Projeto Memórias de Serra Pelada
Entrevista de Francisco Osório Nery
Entrevistado por Daiane Silva (P/1) e Daniel Reis (P/2)
Serra Pelada, 20 de agosto de 2024.
Código da entrevista MSP_HV003
Transcrita por Monica Alves
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Qual é o seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Olha, eu sou cearense, nasci em Ipaumirim, Ceará, depois de Fortaleza, 100 Km. Depois eu saí de lá, meu pai largou a minha mãe, na época da seca, entendeu? A situação era muito difícil. Meu avô tinha uma terrinha lá e levou a gente para lá, porque não tinha como ficar na cidade, porque nós comíamos café com farinha, café de manhãzinha, aquele negócio. E a minha mãe com muita dificuldade, não tinha como trabalhar, não tinha como nada, aí o meu avô me levou para lá. Lá eu era pequenininho, mas eu cuidava do gado, eu separava o gado, tirava o leite e aquele negócio todo. E aí foi indo, o meu avô começou a pegar amor por mim, minha avó também. Vocês sabem que os avós sempre gostam mais dos netos, do que dos filhos, né? E a minha mãe sempre ia lá, entendeu? E aí, através disso eu fui… nós pegávamos o jumento, na época, jumento, porque se chamava jumento, eram duas léguas para ir para o colégio, ai nós celavamos com uma cangalha, que nem cela tinha, era cangaia, aquela de pau, e ia para o colégio. Lá, todos aqueles metidos a ricos me destratavam, falavam: “Olha, chegou no jumento, na cangaia”. Mas eu fui levando, estudando, entendeu? Através disso aí eu fui criando mais força, mais força, mais força. E na verdade, quando foi um dia eu me injuriei, a minha mãe comprou um violão para mim e eu disse: “Vou cantar, vou ser cantador”. Aí comecei a tocar, tocar e tocar, aí eu disse: “Quer saber de uma coisa? Eu vou vender esse violão e vou embora para Fortaleza”. Olha, 100 km e eu não conhecia ninguém lá.
P/1 - O senhor lembra a data do seu nascimento, seu Chico?
R -...
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Entrevista de Francisco Osório Nery
Entrevistado por Daiane Silva (P/1) e Daniel Reis (P/2)
Serra Pelada, 20 de agosto de 2024.
Código da entrevista MSP_HV003
Transcrita por Monica Alves
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Qual é o seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Olha, eu sou cearense, nasci em Ipaumirim, Ceará, depois de Fortaleza, 100 Km. Depois eu saí de lá, meu pai largou a minha mãe, na época da seca, entendeu? A situação era muito difícil. Meu avô tinha uma terrinha lá e levou a gente para lá, porque não tinha como ficar na cidade, porque nós comíamos café com farinha, café de manhãzinha, aquele negócio. E a minha mãe com muita dificuldade, não tinha como trabalhar, não tinha como nada, aí o meu avô me levou para lá. Lá eu era pequenininho, mas eu cuidava do gado, eu separava o gado, tirava o leite e aquele negócio todo. E aí foi indo, o meu avô começou a pegar amor por mim, minha avó também. Vocês sabem que os avós sempre gostam mais dos netos, do que dos filhos, né? E a minha mãe sempre ia lá, entendeu? E aí, através disso eu fui… nós pegávamos o jumento, na época, jumento, porque se chamava jumento, eram duas léguas para ir para o colégio, ai nós celavamos com uma cangalha, que nem cela tinha, era cangaia, aquela de pau, e ia para o colégio. Lá, todos aqueles metidos a ricos me destratavam, falavam: “Olha, chegou no jumento, na cangaia”. Mas eu fui levando, estudando, entendeu? Através disso aí eu fui criando mais força, mais força, mais força. E na verdade, quando foi um dia eu me injuriei, a minha mãe comprou um violão para mim e eu disse: “Vou cantar, vou ser cantador”. Aí comecei a tocar, tocar e tocar, aí eu disse: “Quer saber de uma coisa? Eu vou vender esse violão e vou embora para Fortaleza”. Olha, 100 km e eu não conhecia ninguém lá.
P/1 - O senhor lembra a data do seu nascimento, seu Chico?
R - 52.
P/1 - O dia o senhor não lembra, né?
R - Dia 22 de dezembro de 1952.
P/1 - Contaram para o senhor como foi o dia do seu nascimento? Os seus pais lhe contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Não. Naquele tempo não existia isso, essa informação, entendeu? Eu não sei nem como eu nasci, entendeu? Eu sei que eu estou aqui na terra. Agora a minha mãe também conta que… a mãe da gente era sistemática naquela época, entendeu? Meu pai largou logo a minha mãe, casou com outra no Maranhão e aquele negócio, largou a minha mãe lá. Eu sei que nós ficamos no além, entendeu? Eu e mais duas irmãs.
P/1 - O senhor sabe como escolheram o seu nome, Francisco Osório? Por que deram esse nome para o senhor?
R - É porque tem São Francisco de Assis. Aí botaram Francisco e o sobrenome é da minha família, Osório, Nery, Silva, Gonçalves. O do meu pai era Nery, da minha mãe era Osório, então juntou e foi esse nome.
P/1 - Aí Francisco foi por conta de São Francisco, né?
R - É.
P/1 - Ele era padroeiro na cidade do senhor?
R - Era São Francisco das Chagas, São Francisco de tudo era o poderoso, o patriarca daquela época, né.
P/1 - Qual o nome da sua mãe?
R - Josefa Osório Nery. Era, porque ela é falecida, já.
P/1 - Ela faleceu há quanto tempo, o senhor sabe?
R - Olha, tem uns quatro anos já.
R - Se eu lhe perguntasse assim: Como o senhor descreveria a sua mãe? Como seria que o senhor descreveria ela?
R - Uma pessoa maravilhosa, boa demais! Briguenta, porque eu dava muito trabalho pra ela. Mas ela tinha razão, depois eu fui ver a realidade da vida, era tanto medo de eu morrer, que eu chegava lá e ia para os cabarés, para tudo e ela ficava atrás de mim no carro. Ela tinha um fusca na época, e eu pequenininho velho, aí para ela não ver que eu saia fuçando no carro, botava na banguela e descia, chegava lá botava pra funcionar e ia para o cabaré.
P/1 - O senhor tem alguma história da sua mãe, que o senhor lembra com muito carinho de quando ainda era criança?
R - Ah sim, tenho. Porque a gente nunca esquece da mãe da gente, porque na verdade, a nossa mãe é tudo na vida da gente. Ela nunca me bateu, nunca fez nada por mim. Nunca me bateu porque eu não merecia, mas eu merecia, se ela quisesse bater todo dia eu achava bom.
P/1 - E o nome do seu pai?
R - Edvaldo Nery da Silva.
P/1 - E como o senhor descreveria o seu pai?
R - O meu pai era uma pessoa maravilhosa também! Ele largou a minha mãe, eu vim conhecer o meu pai depois de 20 anos. Eu não conhecia ele, só que eu trabalhava em Fortaleza, nas construtoras e quando foi um dia eu comprei um fusca e eu sabia que o meu pai tinha uma fábrica de sabão em Imperatriz, entendeu? Mas vivia com outra mulher, eu tinha outro irmão e tudo. Aí eu cheguei lá na fábrica de sabão dele, ele casado com uma mulher bonitona, nova, que não era minha mãe, era mãe do meu irmão. Aí eu cheguei lá, e eu disse: “Olha, eu quero saber se o senhor tem um emprego pra mim”. Eu me fiz de besta, eu cheguei de fusca, aquele tempo quem tinha fusca era rico, e eu novo, bonitão, pá, cheguei lá. Aí ele disse: “Não, rapaz. Aqui é uma fábrica pequena, começamos a fabricar sabão agora”. E eu: “Não, mas eu quero trabalhar. Eu vim de longe!”. “Você veio de onde?”. “Eu vim do Ceará”. Ele olhou assim para mim, “Você que é o Chico Osório?”. Eu disse: “Sou eu mesmo”. Aí ele me abraçou, o meu pai. Foi uma história emocionante, entendeu? Aí eu já fui conhecer o meu irmão, a minha madrasta. Aí ele não me deixou voltar mais para Fortaleza. E aí o que acontece, eu fiquei trabalhando com ele e tal, até que eu vim para Serra Pelada, quer dizer, antes disso eu vim trabalhar no Tucuruí e fui trabalhar no Carajás. Aquela vila que vocês estão vendo, lá dos Carajás, quem construiu fui eu, e eu provo, eu provo! A casa que recebeu o presidente Figueiredo, quem construiu fui eu, porque nem o engenheiro tinha condições de construir e eu com a minha tecnologia, construí lá, para receber o presidente Figueiredo, a casa de hóspede e tudo. E aquelas casas todas quem construiu fui eu. É tanto que tem um relatório de todo o cascalho que botaram em cima do ferro lá, tudo é cheio de ouro.
P/1 - Seu Chico, o senhor sabe como os seus pais se conheceram? Alguém lhe contou essa história de como eles se conheceram?
R - Ah, mas aí é o tempo passado. Eu não tenho como.
P/1 - Não contaram para o senhor essa história?
R - Não, contaram não. Só que o meu pai morava em uma cidade pequena, ela também, ela era filha daqueles agricultores fracos e tal. Através disso, meu avô tinha engenho, essas coisas, aí ele comprou aqueles caminhões velhos, que funcionavam na manivela, meu pai muito inteligente, aprendeu a dirigir e ganhou a gata.
P/1 - O seu pai trabalhava para o pai dela?
R - Era.
P/1 - Aí se conheceram assim, ele trabalhando para o pai dela?
R - Foi, aí se conheceram.
P/1 - Ele demonstrou que era muito sábio…
R - Não, começou a dirigir caminhão logo, aqueles caminhões que pegava na manivela. Ele um cabra muito inteligente, que o meu pai era inteligente mesmo, tá aí o filho que ele deixou, a prova da vida.
P/1 - Verdade. Seu Chico, tem algum parente, algum tio ou tia que o senhor era muito próximo nessa época de criança? Que o senhor gostava muito? O senhor tem alguma lembrança com esse parente mais próximo?
R - Tenho sim. Eu tenho um tio que era médico, casado com uma médica, dono de uma usina de açúcar em Pernambuco, o doutor Geraldo Nery. E aí teve um desastre muito grande com ele, porque assim, a mulher dele morava no 10° andar, não sei aonde. E aí quando foi um dia, ela foi para a fazenda, a fazenda do engenho deles lá, de açúcar, ela foi lá, médica também e se acidentou. Ele ficou doido na hora que soube do acidente e voltou para fazenda, lá a carreta pegou e matou ele também e morreram os dois. Essa é a história mais triste que eu tenho a dizer. Ele esteve aqui na Serra Pelada comigo, esse meu tio, um médico, empresário, dono de usina de açúcar, entendeu?
P/1 - Entendi.
R - Aí morreu também. Aí o meu pai, mataram na fazenda, para roubar, lá perto de Imperatriz.
P/2 - Seu Chico, fala mais sobre essa história trágica que aconteceu com o seu pai.
R - Ah, sim. O meu pai, eu já tinha pegado ele aqui em Serra Pelada, né. Aí ele estava na fábrica de sabão e tudo, aquele negócio, salgadeira de couro e tal. O meu irmão é quem ia comprar sal lá na em Mossoró, que era para salgar os couros, que era mais barato, tinha o caminhão, tinha tudo. Bom, meu pai tinha uma fazendo boa, rapaz, fazendeiro velho, trabalhador, largou de mexer com sabão, quem ficou mexendo com o sabão foi a ex-mulher dele, porque ele já tinha largado também. A gente suspeita que foi ela que mandou matar o velho. Aí foram lá e mataram o meu pai dentro da casa na fazenda, na hora dele banhar, entendeu?
P/2 - Seu Chico, quais eram os principais costumes da sua família?
R - Olha, a minha família, os costumes, é o seguinte, é só trabalho, honestidade, sinceridade, Católica Apostólica Romana. Esses são nossos defeitos.
P/1 - O senhor lembra das comidas que eram feitas quando o senhor era criança? Quais eram as comidas que vocês costumavam comer?
R - Lembro, sim. Era cuscuz com toucinho de porco e feijão. Ainda hoje eu tenho saudade disso aí
P/1 - O senhor tem saudades?
R - Tenho. Cuscuzinho ou farinha branca também, aí fazia aqueles “capitão”.
P/1 - A família do senhor era grande? Tinha muita gente? Eram muitos irmãos?
R - Não. Como eu te falei, só tinha eu e mais duas irmãs. Essas duas irmãs, eu tenho ainda até hoje. Elas que tomam conta da minha fazenda, lá. Eu não vou nem lá, dei para elas, não quero nem saber.
P/2 - O senhor conhece alguma história dos seus avós?
