Projeto: VLI – Estação de Memória: Porto & Pesca
Entrevista de Sidnei Aranha
Entrevistado por Ane Alves
Santos, 20/10/2025
Entrevista nº: VLI_HV009
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por: Arielle Oliveira Paro
Revisada por Ane Alves
P/1- Sidney, antes de tudo, muito obrigada por ter recebido a gente. Tô muito feliz de estar aqui pra escutar um pouquinho da sua história. E para iniciar, você pode se apresentar dizendo seu nome completo, local de nascimento e a data?
R - Primeiro, para mim é uma honra, acho que é um projeto muito interessante, muito bacana. Meu nome é Sidnei Aranha, tenho 58 anos, nasci no dia 10/06/1967, moro no Guarujá desde 1980, sou casado, tenho dois filhos e trabalho no Porto de Santos.
P/1- Sidney, você sabe porque te batizaram com esse nome?
R - Eu imagino, meu pai nunca expressou, mas acredito que seja, na época, em 1967, você vai pegar o Sidney Poitier, aquele ator negro muito forte, muito potente, naquela época estava em alta. Eu imagino que o meu nome vem deste ator americano, estadunidense.
P/1- E você sabe alguma história? Seu pai, sua mãe, alguém contou como foi o dia do seu nascimento?
R - Eu nasci em casa, foi um dia muito, já contaram, um dia muito complicado. Eu tenho três irmãos, o Vanderlei, o mais velho, eu sou o Sidnei e temos o Ednei, que é o mais novo. Curiosamente, ambos nasceram no hospital. Eu nasci em casa, cheguei ao mundo pelas mãos de uma parteira, então, não foi algo simples. Mas tem várias histórias, minha mãe achava que eu era... Na época, você não tinha esse tipo de exame. Minha mãe achava, até o último momento, que eu era uma menina, pelo formato da barriga, e tinham escolhido... Sobre esse nome, é até curioso isso. Eles tinham escolhido um nome, que seria Kátia. E na última hora nasceu um menino e eles tiveram que remodelar para Sidney. Então, nascer em casa é algo inusitado. Antigamente talvez fosse mais simples, mas já ali na década de 60, sobretudo eu nasci...
Continuar leituraProjeto: VLI – Estação de Memória: Porto & Pesca
Entrevista de Sidnei Aranha
Entrevistado por Ane Alves
Santos, 20/10/2025
Entrevista nº: VLI_HV009
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por: Arielle Oliveira Paro
Revisada por Ane Alves
P/1- Sidney, antes de tudo, muito obrigada por ter recebido a gente. Tô muito feliz de estar aqui pra escutar um pouquinho da sua história. E para iniciar, você pode se apresentar dizendo seu nome completo, local de nascimento e a data?
R - Primeiro, para mim é uma honra, acho que é um projeto muito interessante, muito bacana. Meu nome é Sidnei Aranha, tenho 58 anos, nasci no dia 10/06/1967, moro no Guarujá desde 1980, sou casado, tenho dois filhos e trabalho no Porto de Santos.
P/1- Sidney, você sabe porque te batizaram com esse nome?
R - Eu imagino, meu pai nunca expressou, mas acredito que seja, na época, em 1967, você vai pegar o Sidney Poitier, aquele ator negro muito forte, muito potente, naquela época estava em alta. Eu imagino que o meu nome vem deste ator americano, estadunidense.
P/1- E você sabe alguma história? Seu pai, sua mãe, alguém contou como foi o dia do seu nascimento?
R - Eu nasci em casa, foi um dia muito, já contaram, um dia muito complicado. Eu tenho três irmãos, o Vanderlei, o mais velho, eu sou o Sidnei e temos o Ednei, que é o mais novo. Curiosamente, ambos nasceram no hospital. Eu nasci em casa, cheguei ao mundo pelas mãos de uma parteira, então, não foi algo simples. Mas tem várias histórias, minha mãe achava que eu era... Na época, você não tinha esse tipo de exame. Minha mãe achava, até o último momento, que eu era uma menina, pelo formato da barriga, e tinham escolhido... Sobre esse nome, é até curioso isso. Eles tinham escolhido um nome, que seria Kátia. E na última hora nasceu um menino e eles tiveram que remodelar para Sidney. Então, nascer em casa é algo inusitado. Antigamente talvez fosse mais simples, mas já ali na década de 60, sobretudo eu nasci em Santo André, você tinha hospitais. Mas nasci em casa.
P/1- Qual que é o nome da sua mãe e como você descreveria ela?
R - Minha mãe chama-se Maria Anitta Sutuaranha. Eu descrevo minha mãe, assim, eu acho que eu sou filho de uma família matriarcal. As mulheres são muito fortes na minha família. A minha bisavó Anitta também, minha avó Carmela e minha mãe sempre foram pessoas muito fortes. Imagina, minha mãe casou com 15 anos e meu pai tinha 21. Meu pai é caminhoneiro. E o caminhoneiro, imagine, ainda mais naquela época, ele saía pelo mundo e ia ganhar a vida. E minha mãe com 15 anos, 16, 17 anos, ela foi pai e mãe ali de três crianças, num mundo difícil, que você não tinha ali os... Nós não éramos filhos de gente rica, era gente muito humilde. E ela conseguiu ali, muito jovem. Minha mãe sempre foi muito bonita, uma mulher muito bonita, muito jovem, conseguiu levar a cabo ali a criação, a educação de três filhos. Meu pai, ele vai começar a aparecer na nossa vida assim, não que ele fosse um pai não presente, mas a profissão dele fazia com que ele fosse muito ausente. Depois que ele se aposentou, e aí nós estamos já dizendo quando eu tinha 18, 19 anos. Hoje meu pai é vivo ainda, a gente conversa bastante, mas naquele período de infância, adolescência e ali quase adulto, meu pai, a gente não via muito meu pai em casa. Então minha mãe sempre foi a mulher que decidia tudo. Meu pai era aquele que recebia o salário, passava, colocava na mão dela e ela tinha que se virar. Por isso também que nós começamos a trabalhar muito cedo, nós tivemos muita dificuldade financeira em casa, com 12 anos eu já comecei a trabalhar em feira. Trabalhava em feira em São Paulo, acordava 3 horas da manhã, imagine você, um frio. E eu e o meu irmão mais velho, o Vanderlei, começamos a trabalhar muito cedo. Muito cedo porque nós tínhamos que ajudar no sustento da família.
P/1- E qual que é o nome do seu pai?
R - Enoel Aranha. Meu pai é Enoel Aranha, caminhoneiro. Trabalhou por várias empresas, depois ele se aposentou, e agora, até o ano passado, ele trabalhou como zelador. É uma pessoa... é um caminhoneiro. É um caminhoneiro. Um caminhoneiro, ele é aquele homem construído, forjado na dificuldade. Então, é um homem que pouco… É um sábio, um homem sábio, sábio no sentido de que, por exemplo, meu pai, caminhoneiro, semi-analfabeto, quando ele vinha para cá, quando ele ficava, o pouco que ele ficava em casa, ele comprava jornal todo dia, Notícias Populares. Então, nós começamos a tomar gosto pela leitura a partir das notícias populares, mas minha mãe era uma mulher que gostava de ler, Revistas Seleções e tal. Eu acho que isso foi um diferencial na nossa vida, de todos os três irmãos. Meu pai e minha mãe, ainda por meio de que seja do Notícias Populares, ensinou nós a lermos. Então nós, os três, foram muito ávidos em querer aprender, estimulou a nossa curiosidade. E eu digo que meu pai é um caminhoneiro porque, assim, eu fui abraçar e beijar meu pai na força, já homem. Quando eu fui pro exército, talvez. E meu pai nunca foi um homem de muitos afetos. A minha mãe também não, mas ela era mais mãe e tal, enfim. E foi uma vida normal, de gente normal, de uma família com muita dificuldade, mas eles conseguiram sempre nos guiar. Eu e o meu irmão, na questão de escola, de ler, de se formar, isso foi muito importante na minha vida. Acho que isso fez todo o diferencial.
07:02
P/1- Eles eram de Santo André mesmo?
R - Eram os dois. Na verdade, a gente tem uma ligação para o Guarujá porque meu avô Adelino, ele era mestre de obra e no boom comercial na década de 60 no Guarujá, ele veio trabalhar e fazer prédios no Guarujá. Então, meu primeiro… Aí minha mãe, que já conhecia meu pai, casa. E aí, minha mãe vem ter o meu irmão mais velho, o Vanderlei, no Guarujá. Por isso que é minha ligação com o Guarujá, que até hoje estou no Guarujá. Depois a família volta pro Guarujá, muito tempo depois.
P/1- Você sabe como eles se conheceram, seu pai e sua mãe?
R - Você sabe que eu nunca perguntei isso pra eles. Não sei. É uma boa pergunta. Eu vou perguntar isso pra eles. Eu não sei direito como eles se conheceram, não. Mas... Eram dois jovens, 21, 20 anos, e ela 14 anos, imagine. Era aquela época em que o casamento era mais um ato de liberdade, eles queriam sair de casa, era a época em que tudo não podia. Mas deu certo, estão casados até hoje, mais de 50 anos. E vivem o amor deles da forma que eles conhecem. Às vezes o amor não é só o beijo, é a compreensão, é ali a convivência. E vivem até hoje.
P/1- Você estava falando, seu avô paterno ou materno?
R - Meu avô parte da minha mãe, paterno. Ele era mestre de obra, Adelino Suto e a minha avó chamava-se Carmela, era boleira. Tem histórias fantásticas sobre isso. Porque antes de chegar no Guarujá, eu morava na Zona Leste, em São Paulo, no Jardim Iguatemi. E tinha duas boleiras na rua, era a minha avó e a outra boleira. Então, tinha competição de quem fazia o bolo mais bonito. Eu lembro que nós tivemos uma festa junina na escola… Já que é pra contar história da vida… E aí, teve a competição de qual bolo era mais bonito. Da outra boleira, que nem lembro mais o nome dela, e da minha avó. A escola inteira parou, eu acho que talvez na quinta série, para quem levasse o bolo mais bonito. A minha avó era super competitiva, fez um bolo maior do que essa mesa, um bolo com a bandeira do Brasil. Que naquela época a bandeira do Brasil ainda não era um símbolo de extrema-direita, era um símbolo de civismo, mas um símbolo importante para o Brasil. Mas foi muito interessante, porque foi uma quermesse que eu dancei e fui o padre da quermesse. Foi muito bacana. Essa história do bolo eu nunca vou esquecer. E o bolo mais bonito foi da minha avó, evidentemente.
P/1- E você lembra o gosto desse bolo?
R - Ah, sim, lembro. Ela usava muito abacaxi. Lembro até hoje. O bolo dela, era o diferencial, porque ela sempre dizia que o importante para ela não era o que ela ganhava para o bolo, mas sim que as pessoas gostassem do bolo. Então, ela cobrava, mas às vezes, ela usava do bolso, ela usava muita fruta, muita fruta, que era uma coisa diferente. As pessoas usavam aquele... Não sei se era glacê, isso eu acho que naquela época não sei se existia. Mas ela não usava esses cremes e usava muitas frutas, frutas frescas. Era um bolo sensacional. Aliás, a minha avó cozinhava maravilhosamente bem.
