Contos Negreiros: uma literatura de resistência
Esta resenha foi elaborada de acordo com a leitura íntegra do livro Contos Negreiros, de Marcelino Freire.
Não é exagero afirmar que, desde sempre, o corpo social brasileiro esteve marcado por desigualdades sociais e preconceitos, considerando extensivamente o cenário em que as vozes subalternas sucedeu diversos modos de silenciamento, exploração e colonização, tendo como marco inicial o processo de escravização.
Nesse contexto, pesando o fato da contemporaneidade, é que autores como Marcelino Freire oferece, em suas obras, pontos de vistas dos que foram sistematicamente marginalizados.
É o que o leitor pode inferir quando da leitura de Contos Negreiros - do pernambucano referido - respeitável coletânea de textos redigidos em forma prosa lírica por 16 contos, publicado, no ano de 2005, pela editora Record.
Mais do que o conteúdo temático, é a força poética da escrita de Freire que mais se destaca. Isto porque nos contos o autor abre uma espécie de transe literário, ou seja, seus textos caracterizados curtos, cortantes e carregados de ritmo, percorre com grande sutileza, a escrita através da oralidade.
Não à toa, o livro recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura em 2006, consagrando um estilo que incomoda, denuncia e tensiona a própria ideia de lugar de fala dentro da literatura brasileira contemporânea. E caso não conheçam, no contexto literário brasiliense, o Prêmio Jabuti se
destaca como a principal premiação em termos de valor financeiro para obras únicas.
Para além da obra escrita, Marcelino Freire também é idealizador da Balada Literária, evento anual que acontece desde 2006 e que reúne escritores, artistas e leitores em torno da valorização da literatura produzida nas margens, especialmente por autores negros, indígenas, periféricos e LGBTQIA+. O projeto amplia seu compromisso com a escuta e com a
circulação de vozes historicamente excluídas do circuito...
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Contos Negreiros: uma literatura de resistência
Esta resenha foi elaborada de acordo com a leitura íntegra do livro Contos Negreiros, de Marcelino Freire.
Não é exagero afirmar que, desde sempre, o corpo social brasileiro esteve marcado por desigualdades sociais e preconceitos, considerando extensivamente o cenário em que as vozes subalternas sucedeu diversos modos de silenciamento, exploração e colonização, tendo como marco inicial o processo de escravização.
Nesse contexto, pesando o fato da contemporaneidade, é que autores como Marcelino Freire oferece, em suas obras, pontos de vistas dos que foram sistematicamente marginalizados.
É o que o leitor pode inferir quando da leitura de Contos Negreiros - do pernambucano referido - respeitável coletânea de textos redigidos em forma prosa lírica por 16 contos, publicado, no ano de 2005, pela editora Record.
Mais do que o conteúdo temático, é a força poética da escrita de Freire que mais se destaca. Isto porque nos contos o autor abre uma espécie de transe literário, ou seja, seus textos caracterizados curtos, cortantes e carregados de ritmo, percorre com grande sutileza, a escrita através da oralidade.
Não à toa, o livro recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura em 2006, consagrando um estilo que incomoda, denuncia e tensiona a própria ideia de lugar de fala dentro da literatura brasileira contemporânea. E caso não conheçam, no contexto literário brasiliense, o Prêmio Jabuti se
destaca como a principal premiação em termos de valor financeiro para obras únicas.
Para além da obra escrita, Marcelino Freire também é idealizador da Balada Literária, evento anual que acontece desde 2006 e que reúne escritores, artistas e leitores em torno da valorização da literatura produzida nas margens, especialmente por autores negros, indígenas, periféricos e LGBTQIA+. O projeto amplia seu compromisso com a escuta e com a
circulação de vozes historicamente excluídas do circuito literário tradicional.
Tal mecanismo estético evoca uma forma de caminhar com palavras a oralidade não como
recurso, mas como corpo. Essa movimentação corpórea remete ao conceito de oralitura, proposto por Leda Maria Martins, que compreende a palavra como performance de memória e resistência. A oralitura, nesse sentido, não apenas narra, mas age no mundo, tensionando silêncio e palavra, dor e deleito.
Em Contos Negreiros, Freire parece dar forma literária a esses corpos de resistência, onde personagens que, mesmo à margem, verbalizam dores e desajustes com força e singularidade. É até possível dizer que esses contos carregam consigo uma sinergia de monólogos de
personagens, (Marcelino os intitula de Cantos) que denuncia, ironiza e rompe com a ordem do discurso dominante.