R - Olha, o meu avô, ele sempre contava a história do Lampião, do padre Cícero, Frei Damião, entendeu? E aí ele contava aquelas histórias muito lindas! Eu achava lindo demais! Ficava deitado no colo dele. Ele gostava demais dessas coisas, dessas histórias e eu gostava de escutar. Ele dizia, meu avô dizia: “Meu filho, daqui uns tempos vem um gavião… um gafanhoto acabando com tudo!”. Mas naquele tempo tinha muito daqueles gafanhotos que comiam os milhos, comiam as plantas, entendeu? Ele dizia: “Vão acabar com tudo, os gafanhotos”. Porque lá tinha muitos gafanhotos. Aí eu fui entender depois, que gafanhotos, eram os aviões de guerra. Hoje eu tenho na minha memória os gafanhotos que vem detonando o povo, matando o povo e tudo, entendeu? Isso é uma história verídica, cara! Deixada pelo Frei Damião. Aí ele dizia: “Olha…” Naquele tempo eu só andava de animal, entendeu? Jumento, cavalo, a pé. Aí ele disse: “Olha, vão aparecer uns cavalos sem cabeça, que vai matar meio mundo de gente no mundo!”. Aí eu fui entender, as motos, entendeu? E os gafanhotos são os aviões bombardeando tudo aí. Então é uma história verídica. Eu já me atentei e me concentrei nas palavras do Frei Damião, do padre Cícero, mas ninguém acredita nos missionários de Deus.
P/1 - Essas histórias quem contava era o pai da sua mãe?
R - Era o pai da minha mãe, o meu avô.
P/1 - O senhor tem alguma história do padre Cícero que ele contava?
R - Essa história que eu estou te contando, do padre Cícero, que no final dos tempos iam aparecer uns gafanhotos que iam acabar com o mundo. Aí eu digo: “Meu Deus! Gafanhoto não acaba com o mundo, não, é só matar eles aqui e tal”. Mas eram os aviões jogando bomba, jogando tudo, eram os gafanhotos. Ninguém entendeu isso aí, só eu já botei na minha cabeça que é verdade, é uma profecia de Deus.
P/1 - Tem alguma outra história que o senhor gostava de ouvir, dos seus avós?
R - Eu sempre contava histórias para eles aqui da Amazônia e tudo, quando eu cheguei lá, depois já de muito grande, né? Ele dizia: “Meu filho, largue aquilo ali, aquilo é o fim do mundo”. Eu disse: “É não, meu avô!”. Eles não queriam que eu saísse de perto deles, sabe? Mas aí é uma coisa para o futuro, né?
P/1 - Seu Chico, mas quando o senhor era criança, o senhor convivia muito com eles, com os seus avós?
R - Sim, mas eu não estou dizendo, o meu pai largou a minha mãe, minha mãe tinha casa na cidade, mas não tinha como comer, nem nada. Aí nós fomos para a fazenda do meu avô, fazenda que hoje é minha, que eu comprei deles todinhos, comprei e paguei tudo. Mas dei para eles de novo. Então eu não quero nada daquele negócio lá, porque a minha mãe tinha aquele mal de ficar assim, leve, sem fazer nada, a minha irmã cuidou dela e tudo. Então eu jamais, por como ela tratou a minha mãe, eu não vou tomar a terra dela, de jeito nenhum! A fazenda é grande, tem a usina e tudo, cerâmica, deixei tudo para eles, para mim é gratificante, entendeu?
P/1 - É usina do que, que eles têm lá?
R - É de cerâmica, de telha, é um canavial grande. Mas só que deixaram acabado, não ligaram, meus cunhados não ligaram mais, não quiseram. Os prédios que eu tenho lá, que eu tenho muitos prédios grandes lá, botaram foi supermercados, aquele negócio. Eu não ligo para isso não, é tudo deles, das filhas que eu tenho, pronto, não quero saber disso, não. O meu está aqui.
P/2 - Tem alguma história que é inesquecível para o senhor?
R - Olha, tem sim. Tem sim, sabe por que? No tempo que eu cheguei lá em Fortaleza, eu fui trabalhar como office boy, saber o que é office boy? Eu fugi de casa, do Ceará, eu tinha um violão e um radiozinho velho, vendi e fui para Fortaleza, fugindo da minha mãe, porque a minha mãe não queria que eu saísse. Então eu cheguei lá na casa do estudante, lá tem a casa do estudante que abriga todo mundo, de todo o município, entendeu? Aí eu cheguei lá, tinham uns conterrâneos meus, disseram: “Rapaz, tu veio fazer o que aqui? Tu de menor, deste tamanho, veio fazer o que?”. Eu disse: “Rapaz, eu vim lutar pela vida. Vim lutar pela vida e acabou! Eu não tenho onde dormir, nem o que comer e nem nada”. Aí tinha uns mais chegados que chegaram e: “Não, vai comer aqui com a gente, vai dormir aqui”. E aquele negócio. Aí no outro dia eu saí atrás de emprego, eu cheguei em uma empresa, um buraquinho velho, eu disse: “Rapaz, eu quero um emprego aí, moço!”. A empresa era Construtora Estrela, do Capitão Fujita. Eu ainda me lembro, foi quase um pai meu. Aí eu disse: “Pois é, eu quero um emprego. Eu vim do Nordeste, o negócio tá seco lá, todo mundo passando fome e eu vim para cá”. Ele me empregou, sabe qual foi o emprego que ele me deu? Office boy, sabe o que é office boy?
P/1 - O que é?
R - Dá café para um, para outro, para outro… eu, eu…
P/1 - O senhor tinha quantos anos, seu Chico?
R - Eu tinha uns 14 anos. É office boy e tal, aí ele perguntou assim: “Você não tem onde dormir, não?”. Eu disse: “Tenho não”. Ele disse: “Não, você vai dormir aí. Nós temos um quartinho aí atrás, você dorme aí, no escritório”. Já me deu uma fortalecida, né? E aí eu peguei, fiquei dormindo lá, aquele negócio. Através daquilo ali, eu fui pegando confiança nele, confiança, já comecei a mexer nas máquinas de datilografia, já tinha o curso de datilografia também. E aquilo foi me fortalecendo, entendeu? Através disso aí, eu cheguei no ponto máximo lá da empresa, entendeu? No ponto máximo da empresa. Aí eu passei sete, oito anos. Como ele era do exército, chegou o tempo de servir o exército ele disse: “Chico Osório, eu vou te botar no exército”. Como ele era capitão, né? Aí me botou no exército (00:19:20), Fortaleza, Ceará. Aí eu servi o exército lá, fiz o curso de cabo, passei. Só que lá em Fortaleza não tinha vaga para cabo, aí me transferiram para o Rio Grande do Norte, batalhão do inferno. Disse: “Aí eu vou me lascar, vou para o inferno mesmo!”. E aí eu fui para lá. Com dois anos ou mais que eu estava lá, eu saí como sargento, mas pedi baixa e vim conhecer o meu pai, como eu te falei, eu vim conhecer o meu pai aqui em Imperatriz, foi quando eu cheguei um homão, já, que eu cheguei no fusca. Naquele tempo o fusca era carro de gente. Eu vim sozinho para Fortaleza, metendo o pau. Cheguei na fábrica dele, uma fabricazinha pequenininha, igual a essa aqui, olha, igual a esse meu barraco, mas era uma fábrica. Aí a mulher dele estava lá, o meu irmão, um rapazinho, estava lá também. Aí eu disse: “Eu queria falar com o seu Edvaldo Nery da Silva, tenho a informação de que ele mora aqui”. Eu inteligente, saí do quartel, né, tudo. E o meu irmão trabalhando com as mulheres, um monte de mulheres cortando sabão, botando em caixas, aquele negócio. Eu disse: “Pois é, eu vim falar com ele”. Disseram: “Não, ele está para a rua”. Com pouco tempo o meu pai chegou na bicicleta, uma bicicletona, chegou, nem carro tinha e eu o fusca, já. Eu disse: “Olha, cidadão, eu quero saber se o senhor tem um emprego pra mim?”. Fui com essa onda pra ele, “Eu quero saber se o senhor tem um emprego para mim?”. Ele disse: “Não, você sabe que a empresa é pequena e não sei o que, esse pessoal que trabalha aqui, é tudo gente que mora aqui pertinho, para ganhar uma besteirinha e tal”. Eu disse: “Mas eu quero trabalhar, moço. Eu não aguento ficar aqui, não, não tenho como pagar hotel, nem nada”. Mentira, eu tinha dinheiro. Ele olhou para mim e disse: “Você é de onde, rapaz?”. “Rapaz, eu sou do Ceará”. Aí ele olhou assim para mim, olhou, olhou. Eu me parecia muito com meu pai, sabe? “Vem cá, você que é o Chico?”. “Sou eu mesmo”. Aí pronto, aí me abraçou, uma alegria doida. Aí já apresentou a minha madrasta, o meu irmão, os empregados todos. Eu fiquei igual a um rei.
P/1 - Seu Chico, para a gente entender um pouco dessa história. O seu pai largou a sua mãe, o senhor tinha quantos anos?
R - Rapaz, eu nem me lembro, porque na época, eu te digo uma coisa, eu era pequeno demais, minhas irmãzinhas eram pequenininhas, entendeu? Eu nem acompanhei o sofrimento das minhas irmãs também.
P/1 - Aí ele ficou todos esses anos sem dar notícia?
R - Sem dar notícia, casou com outra mulher lá para o Maranhão, pegou o caminhão do meu avô e carregou para cá e não voltou mais, porque naquele tempo quem tinha caminhão era rico. Ele pegou o caminhão do meu avô e carregou e pronto, ficou por isso mesmo, nos deixou sofrendo, lá. Meu pai tem muita culpa nisso, entendeu como é que é? Mas mesmo assim eu perdoei ele. Depois que ele viu o erro que ele fez, que eu cheguei lá, que cheguei de boa, quase formado e tudo, ele se arrependeu, entendeu?
P/1 - Entendi. Aí durante a sua infância e juventude, o senhor sempre teve vontade de conhecer ele?
R - Sim. A gente tem sempre, porque a gente quer ver a finalidade das coisas. E aí é impressionante.
P/1 - Sim. Eu imagino que o senhor deve ter tido uma infância, assim, com desejo de conhecer o pai, né? E o senhor entendeu o que tinha acontecido, o porquê? O senhor tinha vontade de entender por que ele largou a família e foi embora?
R - Eu não sei. Aí já foi problema dele e da minha mãe. Mas eu acho esquisito, porque ele sabia que nós éramos pequenos, nós não tínhamos como chegar em ninguém, entendeu? O que um cachorrinho desse tem, se nós não dermos comida para ele? É igual a nós, você entende como era o negócio? Olha, eu dei comida para eles nesse instante, estão alegres, satisfeitos, estão brincando. Era igual se dessem comida para nós naquele tempo, mas não tinha, entendeu? Minha mãe, coitada, sofria, costurava para os outros, era uma coisa difícil. E o meu pai cheio de mulheres novas, casou com uma mulher nova, bonita, que foi essa que eu conheci em Imperatriz, então não viu, não viu o nosso passado. Você está entendendo como que era? A gente sofre muito! A minha vida daria um filme histórico, tu acredita?
P/1 - Acredito! Então, pelo que o senhor está contando, a sua infância foi bem complicada, né?
R - Bem sacrificada!
P/1 - Bem sacrificada.
R - Foi.
P/1 - O senhor ajudava a sua mãe quando era criança, no sustento?
R - Ajudava sim porque quando eu fui para a fazenda, eu ia todo dia atrás do gado, tirava o leitinho para as minhas irmãs tomarem e tudo, entendeu? Fazia um queijinho, ia buscar água no jumento. Porque naquele tempo água não tinha lá, a gente botava a cangalha no jumento e ia buscar água longe, entendeu? Ia buscar água longe para lavar as coisas, fazer comida, aquela água velha barrenta, mas era o que tinha. Você entende como é que era? Era o que tinha, então, a gente chamava ancoreta, botava no jumento de um lado e de outro e ia. Aí enchia as ancoretas puxando de um poço velho quase sem água, aí botava aquela água velha suja, mas era o que tinha. Era um sofrimento horrível. Hoje o pessoal aí não sofre nada, não.
P/2 - Esse período que a sua mãe se separou, ela chegou a arrumar uma outra pessoa?
R - Não, nunca, nunca. Minha mãe era uma pessoa que, sei lá, onde ela estiver, está no céu, está com Deus e eu tenho certeza que ela foi honesta. Ela era devota do padre Cícero, tem aquela segurança, ou é de padre Cícero, de Deus, ou não é, ou é rapariga, então.
P/1 - Eles eram devotos do padre Cícero?
R - E eu também sou, de Nossa Senhora Aparecida e tudo.
P/2 - O senhor lembra da casa que o senhor morava quando era pequeno, como era?