P/1- Ah, e o que você gostava que ela fazia?
R - Ah, as sopas dela. A minha avó sabia fazer uma sopa que ela aprendeu com a minha bisavó, chamava-se Anita, a sopa de cebola, que é um segredo da família que até hoje eu tento fazer, não faço como ela. O meu irmão mais velho sabe fazer essa sopa de cebola. Às vezes, quando a gente se vê, a gente lembra da sopa e, às vezes, até faz a sopa, com um bom vinho, é uma delícia. São essas memórias degustativas que a gente nunca esquece. Ela era maravilhosa. Assim, ela era uma... E eu morava numa casa, a gente morava numa edícula atrás da casa dela, e eles eram filhos de italiano, tanto o meu avô como a minha avó, e era a típica casa, não sei se São Paulo ainda tem isso, daqueles italianos. E o meu avô, que era pedreiro, mestre de obra, construiu a casa, então a casa era muito interessante. A casa, assim, tinha um quarto, uma sala pequenininha, porque naquela época ninguém dava muita bola para a televisão, e uma cozinha gigantesca. Uma cozinha, tinha uma mesa de madeira, com um banco, que acho que cabia vinte pessoas sentadas naquela mesa. E a gente morava ali no Jardim Iguatemi, que não tinha água de poço, energia, à noite não tinha luz na rua, e para ter um sábado assim, ela fazia bingo. Ela chamava as vizinhas para jogar bingo, vinha a família para jogar bingo, e ela fazia assim, muito esfirra, muita guloseima, ela era italiana, ela não saía do... ela ficava o dia inteiro no fogão, fazendo bolo, fazendo tudo que era muito gostoso. E é uma lembrança muito legal. Como também tem da avó do meu pai, mãe do meu pai, dona Maria, minha avó Maria, que era uma pessoa que tinha um carinho muito especial por mim, mas elas morreram muito cedo. Tanto minha avó Maria, mãe do meu pai e o meu avô Benedito, que morreu em 1973, eu lembro bem. Daquela época em que você fazia os velórios em casa, eu tinha seis anos, eu lembro do corpo do meu avô em casa, assim, e os vizinhos vindo ali, prestar a última homenagem ao meu avô. Isso foi em Santo André.
P/1- Mas como que ficou essa imagem para você?
R - Eu lembro disso, mas a imagem mais forte que eu tenho dele é que ele de manhã, essa imagem que para mim ficou, que ele de manhã… Naquela época você não comprava pão com tanta facilidade assim na padaria, ele comprava pão e todo dia de manhã ele esquentava o pão na frigideira, e colocava os netos no colo e dava pão pra gente. Então, eu lembro do meu avô esquentando o pão, fumando o seu cigarrinho de palha. Ele fumava um cigarrinho de palha. Meu avô era um cara, meu avô era mais afetuoso do que meu pai. Meu pai não puxou. Meu avô colocava os filhos, os netos no colo, acariciava. Ele era um homem muito carinhoso, meu avô. Meu avô Benedito, Benedito Aranha. 1973, faz tanto tempo que ele se foi e eu ainda lembro bem dele. Uma pessoa sensacional.
P/1- A sua família tinha costume de contar história? Alguém contava histórias para você e para os seus irmãos?
R - A minha avó, a minha avó Maria. Eu lembro que minha avó Maria, nós moramos... Meu pai era caminhoneiro. Então, naquela época, e nós não tínhamos muita condição. Então, meu pai, nós éramos ciganos. Nós morávamos... até ele conseguir comprar um apartamento aqui no Guarujá. Então, naquela época, o contrato de aluguel era de 12 meses. Então, a gente morava doze meses em cada lugar. Isso é uma coisa que marcou muito a minha infância, porque você começava a ter um bom amigo na escola, aí você já tinha que mudar e naquela época você não tinha telefone, você nunca mais via a pessoa. E teve uma época que nós moramos aqui no Jardim Casqueiro, nós estamos falando de 1974 isso. E minha avó, Maria, veio passar um tempo conosco aqui, mas minha avó gostava de contar, ela era mineira, ela gostava de contar a história de medo, da mula sem cabeça, do cemitério, e para a gente dormir à noite. A gente não dormia, ficava morrendo de medo. Mas a minha avó contava muita história de terror assim, de medo, de cemitério. E naquela época, imagina, tinha a história da loira do banheiro, que aparecia no banheiro. Isso impressionava muito eu e meus irmãos. O meu irmão mais velho, o meu irmão mais novo já tinha um pouco mais de diferença, ele acho que não entendia muito. Mas a minha avó, a minha avó Maria, a minha avó Maria contava muita história. Mas ela gostava das de medo, para deixar todo mundo assustado. Era impressionante.
P/1- Lembra um pedacinho de alguma?
R - Ah não, não lembro. Lembro de gente que morreu, de gente que saiu do cemitério. Não lembro, assim. E assim, isso me deixou meio traumatizado, até hoje eu não gosto de filmes de terror. Não assisto filme de terror.
P/1- Você falou que vocês mudaram bastante na sua infância.
R -Sim, bastante.
P/1- Qual a primeira casa que você tem lembrança?
R - Santo André, Santo André, rua Cruz de Souza. Era a casa dos meus avós. Era a casa própria deles. Nós morávamos no fundo.
P/1 - Como que era essa casa?
R - Ah, era uma casa que na frente morava o meu avô e minha avó e atrás tinha uma casa que nós morávamos, eu, meu pai e minha mãe. E lembro que tinha uma TV, uma TV de válvula. Isso não é da sua época, Ane, você é muito jovem. E nós dormíamos na sala, e aí minha mãe... Eu era muito pequeno. Via novela e desligava, e ela ia para o quarto dormir e nós ficávamos na sala. E a TV ficava com... ela demorava, assim, uma hora, porque ela desligava e ficava com um ponto de luz bem no meio. Ela demorava para ligar, porque tinha que aquecer as válvulas, e depois que desligava, ela não apagava completamente. Ela demorava ainda uma meia hora, talvez 40 minutos. E a gente ficava a noite ali, olhando aquele ponto claro ali no meio da televisão. Mas bons tempos. Lembro também de uma vez que minha mãe queria me bater, aí minha avó e meu avô entrou. Minha mãe era difícil, minha mãe batia na gente, e bastante. E aí, meu avó e avó entraram para não deixar ela me bater. Acho que ela foi dar uma cintada, uma chinelada e pegou… Mais ou menos essa história, pegou no meu avô, aí depois ela foi lá pedir desculpas, porque ela gostava muito do meu avô. Ela gostava muito do meu avô. E eu fiquei naquela, teve aquele constrangimento, falei: que bom, não vou apanhar. Mas foi isso. Foi essa casa, essa foi a primeira casa que eu lembro. Depois, deixa eu ver, dali nós fomos para aonde? Aí, depois nós fomos morar no Casqueiro, acho que foi isso. Aí, depois nós moramos um tempo em uma edícula nos fundos da casa dos meus avós maternos, que foi lá no Jardim Iguatemi, a história do bolo, enfim. Aí, depois eu fui morar no Moinho Velho, que eu lembro quando o John Lennon morreu, acho que foi 1980, 1981. Então, acho que eu cheguei no Guarujá em 1981, por isso que eu tô fazendo um pouco alguma confusão. E aí, depois nós viemos morar pro Guarujá, aí de Guarujá eu nunca mais saí, tô lá até hoje.
P/1- E os seus irmãos, vocês brincavam muito quando eram crianças?
R - Ah, sim!
P/1- Quais eram as brincadeiras, o que vocês gostavam de fazer?
R - Quando a gente morava lá no Jardim Iguatemi tinha um rio, a gente ia nadar no rio. Um rio, que ali ainda era um pouco o cinturão verde de São Paulo. E ali, os chacreiros usavam aquele rio para regar, como fonte de água para a agricultura. E eu e meu irmão ia nadar nesse rio. E assim, coisa de moleque, minha mãe morria de medo. Aí, um dia, a gente tinha um pacto, eu e meu irmão. Se a nossa mãe descobrisse, um não ia contar para o outro, não ia contar para o outro. “O seu irmão vai?” “Não.” Aí, ela descobriu que meu irmão ia. Aí, meu irmão apanhou e não contou que eu ia também. Foi muito engraçado. Mas a gente jogava futebol, tinha muito verde, a gente desbravava, “ah, vamos entrar no mato para ver o que tinha no mato.” Enfim, foi uma época... Aí, logo depois, quando eu mudo para o Moinho Velho ali, era mais futebol, a gente brincava de futebol. Mas isso, nunca fui bom, assim, de pião, essas coisas. A gente brincou muito de pedrinha, sabe, de pedrinha? Era um negócio que eu tenho a mão grande até hoje, era algo que a gente gostava bastante. E eu gostava muito da escola, a escola era algo que a gente socializava. Eu jogava handebol na escola.
P/1- Vocês estudavam na mesma escola?
R - Estudava na mesma escola. A gente socializava. O meu irmão era mais difícil, então teve momentos que a gente estudou junto, porque ele repetiu. E aí, a gente praticamente... Aí, teve uma coisa interessante também, que aí resolveram fazer o centro cívico da escola. Foi a primeira eleição que eu participei da vida. O meu irmão, presidente de uma chapa e eu, presidente de outra. Para você vê como a gente bagunçava a escola. Eu perdi a eleição pra ele, porque ele prometeu que ia levar a garotada naquele programa do Silvio Santos, que tinha da bicicleta, do autorama, Domingo no Parque. “Ah, se eu ganhar a eleição, vou levar vocês todos ao Domingo no Parque.” Ele ganhou a eleição e não levou ninguém no Domingo no Parque. E foi uma eleição dura ali, a gente brigou para caramba. Foi muito interessante ali aquela época. Outra coisa que eu lembro, que depois influenciou diretamente na minha vida isso, depois eu me formei advogado e fiz inúmeros júris. Foi nessa época uma professora de ciências resolveu fazer um júri na classe, nessa o meu irmão não era da minha classe. Absolvendo ou condenando a bebida alcoólica. Porque naquela época, evidentemente que até hoje tem, mas tinha muito problema de alcoolismo ali. E eu fui o advogado de defesa da bebida alcoólica. E eu consegui absolver a bebida alcoólica, porque eu levei assim, a bebida alcoólica está aqui, quem é o culpado é o ser humano que vem beber a bebida, a bebida não é culpada. E eu consegui absolver. E depois eu fui fazer os júris, depois eu me formei advogado. Mas aquilo me impactou muito, ali eu descobri que eu queria ser advogado, que eu achava que isso era legal. E consegui depois me formar advogado.
P/1- E tem algum colega, algum amigo marcante dessa época de escola ou algum professor?