O título carrega, por si só, uma inquietude profunda. Ao retomar a palavra negreiro, fazendo analogia aos navios que transportavam pessoas escravizadas, como estampado na obra Navio
Negreiro de Castro Alves (2015 [1880]), Marcelino Freire nos força a encarar de frente a herança brutal da escravidão, que ainda ressoa nas estruturas sociais brasileiras. Assim como Alves narra, com sua poesia poderosa, o sofrimento e a desumanização dos que foram
brutalmente arrancados de suas terras, o título de Freire provoca um incômodo inevitável. Ele impera ao leitor a adentrar na obra já em estado de alerta, confrontando as cicatrizes históricas socialmente construídas.
Um dos recursos mais estimulantes da obra de Marcelino está justamente na dicotomia entre
o autor e os sujeitos representados em seus contos. Há, dessa forma, uma expressão de deslocamento do lugar de fala com especialização de apropriação e devolução literária da voz emudecida.
Embora Marcelino Freire seja um autor branco, oriundo de um espaço socialmente privilegiado, seu estilo literário desloca intencionalmente o centro da narrativa. Ele abdica do
protagonismo e oferece espaço àqueles cujas vozes foram historicamente interrompidas: negros, mulheres, periféricos, LGBTQIA+. Assim, livro articula uma denúncia enviesada de crítica social em forma de literatura, revelando com dureza a permanência do racismo estrutural, da marginalização e da exclusão em suas múltiplas camadas.
Em “Totonha”, personagem protagonista do décimo primeiro conto da obra, temos um canto
que fundamenta a prosa freiriana, evidenciando a poética do incômodo. Nesse sentido, a narrativa da figura ficcional afirma que não tem medo de linguagem superior e que quer “aprender com o vento”. Mesmo sendo analfabeta, ela lê a vida mais criticamente do que muitos. “Totonha” argumenta: \"O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?\".
Se, em Totonha, a resistência surge a partir da rejeição da linguagem normativa e da valorização de saberes cotidianos, em “Solar dos Príncipes” a tensão se desloca para o espaço urbano e expõe a vigilância imposta sobre os corpos negros que se movimentam fora dos
lugares esperados. Nesse conto, o narrador é um dos quatro jovens negros, acompanhados por uma mulher negra, que decidem descer o Morro do Pavão para filmar um documentário sobre a vida de uma família de classe média no Rio de Janeiro. A proposta, aparentemente simples, logo se confronta com o cerco invisível da estrutura social: ao chegarem ao prédio, são recebidos com desconfiança pelo porteiro, também negro, que imediatamente os associa ao
crime ou ao trabalho servil.
A força de Contos Negreiros está justamente em transformar a literatura em um canal de
resistência, fazendo da palavra um microfone social que amplifica as vozes historicamente excluídas. Nesse viés, o escritor pernambucano utiliza a escrita como instrumento de visibilidade para corpos e culturas que foram, ao longo do tempo, subalternizados, apagados e
marginalizados. Seus contos evocam com intensidade os ecos da desigualdade social e dos silenciamentos histórico-estruturais que ainda operam no cotidiano brasileiro. Em “Totonha”, por exemplo, vemos a reprodução da lógica que valoriza o saber formal em detrimento dos saberes populares, reduzindo a personagem a um lugar de suposta ignorância, embora sua fala revele lucidez e consciência crítica. Já em “Solar dos Príncipes”, a presença do racismo estrutural é escancarada mesmo quando o corpo negro se insere nos espaços da elite, continua sendo vigiado, controlado e lido como ameaça.
A leitura de Contos Negreiros convida o leitor a uma tomada de consciência. Ele revela, com crueza e lirismo, como as estruturas sociais excludentes se adaptam e se mantêm, sofisticando suas formas de opressão. As tentativas de apagamento de saberes e experiências não cessaram, apenas assumiram novas roupagens e continuam tendo a população negra como principal alvo. Nesse contexto, a literatura se mostra uma ferramenta poderosa para desestabilizar esse sistema. Reconta, rompe silêncios e reinscreve sujeitos nas páginas da
história. Ao trazer essas vozes para a essência da narrativa, Marcelino Freire reafirma que elas não só importam, como precisam ser ouvidas. Portanto, mais do que uma coletânea de contos, Contos Negreiros, em tempos de silenciamento e apagamentos sutis, emerge como uma obra que reafirma o papel insubstituível da arte como gesto de memória, resistência e reconstrução.
FREIRE, Marcelino. Contos negreiros. Rio de Janeiro: Record, 2005.
ALVES, Castro. O navio negreiro. 1880. In: ALVES, Castro. Obras completas. São Paulo:
Martin Claret, 2015.
MARTINS, Leda Maria. Oralitura e performance. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/cpc/article/view/54363. Acesso em: 07/07/2025.
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