R - Rapaz, eu lembro sim. Era em frente da igreja, assim. Até teve um dia, eu era pequenininho, aí o Frei Damião veio fazer aquele negócio dele, que eles fazem, Frei Damião… outra pessoa que eu acredito muito, é em Frei Damião, nunca ninguém acreditou nele, e eu acredito nele. Quando foi um dia, Frei Damião veio, aí tinha um negócio que ficava dentro, assim, na frente da igreja, e o pátio era grande, entendeu? Muita gente vinha para ver a missão dele, era um velhinho, rapaz, e eu ainda me lembro dele, ele andava assim, ele não olhava para ninguém, aí subia e dava as palavras dele, lá. Aí começou um temporal, e eu me lembro disso aí, um temporal forte, aí começou a cair chuva, todo mundo querendo correr, sabe? Aí ele falou assim: “Não corre ninguém, que não vai chover”. Pois não choveu mesmo. Frei Damião [Intervenção].
R - Naquele tempo era Roberto Carlos, Nelson Gonçalves, só essas músicas mesmo que eu lembro mesmo.
P/1 - O senhor tinha radinho em casa ou uma TV?
R - Não, que TV? Naquele tempo eu não sabia o que era TV, não.
P/1 - Não tinha TV?
R - Não tinha. Aí tinha aquela música do Roberto Carlos…
P/1 - O senhor sabe as músicas dele?
R - Eu sei. Sidney Magal. Sidney Magal era casado com a filha do Roberto Carlos, aquele negócio todo. E Nelson Gonçalves dizia assim: “Tenho a viola, que retiro da parede, sempre esticadinha pra meu bem sonhar. Quando a lua vem surgindo cor de prata…”. Ah, isso aí eu lembro demais.
P/1 - Canta mais um pouquinho para nós.
R - “Sinfonia do riacho e da cascata, o meu ranchinho aqui no seio da mata. Não precisa nem que acenda o lampião sinfonia do riacho e da cascata, minha viola completa a orquestração”. Aí começa de novo.
P/1 - O senhor canta muito bem, seu Chico.
P/2- O senhor lembra alguma do Roberto Carlos?
R - Rapaz, eu só lembro do Sidney Magal, Roberto Carlos já é mais passado, eu não lembro muito do Roberto Carlos, não. Mas é a mesma coisa.
P/1 - Seu Chico, o senhor lembra como era a cidade, assim, o senhor tem lembrança da cidade que o senhor morava? Do bairro? Tem alguma coisa que o senhor lembra com mais detalhes?
R - Ah sim tem muito, porque a cidadezinha… o cemitério era quase dentro da cidade, entendeu? Mas naquela época, um cara como eu, não tinha o privilégio de nem pegar na mão daqueles que eram comerciantes, dono de cartório, só porque eu era pobre, entendeu? Aí não tinha nem como pegar na mão deles. Aí os pais diziam assim: “Não namora com aquele peão, não. Aquele peão não vale nada, é da roça”. Então era uma descriminação total. Mas o dia que eu cheguei de avião lá, tum, tirei a cara de todo mundo.
P/1 - O senhor falou que morava em frente à igreja, o senhor lembra como era essa igreja?
R - Ah, lembro muito! Eram sacristão lá, era sacristão da igreja, os padres e tudo. Eu sempre estava dentro da igreja, entendeu? Mas assim, o tempo foi passando, eu fui embora, aquele negócio todo.
P/1 - O senhor gostava de ir para a igreja?
R - Gostava, adorava! Aquele tempo, se não fosse da igreja, ninguém tinha valor de nada. Vou contar até uma história para tu lá. Na época, um peão safado, lá, encontrou um defunto velho no mato, sabe? O defunto velho seco e tal. Aí ele foi lá e tinha um marimbondo dentro do defunto, já tinha comido, os bichos, estava só o coro seco. Aí chegou para o padre e disse: “Padre, eu vou te contar uma coisa, eu encontrei um defunto, um corpo santo no mato”. “Meu filho, traz para cá pra gente mandar para Roma, para santificar ele. Aí o dinheiro que der, nós rachamos”. O padre falou para o cabra. Aí trouxe, quando chegou lá, aquelas abelhas “desse tamanho” que quando dá uma ferroada, dá até febre. Aí ele foi e tampou o buraco da barriga do cabra com uma rolha de pau, botou no ombro e trouxe. Aí o padre, “Nós vamos dar um banho nele”. Deram banho nele, botaram uma roupa bacana nele e tal. Aí ele disse: “Agora tu sai na rua para dizer para o povo que aqui apareceu um corpo santo na igreja, para todo mundo ver e trazer dinheiro para nós mandarmos para Roma, para santificar ele”. Rapaz, aí cara saiu anunciando na rua. E o corpo velho lá, deram banho nele, vestiram a roupa de santo. Rapaz, quando foi na hora da missa… e o corpo velho lá, e as abelhas, bzzz, brabas lá dentro! Aí o padre foi e disse: “Gente, agora eu vou apresentar o corpo santo que apareceu na igreja!”. O pessoal naquele tempo era besta, “Oh, muito bem!!!”. Aí o padre vem com aquele corpo velho seco, aí o pão: “Olha aqui o corpo santo!” O bicho velho seco, maneiro, vestido de santo. Aí disseram: “Rapaz, é o corpo santo mesmo!” O pessoal, sabe? Rapaz, aí o padre: “Gente, fiquem quietos, todo mundo”. E aquele alvoroço, “Fiquem quietos!”. Aí todo mundo se acalmou. “Quem sabe se não foi um vaqueiro correndo no mato, correu, aí caiu e quebrou o pescoço e morreu. Aí virou um corpo santo!”. Aí as abelhas saíram de lá do buraco do velho, do corpo velho e tum, na mão dele, mas ele aguentou, assim mesmo aguentou aquela ferroada danada. “Gente, quem sabe, não foi um doutor que veio para curar o povo, e esse doutor se perdeu, morreu e virou um corpo santo”. A abelha, tum, no pescoço dele. Aí ele não aguentou mais. “Gente, quem sabe, foi um padre que veio para curar o povo, salvar o povo!”. A abelha, tum, no olho dele. Aí ele não aguentou mais não. “Gente, quem sabe, foi o satanás que veio!”. E soltou no meio do mundo!. Rapaz, foi abelha para todo mundo, voou no povo todo lá, não ficou um peão lá dentro, nem mulher, nem nada, não ficou ninguém. “Sabe que é o satanás mesmo!”. Pronto, não ficou ninguém.
P/1 - Eita, seu Chico!
P/2 - Isso se passou lá na igrejinha?
R - Lá na igreja que eu morava
P/1 - Qual a cidade dessa igreja?
R - Em Ipaumirim, Ceará.
P/1 - Tinha muita gente?
R - Tinha. O padre não ficou nem um pingo lá.
P/1 - O senhor lembra como era o nome desse santo?
R - Mas, ninguém sabe o nome dele não, que era do Diabo.
P/1 - (risos) Eita, seu Chico. O senhor me fez rir, eu não podia rir, tenho que ficar séria.
P/2 - Seu Chico, quando o senhor era criança, quais eram suas brincadeiras favoritas?
R - Era jogar bola, essas coisas.
P/2 - O senhor tinha muitos amigos?
R - Ah, tinha. Muitos amigos! É tanto que quando eu saí daqui… [intervenção]
P/1 - Seu Chico, nós vamos fazer a pergunta de novo, porque o avião passou fazendo barulho, aí vamos fazer a pergunta de novo para o senhor.
P/2 - Quais eram as suas brincadeiras e se o senhor tinha muitos amigos.
R - As brincadeiras eram, quando eu era criança, assim, mais ou menos, era montar em jumento, em cavalo e aquele negócio. O meu negócio era ser roça, entendeu? Montar em carneiro. E vocês não sabem porque eu fugi da casa da minha mãe na fazenda, eu tinha um carneiro que onde eu nadava, ele andava atrás de mim e aí a minha mãe foi e matou o carneiro. Quando foi um dia eu cheguei do colégio, vi aquele monte de carne, eu disse: “Vem cá, esse monte de carne aqui, o que é?”. Aí descobri que foi do meu carneiro, foi quando eu fui embora para Fortaleza.
P/1 - O carneiro era de estimação do senhor?
R - De estimação, minha, não queria que ninguém matasse ele. Para onde eu ia, ele ia atrás de mim, era um carinho muito doido!
P/1 - Mas eles mataram porque não tinha outra coisa para comer?
R - Não, nós tínhamos muitas galinhas, tinha tudo. É porque o meu carneiro era danado, sabe? O pessoal chegava daqui, acolá, pá! Ele derrubava. Aí quando foi um dia ele deu uma chibatada na minha mãe, derrubou minha mãe, aí minha mãe disse: “Agora você vai para a panela!”. Aí eu me zanguei por causa disso.
P/1 - O carneiro foi para a panela, porque ele era danado?
R - Era muito danado. Mas comigo ele não mexia, acostumou comigo, entendeu?
P/2 - Falando em panela, tem alguma comida da sua infância, que o senhor gostava muito, que a sua avó ou a sua mãe faziam?
R - Assim, é o feijão trepa pau, aqui é outro tipo, naquele tempo era trepa pau. O meu avô criava muito porco e matava, aí fazia, cozinhava o feijão com toucinho, naquele tempo era farinha branca, fazia aqueles capitães e comia. É a coisa que eu mais adoro, capitão de feijão com toucinho. Moço, eu comia que chega babava. Fui criado com isso.
P/1 - Sua mãe que fazia para o senhor?
R - Era.
P/1 - Algumas pessoas que vão escutar essa entrevista, eles não vão saber o que é esse capitão, nós sabemos, explica para essas pessoas o que é esse capitão, como que fazia e como comia ele.
R - Assim, você pega e cozinha o feijão trepa pau, cozinha mais ou menos e tal, aí escorre aquele caldo, aí bota o toucinho dentro, já cozido, entendeu? E bota com o feijão dentro do prato, aí tu pega a farinha ou o cuscuz de milho, aí machuca, fica bem enxuto, sabe? Aí faz aqueles capitães, é gostoso demais!
P/1 - São umas bolinhas, né, que o senhor fazia?
R - É, a gente come aquilo, aí mistura com toucinho. Moço, não tem… para mim é a melhor comida do mundo! É gostoso demais!
P/1 - Confessar só aqui entre nós, eu gosto também, minha avó fazia.
P/2 - Quando o senhor era criança, o que o senhor mais gostava de fazer?
R - É aquilo que eu te falei, né. Assim, eu nunca gostei de matar passarinho, nem nada, porque eu achava que todo bicho tinha que sobreviver, viver. O canarinho, eu gostava de criar canário na gaiola, tinha dia que eu me zangava e soltava os bichinhos, que precisa soltar, aí soltava. Era isso que eu fazia. Aí eu pegava uma arapuca, tcha, tcha, tcha, sapram, a gente chama de sapram. Agora para comer a gente botava era um furão, porque a necessidade de comer, aí tinha aqueles negócios parecendo um rato, mas não era rato, porque não tinha rabo, é o preá, aí a gente botava aquilo na viradinha deles, quando era de manhãzinha estava cheio, fazia tcha, tcha e caía nesse buraquinho. Aí nós comíamos. Mas se metesse a mão, podia ter uma cobra dentro e mordia, aí… já morreu muita gente por causa disso.
P/1 - O senhor lembra como era a hora da refeição de vocês?
R - Olha, na época, de manhãzinha tinha aquele cuscuz. Minha mãe fazia na panela, assim, na cuscuzeira de… não é igual nós temos aqui hoje não, fogão a lenha, cuscuzeira de barro. Dali a minha mãe tirava e botava nos pratos para a gente, tira o leite do gado, entendeu? Já uma coisa mais elevada, tirar leite do gado. Então nós tínhamos batata doce, nós tínhamos abóbora, tudo para comer junto. Aí ficava fortalecendo a gente, entendeu?
P/1 - Vocês tinham o hábito de fazer as refeições juntos, todo mundo junto na mesa?
R - Todo mundo. Inclusive naquele tempo não tinha naquele negócio de polpa de não sei do quê, polpa não sei de quê, nós íamos catar cajá, aí fazia aquele suco de cajá na mão, aí fazia com leite e bebia. Era gostoso demais!
P/1 - O senhor tem essas memórias, assim, o senhor gosta de lembrar desses momentos que o senhor tinha junto com a sua família?
R - Sim, é o que eu mais gosto, porque é muito exemplo, entendeu? Para saber as dificuldades que nós já passamos. Hoje o pessoal não tem dificuldade, entendeu?
P/1 - Seu Chico, quando o senhor era criança, eu falo criança nessa época que o senhor morava com a sua mãe, o senhor lembra que o senhor queria ser quando o senhor crescesse? Porque toda criança pensa: “Ah, quando eu crescer, eu quero ser tal coisa”. O senhor lembra o que o senhor queria ser?
R - Lembro. Um dia, um cara, empresário lá da minha cidade, comprou uma usina de algodão, chegou com um aviãozinho velho lá e todo mundo: “Eh, dono de avião!!!”. Eu disse: “No dia em que eu sair daqui eu vou comprar um avião para mim, ou dois e vou mostrar para esse povo quem sou eu!”. Eu fui e comprei, cheguei lá com um aviãozão melhor do que o dele e acabei com ele.
P/1 - O seu sonho, quando crescesse, era ser dono de avião?