R - Ah, tem. Acho que a primeira paixão da minha vida foi uma professora de ciências, chamada Isildinha. Ela era tão bonita. E você... é um amor, assim... juvenil, encantador. Ela parecia muito, hoje se fala muito, por causa da novela, aquela atriz Lídia Brondi, saba? Ela parecia muito com ela. E era uma menina linda. Você fica apaixonado pela professora. Quem nunca? E eu acho que esse foi aquele amor escondido, aquele amor que você namora na sua imaginação. Acho que foi muito interessante isso. Mas depois também, eu fui muito danado na escola por essa questão. Aí eu vou ter a minha primeira namorada, uma moça que chamava-se Veronildes. Falo com ela até hoje, casou, é avó, tem filhas. Falo até hoje por redes sociais com ela. Uma pessoa que marcou muito a minha vida, uma moça muito bacana. Primeiro namoro, mas ela era irmã de um amigo meu, da minha classe, que a gente se encontrava assim, perto de uma ponte para dar uns beijos, que era só isso, não tinha outra coisa. Mas uma mulher que depois a gente… Depois, com o evento da rede sociais, a gente acabou se reencontrando, uma moça que marcou muito a minha vida positivamente, uma mulher forte. Acho que eu tive inúmeras mulheres fortes na minha vida, eu sou fruto desse sistema matriarcal. Por isso que eu estudo muito a questão das mulheres, das divindades, enfim. Embora não tenha religião, eu acho que a mulher, ela é o centro do mundo.
P/1- O Sidney, você falou que quando teve esse júri na escola, aí você pensou em ser advogado. Você pequeno assim, na infância, foi a primeira profissão que veio na sua cabeça?
R - Não. Olha, veja, eu sou um cara ateu, mas a primeira profissão que veio na minha cabeça era ser padre. Eu achava tão legal aquele negócio de ser padre. Embora a minha família também, outra coisa que eu acho que foi muito positivo na minha vida, muito positivo, meu pai e minha mãe nunca exigiram, nós nunca tivemos religião dentro de casa. Meu pai até hoje é ateu. Meu pai é um homem semi-analfabeto, ateu e sempre disse isso para nós. E nunca permitiu, não é que permitiu. E nem minha mãe também quis, que nós fôssemos guindados para uma religião. Porque uma criança de 8, 9 anos não tem escolha, ela é levada para qualquer uma das religiões, enfim. E isso eu acho que é um diferencial deles. E aí nós tivemos plena liberdade. Mas assim, aí tinha uma missa de sétimo dia de alguém, alguma coisa, assim, um casamento, eu ia, pequeno, meus pais me levavam. Eu achava tão bonito aquela coisa do padre estar falando, aquela coisa do discurso do padre. Aí eu queria ser padre, eu achava um máximo ser padre. Tanto é que eu vou ser padre lá na quermesse, lembra disso que eu te falei? Mas depois eu vi que, imagina, que desde muito... Eu nunca... O problema da ciência, Nietzsche, acho que fala um pouquinho disso, ela te traz angústia, não os esclarecimentos. Então, sempre fui um cara muito angustiado. Então, quanto mais você lê, mais você percebe que no mundo não existe essa questão metafísica do dever ser, só existe o ser. E é complicado.
P/1- Conta dessa quermesse, como foi a escolha para você ser o padre?
R - Era uma coisa meio assim, a minha avó… Foi uma coisa minha avó, que meio... Minha avó era meio chefona ali. Minha avó também era costureira. E aí, ela falou: eu vou fazer uma batina linda pra você. Eu não lembro, mas eu acho que foi ela que meio que… Ela era muito próxima lá na escola, acho que foi ela que pediu e eu também quis, acho que foi uma coisa assim. E foi muito legal. Aí, uma bota, aquelas botas, a gente arrumou uma bota, meu avô trabalhava em obra, usei aquela bota de obra mesmo. Ela ficou um dia, dois dias costurando. Com a cruz. Ela fez uma batina mesmo, imagine isso. Arrumaram um chapéu, enfim. Foi uma festa. Imagina, a gente estudava numa periferia de São Paulo que não tinha água, não tinha luz, não tinha nada, não tinha divertimento. Eu não sabia o que era um cinema, você não tinha noção. E a diversão era essa, eram esses grandes eventos, os eventos da escola. Eu lembro que… Talvez foi essa época, que nesse ano teve a Copa do Mundo de 1978. A gente levava rádio. Não tinha, garotada, não tinha liberação para ver o jogo do Brasil. A gente levava rádio para ouvir o rádio na escola. Foi muito marcante ali, minha terceira, quarta, quinta, sexta série. Foi, acho que, o período mais bacana. Aí, depois, quando nós mudamos depois lá para o Moinho Velho, aí eu começo a trabalhar, começo a trabalhar em feira. Porque ali a situação… A gente já não tinha mais o apoio da meu avô e da minha avó. Então, assim, quando estava ali meu avô e minha avó, não faltava nada. Porque meu avô era um cara muito presente também. Ele era duro, mas ele era um cara provedor.
P/1- Porque aí vocês não moravam mais na edícula...
R – Isso! Aí, nós fomos morar no Moinho Velho, minha mãe e meu pai alugaram um apartamento. E nisso, meu pai começa a viajar para a Argentina. A empresa que ele trabalhava, que era a Cesare, que tem até hoje...
P/1- Ele transportava o quê?
R - Produtos químicos, caminhão-tanque. E, assim, imagine, naquela época, quando ele ia para a Argentina, ele demorava mais de um mês.
P/1- Como que era quando ele voltava?
R - Ah, assim, de afeto? Meu para era um cara muito duro, a gente teve muitos mais isso com a minha mãe. Mas era muito bom ele voltar. Porque a gente passava, às vezes, até juntava moedinha para comprar pão. E, por conta disso, a gente foi trabalhar, eu e o meu irmão mais velho.
P/1- Mas seu pai voltava, ele contava umas histórias assim de caminhoneiro?
R - A gente chegou a viajar com meu pai de caminhoneiro.
P/1- A família inteira?
R - Não, ele pegava um filho, viajava, pegava outro, viajava. Ele viajava mais com meu irmão mais velho. Eu não gostava dessas viagens, que eram viagens muito sofridas.
P/1- Mas você foi?
R - Fui.
P/1- Você lembra para que lugar?
R - Fui para o Rio de Janeiro uma vez, fui para o Paraná, Maringá uma vez com ele. Mas era muito... Não são caminhões que nem hoje, caminhões muito antigos, muito calor, muita dificuldade. E naquela época meu pai bebia muito, meu pai tinha problema com álcool, então não era algo agradável, eu não gostava. E aí, minha mãe percebeu isso, começou já evitar. E nós mesmo... Meu pai passa a ser uma pessoa muito bacana depois que ele se aposentou, quando ele trabalha, ele era uma pessoa ausente, uma pessoa dura, uma pessoa que não tinha muito afeto. Mas minha mãe bateu mais na gente do que ele. Você vê como é que é essas coisas. Mas é que a surra de mãe não dói. Mas da minha doía, ela gostava de bater bem.
P/1- Me conta como que vocês... do seu trabalho. Você começou a trabalhar... O seu primeiro trabalho foi na feira.
R - É, na feira. A gente trabalhava na feira, aí depois a gente foi trabalhar...
P/1- Mas por que você começou a trabalhar na feira? Quem você conheceu?
R - O meu irmão era um cara muito agitado, aí ele conheceu esses caras, que é um pessoal muito bacana, que eu trabalhei com eles. E aí, ele me indicou. Aí eu fui. Aí, depois a gente foi trabalhar numa... Aí, a gente trabalhou um tempo lá, aí depois a gente foi trabalhar num... Lá em São Paulo, durante muito tempo, teve aquelas casas de frango, chamado...
P/1- Espera aí, eu quero saber ainda da feira. Na feira vocês faziam o quê? Era uma barraca de...?
R - Batata. Batata e cebola.
P/1- Aí vocês vendiam?
R - Isso, com 11 anos eu já carregava batata, saco de 60 quilos de batata. Até hoje eu tenho uma cicatriz na mão, que a gente chegou de manhã… A gente vendia batata, cebola, coco e alho. Aí, eu tive que abrir um coco, porque se deixava um coco em demonstração, mas imagina, eu bati o coco, o coco rachou e a gente tinha um facão desse tamanho, e eu fui colocar o facão para abrir o coco. O coco abriu, minha mão... E você vê como você não tinha a mínima noção das coisas. Eu cortei, tenho uma cicatriz até hoje aqui, vários pontos, mas assim, eu trabalhei o dia inteiro com a mão enfaixada para chegar à noite… Porque a gente chegava em casa uma hora e tinha escola das três às sete. A gente ia dormir oito horas, porque acordava três, quatro horas da manhã. Aí, quando cheguei em casa, a minha mãe: o que é isso? A minha mãe se desesperou, aí naquela época tinha uma vizinha que tinha um fusquinha, foi pegar o fusquinha para levar a gente para tomar os pontos. Mas eu não tinha noção, imagina, eu cortei a mão, trabalhei o dia inteiro, depois só fui suturar a mão no final da tarde. Mas assim, a feira foi um lugar muito interessante também, foi muito interessante a feira. Você conversava com todo mundo, era uma farra. Eu gostava de trabalhar na feira, era uma diversão para a gente trabalhar na feira. Lógico que era um trabalho duro, enche caminhão, tira caminhão. E o salário era assim, era um pouco em dinheiro, imagina, nem sei quanto que é de dinheiro hoje. E a gente podia levar batata, cebola e alho grátis. E isso também, era comida, então a gente tinha muita... Isso era muito importante pra gente. E outra coisa, o pessoal hoje… A gente chegava, pegava todo o dinheiro e entregava pra minha mãe.
P/1- Isso que eu ia perguntar, o que você fez com o seu primeiro salário?
R - Todo o dinheiro, nunca usufruir. Eu deixava para a minha mãe. Fiz isso até os 18 anos, até os 18 anos. Eu nunca ficava com o meu salário, a gente entregava tudo pra minha mãe. Então, assim, a feira foi assim. Aí, nós mudamos pro Guarujá, e o meu tio era mestre, de pai pra filho, meu avô já tinha sido e meu tio era empreiteiro e mestre de obra no Guarujá. E a gente precisava trabalhar.
P/1- Por que a família mudou para o Guarujá?
R - Porque surgiu um conjunto habitacional em frente a Dow Química, um BNH, e foi a oportunidade que meu pai teve de comprar uma casa. Meu tio ajudou, meu avô ajudou. E aí ele deu entrada numa casa do sistema BNH, foi quando ele conseguiu ter a casa própria dele. E nós viemos pra cá.
P/1- Você estava com quantos anos?
R - Nós estamos falando de 1980, 1981, são 45 anos. Eu estou com 58, então eu tinha acho que 12, 13 anos, até um pouco menos talvez. Eu não sou bom de matemática, mas é por aí. Depois da feira, nós trabalhávamos em uma granja chamada Granja Cinti. Em São Paulo, tinha um pessoal, um japonês chamado Osato, que eles abriram um monte de lojas de frango. Frango. Vende frango. E aí, nós trabalhamos nisso aí também. Eu trabalhava na maquininha de frango assado, na televisão de cachorro. A gente trabalhava no final de semana. Trabalhava sábado e domingo, para complementar a verba. Sábado e domingo. Quando a gente não trabalhava na feira… Na feira trabalhava, aí depois saimos da feira e fomos aqui. Trabalhávamos só sábado e domingo, porque era um bico. Aí, nós mudamos para o Guarujá, porque meu pai comprou esse apartamento, e aí o meu tio já morava aqui, a minha avó veio para cá também, todo mundo veio. Então, nós viemos todos para o Guarujá, o meu avô, minha avó, materna. Paterna já tinha falecido. E aí, o meu tio, meu tio, leva a gente pra trabalhar na obra. Aí, eu fui ser servente de pedreiro, carregar concreto, carregar não sei o que. A gente trabalhava, eu e meu irmão, que nem louco, sol a sol. Dificuldade, fui servente de pedreiro. Eu nunca usei isso nas minhas eleições, porque eu achava isso piegas, mas eu fui. Só que o meu tio tinha uma amiga muito querida, chamada Vandete, que faleceu faz uns 3, 4 anos atrás. Aí, ela passava… Ela trabalhava num hotel chamado Guarujáim, ela era governanta. Aí, ela passava e via eu e meu irmão trabalhando, carregando saco de cimento. E a gente estudava.
