele. Como é que eu tinha que fazer. E foi isso, assim. Depois que eu também passei a entender que aquela responsabilidade é minha, eu passei a amá-lo, a cuidar. E eu sempre falo, Diego nasceu no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher. E aí, eu falei, “nossa, que data tão especial para mim!” E eu fui entender que essa data é especial para mim também, depois que eu entrei no movimento, porque eu também não sabia, sabe. “Caramba, o meu filho nasceu no dia oito. No dia oito o meu filho me tornou mulher, me tornou mãe”. Sabe assim? E ele conseguiu também sobreviver numa época bastante conturbada, pra mim! Bastante conflituosa. Porque é aquilo, eu tinha que trabalhar, a minha mãe, por sua vez, ela tinha o lado dela bom, mas por conta da bebida, tinha esse outro problema. E eu tive que ficar ali, driblando tudo, entendeu? É isso, assim. A lembrança que eu tenho, tanto é que eu falo, para os meus filhos mais velhos, eu achava que eu tinha que cuidar embaixo do regimento que eu fui cuidada: “Escreveu, não leu, o pau comeu”. E a minha mãe, eu tinha mais de 30 anos, já ia para quase 40, quando ela me disse a primeira vez que me amava. Ela nunca tinha dito isso. E eu achei que era normal também não dizia para os meus filhos. Quando eu conheci o movimento, eu passei a fazer reuniões com eles, a entender o que a gente podia fazer para melhorar em casa. E para os pequenos, eu comecei a falar, mas era travada em mim. Comecei a falar que eu amava bastante. E no automático, os grandes começou a receber também. Mas é isso. Antigamente eu cuidava da mesma forma que eu fui cuidada. E aí… Consegue entender que o movimento me ajudou e muito? Quem entra no movimento em busca da moradia, encontra outras saídas. Encontra também outras portas. Assim como eu encontrei. Ainda bem que eu não uso maquiagem. Eu não uso.
P/1 - E o que você tem de planos hoje? Planos para o futuro. Sonhos?
R - Lá vai eu, o meu primeiro sonho, ele não está enquadrado em mim e na minha família, tá? O meu primeiro sonho está voltado, por incrível que pareça, para o coletivo. Meu sonho é encaminhar a demanda Prestes Maia. Desculpa! Encaminhar a Demanda Mauá, encaminhar a Demanda Ipiranga, e a Martins Fontes, para o programa habitacional, para essas famílias. Esse é o meu sonho. Inclusive, eu incluo nas minhas orações esse pedido, porque eu acredito que se tiver tudo encaminhado, as coisas vão ficar melhor, inclusive para mim. E tenho sonho também de estar trabalhando, porque eu agora estou desempregada. E um trabalho que seja tão bom quanto o que eu estava, para que eu consiga também continuar dando o melhor para os meus filhos. É isso! “Ah, e casa?” Eu já tenho, eu só não moro porque o peixe não consegue ficar fora do aquário. Eu tenho que estar aqui junto, entendeu? Mas eu tenho o meu apartamento que eu consegui através da luta. E isso! É o trabalho mesmo, para que eu possa dar o melhor para os meus filhos. Porque a gente estando bem, com trabalho legal, com salário bacana, você consegue fazer tudo bonito, tudo lindo. Eu amo! Quer saber a minha ostentação? É ir para o mercado e comprar tudo, e deixar a geladeira lotada, a fruteira cheia de fruta, sabe! E olhar assim, e falar: Não está faltando nada, nada. “Filho, você comeu?” “Mãe, eu fiz um lanchinho da tarde" “Que bom, meu amor!” “Mãe, tem a farinha da tapioca, não tem o presunto e o queijo, eu queria um presunto e queijo na farinha da tapioca" “Pode ir lá, filho, vai buscar, eu te mando um pix". Eu gosto!
P/1 - E tem alguma comida que você goste mais, ou que a família se junta mais para comer assim, comida especial?
R - O que a família se junta é o churrasco. E hoje pode. Não podia na outra, nos antecessores. Hoje pode! Mas o meu prato, que eu amo, estrogonofe, eu curto. Meu esposo já gosta de uma galinhada. Ele gosta, ele faz! Ele fez uma vez, ele falou: “Vida, vou te ensinar a fazer uma galinhada" Ele fez! Maravilhosa! Eu faço, não fica tão gostoso quanto a dele. Gosto! Os pratos que eu gosto.
P/1 - Não sei se vocês tem alguma coisa específica? Eu queria perguntar de como a Mauá… Como é a interação do pessoal da Mauá com as outras instituições do território? Porque tem os coletivos, têm muitas atividades aqui nesse eixo, Luz, Bom Retiro, Campos Elíseos. E como é a relação da ocupação?