R - Dono de um avião, comprei dois, logo. E mais o seguinte, cheguei na minha cidade, tinha uns caras ricos, eu derrubei eles lá. O dono de uma usina de algodão, derrubei ele, eu disse… botei oito milhões no banco e disse: “Paga energia para todo mundo. Luz, água e tudo, quem paga sou eu, pode descontar do meu dinheiro a Fez uma fila e paguei pra todo mundo.
P/1 - Como é a história? O senhor depositou no banco o valor para todo mundo que fosse devedor de conta de energia ir lá e pagar as suas contas?
R - Liquidar as contas deles.
P/1 - De toda a cidade?
R - De todo mundo.
P/1 - O senhor lembra mais ou menos o ano que o senhor fez isso?
R - Não lembro mais, não. Isso tem muito tempo, mas tem na minha história aí, na Record e tudo, entendeu? Lá em Imperatriz eu fiz a mesma coisa também, Imperatriz do Maranhão. Sempre fiz só o bem
P/1 - O senhor pagou a conta de todo mundo. Fazia questão de ajudar as pessoas?
R - Fazia questão.
P/1 - Mas o senhor sabe por que o senhor gostava de ajudar as pessoas? O senhor acha que é porque na sua infância, o senhor teve uma infância muito difícil? E aí quando o senhor teve condições, quis ajudar as pessoas? O senhor acha que pode ter sido por isso?
R - Foi. Pode ter sido por isso também, porque eu sei o que eu passei, eu, minhas irmãs, minha mãe, entendeu? Mas ainda bem que eu era um cara enfrentante, fui para a fazenda do meu avô, meu avô já velhinho, não tinha como juntar o gado. Eu mesmo menininho ia juntar o gado montado num jumentinho, “Vem pra cá, vai pra lá”. Botava os gados no curral, separava os bezerros, as vacas me davam porrada, mas eu sempre fui enfrentando na minha vida.
P/1 - Entendi, muito bom saber disso! Fiquei feliz de ouvir.
P/2 - Quando o senhor era criança, o senhor chegou a estudar, seu Chico?
R - Eu estudei muito, assim, na minha cidade só quem tinha valor era aqueles filhos de ricos, entendeu? E eu como era filho de pobre, filho de mãe abandonada, porque naquele tempo a mãe que era abandonada não tinha valor. A mãe que era abandonada, mesmo que fosse direita, ela era como se fosse uma rapariga e todo mundo discriminava a gente, como eu, como minhas irmãs. Mas graças a Deus saiu o Chico Osório para dar força para a minha família e dei força mesmo e moral. Mas aí, não tô dizendo, as meninas queriam namorar comigo lá e que se fosse namorar comigo, eu rapazinho já, todo animado e tal, aí o pai chegava e: “Não namora com o filho daquela mulher, não. Aquele ali não vale nada!”. Eu era discriminado. E na verdade meu amigo, Chico Osório superou tudo, foi Deus que me deu essa força e até hoje eu estou aqui. Por que eu estou aqui? É porque eu tenho fé em Deus! Olha, o que eu passei dá um filme, cara. Já pensou? Tu nascer em uma cidade, tu não poder namorar com uma menininha, aquele namoro velho de criança, essas coisas, que o pai dizia: “Não namora com aquele filho da dona menininha, não!” Que a minha mãe era dona menininha, “Que aquele não tem pai, não tem nada! Anda só na roça todo sujo, lascado e rasgado”. E você chegar em um aviãozão, carro novo para a minha mãe, só carro eu mandei três para a minha mãe, e fazenda, e gado e tudo. Deixei todos ricos lá, quer dizer, isso aí para mim foi a maior alegria da minha vida, cara, porque eu desmascarei muita gente lá, que me considerava como lixo. Aí para mim isso é muito importante, cara. Isso é importante para você também que é jovem, você também, vocês têm que superar as coisas. Supera, gente!
P/1 - Então o senhor está me contando que na sua infância sofreu muito preconceito, porque a sua mãe era uma mãe solteira, foi abandonada e o senhor sentiu na pele o preconceito da sociedade.
R - Pois é, exatamente! Muito, muito! E aí a gente fica sem pé, sem terra no chão, e a gente tem que aguentar. Eu ia com o jumentinho todos os dias, duas léguas de jumento com cangalha, que nem sela não era, porque quando é sela é mais macio, na cangalha é no pau, com o jumentinho, e batendo no jumento para chegar lá. Chegava de noite em casa estudando. Os filhos dos ricos, não, iam de carro, aquele negócio todo. Mas superamos.
P/1 - A primeira lembrança que o senhor tem da escola?
R - Eu tenho uma lembrança muito triste, porque naquele tempo você saía do colégio para entrar no ginásio, chamava-se ginásio, primeiro, segundo, terceiro e quarta série, depois entrava no científico para fazer vestibular. Aí os filhos dos ricos todos passavam e eu não passava, e eu estudava para morrer e tudo. Na admissão, chamava-se admissão, eu não sei se tu já ouviu falar disso.
P/1 - Como funcionava?
R - Admissão era uma escola preparatória para entrar no ginásio, aí você fazia os testes, se passasse entrava, se não passasse… entrava na primeira série, entendeu? Do ginásio. Eu passei uns dois anos para poder passar e os filhos dos ricos passavam tudinho, passavam todos. Eu disse: “Meu Deus, eu respondi as perguntas todinhas”. E não passava, não passava, estava para desistir, até que um dia eu passei. Aí fui para o primeiro ano, segundo ano, terceiro ano, quarto ano, primeiro científico, segundo científico, terceiro científico, aí foi o tempo que eu vim embora para cá. No terceiro científico, você ia fazer o curso pré-vestibular, para passar no vestibular e ser médico, alguma coisa. Aí foi o tempo que eu larguei, entendeu? Mas a perseguição contra o pobre é muito grande desde o tempo da minha infância.
P/1 - Até para o senhor estudar foi difícil?
R - Muito difícil.
P/1 - Além de morar longe, ainda tinha o preconceito na escola por ser pobre e filho de mãe solteira abandonada?
R - É, exatamente. É uma história, cara, que eu nem gosto de relatar isso aí, porque eu tenho vontade de chorar, porque é muito triste o que eu passei na minha. Mas Deus me recuperou e eu dei a volta por cima e tô aqui ainda ajudando a minha família todinha. Minha família hoje é respeitada no Ceará através de mim. Eu estou aqui, humilhado e tudo.
P/1 - Mas é bom, seu Chico, o senhor contar, porque quem ouvir a sua história e tiver, de repente, passando por uma situação difícil, vai ter aquele ânimo de que vale a pena, que a vida pode dar uma volta.
R - Mas dá sim, depende se você confiar naquele, olha, confiar em Deus porque sem Deus você não vale nada, entendeu? E aí é o seguinte, eu confio em mim agora.
P/1 - Seu Chico, e nessa época da escola, que o senhor teve toda essa dificuldade, o senhor teve algumas pessoas ou alguém que apoiou, que ajudava, que tinha um carinho pelo senhor na escola? O senhor se recorda de alguém?
R - Não. Na verdade, a gente tem aquele contato com aqueles estudantes, com aquelas crianças, com aquele pessoal, mas ninguém liga pra você, você é uma pessoa totalmente recusada, como se fosse um preso perigoso, uma coisa qualquer entendeu? Então não adianta você confiar no filho de fulano de tal, porque usava roupa boa. Minha roupa era simples, um pé chinelo. Então é difícil. ninguém se aproxima da gente, vocês entenderam como é que é? Eu queria que esse pessoal de hoje entendesse a realidade do passado.
P/1 - Não teve nenhum professor ou professora que se dedicou mais ao senhor? Ou de fato não existiu ninguém que lhe apoiasse pelo fato desse preconceito pelo senhor ser pobre? Ninguém apoiou o senhor?
R - Na verdade os professores apoiavam os filhos dos ricos, entendeu? “Filho de pobre é burro, lixo, joga pra lá, passa pra cá, passa na porta aí, passa para acolá”. Então é uma coisa esquisita. Eu tenho uma história, é uma brincadeira, pode gravar. Nós estávamos na hora do recreio, no Ceará tem muito jumento com jumenta, sabe? Aí o jumento estava correndo atrás de uma jumenta e os moleques todos no recreio e aquele negócio, aí a gente cobriu a jumenta, a professora com uma régua deste tamanho batendo, pá! “Todo mundo pra dentro, todo mundo pra dentro”! Aí todos os moleques entraram. Aí ficou um molequinho lá embaixo do jumento com a jumenta, olhando. Aí disse: “Ei, gente. Entraram todos?”. Aí o moleque gritou de lá: “Eu acho que já entrou professora que só ficou os ovos do lado de fora”.
P/1 - Seu Chico, quais as lembranças que o senhor tem, mais marcantes, mais importantes de quando o senhor era adolescente?
R - Já falei e vou falar de novo. É assim, na época eu era estudante, estudava no ginásio, no colégio, aquele negócio todo. Lá eu comecei a namorar com a filha de um dono de cartório, que se julgava rico, entendeu? E eu lá embaixo. Aí quando foi um dia, o pai dela proibiu ela de falar comigo, a mãe dela também, não podia falar comigo, porque eu era filho de gente pobre. Aquilo ali me marcou muito! É por isso que eu criei coragem de partir para o mundo e enfrentar a vida. Aquilo pra mim foi uma desvalorização muito grande e da minha família. E aí eu estou até hoje aqui e eu não tenho medo das coisas.
P/1 - Seu Chico, o senhor contou que a sua mãe matou o seu carneiro e o senhor foi embora de lá para Fortaleza. O senhor lembra quantos anos tinha?
R - Eu tinha uns 12, 13 anos. Eu vim para a Casa do Estudante, em Fortaleza. O pessoal do interior, aquela Casa do Estudante recebia todo mundo. Quando eu cheguei lá, o pessoal dizia: “Ei, Chico. O que veio fazer aqui?”. Eu dizia: “Moço, eu vim cuidar da vida, não quero ficar mais naquele lugar não!”. Aí uns deram apoio, outros não deram, mas eu segurei, entendeu? E fui, fui, fui. Uns me davam comida, que eu não tinha, dormia, porque era a Casa do Estudante, eles davam apoio, era a casa do pessoal que vinha do interior para ficar ali. Até que eu segurei uma vaga lá, aí fui trabalhar, ganhei emprego, tudo e até na copa de 70 eu já estava lá.
P/1 - Seu Chico, de Fortaleza para Serra Pelada, como foi que isso aconteceu?
R - Olha, na época eu servi o quartel como eu te falei, né? Servi o quartel e tudo, fui para o Rio Grande do Norte, depois voltei para Fortaleza de novo. Aí o pessoal dizia: “Teu pai tem uma fábrica de sabão lá em Imperatriz”. Já tinha informação. Aí eu já tinha comprado um fusquinha, naquele tempo fusca era carro do ano, eu já tinha saído do quartel com um bom dinheiro, eu disse: “Rapaz, eu vou conhecer o meu pai”. Aí vim a noite todinha viajando, no outro dia… Naquele tempo o fusca tinha um negocinho de calor, que você abria aqui, um frio do diabo naquelas serras, aí eu abria aquilo de noite e esquentava. Bom, cheguei lá, a casa do meu pai era na fábrica, um monte de mulheres trabalhando, encaixotando sabão, cortando sabão, o meu irmão lá, um rapazão também, a minha madrasta também. E o meu pai não me conhecia não, no tempo que ele me deixou, era pequenininho, e eu já estava homão, já tinha saído do quartel. Aí rapaz, eu disse: “Eu queria falar com o dono da fábrica de sabão aqui”. Porque eu já sabia, já tinha informação. Aí o fusquinha lá, naquele tempo o fusca era carro do ano. Aí eu disse: “Eu quero falar com o dono da fábrica aí”. Aí a mulher dele, nova, não era igual a minha mãe que estava velha, ela disse: “É o Edvaldo, ele está para o banco”. Naquele tempo era de bicicleta que ele ia. Ele era um cara bem estabilizado, já, casa boa na cidade e tudo. Naquele tempo não tinha moto, só bicicleta mesmo, quem tinha bicicleta nova era bem de vida. Aí eu cheguei com um fusca, olha, novão, hidráulico. Aí ela disse: “Olha, o senhor espera ele aí um pouquinho que ele está chegando”. Com um pouco ele chegou, conversou com ela, conversou com os empregados lá, com as empregadas. Aí ela disse: “Tem um cidadão aí que quer falar com você aí, meu amor”, que era meu pai. Aí ele disse: “Você é de onde?”. Eu: “Rapaz, eu sou do Ceará”. Aí ele disse assim: “Rapaz, mas você veio fazer o que aqui?”. Eu disse: “Rapaz, eu vim atrás de emprego, eu estou aqui desempregado”. Mentira, eu estava com dinheiro no bolso. “Eu soube que o senhor tinha uma fábrica de sabão aqui e eu vim para trabalhar com o senhor aqui”. “Não, mas você sabe que aqui já está cheio de gente, não tem vaga, você já é uma pessoa mais elevada”. E o meu pai era inteligente, era maçom e tudo. Aí eu disse: “Não, moço, mas eu estou precisando desse emprego!”. Aí ele falou assim: “Você é do Ceará, de onde?”. Eu disse: “Eu sou de Ipaumirim”. Aí ele… a cidade onde eu nasci, né? Aí ele cresceu os olhos, sabe? “Você é de Ipaumirim?”. Eu disse: “Sou”. Aí ele olhou assim para mim, porque eu sou muito parecido com ele: “Você é o Chico?”. Eu disse: “Sou eu mesmo”. Aí ele me abraçou e não perguntou mais nada, não deixou nem eu sair mais de lá. Aí para eu vir embora aqui para Tucuruí, para trabalhar nas empresas, na Vale e tudo, na Ansa, foi uma luta. Depois eu vim para Serra Pelada, aí pronto, enriquei, ajudei ele também, ele me ajudou e pronto. Aí até que os ladrões mataram ele na fazenda.