P/1- Vocês estudavam de manhã e depois…
R – Não, estudava à noite. À noite. Ela ficou com dó da gente. Aí, ela arrumou um emprego pra nós no hotel. O meu irmão foi pro Guarujáim e eu fui trabalhar no Delfim Hotel. Aí, trabalhei no Delfim Hotel, foi um negócio, fui Cumim, ajudante de garçom. Muito interessante. Conheci Ari Toledo lá, conheci Carlos Zara, Eva Wilma. Guarujá, assim, eu consegui trabalhar na área de eventos. E aí, eu comecei a fazer datilografia. Olha só, o Saulo sabe o que é isso? Você também fez? Datilografia. Aí, fiz datilografia. E nisso, alguém me disse que tinha uma vaga numa administração de condomínios. No Guarujá tem muito isso, até hoje. Que administra condomínios. Aí, fui trabalhar, consegui sair do hotel e ir para um escritório. Mas o cara só aceitava se eu fosse datilógrafo, office boy e faxineiro do escritório também. Tinha que limpar o escritório, lavar o banheiro. Aí, topei. Aí, trabalhei lá. E aí, nisso, eu comecei a interagir com o povo do Guarujá. Porque o Guarujá é uma pequena grande cidade. E fui estudar numa escola, que era uma escola no centro do Guarujá. Primeiro eu estudei numa escola chamada Vicente de Carvalho, depois fui para uma escola chamada Raquel de Castro. E lá estava o filho, a elite Guarujáense, os irmãos de vereador e tal. E eu não perdi esse tino político, me envolvi em eleição de centro cívico e conheci um amigo chamado Ângelo. Está vivo até hoje, um querido amigo. Que ele trabalhava no Bradesco. Ele falou: pô, você não quer ir trabalhar no Bradesco? Eu acho que você é um cara que tem esse perfil. Fui lá, fiz um teste, passei. Aí, comecei a trabalhar no Bradesco, na época que o Bradesco começa a instalar o sistema SID, quando começam os primeiros cartões do Bradesco. Entrei no Bradesco, acho que eu tinha 16 anos, 17 anos, você podia trabalhar menor. Aí, fui trabalhar, isso já no Guarujá, fui trabalhar na área de cobrança, que era o pessoal de boleto. Porque antigamente não era assim, antigamente você ia no banco e falava assim: ó, eu tenho uma conta aí, acho que é, vê tal dia. Aí, o banco ficava com o seu boleto, o banco, sabia disso? O banco ficava com o seu boleto, aí você tirava ali, levava no caixa, a pessoa ia lá, pagava e só recebia. Ela recebia uma notificação do banco que tinha uma conta ali. Você não recebia boleto em casa, naquela época. Não existia isso. Você recebia uma notificação do banco, ou a pessoa que comprou te avisava. É lá no Bradesco, dia 10. Eu ficava em uns arquivos gigantes, pegando todo dia. E aí, eu gostei muito de trabalhar no Bradesco. Comecei a me esforçar. E se esforçar naquela época era você fazer hora extra sem eles te pagarem. Por isso que esses caras estão milionários. E fui promovido para o caixa. Só que nesse ínterim eu estava na época do Exército. Fui e me apresentei no Exército. E essa é boa. O meu tio, que me levou para o Guarujá, ele faleceu um ano depois de leucemia.
P/1- Um ano depois que vocês vieram para cá?
R - Um ano, um ano e meio depois, ele teve uma leucemia muito forte, em 30 dias ele faleceu. E a minha tia, que é Sueli, que era esposa do meu tio, o irmão dela, o pai dela era vereador. E o irmão dela depois foi vereador, encontrei na política. E quando eu vi, que naquela época era assim, para você não servir o exército, você tinha que falar com um político. E eu estava no banco, tinha acabado de ser promovido para a caixa, imagina, um garoto novo, caixa. Meninão e tal, começando a descobrir a vida, começando a liberdade sexual e tal, imagina. Era servente de pedreiro ontem, passei a ser caixa do Bradesco, olha que coisa. E nisso é bom também contar, no Raquel, foi uma das coisas que o banco me pegou, acabou me aceitando, teve o Miss e Mr. Raquel, o Miss e Mr. Guarujá, juventude, garotada. O banco acabou me pegando, entre outras coisas, por conta disso. Porque o banco estava na época da garota Bradesco. Então, eles eram muito por questão estética. E naquele ano teve o Miss e Mister Bradesco. Bradesco não, Guarujá, juvenil, estudantil. E eu fiquei em terceiro lugar. Ganhou em primeiro lugar o irmão do Alexandre Borges, que é esse ator da Globo, que ele morava lá. Em segundo lugar ganhou um cara que chamava-se Xuxa, que era um surfista. E em terceiro lugar ficou eu. E aí, o banco, porque a cidade, imagina, a cidade não tinha isso. Toda foi ver lá. Tem foto até hoje, o pessoal lembra hoje, os mais antigos lembram disso. Foi num cassino, que nem existe mais. Aí, o banco pegou e me contratou. E aí, eu estava na época do exército e, voltando ao assunto, o candidato a vereador, que era irmão da minha tia, falou: olha, não se preocupe que eu já tirei você do exército. Você não vai servir ao exército. E eu, tolinho, bobinho, achei que não. Aí, só que você começa. Quem fez, sabe, eles te marcam um dia, marca outro e você vai indo, vai indo, vai indo. Até que eu caí no 2º BC. Aí, chegou um dia lá, o cara falou: agora vamos cortar seu cabelo, a partir de amanhã você está no exército. E caí, sem querer.
P/1- Nossa, mas você não imaginava, você não queria.
R - Mas eu tinha certeza absoluta que eu não ia cair. Eu lembro até hoje, que quando eles escolheram, estava eu e um amigo meu chamado Cícero, que depois serviu o exército comigo. Esse menino, eu e ele, estavamos certos que não ia servir. Eu, porque o candidato a vereador, chama-se Wanderlei Maduro, meu querido, meu amigo até hoje, disse que eu não ia servir. Eu estava certo que não ia servir. E no banco também estava certo, eu tinha promoção. Para você ter uma ideia? Eu já tinha recebido salário com a promoção, aí estornaram a promoção. Aí, depois eu vou te contar… Quando eu voltei eu trabalhei um mês e eu tive que devolver o dinheiro para o banco porque eles tinham me adiantado o dinheiro lá atrás da promoção. Dado o rolo. E esse Cícero, era muito interessante, que esse Cícero, depois eu fiquei tirando muito sarro dele, que ele falou assim… Tinha um capitão, esqueci o nome desse capitão. Esse capitão chegou e falou assim: olha, você vai servir. Eu falei: não, mas o Wanderlei Maduro... “Não, aqui não tem Wanderlei Maduro.” O outro disse assim: não capitão, eu não vou servir porque eu vou casar, esta aqui marcado, vou marcar o casamento amanhã, semana que vem, não sei, daqui a quinze dias.” O Capitão falou: filho, você vai servir, e você não vai casar, e você um dia vai me agradecer por isso. E ele foi servir com a gente. Aí, fiquei, e foi num período muito difícil, viu? Eu servi quando o Tancredo morreu. Quando eu estava servindo, nós entramos naquele período que você fica sem conversar com o mundo, você não sabia o que estava acontecendo, início de um governo Sarney, teve o congelamento. Eu lembro que a minha esposa, a minha esposa, a minha mãe foi me visitar, e falou: você não sabe o que está acontecendo? Eu falei: não. E aí, foi um período em que nós saímos, muita greve, nós saímos muito... O BC, hoje é o 28 Bim, era um batalhão muito operacional. Agora tem destacamento da marinha aqui. Antigamente não tinha. Então, tinha greve no Porto, a gente ficava. Tinha greve na Cosipa, a gente entrava. E foi um período muito difícil. E eu servi.
P/1- E tudo isso sem você saber o que estava acontecendo. Você ia para essas...
R - Assim, no início, quando você chama de quarentena, você fica sem rádio, sem TV, sem nada. Você não sabe o que está acontecendo. A gente só sabe quando você termina a quarentena. Então, minha mãe ia me visitar. Minha mãe foi me visitar e contou. Mas depois, você sabia que você ficava quartelado. Você ficava quartelado. Quando tinha problema de greve, você ficava quartelado. Mas você não sabia direito o que estava acontecendo. Mas tem umas histórias interessantes nisso, porque quando eu estava no meio bancário, eu fazia parte do sindicato. Eu sempre fui meio agitador. A grande primeira greve dos bancários foi em 1985, com o Gushiken. Zé Genuíno o Gushiken. E eu participei, eu era muito militante lá na área sindical. Aí, eu fui o que serviu o exército. Aí, em 1986, essa aqui é boa. Saiu uma greve dos bancários. Foi um ano de muita greve em 1986, bancários, portuários, etc. Mas bancário não tinha muito problema, a gente estava na rua e eu lembro que os amigos, a gente tinha telefone fixo, os amigos me ligaram e falaram: nós vamos fazer um piquete lá na porta do Bradesco e tal. Só que o Bradesco que eu trabalhava era aqui no Guarujá. E aqui em Santos tinha um Bradesco, no Amador Bueno. Aí, eu falei: ah, ninguém vai me ver. Aí, eu fui fazer piquete com os colegas lá na porta. Militar do Exército, lá na porta do Bradesco. Só que o cara que trabalhava lá, tinha trabalhado comigo no Bradesco. E o que o cara fez? Ligou para o Exército e avisou que eu estava lá. Aí, eu estou lá, de repente, lá no final da rua aparece um jipinho do exército. E a gente sabia que quando o jipinho aparecia era para recolher soldados. Eu fugi. Isso foi numa sexta-feira. E aí, eu me apresentei, não tinha serviço final de semana, eu me apresentei, aí cheguei lá, tinha a hora do pato. Naquela época não tinha ampla defesa, como tem na Constituição de 1988. Você podia ficar preso, se alguém determinasse que você ficasse preso, você ficava preso e você só sabia porque você ia ficar preso muito tempo depois. E era assim. Mas tinha a Hora do Pato. O que era a hora do Pato, toda sexta-feira, eles anotavam todas as coisas erradas que, em tese, nós fazíamos e você ia se justificar para o comandante. E essa é interessante. O comandante chegou e tinha isso registrado, que tinha uma denúncia. “Você estava lá?” Eu: não. Aí ele falou: você estava, porque você tem cara de comunista. Mas eu vou deixar isso para lá. Mas você estava. Isso marcou muito a minha vida, porque depois, eu tinha uma namorada chamada Mariane, que hoje casada e tal, e essa menina também era uma menina muito culta, falava inglês fluentemente e ela me deu dois livros de presente para que eu lesse na época do Exército, porque você ficava muito lá e eu sempre gostei de ler. Um foi Brasil Nunca Mais e outro 100 Anos Solidão, do Gabriel Garcia Marques. Aí, só que assim, não sei se você sabe da força do livro Brasil Nunca Mais. O livro Brasil Nunca Mais foi um livro que forçou, prefaciado por Dom Paulo Evaristo Arns, forçou a liberdade no Brasil, forçou a reabertura. Só que eles, sem nós sabermos, eles faziam investigação nos nossos armários, porque eles estavam atrás de drogas. Aí, um sargento, chamado Sargento... Esqueci o nome dele. Ele encontrou o livro, Brasil Nunca Mais. E aí, que eu fui punido porque eu era comunista. Aí, eu fiquei detido no exército, porque aquele livro era um livro de comunista.