R - A relação da Ocupação Mauá com o território, ela é boa, e fundamental. Tem o encontro dos vizinhos, tem os eventos do Museu. E sempre acaba incluindo os nossos moradores, as nossas demandas. Antigamente não era tanto, passou de um tempo pra cá. Achei muito bom. Antigamente a gente passava, só sabia que existia. Hoje, tem pessoas entra e fala: Nossa, eu não sabia que lá dentro é assim. Sabe! É muito bacana! E é importante. É fundamental essa unidade. Porque… O que eu posso explicar. A importância dessa unidade, pra garantir também a nossa permanência. A gente cria forças, entendeu? Aí, eu volto a dizer, a luta não é para você, ela é com você. Então, tem que ser junto, junto com os vizinhos, junto com o museu, junto com todos. Todos!
P/1 - Tem mais alguma história que você gostaria de dizer?
R - Chega! Eu quero chorar! Não, chega!
P/3 - Posso perguntar uma coisa? Pandemia aqui?
R - Legal! Boa pergunta! Foi bacana a sua pergunta. Na pandemia, quando nós tivemos essa informação, que foi muito… tudo muito rápido. E aí, a gente buscava… Muitas vezes a gente não buscava, mas ela vinha. Ela vinha um pouco distorcida, as informações. Então, eu fiquei com muito medo. Nunca tive tanto medo. Da pandemia eu tive. E coloquei a importância da gente se juntar e combater. Como? E se precaver, se prevenir. Então, a gente teve muita ajuda, voluntárias, com produtos de higiene, principalmente. E eu me lembro, que foi assim: Teve o lockdown. E aí, uma moradora falou assim pra mim: “Netinha, e agora, o que eu vou fazer?” Ela vende panos de prato, ela vendia panos de prato, voluntários na rua. Esse trabalho pra ela sobreviver. E ela falava assim: “A mistura, eu vendo um pano de prato, eu já passo no mercado, compro a mistura, trago. Se a minha filha está sem leite, eu vendo um pano de prato, trago o leite, a fralda. E agora?” Falei: poxa vida, o que a gente vai fazer com o pessoal da economia informal? E agora? Aí, foi quando a gente começou a botar a boca no trombone mesmo, pedir. Teve muitos voluntários. Então, a gente recebeu muita cesta básica, a gente recebeu produto de higiene, produto de limpeza. E no produto de limpeza, tinha muito cloro, cândida, e álcool, e álcool em gel. E eu lembro que nós não podíamos fazer assembleia, nada. Então, ficou os coordenadores aqui, com um metro e pouco de distância, com o seu microfone, os moradores na sua janela, e a gente orientando os moradores, como é que tinha que ser feito. A gente fez aqui, e os moradores que estavam na janela do lado de lá, a gente fez do lado de lá, eles saíram, a gente se unificou dessa forma, se preparou. E aí, tinha álcool na portaria, álcool no tapete, álcool no corrimão. O banheiro lavado com cloro. Eu me lembro uma vez que uma coordenadora falou assim, a Raquel. “Nete, minha amiga, depois que você fez a assembleia eles não vão morrer de pandemia, não! Mas vão morrer, tudo intoxicado. Um coloca cloro, aí outro coloca cloro, e todo mundo coloca cloro nos banheiros" Falei: Nossa. É importante, enxágua direito que não fica, sei lá! E aí, a gente se cuidou. Teve doações de máscaras. Inclusive, o Museu, o pessoal, doou bastante máscara, sabão, sabonete, essas coisas. E a doação, ela foi tão boa que ela estendeu para um trabalho que eu tenho no interior, lá eu tenho um trabalho com mulheres, no interior, lá em Guariba. E aí, a gente pôde também socializar com as meninas de lá. E foi muito bacana. E assim, na porta da casa deles também, tinha um tapete com álcool. Sabe assim! Tanto é que a gente teve pouquíssimo caso, e olha lá se nenhum. Foi o meu, uma vez. Eu ri de mim mesmo, que eu cuidei de todo mundo, mas eu também me cuidei, eu também me cuidei muito. E aí, eu fui num evento do Boulos, que teve lá na Liberdade. Foi uma época que Boulos pegou, não sei se vocês lembram? Na época da pandemia. E nesse evento tinha a cortina de álcool, essas coisas. Então, você passava , você se higieniza, sabe! Ai, tinha o álcool na mesa, passava, a máscara, tudo. Estava tudo certinho nesse evento. O distanciamento das cadeiras e tal. Aí, chegou, terminou o evento. Ele: “Nete, posso te dar um abraço?” “Pode!” Eu estava protegida, eu acredito que ele também. Se infectamos. Aí, eu estou com uma gripe diferenciada, uma situação diferenciada. Fui saber o que era, eu estava. Aí, pronto, me isolei, me tranquei, e “ninguém chega perto, pelo amor de Deus”. Sabe aquela coisa, aquela loucura. Mas é isso. A gente se cuidou muito bem. E teve muita ajuda voluntária. Eu acho que é importante deixar isso claro. E foi engraçado, que numa das minhas falas, nessa assembleia que eu tive de janela, eu falava assim: Nós temos que se cuidar, porque se tiver que um sem teto e um empresário ter que escolher pra quem que vai o oxigênio. Sinta-se morto! Porque não será para nós sem teto. “Então, vamos se cuidar, não vamos dar brecha para o sistema, vamos cuidar”. E aí, a gente fez isso tudo direitinho, muito bom! E foi o momento que eu falava assim: Agora, agora lascou-se, está todo mundo lascado, porque o povo sem trabalhar, não vai ter ajuda, não vai ter nada. E foi o momento que a gente mais recebeu ajuda mesmo, assim. Foi muito bom! Bacana! Foi boazinha a pandemia, sabia! Para a gente saber quem é quem, quem estaria mesmo do nosso lado. E mais uma vez, os voluntários e o povo. O poder público não! Acabou mostrando que cada vez é privado, e não público.