P/2 - E como o senhor ficou sabendo aqui de Serra Pelada?
R - Do meu pai?
P/2 - Não, aqui da cidade de Serra Pelada?
R - Nessa época eu trabalhava em Tucuruí, na barragem. Aí de lá eu vim de avião, transferido para os Carajás, entendeu? Para construir aquela vila, que ninguém tinha capacidade para construir aquela vila, a casa de hóspede que o presidente Figueiredo ficou na época, quem veio construir fui eu, que eu entendia. Quando eu saí de Fortaleza, eu já sabia de tudo, aí eu fui para lá, a empresa me transferiu para lá e eu entreguei a obra todinha. Aí eu pedi as contas quando eu soube desse negócio de Serra Pelada, eu não sabia nem o que era ouro e vim para cá. Para entrar aqui era uma luta, a Federal ali no 16 era uma luta, eu rodeei só e entrei em outro carro e vim embora, nunca fui furão, furando a pé não.
P/1 - E o que levou o senhor a vir para cá? Por qual motivo o senhor veio para cá, no garimpo de Serra Pelada?
R - Eu acredito que seja o destino de Deus, entendeu? Porque eu não conhecia ouro, não conhecia nada. Eu não sabia o que era ouro, para mim, ouro, é igual a uma pedra dessas aqui, não sabia de nada, a coisa mais difícil era esse negócio de ouro. Igual a vocês, vocês não conhecem, vocês pegam uma pedra dessas aqui, vocês jogam no mato sem saber de nada. Então para mim, eu nunca tinha visto dinheiro do ouro. Eu só conheci, comecei a ver ouro, depois que eu bamburrei, porque quando eu peguei e vendi 647 quilos de ouro lá na Caixa, eu vi um monte de dinheiro, deste tamanho assim, olha. Aí eu disse: “Meu Deus, esse dinheiro não é meu não! Como é que aquele ourinho velho deu esse tanto de dinheiro?”. Aí eu fui começar a me conscientizar da vida, que o negócio da vida da gente é ouro.
P/1 - O senhor pegou quantos quilos de ouro?
R - 647 quilos. Vendi bem na Caixa, não tem nem um grampo de imposto, de Alexandre de Morais, desses ladrões safados, não tem.
P/2 - Seu Osório chegou aqui em Serra Pelada, qual foi a sua percepção do local? Como o senhor viu todo esse movimento aqui?
R - Eu te digo mais, porque assim, quando a gente chega, a gente chega meio bravo, sem saber o que pode acontecer, o que vai acontecer, entendeu? Mas a verdade é que eu não sei não, é coisa de Deus, cara. É coisa de Deus! Porque eu jamais esperançava um negócio desse, que ouro dava tanta alegria pra gente. E me deu muita, eu ajudei muita gente por causa disso aí. Então foi uma coisa de Deus, ninguém aqui tem explicação.
P/1 - Seu Chico, quem trouxe o senhor para cá? O senhor veio com alguém, veio sozinho, como foi?
R - Na época eu tinha um carrinho lá em Imperatriz, era até um daqueles polarzinho. O cara sempre ia lá, já trabalhava aqui, ia fazer martela para trazer para cá, porque aqui não fazia, só fazia o martelo lá em Imperatriz. Um dia ele chegou: “Chico Osório, tu quer ganhar 60 mil por mês?”. Era dinheiro demais! Minha mulher trabalhava de contadora da Brahma e não ganhava 60 mil, eu disse: “Não, tá bom demais, eu vou!”. Quando eu cheguei, quando foi com uma semana, disse que esse homem pagava 20, e eu trabalhando com uma britadora, jogando terra dia e noite, aquele negócio. Eu disse: “Quer saber de uma coisa, eu vou largar essa porra bem aqui”. Eu disse: “Ei, Zé Alfredo, tu compra aquele carrinho meu?”. Ele disse: “Eu compro, tu quer quanto?”. Eu disse: “Me dá 60 mil”. Através desse dinheiro foi que eu comprei britadora e tudo, aí meti o pau sozinho. Aí comecei a me alavancar.
P/1 - Então o senhor veio para Serra Pelada com essa pessoa?
R - Foi.
P/1 - Ele que trouxe o senhor para trabalhar com ele?
R - Foi.
P/1 - Entendi. E quanto tempo o senhor ficou mais ou menos trabalhando com essa pessoa?
R - Rapaz, uns quatro meses, mais ou menos.
P/1 - E como funcionava a princípio a sua ocupação com ele? O senhor trabalhava de quê com ele? Que eu não entendi direito.
R - Em uma britadora, igual a essa aí, olha. Botar terra com a pá dia e noite, entendeu? Trabalhando botando a terra para tirar o ourinho que eles tiravam. Através disso eu comprei mais três britadeiras dessas aí, peguei ordem de Brasília, porque tinha um amigo meu lá, do Ministério de Minas e Energia e mandaram essas máquinas para mim, porque aqui só podia entrar se fosse com ordem do Ministro de Minas e Energia, senão a Federal não deixava entrar, entendeu? E através do meu conhecimento, porque tinha um amigo meu lá de Fortaleza, que era da mesa de renda, tinha contato com esse ministro lá, aí mandava para mim, mas se não fosse, não entrava. Aí eu botei três britadores desses aí e o pau quebrou. Aí vamos supor, tu tirava um cascalho desse aqui, tu não tinha onde moer, onde tirar o ouro. Aí eu pegava e botava o britador lá e nós rachava no meio o ouro. Aí eu fui tocando os barrancos, fui tocando, fui tocando com esses britadores, britava aqui uma semana, britava outra acolá e carregava nas costas. Eu tinha uma equipe e levava nas costas, naquele tempo não tinha carro não, aqui dentro não, não podia rodar carro aqui dentro, não. Era nas costas mesmo, no ombro e tudo assim. Até que eu cheguei à possibilidade de pegar esse ouro.
P/1 - O barranco era do senhor mesmo?
R - Era meu mesmo.
P/1 - Quando o senhor trabalhava com esses britadores, trabalhava britando para barranco de outras pessoas?
R - Era, porque eles não tinham. Eles tiravam o cascalho, mas não sabiam se tinha ouro, não sabiam como pegar. Então eu entrava com o britador igual a esse, aí britava, moía e já tirava o ouro e dividia entre eu e ele, aí dava entre 200, 150 gramas e nós dividíamos. Para mim era bom o negócio, porque eu não tinha gasto nenhum, só do britador, com o óleo.
P/2 - Nesse período o senhor ainda não descia para dentro do garimpo?
R - Descia já, tinha barranco tocando, já. Com esse ouro é que eu toquei os barrancos lá, me dava força, entendeu? E eu não pensei só naquilo não, eu pensei no futuro.
P/1 - Então o senhor trabalhando com britador, dividindo o lucro com outros barrancos, foi que o senhor conseguiu…
R - Chegar no meu ouro.
P/1 - Era o que mantinha o seu barranco?
R - Era. Verdade.
P/1 - O senhor tinha quantas pessoas trabalhando com o senhor?
R - Eu tinha 400, 400 e poucas pessoas.
P/1 - Bastante pessoas, né, seu Zé?
R - Era.
P/2 - Seu Chico, só lembrando. Qual foi o ano que o senhor entrou aqui em Serra Pelada?
R - Em 81.
P/1 - Quando o senhor chegou já tinha muita gente aqui dentro?
R - Rapaz, aqui era cheio, atopetado de gente, não tinha nem como você andar na rua. Se eu saísse daqui como daí onde tu está, se nós nos separássemos e mudássemos a vista, tu já se perdia de mim, já. Era um negócio sem lógica, era uma multidão de gente muito grande.
P/1 - O senhor lembra mais ou menos quantas pessoas tinha aqui nessa época?
R - Eu acho que umas 100 mil pessoas, só nesse terreirinho ali, porque a turma se aglomerava mais na frente da cooperativa, naquele pátio ali, mas você não sabia quem era.
P/1 - O senhor lembra, nessa época que o senhor chegou, como funcionava a divisão dos barrancos, divisão de trabalho? Como funcionava?
R - Olha, era assim, como se fosse uma área dessa aqui, aí a cooperativa marcava dois por dois, dois por dois, e passavam aquelas linhas, aí: “Gente, quem quiser pegar barrancos na Pedra Velha, na Pedra Nova, Serra Preta, Malvinas, vai ser leiloada, vai ser sorteada uma área lá. Vamos supor, eu sou garimpeiro, você é e você é, então eram 10 carteirinhas que o garimpeiro botava em um envelope e levava para eles lá. Quando era de tardezinha, uma hora dessas, mais ou menos, eles iam sortear, “Pronto, Osvaldinho”. Geralmente tem um cabeça, no caso eu e os outros. “Fulano de tal”. Mas o resultado dos outros estava dentro do envelope também. “Foi sorteado um barranco na Pedra Velha, Pedra Nova e tal, tal, tal”. Então eu já sabia que era eu com aqueles peões que eu tinha botado, entendeu? Aí no outro dia eles vinham entregar. Aí você já tinha que botar para moer o pau, carregar saco, cavar e tudo.
P/1 - Aí esses barrancos ficavam permanente ou tinha um rodízio de barranco?
R - Não, permanente. Você trabalhava hoje, amanhã você trabalhava de novo, depois você trabalhava de novo. Não podia deixar a igrejinha, porque aquela igrejinha podia matar os outros lá embaixo. Então tinha que descer todo mundo igual, igual a essa serra aqui.
P/1 - Todos os barrancos tinham que cavar na mesma altura?
R - Na mesma altura, os que estavam mais altos, tinham que fazer segurança lá. Se quisesse pegar um barranco, tinha que fazer segurança. Aquele que fazia a segurança lá, já ganhava aquele barranco lá em cima. Era assim.
P/1 - Seu Chico, como era o seu cotidiano aqui dentro do garimpo? Porque o senhor me relatou que tinha uma média de 100 mil homens aqui na época. Como era o cotidiano do senhor?
R - Olha, naquele tempo não tinha privada, não tinha nada aqui. Aqui fedia só a bosta seca, aí dava muita pneumonia, entendeu? Hoje, não, já tem privada, tem tudo, hoje o negócio está mais modificado, naquele tempo, não. Aquela poeira velha, aquelas fezes velhas, aquele negócio. Aí morreu muito peão desse jeito. Mas era assim, era a corrida do ouro, não tinha jeito, ou pegava o ouro, ou morria logo, ou se lascava, mas tinha que pegar.
P/1 - Então no meio dessa quantidade de homens não tinha nada de saneamento básico? E o comércio como era?
R - Olha, o comércio, eu mesmo comprava de carrada fechada, que vinha de Goiânia o caminhão fechado, leite, feijão, melanina, arroz e outras coisas. Eu comprava de carreta fechada, caminhão fechado e já botava no meu barraco. Eu tinha um barracão grande lá e dali eu já distribuía para os outros. Aí aqueles que não podiam comprar igual eu comprava, eles compravam dos outros mais caro, entendeu? Era assim.
P/1 - Tinha comércio aqui dentro?
R - Tinha. Logo quando o presidente Figueiredo e o Curió descobriram isso aqui, aí inventaram uma Cobal. Aí o avião das forças armadas vinha e deixava os mantimentos aqui para os garimpeiros comprarem na Cobal, entendeu? Só que era mais barato. O Cobal era um supermercado grande. Mas todo dia vinha um aviãozão, aqueles búfalos, cheios de rango para vender para o povo. Quando não vinha um avião, um búfalo, vinha então um caminhão já direto para o Cobal.
P/1 - Cobal era um supermercado?
R - Era um supermercado do governo Federal. Facilitava muito pra gente, entendeu? Foi o Figueiredo que botou isso aí, presidente Figueiredo.
P/1 - E tinha farmácia, lanchonete?
R - Tinha.
P/1 - E na época tinha mulheres aqui dentro?
R - Não, não tinha não. Depois começou a entrar mulheres, entrou a Gretchen, e Rita Cadillac e tal.
P/1 - Por que não tinha mulheres, seu Chico?
R - É porque as forças armadas, a Federal, achavam que com mulheres ia dar muito problema, primeiro, a bebida era proibida, entendeu?