P/1- E como que era essa prisão do exército? Você ficava tipo no seu quarto?
R - Não, eu não ficava preso, eu fiquei detido.
P/1- Não podia sair para ver a família?
R - Não podia sair final de semana. Mas depois de muito... Aí, um dia, quando terminou esse... Mas isso tem um lado marcante. Quando terminou essa punição, o meu comandante, chamava-se Pedro Celso, pegou e falou assim: você leu o Brasil Nunca Mais? “Ah, li, sim senhor.” “Então, você tem que aprender que tudo na vida tem dois lados.” Aí, ele tirou da gaveta um livro chamado Brasil Sempre, que o exército da época escreveu, como uma antítese ao Brasil Nunca Mais. E falou: você lê esse livro. Eu quero que você leia esse livro e me conte daqui 15 dias o que você acha desse livro. E eu li, e nós viramos amigos. Ele, quando ia fazer discurso, ele me chamava, eu era o datilógrafo da companhia. E no final, depois de muitos anos, eu descobri que ele era canhoto, que ele era, embora do exército, ele era um cara canhoto, ele era um cara que tinha visões de esquerda. Mas foi um grande comandante. Ali também aprendi que tudo na vida tem os dois lados. E é importante você conhecer os dois lados. Mas foi muito interessante, muito interessante. Imagina, ser punido por causa de um livro em 1986. É uma coisa que as pessoas hoje, as pessoas não se dão conta o que foi aquele momento, porque ali nós estamos falando do final da ditadura. A ditadura acaba em 1985 e ela só tem essa linha de corte por conta da eleição do Tancredo.
P/1- Eu quero voltar um pouquinho na juventude, porque você chegou aqui, foi trabalhar com seu tio servente pedreiro, a gente focou muito na profissão. Mas eu queria saber como que foi quando você chegou aqui no Guarujá, teve que trocar de escola? Como que foi isso? Trocar de escola, os novos amigos?
R - Trocar de escola, pra mim, já era um useiro e vezeiro na minha vida. Eu estudava um ano em cada escola. Deixar os amigos queridos sempre era uma dor que eu já estava acostumado e eu já estava calejado de fazer esses recortes. Embora depois, com rede social, eu reencontrei muitos. Mas assim, o que Guarujá, pra mim, foi um... Quem mora em São Paulo sabe o que eu estou falando, o que Guarujá para mim marcou, é uma cidade provinciana. Era, ainda é, uma pequena grande cidade, uma cidade em que você tem que ser filho de alguém, entendeu? Então, quando você começava ali, e onde tinha os jovens e tal, a primeira coisa que as pessoas perguntavam, você é filho de quem? E isso pra mim sempre me incomodou, porque eu era eu. Meu pai, uma pessoa maravilhosa, meus pais, mas eles eram… Assim, por que eu tenho que dizer quem é meu pai? Sabe, se é filho do barbeiro, se é filho... Sabe? Isso no Guarujá, durante muito tempo, foi e ainda é, acho que ainda é. E tanto é verdade isso, muito interessante isso, que eu nunca trouxe isso para os meus filhos. Minha filha tem uma amiga dela que chama-se Jéssica, que é dentista, e que frequentou a minha casa o tempo todo, e só recentemente eu descobri que ela é filha de um amigo meu chamado Wilson. Porque eu nunca perguntei para as amigas da minha filha que frequentava em casa quem são os pais delas. Porque eu acho que isso não tem a mínima relevância. Eu acho que você tem que ser o que é. Mas o que eu senti foi que Guarujá era uma pequena cidade, provinciana, atrasada, que tinha, do ponto de vista social, das relações, eu quero dizer isso. E uma cidade segregadora, sectária, sectária no sentido de que o pessoal, isso aí é um erro que as pessoas de Vicente Carvalho cultuam, que o pessoal de Vicente Carvalho é um, o pessoal de Guarujá é outro. Que São Paulo não é assim, não era assim, e continua não sendo assim. Primeiro, o que São Paulo tem que é muito interessante, é você ser um anônimo, você pode ser respeitado pelo que você é, você não precisa. Agora, essas cidades como Guarujá, Santos tem um pouquinho disso ainda, talvez por ser um pouco maior, não se percebe, mas foi o que eu mais senti, eu achei aquilo, achei muito ruim aquilo, eu acho que isso é muito ruim, porque é uma cidade que nasceu em 1934, uma cidade que sempre cresceu por conta das pessoas que vieram de fora.
P/1- E Sidney, você estava na época de adolescência, né?
R - Sim.
P/1 - Fez muitos amigos, o que você fazia?
R - Ah sim, tenho vários amigos até hoje.
P/1- O que vocês faziam para se divertir aqui no Guarujá?
R - A gente ia para o centro do Guarujá, a gente ia para o centro, ali na rua Caminho do Mar, era onde tinha uma lanchonete do meu amigo Paulão, que até hoje é meu amigo, virou psicólogo e tal, e sempre ficava ali. Aí, tinha esse amigo meu que era Ângelo, tem outro chamado Sidney, que é meu dentista até hoje, um amigo querido, vi os filhos deles nascerem, crescerem. E eles tocavam violão. Aquilo que todo jovem faz.
P/1- O que eles tocavam?
R - Eles tocavam maravilhosamente Caetano. Eles eram muito bons no violão. É uma coisa que eu sempre quis aprender e nunca tive... Tentei várias vezes e nunca consegui, foi tocar violão, música. Eles tocavam Caetano, cantavam Chico Buarque. Imagina, muito legal! Aí, depois, nos anos 80, nós tivemos lá as bandas de rock, Legião Urbana, aquele momento. E nós ficávamos ali ouvindo música. Mas ali vinha muita gente de São Paulo, então, por exemplo, eu lembro que tinha uma menina, esqueci o nome dela, tocava flauta. Ela tocava flauta, então, juntava e era aquele time. Mas aí, de repente, eu fui pro exército.
P/1- Mas vocês iam muito à praia?
R - Eu nunca fui, eu nunca gostei de praia. Eu nunca gostei de ir na praia, ficar torrando. Hoje eu moro na quadra da praia e minha esposa pega muito no meu pé porque pouco eu vou. Eu não gosto, eu não tenho muita paciência de ficar ali me torrando. Eu gosto do ambiente da praia, mas a praia em si, ir ali, ficar ali na área de repouso, nunca me agradou. Então, não ia muito não. Mas mesmo as pessoas do Guarujá não vão muito, viu? Quem mora no Guarujá raramente vai na praia, porque a gente já está muito exposto à questão do sol, enfim. É muito difícil o pessoal que mora no Guarujá ir na praia, não é que nem carioca, que ele internaliza isso lá no posto, não sei o que. Lá no posto tal, lá em Copacabana. Não tem isso. A época que eu mais frequentei a praia foi quando eu joguei Tamboréu. Teve uma época da minha vida que eu joguei tamboréu. Que é um tênis de praia, muito interessante, aconselho vocês. Que é o antes do beach tênis. É o antes do beach tênis. Feito com uns pandeiros de madeira assim, não é com raquete. Mas eu nunca gostei muito de praia. A gente ia no cinema... Ah, os cinemas do Guarujá tinham fechado, então a gente vinha muito aqui para Santos, aqui no Gonzaga. E tinha o Sevilha, que tinha torta de banana. Nessa época, eu não gostava de cerveja. A gente não bebia muito. Nós comíamos torta de banana e suco. Eu não gostava muito de beber. Eu vou beber quando entrei na faculdade, aí na faculdade é uma perdição, faculdade.
P/1- Antes de chegar na faculdade, me conta como que eram as paqueras nessa época aqui no Guarujá.
R - Eu sou uma contradição ambulante. Eu sou uma contradição ambulante. Eu tive assim, várias namoradas, sempre fui um cara assim, meio espevitado, nesse quesito. Mas casei aos 19 anos. 19 anos casei. Casei não, eu não casei, eu fui morar junto e acho que durou 24, 25 anos, durou uma eternidade. Mas eu tive namoradas, tive amores impossíveis. Aí, uma vez veio uma alemã, Cornelia Zucker, não esqueço esse nome, no Guarujá jogar vôlei. Aí, eu fiquei amigo dela e, assim, durante anos a gente trocou mensagem e eu não sabia nada de inglês. Ela me mandava em inglês, aí eu tinha que pedir para amigos meus traduzir. E durante anos, imagina, naquela época demorava 30 dias para chegar uma carta lá. E eu imaginava que eu ia casar com ela. E nunca mais, nem em rede social mais eu encontrei ela, não sei o que aconteceu com essa moça, eu nunca mais achei. Zucker de açúcar, interessante. Tem foto, eu tenho foto dela e tal, no meu álbum antigo. É que eu não sabia disso, se não ia trazer meu álbum antigo. Tem foto eu de padre, muito interessante a foto eu de padre, você consegue ver a bata. Eu tive algumas namoradas. Tive uma namorada, que até hoje é minha amiga, chamada Ena. Foi a minha primeira namorada no Guarujá. Ena, uma moça muito bonita, muito bacana. E aí, quando eu fui para o exército, ou foi quando eu fui trabalhar no banco, aí a gente acabou o namoro, aí ela casou. Teve três filhos, os filhos dela são meus amigos, estão no Instagram até hoje. Eu me dou super bem com as pessoas que eu me relacionei, mas também era namorico, não tinha essa facilidade de hoje dar dois, três beijinhos, já... Naquela época, você guardava o sonho de valsa. Eu gostava muito, gosto ainda, muito de poesia. Sempre fui um cara um pouco... Minha esposa nega, acha que não sou, mas acho que eu sou um cara romântico ainda.
P/1- E a faculdade? Quando que o direito entrou na sua vida?