P/1 - Tem alguma coisa, alguma mensagem que você gostaria de deixar para quem for ouvir a sua entrevista?
R - Não entendi.
P/1 - Uma mensagem que você deixaria para as pessoas.
R - Deixo. É importante viver cada momento da vida, é importante… Sempre havendo a necessidade, socializa com alguém. Não se guarde. Principalmente, na época que eu morava em situação de rua, se eu não tivesse… Pegar o exemplo da ocupação. O meu porquê? Talvez eu não estaria aqui hoje. Então é importante. Viva, se valoriza, e não deixe a peteca cair. Não deixe ninguém te menosprezar. Sabe! Você é melhor sempre. Sempre se coloque como a melhor, ou o melhor. E viva! Simplesmente assim.
P/1 - Você acha que isso está no seu legado para as próximas gerações?
R - Sim. Sim! Eu tenho um filho adotivo, o Kaion, 15 anos. Eu nem falei o nome dos meus filhos para vocês.
P/1 - Só picadinho.
R - Só picadinho. Eu tenho o Diego, de 33 anos, a Giovanna, de 30, a Niele de 29, o Kaion, que é meu filho de coração, de 15, o Calebe, de 13. E agora eu cuido do Telzinho, que tem quatro anos. E o Kaion, o meu filho de coração, ele veio ter uma conversa muito boa comigo. “Mãe, eu preciso conversar com você" “Sério, filho?” “Sim! Vamos lá pro quarto?” “Vamos!” Porque eu deixo claro, depois de tudo o que eu passei, depois que eu fui entender, depois que eu entrei no movimento, que além de ser mãe, eu quero ser amiga, a melhor amiga, que eles confiem todos os segredos deles comigo. “Mãe, eu acho que eu sou bi" “Sério, filho?” “Sim!” “E o que é um bi para você?” “É uma pessoa que gosta dos dois sexo" “Entendi! E como você se vê?” “Mãe, é porque às vezes eu gosto, eu fico interessado numa menina, depois eu não quero, fico interessado num menino" “Bacana, filho. Eu quero só deixar claro para você, que agora a mãe vai te proteger, com a questão do mundo lá fora, que não é todo mundo que entende esse seu amor. Então, eu vou te proteger e te defender de tudo e de todos. E vou te preparar dentro daquilo que eu sei também. Então, nós vamos estar sempre conversando. E quando você tiver adulto, viva o seu melhor, e viva da forma que você quiser e achar melhor. Se essa forma de amor for, que seja!” Ele falou: “Tá bom, mãe! Muito obrigada por me ouvir" Então, eu pego esse exemplo e mando para os outros. E porque eu levantei essa questão? De informação que uma pessoa, um adolescente, que falou, parece, para os pais, eu não vou citar nome, por questão de ética, mas foi num prédio por aí ocupado. Falou para os pais que era gay. E parece que não aceitaram, ele veio a óbito. Então, tipo, ele tirou a vida dele. Não! Conversa, dialoga, ame seus filhos, sabe! Ame! Independente da orientação sexual. Se é feliz para ele, se ele é feliz assim, seja feliz também. Aprenda! É o que eu sempre falo para o meu esposo em casa. O meu esposo, ele não entendia assim, sabe! Eu tenho um cunhado, que também é gay. E meu esposo não entendia. Fui conversando bastante com meu esposo, ele passou a entender. Compreender e respeitar. E a mesma coisa, eu passo. E passo para quem tiver ouvindo esse vídeo, não faça, não oprime, não reprime, não castiga, sabe! Escuta. Abre os braços, receba! E dialogue, e seja amigo. Porque além de ser pai, é importante a amizade. Os segredos, eu tenho certeza, que vai vir tudo para você. E você vai conseguir ajudar o seu filho, a sua filha, como melhores amigos.
P/1 - O que você achou de gravar hoje com a gente?
R - Gente, vocês são…
P/1 - Como foi contar sua história?
R - Vocês são fundamentais, assim, levantou… E olha que eu não contei tudo. E levantou algo que estava adormecido dentro de mim. Foi bom para mim. Gostei! Limpa, sabe! Dar aquele ar de, nossa, que bacana. E eu passei por isso, eu superei? Que legal! É isso! Muito obrigado a vocês! E que continue com esse projeto, para que outras mulheres, ou homens, gays, lésbicas, trans, seja lá quem for, possa vir aqui contar a história.
P/1 - Obrigada!
P/2 - Nós agradecemos.
R - Obrigada! Obrigada gente!
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