P/1 - Era proibido bebidas aqui?
R - Era proibido, se pegassem com bebidas ia preso.
P/1 - Por que, seu Chico?
R - Eles achavam que… a Federal você sabe como é, eles achavam que inflamava a cidadania do pessoal, aquele negócio e dava problema, entendeu? Então era uma coisa muito difícil. Aí quando começou a entrar mulher, aí liberou tudo.
P/1 - O senhor acha que a bebida era proibida para evitar confusão entre eles?
R - Dizendo eles, que é mentira deles, a Federal safada!
P/1 - Seu Chico, aí quem era casado, quando vinha para cá, tinha alguma cidade próxima para deixar as famílias ou não traziam para cá?
R - Olha, tinha Curionópolis e Eldorado, só que nesse tempo, Curionópolis nem cemitério não tinha, o peão que morria aqui, tinha que deixar na cidade dele de avião. Eu mesmo fui deixar, eu passei três dias com ele podre dentro.
P/1 - Conta essa história, seu Chico. O senhor foi deixar um corpo e passou três dias com ele dentro do avião? Como assim?
R - Foi. Aí entreguei para a família dele, podre já.
P/1 - Era muito longe?
R - Não, era perto, mas a gente ficava bebendo cachaça, aquele negócio.
P/1 - O senhor saiu daqui para deixar o corpo e parou no bar para beber cachaça por três dias?
R - Foi.
P/1 - E o corpo no avião?
R - Foi.
P/1 - E aí seu Chico, quando o senhor chegou lá com esse corpo?
R - Foi assim, a pista era ali perto, em frente a cooperativa, eu estava com os meus dois aviões lá. Aí eu ia sair, aí o federal chegou e perguntou: “Seu Chico, vai para onde?”. Naquele tempo não tinha cemitério aqui, não tinha no 30, não tinha no Peba, não tinha no Eldorado, não tinha nada, tinha que mandar deixar o corpo lá na cidade deles, lá. Aí o federal falou: “Rapaz, você vai para onde?”. Eu disse: “Eu vou para Imperatriz”. “Oh, rapaz, não dá para levar seu colega lá, morreu de acidente, está com dois dias já, enterraram lá, o pessoal resgatou ele hoje do chão”. “Onde é que ele mora?”. Ele disse: “Em Tocantinópolis”. Eu disse: “Rapaz, Imperatriz é pertinho, eu deixo ele lá”. Mas naquele tempo nem caixão não tinha, ia era empacotado, sabe? Igual a uma múmia. Eu disse: “Rapaz, já que é assim, bota ele aí dentro”. Mas o meu piloto muito irresponsável, que nós saímos daqui, chegamos em Marabá, ele disse: “Chico Osório, bora tomar uma?”. Eu disse: “Bora!”. Atravessamos lá, mostramos o nosso documento para Federal e tudo. Aí eu digo: “Bora deixar esse homem lá em Tocantinópolis, vamos para Imperatriz”. “Não, vamos passar lá, vai que nós achamos uma gata lá! Aí nós passamos um pouquinho lá e tomamos umas duas e vamos deixar ele lá”. “Eu disse: “Tá bom”. E nós tá, e nos embebedamos, meu amigo! Passamos a noite e o peão lá dentro. Quando foi de manhãzinha eu bati no quarto dele, ele com uma gata e eu com outra também, bati na porta, disse: “Diga aí, vagabundo! Rapaz, o que nós vamos fazer com esse defunto aí?” “Joga ele”. “Não joga ele não, que eu tenho um documento bem aqui para entregar o cara, tem que tá assinado como ‘nós entregamos’. E eu não vou ficar nessa não, que o avião é meu, quem vai entrar no pau sou eu. Não é tu não, vagabundo!”. Aí fomos. Quando a gente abriu a porta do avião, estava fedendo já, rapaz, o cara com a cara deste tamanho, inchada, assim, tipo uma múmia para rasgar o esparadrapo, branco, aquele lençol branco. Aí abrimos a porta ali, aí: “Suba com essa porra aí”. Eu disse: “Rapaz, o que nós vamos contar para a família do cabra lá, moço? “Não, vamos dizer que o avião deu uma pane perto de Marabá, saímos atrás de mecânico lá na cidade e não sei o quê”. Inventou a desculpa dele. Rapaz, quando nós chegamos lá, meu amigo, e o bicho fedendo lá dentro, todo inchadão, lógico, quatro dias já, moça. Aí o cabra todo inchadão, meu amigo. Aí eu disse: “Vai dar a desculpa para o pessoal lá, a família dele está esperando”. Lá tinha uma pistinha perto da beira da pista, aí já estava a funerária, estava tudo, a mulher com um lençolzinho chorando, “Ah, meu Deus! Meu marido!”. Nós pousamos lá, do lado do caixão lá, “Por que vocês demoraram?”. Aí o Abraão foi contar aquela história bonita, sabe que piloto tem uma história bonita e tal, que deu um problema lá perto de Marabá, fomos obrigados a aterrissar na fazenda e ir atrás de mecânico, aquele negócio, aí demoramos a noite toda para ajeitar esse avião, para poder ir. Aí a família se conformou, sabe? Lá vem a mulher com o lencinho, “Aí meu Deus, meu maridinho, meu Deus!”. Aí os peões, os irmãos dele, eu disse: “Tire o homem aí de dentro!”. Já estava fedendo mesmo. Aí botaram dentro do caixão lá, rapaz, quase não cabe dentro do caixão, todo inchado e a carona dele, parecia a cara de um ______.
P/1 - Já tinha o quê, quatro, cinco dias que tinha falecido?
R - Quatro dias. E abafado dentro do avião. Aí, rapaz, a mulher chorando: “Oh, meu maridinho”. Aí foi e tiraram o esparadrapo da cara do homem e eu olhando aqui, a cara do bichão era a cara de um _______, toda inchada. Rapaz, por isso que gente não vale nada. Aí com a carona inchada e a mulher foi cheirar o rosto dele, quando ela foi abaixando na cara do velho, do coroa, a catinga veio na cara dela: “Hum, enterra que tá podre, enterra que tá podre!”.
P/1 - Quatro dias que tinha morrido, estava fedendo.
R - Rapaz, esse avião eu mandei lavar, vendi ele e nunca mais saiu essa catinga.
P/1 - Eita seu Chico, o senhor aprontou, hein!
R - Aprontei muito. E você não sabe, quando eu cheguei no Ceará… eu saindo daqui o cara que era piloto… o cara que era cavador meu, estava cavando, “Chico Osório, me tira daqui que eu sou piloto de avião”. Eu disse: “Que piloto de avião?! Se você fosse piloto de avião, não estava cavando buraco desse jeito para mim, cara!”. Aquele tempo piloto de avião era bicho esticado. Eu disse: “Não, moço. Já que é assim”. Ele me mostrou o brevê, eu disse: “Rapaz, você não comprou esse brevê, não? Por aí?”. Aí ele disse: “Não moço, eu sou piloto mesmo!”. Eu disse: “Então tá bom, vou botar tu pra para fiscalizar os peões aí. Tomar conta dos barrancos todinhos, é pra só olhar mesmo!”. Rapaz, aí um dia eu saí daqui com 87 milhões na boroca. Milhões!
P/1 - Qual era a moeda da época, seu Chico?
R - Milhão, era milhão. Era 1.000.000 mesmo.
P/1 - Era real já?
R - Era nada. Era antes do real, 1.000.000. Era milhão mesmo! Milhão que tinha era milhão!
P/2 - Cruzeiro?
R - Eram milhão de cruzeiros. Não sei o que era aquela peste, sei que era muito dinheiro. Aí eu enchi dois sacos deste tamanho assim, e uma borocona cheia de dinheiro. Cordão mesmo eu tinha bem uns 10 dentro da minha boroca lá e saí com ela assim, igual eu estou aqui, saí desse jeito. Eu disse: “Jessezinho, tu já pegou o seu dinheiro também? Tu mora em Imperatriz, vamos pegar o avião e vamos lá para Imperatriz, moço?”. “Bora, bora! Com esse dinheiro eu vou comprar um aviãozinho para mim”. Eu disse: “Pois é, boa! Tu é piloto mesmo! Aí nós pegamos o avião bem aqui, oh, na pista ali”. Aí olha quem ia lá dentro do avião, era eu, Jessezinho, o irmão desse Caiado, o irmão dele, e tudo, tudo voando para Marabá, para depois eu pegar o avião para um lado e o Caiado pegava para Goiás, que é irmão do governador de Goiás. Eu disse: “Pois é, então vamos embora!”. Aí o piloto aqui com esse irmão do Caiado, governador e tudo. Aí eu disse: “Rapaz, oh negão!”. Aí negão disse: “Não, seu Caiado, eu quero vender esse avião lá no garimpo do Osvaldo, porque garimpeiro de Serra Pelada não tem condição de comprar avião não”. Eu disse: “Ei, Jessezinho. Olha aí!”. Eu estava atrás dele no banco. “O cara está dizendo que nós não temos condição de comprar um avião”. Nós com 87 milhões dentro dos sacos. Aí o Jessé disse: “Pergunta quanto ele quer no avião”. Eu disse: “Ei, negão, tu vende esse avião por quanto?”. “Sete milhões!”. Eu estava com 87, como que o avião não dava para comprar? Aí quando nós pousamos lá eu disse: “Tu acha que compensa, Jessé?”. “Compensa”. “Eu estou me baseando em tu aí”. Aí eu disse: “E aí, negão. Quanto é o avião mesmo?”. “Sete milhões”. Eu disse: “Pois o negócio está feito! O dinheiro está bem aí dentro do avião, nem tirei ele de dentro. Vou só tirar os pacotes e dar”. Ele ficou assim. “Não, negócio de palavra é palavra!”. Rapaz, aí Jessezinho entrou no avião, fechou as portas, ligou o avião e o bicho, tu,tu,tu e eu olhando, “Será que esse cara sabe pilotar mesmo, meu Deus?! Se não vou largar mão aquelas caixeiras bem ali” “Eu já estou lascado mesmo! Ainda bem que queima esse dinheiro todinho e não dá pra ninguém”. Rapaz, aí ele começou, “Aqui é o Papatão Juliete Vitor, vai voar com passageiro a bordo, Marabá, Imperatriz. Peço permissão para a torre. Quantos nós o vento está, esquerda, direita, vento de proa e tal”. O cara falou a resposta pra ele e ele arrochou o aviãozão. Aí nós passamos o Araguaia, eu disse: “Quando chegar em Tocantins, tu está vendo naquela casa lá? É da minha sogra”. Eu morava vizinho a minha sogra. “Vamos dar um rasante por cima para arrancar as telhas da velha”. Porque a velha queria ver o cão, mas não queria me ver. Aí ele, pamm, por cima, arrancamos um bocado de telha da casa da velha. Aí pousamos lá, era umas três horas da tarde. Naquele tempo não tinha mototáxi, era táxi. Aí eu peguei um táxi, de bermuda velha toda suja, igual eu estou aqui ou pior ainda, aí eu peguei o carro, Jessezinho pegou o carro e foi para a casa da mulher dele lá em Imperatriz e eu fui para a minha casa. Só que eu passei na frente da loja e disse: “Vou comprar um carro aqui pra mim jajá”. Eu sabia dirigir e tudo. Aí eu passei na frente da Volkswagen e disse: “Ei motorista, para bem aqui”. Aí paguei ele. Aí um monte de carros bonitos, assim que saíram aqueles carrões Passat, com farol quadrado, assim que saiu a primeira pintura metálica. Aí tinha um verde cana metálico lindo, cara. Eu disse: “Vou comprar esse carro bem aqui. Ei, quanto é esse carro bem aqui?”. O cara falou: “Dois mil e setecentos, com as opções?”. Eu disse: “Quais são as opções?”. “É pneu meia tala, som, essas coisas”. Eu disse: “Pois ajeita esse aí para mim”. Mas o cara ficou com medo de ajeitar, eu todo sujo velho, de chinelo, só com os sacos velhos, com medo de eu não ter o dinheiro para pagar, sabe? Aí ele disse: “Rapaz, fala com o dono ali”. Aí eu peguei os sacos, que eu também não deixava não, andei com os sacos lá no gabinete dele, e uma bolsona “deste tamanho” toda cheia de dinheiro. Aí eu entrei lá e o cara falou: “Olha, ele quer comprar aquele carrinho ali”. Eu disse: “Pois é. Quero comprar aquele carro mesmo”. Aí ele começou a pegar para um lado os papeis, eu senti que… eu sou meio burro… que ele queria fazer uma pergunta para mim. Nessa época, cara, a Serra Pelada estava no auge, dinheiro para todo canto. Aí ele disse: “Eu posso fazer uma pergunta para o senhor?”. Eu disse: “Pode, até 10”. “O senhor vem de onde?” Eu disse: “Rapaz, eu vim da Serra Pelada”. “Menino, ajeita o carro pro homem ligeiro, ligeiro!”.