R - Antes disso.. Aí, com 19 anos, eu volto para o meu... Aí, eu sirvo, aí terminou, eu volto. E quando eu voltei, isso é interessante eu te contar. Estava muito claro na cabeça das pessoas que eu era caixa, que eu tinha sido promovido, e no primeiro dia que eu voltei. Imagina, um ano e pouco, a primeira pessoa que apareceu foi uma moça chamada Edna, que depois nós casamos. E foi assim, a primeira vista ali e tal. E aí, depois nós nos casamos. E aí, tivemos… Ela tinha três filhas, eu ajudei a cuidar e criar as três filhas, são minhas amigas, super me dou bem com elas até hoje. E tivemos uma longa história. Aí, tivemos a Natália, minha filha que é médica hoje, 31 anos. A Natália veio quando eu tinha 26. Isso eu tinha 19. Em 2011, ela foi fazer uma cirurgia bariátrica, ela faleceu. Enfim, a vida. Foi um momento muito difícil para mim, complicadíssimo. Era uma pessoa muito presente, ela era 13 anos mais velha que eu. E a gente teve uma relação muito bacana. Vivemos muitas dificuldades, enfim. Vivemos muitas coisas legais. Depois fiquei viúvo, aí casei de novo.
P/1- Mas na época que você casou com a Edna, você ainda não estava na faculdade?
R - Não, é isso. A Edna, eu começo, na verdade, embora eu disse… Eu não sei porquê, eu comecei a fazer aula de economia. Eu fiz dois anos de economia. E comecei a fazer faculdade junto com a Edna. Estava com a Edna.
P/1- Vocês trabalhavam e estudavam juntos?
R - Trabalhávamos juntos, inicialmente. A gente tinha um escritório de administração. Aí eu fui...
P/1- Mas espera aí. Não entendi. Vocês se conheceram no banco?
R - Isso. Ela tinha um escritório de administração de condomínios. Aí, eu fui trabalhar com ela.
P/1- Ah, tá. Ela não trabalhava no banco?
R - Não. No caixa, ela era uma cliente.
P/1- Ah, tá.
R – Aí, eu fui trabalhar com ela, aí eu comecei a fazer economia. Não sei porque, por causa da administração, achei que eu podia fazer economia. Aí, fiz dois anos de economia. Aí, no meio do segundo ano, uma professora olhou para mim e falou, assim: olha, meu, tu não tem nada a ver de economia, porque economia é muita matemática, embora seja ciência social, mas vai para direito. Foi quando eu fui para o direito. Aí, fiz, me formei. Quando eu fui, passei no vestibular no primeiro ano, eu fiz sozinho, no segundo ano, a Edna entrou também. E aí, nós estudamos, assim, um ano de diferença, não na mesma classe, mas na mesma turma. Eu me formei em 1994, ela se formou em 1995. E aí, eu fui mais para a área criminal e cível e ela foi para a área trabalhista. Aí, trabalhamos muito tempo juntos, até o dia que ela foi fazer uma operação bariátrica, não deu certo. Enfim, foi um sofrimento e ela acaba morrendo de ataque cardíaco. No dia 11/11/2011.
P/1- Quantos anos a Natália tinha?
R - A Natália tinha 17. Foi muito difícil. Mas a vida, vida que segue. A Natália tinha 17. Aí, depois eu toquei a vida, casei de novo. Enfim… Tenho outro filho, chamado João.
P/1- Como foi se tornar pai?
R – Ah, eu acho que isso é legal, sabe? Eu acho que isso é legal. Eu acho que ser pai é uma das coisas mais bacanas da minha vida. Primeiro com a Natália, a Natália é uma pessoa absolutamente... Minha filha... Assim, a gente... Imagine, perder a mãe com 17 anos, momento em que eu era um babaca, sabe? Eu era um babaca, eu achava que... Machista pra caralho. Desculpa, corta aí o pra caralho depois. E a gente estava num momento muito difícil, eu e a Natália? E aí, a gente acabou se encontrando. Mas hoje acho que eu sou um pai melhor, sabe? Eu acho que não tem manual de pai. Você vai aprendendo com os seus erros. Eu errei. Me dou muito bem com as minhas enteadas, acabei de criá-las. Hoje… Tem enteada minha que é avó, então, tecnicamente, eu sou bisavô. Porque, na verdade, é uma coisa que eu não expliquei aqui, elas não tinham muita referência do pai. O pai deixou a Edna muito jovem. E eu acabei ali. Mas eu era menino como elas, eu também não sabia muita coisa. Mas hoje a gente se dá super bem, porque é o que sobrou da família da gente ali. A gente tem netos, netos dela me chamam de vô, enfim, é por aí. E depois, curiosamente, casei com outra mulher, chamada Edna. Uma outra mulher chamada Edna, que eu já conhecia e tal. Você vê que… A minha atual esposa, uma pessoa maravilhosa. É uma coisa…
P/1- Onde vocês se conheceram?
R - A gente se conheceu no trabalho. É uma coisa que a gente tem que tomar muito cuidado. São amores diferentes, intensos e que são diferentes. E que assim, por mais que as pessoas não acreditem, é possível você amar duas pessoas. É possível. Eu escrevi um artigo, uma vez, onde dizia que o amor não pode ser egoísta. Eu tenho um melhor amigo… Então, assim, são duas Ednas na minha vida, muito diferentes, muito diferentes, e que eu amo profundamente ambas. Então, eu acho que isso tem que ficar muito claro, são mulheres diferentes, estilos diferentes e que eu... Assim, não que me preencheram como se eu fosse um sultão, que tinha que me preencher. Não é isso. O amor é compartilhamento, é equilíbrio. Eu acho que a gente conseguiu o equilíbrio. Eu acho que eu fui feliz e consegui o equilíbrio nos dois relacionamentos. É isso. O que mais? O que você quer falar? Da faculdade?
P/1- É, quero saber, aí você foi pro Direito. Vamos entrar na faculdade e depois começar a conversar um pouquinho sobre como você entrou… Você sempre foi politizado, mas como entrou na política?
R - Então, a faculdade pra mim foi muito legal.
P/1- Você estava lá fazendo economia e a professora falou...
R - Aí a professora chegou e falou pra mim, “ó, você não tem nada a ver com economia, vai fazer direito.” Aí, eu fui lá fazer direito. Aí, deixei economia. Durante um seis meses ainda fiz economia de manhã e direito à noite, pra tentar ver se eu conseguia levar. Mas a economia não tinha nada a ver comigo. Fiz direito, em 1994 eu me formo. E aí, eu começo a entrar em campanhas políticas. Em 1996 eu já entro numa…
P/1- Nessa época você estava trabalhando ainda nessa administração?
R - Sim. Eu trabalhei o tempo todo. Meu escritório era dentro da administração. E essa administração só vai terminar quando minha esposa falece em 2011. E assim, aí entrei na política, que acho que foi uma coisa que tem o seu lado positivo. Eu vou escrever um livro da minha vida, de todas as campanhas que eu participei, eu acho que o Mário Covas é muito feliz quando ele diz que o homem alcança a cidadania plena quando ele exerce o seu direito político, ativo e passivo. Então, você precisa ser eleito, você precisa ser candidato para entender o quão é difícil ser candidato, o quão criminalizaram e banalizaram a política. É mais ou menos assim, você está num prédio, você tem um vizinho, ele é seu amigo, há um tempão, aí no dia que você vira candidato, você vira ladrão. Porque isso banalizaram de tal forma a política no Brasil, criminalizaram que é assim. Eu acho que é muito interessante. Mas também, por um lado, foi um momento que eu poderia ter usado pra estudar mais, sabe? Eu poderia ter utilizado. Eu tinha um escritório de advocacia muito grande, eu fiz inúmeros júris. Teve uma época que um dos escritórios mais interessantes do Guarujá, assim, era o meu. Mas quando você entra na política, se você ganha, você tem os louros. Se você perde, você tem a tragédia. Não a tragédia, não a desgraça, mas você é oposição, você é… Enfim, você é perseguido. E foi aí. Aí, disputei a eleição… Assim, eu entrei ajudando, nós disputamos 1996 como candidato, depois disputamos 2000, 2004. Aí, eu vou ser candidato, eu mesmo candidato, antes só como… Em 2010, sou candidato a deputado federal pelo PV. Na época que a Marina foi candidata. Tive uma votação, fui o candidato a deputado federal mais bem votado da região, do PV, aqui na Baixada Santista, mas não me elegi. Aí, 2012, sou candidato a prefeito no Guarujá, fico em terceiro lugar. Em 2016, sou candidato... Em 2012, eu fui candidato pelo PT. Fui o último candidato do PT no Guarujá. Em 2016, eu tive um problema interno no PT, eu vou para o PCdoB. Sou candidato a prefeito, acho que fui o quarto mais votado. E aí, agora o ano passado eu fui candidato também e fui muito mal. Mas em 2016 foi interessante, porque em 2016 foi quando começo toda essa minha guinada para a área ambiental. Porque já em 2007, como advogado, importante lembrar isso, eu sempre achei que as ações coletivas eram o caminho certo para ajudar a população. E eu começo a fazer ações coletivas, ação civil pública, ação popular. Inclusive, a Estação de Tratamento de Água do Guarujá, que existe hoje, foi fruto de uma ação civil pública que eu promovi junto com as associações de bairro. Em 2013, eu sou finalista do Prêmio Innovare da Globo, por conta dessa minha ação. Só que acabou ganhando um escritório lá de Pernambuco. Mas foi interessante ser o finalista do Prêmio Innovare da Global. O principal prêmio jurídico do Brasil. E aí, eu entrei com várias ações civis públicas, consegui colocar água no Moinho, discutindo a fila da balsa, enfim. E fui candidato, só que essa história do Moinho é muito interessante. É muito interessante contar, porque eu fiquei com isso encasquetado, por isso que eu fui fazer NBA, acho que você viu no meu currículo que eu tenho NBA em saneamento ambiental.
P/1- Ah, e eu vi que é do esgoto da Prainha Branca, né?
R - Não, isso da Prainha Branca é o meu doutorado. O MBA foi um interessante que eu fiz… Porque gente, por uma ação jurídica, eu consegui colocar água e esgoto na casa de muita gente. E fui candidato em 2010. O bairro que eu tive menos voto foi lá, mesmo conseguindo isso. E eu queria entender isso. Depois fui fazer MBA em saneamento ambiental e dá para você entender, hoje… E aí, eu falo um pouco também no meu doutorado isso, que as pessoas no Brasil ainda não se deram conta da importância de água e esgoto. Aguá, o Brasil tem muita água, então… O que aconteceu? Quando você regulariza a água e esgoto, qual é o segundo passo que acontece? Eles recebem uma conta de água. Entendeu? Eles recebem uma conta de água. Antes não tinha conta de água. Eu não resolvi um problema de saúde pública para eles, porque eles não percebem que isso é um problema de saúde pública. Eu dei uma conta para eles, por isso que eles não entenderam isso. E isso é uma falha do sistema brasileiro até hoje. Hoje, como pesquisador da área de saneamento ambiental, falta muita educação ambiental, de você fazer com que as pessoas entendam a importância do saneamento ambiental. As pessoas acham que se colocar numa fossa ou colocar numa rede de água, de água pluvial, não vai ter problema, isso não vai voltar para eles. Então, nós precisamos trabalhar muito o conceito de saúde única hoje, que é o conceito da saúde não só do humano, mas do meio ambiente e do animal. Seu pet hoje, se ele estiver doente, ele pode trazer problema para você. Então, isso é uma coisa que na academia, ao longo dos anos, eu aprendi. Em 2016, o prefeito Walter Summa me convida a ser secretário de Meio Ambiente. Quando eu já tinha esse trabalho em saneamento ambiental, da 11.445, quando eu sentei naquela cadeira, e vi que eu tinha que fazer gestão ambiental, que não era mais como antigamente fazer audiência, fazer júri, aquilo para mim já era quase que automático, eu tinha que fazer gestão ambiental. E aí, foi quando você, se você olhar no meu currículo, no meu lattes, você vai ver que a partir daí eu volto a estudar com muita força. Eu tinha feito uma especialização, outro episódio da minha vida que foi muito interessante foi ser professor, eu fui professor da UNAERP durante muitos anos, professor de Direito. Dei aula em Direito, dei aula em Relações Internacionais. Mas a turma que eu mais gostei de dar aula foi na turma de Assistente Social. Eu formei um monte de Assistente Social no Guarujá, que até hoje me encontram. Trabalhar com o pessoal de Assistente Social é muito gostoso, muito gostoso mesmo. Eles são muito cabeça boa. Melhor do que o pessoal de Direito, que é meio, assim, obtuso. E aí, quando eu sentei ali, eu vi que eu tinha que voltar a estudar. Aí, fiz meu mestrado, fiz MBI, fiz meu doutorado. E agora estou indo para o meu pós-doc. Acho que nunca vou parar de estudar na minha vida. E, assim, por conta da política, eu parei um pouco. Acho que isso foi o grande prejuízo que a política me trouxe.
P/1- Eu queria que a gente falasse agora um pouquinho do problema que você estava conversando com a gente antes de começar a entrevista, o que está acontecendo com os pescadores, da logística dos portos, o que envolve?
R - Então, aí, sete anos como secretário, quando o presidente Lula retornou à presidência da República, o Porto de Santos mudou de domínio, não de domínio, mas de tendência política, e a ministra Luciana Santos me convidou junto com o ministro Márcio França de ser o superintendente do Porto de Santos. Para mim um desafio gigantesco, uma das maiores empresas do mundo, o 40º Porto. E nós temos inúmeros recortes aqui que são os recortes de ser a empresa que mais produz dados ambientais da região. Não sei se vocês sabem disso. Entre esses dados ambientais, nós temos os dados e trabalhamos muito com a questão dos pescadores. A questão dos pescadores, na minha opinião, ela está levando a um caminho de que os pescadores, a médio prazo, eles vão, eles deverão receber uma compensação ambiental, porque quanto mais a atividade econômica cresce, evidente que mais impacto nós trazemos à região. Isso é evidente, não precisa ser nenhum expert para entender que essa sociedade de risco acaba impactando na vida dos pescadores. Agora, nós temos um grande problema, que é a seguinte pergunta, o que é ser pescador? O que é ser pescador? Esse é um problema que a gente enfrenta aqui e estamos agora contratando a Universidade Federal para que a Universidade Federal possa fazer um Raio X das comunidades de pescadores e entender o que está acontecendo. Porque nós temos grandes problemas. O problema, nós temos o pescador, de fato, que nós precisamos acolher, entender e atender, nós temos oportunismos nessa área, tanto é que recentemente o governo brasileiro anunciou que vai fazer uma revisão no auxílio defeso, porque tem muita gente pendurada nesse auxílio. E nós precisamos saber se essas pessoas são pescadores de fato. Porque o fato só de ser cadastrada em uma Colônia de pescadores, não nos dá certeza disso. Tanto é que o governo federal e o Ministério da Pesca está pedindo que os pescadores coloquem GPS nos seus barcos, porque nós precisamos saber quantas vezes eles saem. Porque qualquer tipo de compensação ambiental, compensação a esse pessoal, nós temos que saber o tamanho dela. Primeiro, para quem realmente merece. Porque, assim, quando você faz reunião com os pescadores, tanto aqui como quando eu era Secretario, os próprios pescadores denunciam pessoas que estão nessas reuniões e que não são pescadores. E denunciam que alguns que são representantes, não representam a classe porque não são pescadores. Então, nós temos que definir o que é pescador. E eu entendo muito importante esse movimento do Ministério da Pesca, no sentido de você saber realmente, porque um pescador que sai uma, duas vezes por semana é uma coisa, um pescador que sai uma vez por mês é uma coisa, até para dimensionar essa compensação. E segundo, e terceiro ponto mais importante, é que nós também temos que ter ciência, em uma recente reunião com o Ibama, nós conversamos isso, que o crime organizado, ele não capturou só motel, ele não capturou só posto de gasolina, ele não capturou só a Faria Lima, ele capturou também alguma parcela de pessoas que acabam se misturando com os pescadores para coisas que não são corretas e que traz facilidade para a execução das tarefas deles. Nós não podemos perder de vista que o Porto de Santos é a maior porta de entrada da Europa, da África, da América do Norte. Nós temos problemas enormes com tráfico internacional de entorpecentes aqui. Muito. Nós temos uma guarda portuária que tem que estar vigilante. Nós temos parceria com a Polícia Federal, useiro e vezeiro, nós temos grandes apreensões de drogas no entorno do Porto de Santos. Eu não estou dizendo que os pescadores trabalham para eles, não é isso que eu estou dizendo, eu estou dizendo que em algum momento pode ter alguma cooptação em relação a isso. Por isso que nós estamos nos debruçando para entender. Primeira pergunta, pergunta do milhão, o que é ser pescador? Quem realmente vive ou totalmente ou em parte? E em que medida isso?
P/1- Mas, Sidinei, você acredita que em Santos ainda dá para viver só da pesca, pescador artesanal?
R – Não, não. Assim, primeiro Santos não é referência. As maiores colônias de pescadores hoje estão em Guarujá. Eu entendo quando você fala Santos, Santos não mesmo, porque Santos desenvolveu de uma forma muito, uma das maiores cidades do país. Guarujá, São Vicente, Cubatão. Agora, eu falei pra você, tem um documentário na Netflix… Na Netflix não, no YouTube, da Secretaria Estadual de Cultura, que vai falar da comunidade Caiçara. E ali, eu não estou falando que eu acho que… Esse mesmo documentário vai dizer que hoje eles não vivem mais das tradições milenares, seculares deles. Eles complementam renda. Complementam renda. Eu não vejo a possibilidade de pescador artesanal. Do pescador artesanal, não do grande armador de pesca, esse vive da pesca, mas o pescador artesanal, eu não acredito que exista nesse momento ambiente para que eles possam viver 100% disso. Eu acho que existem pescadores artesanais que acabam completando a renda. Por isso que nós precisamos entender quem são, a que medida, em que forma a gente pode capacitar. Por exemplo, na economia criativa, talvez. Nós precisamos, essa compensação ambiental e ela não pode ser só de dinheiro. Ela tem que ser de capacitação. O Harari fala isso no livro 21 lições para o século XXI, da gente ter essa coisa que está acontecendo no mundo. Eu, por exemplo, comecei a descobrir que eu podia ser gestor público na área ambiental com 48 anos. Você pode, no meio da sua vida, mudar a sua atividade. E o Porto tem que, junto com o Instituto de Pesca, que tem aqui, o Porto tem junto com a Universidade Federal, que tem o Instituto do Mar, ajudar a entender esse ecossistema e preservar aquilo que dá para preservar, talvez fazendo economia criativa, você resgatando comunidades tradicionais, fazer um ecoturismo. Nós temos um ecoturismo aqui na Serra do Mar, com o restaurante das plancs, das plantas alternativas, comestíveis. Então, eu penso que nós temos que ter um olhar melhor para isso. Talvez no Maranhão seja diferente, eu não conheço o Maranhão, acho que o Maranhão ainda pode e deve ter muitos pescadores que vivem exclusivamente, mas dado o dinamismo da região, eu não acredito que exista. Se existir, é caso bem raro. E não falo isso no achismo, falo isso embasado num documentário da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.
P/1- A gente já está encaminhando para as perguntas finais, mas eu queria saber se tem alguma coisa que eu não perguntei e que você queira acrescentar.
R - Ah, sobre a minha vida, coisa tão... tem tanta coisa. Mas assim, eu acho que, de modo geral, eu falei tudo. Eu só queria terminar dizendo o seguinte, com todos os meus erros e acertos, se eu tivesse que voltar e viver tudo de novo, eu viveria tudo de novo. Todas as... Talvez corrigiria uma coisa ou outra, mas eu acho que eu fui muito feliz na minha vida. Eu tive pessoas fantásticas, a única coisa que aos 58 anos, não me acho velho, até vi recentemente um café filosófico sobre a metamorfose viva, a única coisa que… são as perdas. Quanto mais você vai se aproximando de uma idade muito avançada, não vou falar da morte, mas o que mais machuca você são as perdas. É muito difícil você entender que você é finito. É muito difícil. E eu sou um homem que não acredito na vida pós-morte, então é muito difícil você olhar e ver a sua finitude. Você já parou para pensar que daqui a 50 anos ninguém vai saber nem quem você é? Daqui a 50 anos as pessoas não vão saber quem você é. Essa parte eu termino dizendo que uma das coisas mais bonitas, uma coisa que eu não disse para vocês, que eu gosto muito, são de animações da Pixar, eu acho que elas são história de vida, história. E a animação que mais mexeu comigo foi aquela... A vida é uma arte, que é do mexicano, que eles vão contando a história. A vida é uma festa, em que as pessoas só morrem se você esquecê-las. Então... E isso é natural as pessoas esquecerem de você. Então, você já pensou que daqui 50, 60 anos nós não somos nada, nem nossos bisnetos vão lembrar que nós existimos. Então, essa é a nossa pequenez, nós não somos nada nesse mundo, absolutamente nada.
P/1- Queria saber do seu cotidiano hoje em dia, como que é, como que é o seu trabalho?
R - Hoje está legal, eu comprei uma bicicleta elétrica, venho pedalando do Guarujá para cá. Eu acho que, acho não, tenho certeza que para você liderar uma coisa, como a gente está liderando aqui a descarbonização do porto, você tem que viver ela. Não dá para você ser mais ou menos. Então, eu bani o combustível fóssil da minha vida, eu não tenho condição de comprar um carro elétrico, está muito caro, meu carro é a álcool, e vendi minha velha moto a combustível fóssil, comprei uma bicicleta elétrica. E se você chegasse um pouco antes eu ia estar todo suado, porque eu pedalo e acho isso o máximo. O que eu posso também dizer para você é que a maturidade te tira a pressa. E você começa a valorizar uma coisa que pouco você valoriza, que não tem preço, que são uma das poucas coisas do mundo que o dinheiro não compra, que é seu tempo. Então, a maturidade te tira a pressa. Então, eu vim pedalando do Guarujá aqui, olhando cada local, cada quadra. Eu acho que isso mudou bastante a minha cabeça. Aliás, eu sempre fui adepto daquela diferença entre o peregrino e o viajante. Eu não sei se vocês conhecem, o viajante sai do ponto A, vai para o ponto B, ele só se importa com o ponto A e o ponto B. Eu acho que eu sempre, e a maturidade me traz isso mais forte, que eu sempre fui um peregrino. Não importa onde você vai, o que importa é o caminho, o que importa é o que você vive a cada dia. Então, eu estou assim, pedalando, fazendo regime, indo para a academia, eu curto pra caramba ficar fazendo a minha corridinha. Eu acho que hoje eu valorizo mais o meu tempo, a minha vida, o meu estar com as pessoas que me amam. E eu sou muito rico nisso, tem muita gente que me ama e eu agradeço isso todos os dias.