P/1 - Sabia que o senhor estava com dinheiro.
R - Ajeitou o carro lá, sabe? Rapaz, aí paguei e tudo, ele disse: “Esse carro é no nome de quem?”. Eu disse: “Da minha mulher para ela ir para o pessoal dela, eu vou comprar um Diplomata amanhã”. Comprei no outro dia um diplomata zerado, Opalão velho preto, doido! Aí esse carro eu dei para a minha mulher, pra ela ir para os passeios dela.
P/1 - Seu Chico, voltando aqui para Serra Pelada, quando o senhor morava aqui, na época do garimpo, o que vocês faziam para se divertir? O que tinha aqui de diversão? Porque não podia entrar bebida, as mulheres não podiam entrar, qual era a diversão? O que tinha?
R - Assim, a gente bebia escondidos, sabe? Aí os peões traziam do 30, furando com um litro de cachaça, vamos supor, naquela época um litro de cachaça era um grama de ouro, entendeu? Era uma grama de ouro, um litro de cachaça, mas nós não estávamos nem aí, 10 litros para nós estava…
P/1 - Como eram as casas aqui, dos garimpeiros?
R - Era igual a essa minha bem aí.
P/1 - Barraco. E no seu barraco moravam quantas pessoas mais ou menos, seu Chico?
R - Na verdade, é como eu te falei, eu tinha 400 e poucas pessoas…
P/1 - E moravam todos?
R - Não, não era tudo junto, não. Às vezes tinha uma turma que ficava em dois, três barrancos que ficava em um ala, os outros em outros, bem distribuídos, entendeu? Aí em cada barraco desse tinha um cozinheiro, que não era cuco, era cozinheiro, aí eles iam pegar… eu tinha uma central, todo dia aquele cuco ia pegar arroz, feijão, carne, essas coisas e levava para lá o que eles iam consumir em um dia, entendeu? Aí era desse jeito. Aí a minha central era diferente, mas todos eles tinham cozinheiro, entendeu? Eram 450 homens que eu tinha. Era assim, era muita luta.
P/1 - Seu Chico, ainda falando dos barrancos, quantos quilos de ouro o senhor pegou na época, que o senhor vendeu para a Caixa Econômica? E o que o senhor fez com o dinheiro que o senhor ganhou?
R - Mas é lógico, jogamos tudo aí dentro, porque a vontade era de ganhar muito mais, e a gente sabia o ouro que tinha aí, que tem mesmo, mas o que acabou com a gente formas os políticos, os ladrões safados, entendeu? Esse governo vagabundo do PT que acabou conosco, entendeu? Então quando nós chegamos no ouro de novo, nós gastamos tudo, chegamos no ouro de novo, eles botaram a Federal, que a Federal é uma safada, bandida, covarde, olha, a polícia federal não vale nada, na minha presença não vale nada, pode gravar essa porra bem aí! Eles pegaram e deram uns tiros na beira do garimpo, nós todos no barranco lá, que ia ter um rebaixo e não sei o que. Todos covardes, vendidos. Deram uns tiros lá, que nós não podemos trabalhar, que daqui três meses ia ter um rebaixo e todo mundo ia pegar e ficar igual a um prato, que as máquinas iam rebaixar e até hoje, afundaram foi as dragas e encheu de água. Então essa polícia federal não vale nada, é uma vagabunda, eu digo na cara deles, eu digo é na cara deles, eu não tenho medo de dizer, pode gravar essa porra bem aí!
P/2 - Seu Chico, como foi o dia… você lembra bem o dia que você estava trabalhando dentro do garimpo e naquele dia vocês encontraram toda essa quantidade de ouro. Conta como foi esse dia.
R - Olha, nessa época nós estávamos todos assim, meio sem dinheiro, entendeu? Todo mundo estava comendo ovo, porque não tinha mais o que dar para eles lá, eu não tinha mais condição. Aí, de repente, eu estava na beira de um barranco lá, escavando e olhando, pensando o que eu ia fazer da minha vida, entendeu? Aí de repente o cavador deu uma picaretada na bucha de ouro, mas naquele tempo ninguém conhecia ouro bombril, quando puxou eu vi amarelar, que ele tem uma ferrugem nele, sabe? É uma bucha igual a uma bucha de ferro, aí puxou e eu disse: “Bota aqui no saco, eu vou levar para casa. Olha gente mexe em nada aqui, vamos almoçar”. Estava perto do almoço. “Ninguém mexe enquanto eu não ver esse negócio bem aqui”. Aí fui para o barraco e naquele tempo tinha aqueles botijões serrados no meio com o ferro, com a cabeça de uma alavanca de marreta. Aí eu comecei, tacham, tcham, aí foi amarelando, amarelando, saindo aquela ferrugem, eu derramando aquela água, porque a mão ninguém passava, senão furava a mão toda. Rapaz, de repente ficou tudo amarelinho, a bucha assim. Aí naquele tempo, quem fosse vender um ouro lá na copa da Caixa, que não fosse ouro, a Federal metia a peia, moço, peia. Eu disse: “Mas moça, foi tirado do barranco, eu vou vender essa porra”. Eu disse: “Quem quer vender?”. Um disse: “Eu não vou!”. O outro: “Eu não vou”. Eu disse: “Eu vou, já estou lascado mesmo!”. Aí enxuguei lá no fogo e tal, aí botei em um papel e fui. Cheguei lá botei, os caras, peritos apropriados para comprar o ouro da Caixa. Aí olharam, olharam e eu com medo, a Federal toda armada ali. Eu disse: “Rapaz, eu vou sair na peia já. Se essa porra não for ouro eu tô lascado. Mas já tô lascado mesmo, deixa o pau quebrar!”. O cara olhou assim, “Pode passar!”. Quando manda passar é porque é ouro. Aí botaram no fogo eterno, fogo eterno é um fogão assim, para queimar, quatro, cinco, dez quilos de ouro de uma vez. Agora o ourinho de um quilo para baixo é o foguinho velho, aqueles foguinhos ali também. Aí botou no fogo eterno e “oh, barra de ouro!” Dois quilos e seiscentas gramas. Aí, moça, esses homens só passaram o dinheiro e eu pá no bolso. Cheguei, paguei peão, paguei tudo, comprei tudo. Aí o pau quebrou, eu disse: “Agora vamos ensacar. Aí foi esse que deu 600 e poucos quilos de ouro pra mim.
P/2 - Aí no dia que você levou a barra de ouro para poder ser apurada, você pagou todo mundo, aí voltaram para o barranco que tinha dado esses dois quilos?
R - É, dois quilos e seiscentos. Aí já todo mundo alegre, todo mundo pegou o dinheiro, todo mundo foi trabalhar com alegria e satisfação porque pegaram o dinheiro deles. Aí o pau quebrou, eu comecei a ensacar terra e chegou a 647 quilos de ouro. E foi pouca terra, não foram mil sacos de terra, não.
P/1 - Foi quanto tempo de trabalho para dar esses 647 quilos?
R - Ah, uns 15 dias só.
P/1 - 15 dias? Mais ou menos mil sacos de terra?
R - Mil sacos de terra.
P/1 - Seu Chico para quem não sabe o que é, como é, me explica como é o ouro bombril.
R - É aquilo que eu te falei! É um ouro que ele é cheio de espinhos, se passar a mão, você fura a mão todinha. Aí tem que passar ou no britador, então… naquele tempo não tinha britador, então no pilão, para tirar aquela sujeira, que ele tem uma ferrugem, aquela ferrugem dele, é o ouro paládio e nós não sabíamos, jogávamos fora. Mas aí se fosse vender era com desconto, porque descontava 20%, 30% desse ouro paládio que era o ouro verdadeiro, que eles queimavam e dava essa mistura, entendeu? Roubaram nós muito, entendeu?
P/1 - Eles faziam esse desconto, que era do que a gente pode chamar, as impurezas?
R - As impurezas. E é o melhor ouro que tem, o ouro paládio. O ouro paládio é 600 reais a grama, o outro só custa 300 e poucos, 400. Nós jogamos muito esse ouro fora, é tanto que essa área minha aqui é toda cheia de ouro paládio. É por isso que eu vou pegando agora, eu tenho que fazer uma máquina, mas não pode enquanto esse ouro não sair, não pode mexer. Eu tô com uma máquina de São Paulo, para eu jogar essas lamas todinhas e moer no britador e passar, que ela separa e o ouro paládio vem todinho. O ouro paládio é tipo ______, cara.
P/2 - Chico, depois que você pegou 647 quilos de ouro, quais foram as suas primeiras atitudes?
R - Na época, eu tive que comprar um avião, porque eu morava em Imperatriz na época e daqui para lá eram cinco, seis dias de viagem e eu não podia passar um dia fora daqui da área porque eu tinha muito barranco dando ouro. Eu pegava cinco quilos de um barranco, 10 quilos de outro, dois quilos de outro, eu tinha que estar na correnteza, entendeu? Então eu saía daqui no sábado, que todo mundo parava praticamente e segunda-feira seis horas da manhã eu estava aqui, sete horas, para agilizar as coisas, porque se fosse de carro não dava, entendeu? Eu comprei um avião por necessidade.
P/2 - Depois que você comprou esse avião, teve outra grande coisa que você fez com a sua riqueza.
R - Não, moço. Porque um avião eu caí e o outro o cara me roubou. Eu emprestei para ele ir para São Paulo, o cara foi para lá, um cara que trabalhava comigo, um empresário, morava em São Paulo e naquele tempo não tinha internet, não tinha nada, entendeu? Só tinha telefone fixo. Aí eu ligava para ele e o telefone nada, eu disse: “Meu Deus, o cara roubou o meu avião mesmo”. Mas eu achei bom, porque teve um dia que eu estava em Imperatriz, no sofá assistindo televisão, aí passou na televisão: “O empresário Aparecido Moacyr Bissaco vinha do Paraguai trazendo bagulho para São Paulo e o avião 210 DJV caiu, pegou fogo, incendiou morreram todos os passageiros. Eu disse: “Olha, filho da puta, roubou o meu avião, mas tu morreu também!”. Aí eu perdi o avião e fiquei satisfeito, porque ele morreu também. Tá no inferno há muito tempo!
P/1 - Seu Chico, o senhor falou que o senhor era casado, o senhor casou aqui no garimpo ou quando o senhor veio já era casado?
R - Não, eu casei em Imperatriz, mas era um casamento assim, sei lá, meio frustrado, sei lá como é que foi. Assim, por força dos amigos, aquele negócio, e casa, não casa. A minha mulher era bem trabalhadora, que é ex mulher minha, mas aquilo ali, fui, até comecei a gostar dela um pouquinho, tive três filhos com ela e tudo, mas depois não deu. Quando a gente não casa com gosto, nunca dá certo. Aí nós nos largamos e pronto. Aí quando foi um dia ela veio atrás de mim aqui. E eu sem ir lá, aquele negócio, mandava dinheiro para ela, mas… aí ela veio para decidir, aí eu disse: “Pode decidir!”. Aí ela passou uma semana aqui comigo e tudo, “Eu vim atrás de tu, tu vai escolher, ou eu, ou Serra Pelada”, eu disse: “Pois eu escolho Serra Pelada”. E até hoje estou aqui.
P/1 - E ela foi embora?
R - Foi embora chorando, coitadinha, fiquei até com dó dela. Era mãe das minhas filhas.
P/1 - O senhor tem quantos filhos
R - Três.
P/1 - Eles moram onde?
R - Uma mora no Espírito Santo, até ela me ligou essa semana aqui. A outra mora em Minas Gerais e a outra mora em Imperatriz. E eu tenho um filho que é pastor, que é de outra mulher, da empregada lá de casa, que eu fiz um filho com ela, a bichona bonitona, eu disse: “Não, eu não aguento, não. Aí fiz um filho com ela. Isso deu uma confusão do diabo! Eu não estava nem aí, eu não ligava para nada não.
P/1 - Seu Chico, mas me conte como foram os seus dias depois do senhor pegar 642 quilos de ouro de Serra Pelada.
R - Não, moça, aquilo ali, ninguém ligava para aquilo não. O ouro é como se fosse essas pedras assim, ninguém ligava para isso não, entendeu?
P/1 - E o senhor gastou como todo esse dinheiro?
R - Moça, aqui dentro da Serra. Quando nós chegamos no ouro de novo não deu certo. Com raparigagem, com avião, só carro eu tinha 15 novos, só carrão doido, era Mercedes, era Landau, era tudo. Eu comprei um carro do vice-governador do estado do Ceará, à prova de bala, um Randalzão doido! Rapaz, eu não ligava para isso não. Avião e tudo.
P/1 - O senhor comprou muitas coisas e investiu no garimpo novamente?
R - É, mas eu tenho uma fazenda grande lá no Ceará que eu não vou nem lá, eu dei para a minha família, eu não vou lá não, eu não quero nem saber, tem cerâmica, tem tudo, caçamba, enchedeira. Energia eu puxei sete quilômetros de poste de energia para lá. Eu não vou lá não, não quero nem saber.