P/1- E quais seus planos profissionais para o futuro?
R - E eu amo muita gente também. Eu sou um garoto… Rapaz, para amar, eu amo. Menina, eu amo fácil. Eu não acho que eu estou no ápice da minha vida ainda. Pode parecer brincadeira, né? Eu acho que eu vou chegar no ápice da minha vida com 80, 85, porque cada dia eu aprendo mais. Então, por exemplo, eu quero fazer meu pós-doc, eu quero fazer minha livre docência, mas mais do que isso, eu quero trabalhar em outros locais, eu acho que ainda tem muita coisa com a experiência, que eu posso contribuir. Sobretudo uma questão ambiental, que é uma questão tão mal compreendida. Por exemplo, hoje você fala do ESG, mental, social e governança. O que é o S? Essa é a grande questão que eu faço aqui diariamente. O que é o “S”? Como que a gente pode ter um porto que tem tanta força econômica e você pode ter tanta comunidade subnormal no entorno dele? Então, nós somos incompetentes, nós não estamos fazendo com que a riqueza chegue a aos nossos patrões de verdade. Porque se o porto é um porto público, é um porto do governo do Brasil, quem são os nossos patrões? Inclusive são aquelas pessoas que estão nas comunidades subnormais. Eu não consigo... Tem que dar lucro. Uma empresa pública tem que ofertar o bem social. O lucro é algo do privado, aqui não é pecado, que não é pecado um porto ganhar muito dinheiro, um operador ganhar muito dinheiro, ele tem que ganhar porque ele foi construído para isso, a filosofia dele é essa. Não nós. Então, eu acho que, eu penso que nós, tanto quando eu estava na prefeitura, como eu estou aqui, nós ainda não ofertamos à população. Nós sabemos direito, que são nossos direitos civis. Ter liberdade, ter um nome, nós sabemos que são nossos direitos políticos, votar e ser votado. Mas ainda nós não entendemos que os direitos sociais é a repartição da riqueza brasileira para cada um dos brasileiros. Não dá mais para a gente entender. Eu acho que a gente tem muita coisa para fazer. Essa desigualdade brasileira não pode ser normalizada. A gente não pode achar que isso é normal, as pessoas vivendo na extrema pobreza e pessoas retendo quase que 70% da renda nacional, para 15% mais rico do Brasil. Isso é um desafio desde a época que eu fui detido lá no Exército, lendo o Brasil Nunca Mais, e eu ainda sou um rebelde, ainda tem um pouquinho da... não da juventude, mas nós, quando chegamos aos 60 anos, nós não mantemos a juventude, nós mantemos a jovialidade. Então, essa jovialidade que me move.
P/1- E o que você quer deixar de legado para as futuras gerações?
R - Difícil, hein? Olha, eu tenho 58 anos. Na constituição de 1988, eu estava iniciando a faculdade, e quando… Só para te contextualizar isso, e quando ali nós começamos a discutir o novo Código Civil Brasileiro, quando nós discutimos o Código Consumidor, ali na década de 90, início dos anos 2000. Eu achei que o mundo tinha melhorado. E aí, nós tivemos o advento das redes sociais. Aquilo, tem um livro chamado A História da Ignorância do Mundo, de Peter Burke, você que é historiadora. A História da Ignorância no Mundo, leia. Aí, nós descobrimos que a ignorância é uma grande arma que ainda é eficaz. E a gente percebe o quanto as redes sociais são um instrumento de ignorância. Porque o excesso de informação é uma forma de burrice. Então, o que eu queria deixar de legado é uma advertência para as pessoas, que o conhecimento ainda é, a ciência e o conhecimento ainda é o melhor caminho para a humanidade. E que buscar o conhecimento e a ciência não tem idade. Eu acho que a gente tem que parar com esse microcosmo, esse recorte de que... Porque quando você tem 20 anos, você não quer saber, você não sabe o que você quer saber da vida. Se você quer ser historiador, se você quer ser advogado, e quando você tem 30 anos, também você não sabe. Dou um exemplo concreto aí de um livro que eu li agora. Um livro que eu li agora, que eu te citei agora. Eu leio a cada 10 anos de novo, 100 anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques. Porque a cada vez que eu leio, eu vejo aquela história, a saga da família Buendía, de uma forma diferente. Cada vez que eu leio esse livro, eu tenho uma nova visão sobre esse livro. Então, o que eu quero dizer para você é que é muito esquisito essa coisa de que, hora você acha que o mundo é civilizado e ele está avançando para a ciência, você vê as mulheres ganhar prêmios Nobel, e, ora, você vê o que está acontecendo nos Estados Unidos, e, ora, você vê o que está acontecendo nas internets, e, ora, você vê o reino da ignorância, e, ora, você vê a Idade Média acontecendo de novo. Então, o que eu queria deixar de legado, no mínimo, para os meus filhos, é que, como os meus pais me deixaram, de uma forma um pouco mais tímida, de que a ciência é tipo conhecimento, o conhecimento e a ciência é poder, e usem esse poder de forma adequada.
P/1- Você falou de filhos, você falou da Natália…
R - E do João Pedro.
P/1- João Pedro. Fala alguma coisa. É o que tem 14 anos, né?
R - O João Pedro, ele é… Assim, são filhos com esposas, como eu te falei, absolutamente diferentes. E assim, não tem manual pra você… Ele tem uma influência muito forte da mãe, da Edna, uma mulher maravilhosa. Mas assim, ele também tem uma influência… Eu acho que o meu filho tem de mais extraordinário é a curiosidade. Ele é um garoto extremamente curioso, ele é um cara que lê, com 14 anos já está lendo Nietzsche, ele está lendo Camus, Alberto Camus, ele está lendo livros clássicos. E ele é um menino extremamente curioso. E é um menino, é um inquieto como eu, liderança na classe, é um filho... Mas, assim, eu não quero dizer aqui, porque acho que eles vão ver isso, o que eu espero deles, porque eles têm que ser o que eles querem ser. Porque se eu falar o que eu espero deles, é tão ruim isso, e eu já tive tanta discussão com os meus irmãos, “ah, eu quero que meu filho seja médico.” Eu quero que o meu filho seja feliz e que seja o que ele queira ser. E eu, por exemplo, vi agora há pouco tempo de uma querida amiga historiadora que ser historiador não é legal. Mas eu acho a história fantástica. E a minha filha, eu quero que ela seja feliz. Minha filha é uma dádiva da minha vida. A minha filha é o meu ponto de equilíbrio. Sempre foi meu ponto de equilíbrio. Todas as vezes que eu estou muito, muito estressado, ou estou numa situação muito difícil, eu sempre vou lá deitar um pouco no colo dela, porque ela é meu ponto de equilíbrio, ela sempre foi meu ponto de equilíbrio. E a gente viveu muita coisa junto. E eu espero que eles sejam felizes da forma deles, da forma que eles quiserem ser felizes, é isso que eu espero deles.
P/1- E quais seus sonhos?
R - Meu sonho é morrer com 120 anos. Você sabe que o meu sonho mesmo, eu sempre falei isso, meu sonho é morar numa cidadezinha do interior, comprar uma livraria, que não importa se vai ter lucro ou não, e encerrar minha vida com os meus amigos imaginários, meus livros, conversando com eles. Você vê, recentemente eu fui lá reler Alice no País das Maravilhas, como é gostoso. Recentemente eu reli O Médico e o Monstro, a obra clássica. Recentemente… Recentemente não, eu li de novo o nosso anti-herói brasileiro, Macunaíma. E é tão bom. O que eu espero é terminar a vida enfronhado. Para você ter uma ideia do que eu estou lendo agora. Até o Saulo, sugiro para ele. A minha esposa entrou na Menopausa, aí ela comprou um livro, a gente estava indo para Brasília, e aí ela... a gente ama aquela livraria do aeroporto. Aí eu comprei o livro da Domitila, A Última História da Domitila. Se você puder ler, leia, você é historiadora. Mas ela comprou um livro sobre Menopausa. Sobre menopausa, do Omitilo, o livro? Da menopausa, eu vou te falar, sobre a menopausa.
P/1- R - Não, mas assim, olha, que coisa, Saulo, que coisa o livro da menopausa. Aí, ela leu, falou assim para mim, “ó, eu quero que você leia esse livro, porque você tem que entender o que eu sou.” E eu estou lendo o livro e eu estou gostando pra caramba. Porque assim, entender o que é ciclo, entender o que são os 28 dias de vocês. Que eu nem sabia que eram 28, pode ser na prova. Entender o que vocês sofrem, entender o que é pré-menopausa. Porque você só vai conseguir compreender se você tem empatia, você tem que viver isso. Hoje eu cheguei aqui, a primeira coisa, eu fui lá, fiz um discurso do livro para os funcionários do Porto. Porque a gente não discute menopausa aqui. E menopausa é uma coisa absolutamente secreta, oculta e mal interpretada, porque ela começa aos 30 anos. A mulher aos 30 anos já entra na menopausa, que muda a vida dela, que muda a vida da família. E eu não me dava conta disso. Então, assim, você vê, acho que o conhecimento, aí eu estou lendo o livro e estou achando maravilhoso saber o que a progesterona faz, o que a testosterona faz, o que o estradiol faz, como que isso… O que é realmente TPM. E como a mulher sofre e nós não entendemos, achamos que isso é, como os antepassados nós fazemos, achamos que isso é uma histeria, a mulher está louca. Que foi tão ma interpretado isso. Então… Eu só estou te contando isso porque… E agora coloquei lá, depois de menopausa, a ciência da gestação. Eu tenho que ler esse livro porque, quando eu falo para você que o homem, que a mulher é o centro do mundo, ela é completa porque ela tem o poder da gestação, algo que não temos. O homem é frustrado por conta disso. E a ciência da gestação, eu quero ler esse livro. Eu acho fantástico isso. Eu quero terminar a minha vida numa livraria, numa cidadezinha pequena, lendo e conversando com a garotada, indicando alguns livrinhos. É isso que eu quero para a minha vida. Não quero muito mais que isso, não.
P/1- E, para finalizar, como foi contar um pouco, um pedaço da sua história para a gente hoje?
R - Ah, eu sempre pensei em escrever um livro sobre tudo que eu vivi, mas hoje vocês vieram aqui me capturar. Mas, assim, de surpresa, viu? Porque eu sabia que vocês viriam falar comigo, mas não sabia que seria isso. Pensei que vocês iam falar de Porto. Acho essa experiência maravilhosa e diz que fazer Museu da Pessoa é algo que eu acho demais. Porque o mundo é mundo por conta dos heróis anônimos. Então, vocês contam a vida dos heróis anônimos do mundo. Vocês contam o mundo real. Parabéns pelo trabalho de vocês.
P/1- Muito obrigada.
R - E eu que agradeço.
Recolher