P/1 - O senhor puxou sete quilômetros de energia? E essa energia beneficiou todo mundo, toda a comunidade de lá?
R - Não, era só para mim, para botar cerâmica. Mas depois os donos daqueles engenhos de rapadura, essas coisas falavam para a minha mãe que eles não aguentavam mais puxar engenho de boi e tal, eu disse: “Não, minha mãe, dá energia para todos eles aí, energia tem para todos eles aí”. Aí a minha mãe começou a dar, deu para todo mundo, hoje a energia da região toda era minha. Eu dei de coração para a comunidade.
P/1 - Isso na mesma cidade onde o senhor nasceu?
R - Na mesma cidade que eu nasci. Gente que se achava superior a mim, aí depois começou a depender de mim, entendeu como é que é a história da vida? Como é importante. Aí todo mundo precisando de energia, porque eles não tinham condição de puxar. Aí quando eu passava pertinho, aí eles vinham.
P/1 - O senhor cedeu energia, mandou liberar energia para todo mundo?
R - Mandei liberar para todo mundo, para a comunidade inteira.
P/1 - Seu Chico, nós vamos fazer as perguntas conclusivas agora, para a gente encerrar. Desde a época do garimpo o senhor permaneceu aqui, sua esposa veio lhe perguntar se o senhor queria ela ou a Serra Pelada, o senhor escolheu Serra Pelada, tá aqui até hoje e vai chegar no ouro de novo.
R - Tô esperando, né.
P/1 - O senhor gosta de morar em Serra Pelada?
R - Eu adoro! Porque aqui é um clima bom, aqui não tem, assim, perseguição muito, entendeu? E aqui não tem uma muriçoca, não tem nada, a água é boa, minha água vem lá de cima da Serra e cai aqui direto, aí banha na hora que quer, água mineral. Então para mim é um negócio maravilhoso, eu só estou com um problema aqui na Serra, porque o cara comprou uma moto minha e não me pagou, eu levei a polícia para tomar a moto, quando puxaram o documento dele, o maior bandido do estado do Pará. Olha, quando a polícia puxou o mapa dele, já tinham seis mulheres que ele matou, seis caras na Bahia e tudo na Bahia, matou mais dois em Parauapeba e fez 17 estupros. Ele está preso, ele tá dizendo pra Serra que vai me matar, só que eu tô com uma armazinha bem aí, uma espingardinha boa, na hora que ele chegar torar na cara dele aqui.
P/1 - Seu Chico, o senhor depois de vir para cá, depois que deixou a sua mãe, comprou fazenda pra ela, ajeitou a vida dela, o senhor continua mantendo contato com eles?
R - A minha mãe morreu há uns três anos atrás, o meu pai também, eu falei, mataram na fazenda.
P/1 - Mas antes dela falecer o senhor tinha contato com ela?
R - Tinha, mas depois ela ficou com aquela doença velha que não fala mais, nem nada, aí eu até me recusava a ligar para a minha irmã para falar com ela, porque aquilo me doía. Aí eu ficava mais afastado para não lembrar muito, entendeu?
P/1 - Seu Chico, o senhor mudaria alguma coisa do seu passado, caso o senhor pudesse voltar no tempo, tem alguma coisa que o senhor mudaria?
R - Nadinha. Não, porque é o seguinte, se eu pegar dinheiro, eu vou gastar do mesmo jeito, só que assim, ajudando o próximo, para mim é importante ajudar o próximo. Eu não tenho interesse nenhum em guardar dinheiro, guardar riqueza, guardar tudo, igual ao Silvio Santos e outro aí, pra quê tanta riqueza? Por que ele não distribuiu para os pobres? Muitos pais de família passando fome, muitas coisas, muitas famílias não têm onde morar, não tem nada. Por que o cara não podia pegar essa riqueza dele e ao invés de deixar para a família dele todinha, que já são ricas, deixava um pouquinho para cada um, de um pobre, de uma família, de uma mãe de família que vivem na rua? Então eu penso diferente desses ricos, o meu negócio é ajudar os outros, os mais necessitados, entendeu? Olha, o _____ aqui disse: “Olha, você está aprovado e tudo”. Eu disse: “Olha, eu não quero um centavo desse povo desse _______ aí, não! Eu só quero que dê para mim, para eu dividir com o povo”. Entendeu? “Dividir com o povo, porque isso aqui não interessa para mim, não. Eu quero ajudar os mais necessitados”. Os mais necessitados são quem eu quero ajudar se tiver isso aqui. Aí por isso que eles não aprovaram.
P/1 - Seu Chico, e o que o senhor faz hoje? Qual é a sua atividade hoje?
R - É só garimpo.
P/1 - Continua garimpando?
R - Garimpando até chegar no produto da Amazônia.
P/1 - O senhor sonha ainda em chegar no ouro? O senhor ainda sonha com isso?
R - Tá mais fácil que antigamente.
P/1 - Por que o senhor acha que está mais fácil?
R - É porque hoje nós temos mais tecnologias para saber exatamente onde o ouro passa, onde não passa. Aquele tempo nós trabalhávamos adoidado, a sorte era pra quem tinha. Hoje não, nós já vamos certinho em cima, se essas beiras aqui não der, mas bem acolá já dá, para baixo acolá dá, já vai em cima da mancha, então a mancha de três, quatro toneladas, o que você quer mais? É assim, hoje eu estou na tecnologia. Por que a Vale, ela nunca sonda assim? Ela só sonda assim, a bandida.
P/1 - Seu Chico e hoje quais são as coisas mais importantes para o senhor?
R - Rapaz, a coisa mais importante da minha vida é o seguinte, é segurar, pegar um ouro, ajudar o povo, coisa que a Vale não faz, os políticos não fazem. Olha, quantas vezes eu não dei passagem de avião aqui, para o cara ir para Teresina? Eu tenho prova viva aqui, o Chico Ana, esse aqui conhece, deixei dinheiro para ele pagar a ficha dele, mas foi atrasado já, porque ele não tinha o dinheiro, eu disse: “Não, mas tá aqui o dinheiro, vai lá!”. E outros mais. Então às vezes por causa de um grito, você perde uma boiada. Por que esse pessoal, esses políticos, não ajudam esse povo, moça? Esses ladrões safados! Igual a esse Lula, vagabundo! Eu esculhambo mesmo, quem for do Lula pode ir para casa do caralho, que eu não quero nem ver aqui.
P/1 - Seu Chico, se o senhor pudesse me dizer um sonho que o ainda tem, qual é esse sonho? Um sonho só.
R - Um sonho? Comprar uma terrinha aqui perto do Curionópolis, entendeu? Criar os meus bichinhos, os meus cachorrinhos que estão todos gordinhos aí, olha, dar apoio para eles, meu gadinho velho. Só que eu ganhar um novilho, uma vaca, uma coisa, uma cabra, eu não mato, vai morrer no pasto, eu tenho pena de matar. Eu prefiro comprar no açougue do que matar um bicho meu, até uma galinha eu não mato, porco, tudo eu crio com o maior carinho do mundo. A pessoa que tem uma vaquinha, ela pari, dá o bezerro para tu vender, dar o leite para tu criar os teus filhos, para tu também fazer a tua manteiga, tua coalhada, teu leite e tu pegar e depois que a bichinha pariu muito, pegar e matar a bichinha no matadouro, isso é uma tristeza, eu não tenho coragem de fazer isso, não! É por isso que eu não sou fazendeiro.
P/1 - Seu Chico, o senhor gostaria de acrescentar alguma coisa que a gente não perguntou, mas o senhor gostaria de falar?
R - Sim, eu vou até te falar uma coisa aqui, porque eu tenho certeza que agora eu chego no ouro forte, eu não vou comprar mais avião, não, eu vou comprar helicóptero, só isso. E eu vou chegar a esse ponto, daqui uns dias vocês não me veem mais, vocês não vão me ver mais não, nem o próprio Carlinhos que é amigo meu demais da conta e você também, mas não vão me ver mais. E esse aqui. Não vão me ver mais não, daqui eu vou lá para o Xingu, vou para o São Félix. Quem eu puder ajudar eu ajudo. chegar em uma roça daquelas, pousar lá. Chego em um rancho, se o cara não tiver o que comer, eu dou: “Tá aqui um rancho para você”. “Quem é você? “Sou o Chico Osório, de Serra Pelada”. Pronto! Vou fazer sempre assim.
P/1 - Muito bom! E como foi para o senhor contar a sua história?
R - Em qual sentido?
P/1 - O senhor gostou de contar a sua história?
R - Sim. A minha história sempre é essa, entendeu? A minha história dá um filme espetacular, entendeu? Desde o começo do sofrimento, até o ponto que eu cheguei aqui. Olha, eu tinha um avião, eu sempre voava nesses garimpos aí e pegava os peões doentes e sempre trazia eles, nunca cobrei passagem de ninguém, porque o cara estava doente e não tinha como pagar e eu também não cobrava, se eu deixasse eles lá, eles morriam de malária e tudo. Então eu tenho muitos agradecimentos feitos por eles aí em cidades, no Maranhão, em tudo, os caras todos doentes. Um dia eu cheguei na cidade de Moça Bonita, aqui, era só mato, chamava-se pista caixão, porque era uma pista curtinha, só podia sair o avião com três. Eu fui com o meu piloto lá, eu olhei, não gostei do garimpo, quando eu cheguei para pegar o avião, aí tinham três cabras se tremendo, magrinhos, os caras bem de situação, bem de vida, tinham fazenda, tinham tudo no Maranhão, ali perto de Imperatriz, mas com aquela vontade de pegar mais ouro e comprar mais gado e tal, a ânsia do ouro, né? Aí ele disse: “Oh, seu Chico Osório, o senhor é de onde?”. “Eu sou de Imperatriz”. “Oh, rapaz, eu moro ali pertinho. Eu tenho uma fazenda assim, assim, assim”. “O que é que vocês estão querendo?”. “Rapaz, os pilotos não querem me levar, porque eu fui para um barranco e peguei logo malária e eles não tem condições mais não de me levar”. Naquele tempo não tinha internet, senão eles mandavam para a mulher vender o gado, tinha muito gado, vendia, né. Mas como é que tinha comunicação? Não tinha. Aí eu disse: “Abraão”. Que era um dos pilotos, eu tinha dois, Jessezinho e o Abraão. “Bora levar os homens aí”. “Não, Chico Osório, a pista é curta. Só dá para sair em dois, eu e tu aqui. “Nós vamos levar os três! Entrem!”. Eles entraram para o fundo. “Vão lá para o fundo para ele levantar proa aí e nós voarmos”. O Abraão, que era o piloto, saiu zangado! “Você vai levar agora!”. Nesse tempo nós deixávamos o avião bem aqui no Eldorado, tinha uma pistinha ali, porque aqui o meu avião foi proibido de pousar. Aí eu pousei lá, eles todos magrinhos se tremendo, eu disse: “Rapaz, vocês têm dinheiro para chegar? Vocês são de Imperatriz?”. “Somos. Nós moramos em Coquelândia”. “Pois é, rapaz! Vocês têm dinheiro para chegar lá?”. Tudo com fome, velhos, magros. Meti a mão no bolso, tinha um pacote de dinheiro deste tamanho assim, nem contei, só que eram as maiores notas. “Oh, aqui para vocês irem embora”. Eles disseram: “Onde é que o senhor mora?”. Eu disse: “Eu moro lá na Colônia Manoel Bandeira, no centro de Imperatriz, Maranhão, Chico Osório. Mas não estou cobrando nada de vocês, não”. Aí quando foi um dia, eu estou bebendo, seco, um cara tocando violão, amigo meu e tal, minha mulher tinha comprado meio mundo de peixes lá na praça, e nós bebendo. Aí chegou um com um (01:48:22), um com uma leitoa, o outro com um peru e o outro com um capãozão. Eu não conhecia os caras mais não, fazia uns três meses já. Ele disse: “Aqui que eu trouxe para o senhor”. Eu disse: “Não moço!”. Eu pensei que era para vender. “Quero não, já comprei peixe demais, moço. Eu não quero, não!”. Eles disseram: “Não, rapaz, nós viemos trazer um presente para o senhor, agradecer o que o senhor fez por nós. Se nós estamos vivos, agradecemos ao senhor. E no dia tal vai ter o batizado das minhas filhas, dos nossos filhos e o senhor vai ser o padrinho, você e a sua esposa”. Eu disse: “Mas eu não sei onde é não”. “Mas a gente vem atrás de você”. Aí eu peguei o meu carro e fui atrás deles e fomos lá, rapaz, chegou lá mataram gado, foi a festa maior do mundo, fui muito bem recebido lá, pelo que eu fiz por eles, entendeu? E assim tem muita história.
P/1 - O senhor ajudou muitas pessoas?
R - Muitas pessoas!
P/1 - E o maior agradecimento para o senhor é sempre ver que as pessoas ficaram bem?
R - É, exatamente.
P/1 - Seu Chico, nós vamos encerrar nossa entrevista, por mim eu ficaria mais uns três dias aqui só conversando com o senhor.
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