Projeto Vidas Vozes e Saberes em um mundo em chamas
Entrevista de Célia Maria Ferreira dos Santos (Célia dos Mariscos)
Entrevista de Jonas Samaúma (P/1) e Guilherme Sarmento (P/2)
Cachoeira, 5 de junho de 2025
Entrevista número: PCSH_HV1476
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Dona Célia, gratidão. Você está contando a sua história hoje. Eu queria começar você falando assim o seu nome e falar um pouquinho o que você sabe sobre a história das suas avós, da sua avó, do seu vô pra gente entrar na sua, você contar das suas avós.
R - Eu me chamo Célia Maria Ferreira dos Santos, mãe de onze filhos. Sofri muito. Hoje eu sou viúva. Agradeço a Deus de ter esses filhos. Meus avós… Nasci aí, em um lugar chamado Calolé. Em 1965, eu vim aqui para Cachoeira. Quando foi 1970, eu voltei para Anagé. Minha mãe, meus pais não morava mais aqui, já morava aqui lá de Maragogipe. Aí eu voltei para Maragogipe. Quando foi em 72, eu me casei, me casei com 23 anos, tive meu filho… Ele tem 50 e vai pra 53, né, Zézinho? Eu não vi meu filho. Hoje ele tá lá em Santa Maria dizendo isso, que o Espírito Santo encontre todos vocês. Quando eu passei, aí fiquei, fiquei, fiquei, fiquei. Tomo um axé hoje com o meu marido. Ele, quando saiu para trabalhar no dia primeiro de janeiro, fechou o meu menino, acho que tinha 6 meses, e eu, grávida de triste, levou 7 anos. Hoje, quem me fez essa caridade foi a avó dos meus netos, um que é gêmeos aí. Avó dos meus netos. Pegou, fez, veio pra aqui fazer alguma coisa pra tomar meu marido pra filha dela. Mas não foi assim que Deus… Escreve assim, não é assim. Resumindo, o homem que ela queria para a filha dela era meu marido. Trouxe ela para casa de um pai de santo, e o pai de santo emprenhou a filha dela que ela queria, engravidou. Esse menino que o pai de santo engravidou é o pai dos meus netos. É uma complicação. É pai dos meus netos, deixa pra lá, é César. E daí eu sofri muito, fiquei nessa maré de...
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Entrevista de Célia Maria Ferreira dos Santos (Célia dos Mariscos)
Entrevista de Jonas Samaúma (P/1) e Guilherme Sarmento (P/2)
Cachoeira, 5 de junho de 2025
Entrevista número: PCSH_HV1476
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Dona Célia, gratidão. Você está contando a sua história hoje. Eu queria começar você falando assim o seu nome e falar um pouquinho o que você sabe sobre a história das suas avós, da sua avó, do seu vô pra gente entrar na sua, você contar das suas avós.
R - Eu me chamo Célia Maria Ferreira dos Santos, mãe de onze filhos. Sofri muito. Hoje eu sou viúva. Agradeço a Deus de ter esses filhos. Meus avós… Nasci aí, em um lugar chamado Calolé. Em 1965, eu vim aqui para Cachoeira. Quando foi 1970, eu voltei para Anagé. Minha mãe, meus pais não morava mais aqui, já morava aqui lá de Maragogipe. Aí eu voltei para Maragogipe. Quando foi em 72, eu me casei, me casei com 23 anos, tive meu filho… Ele tem 50 e vai pra 53, né, Zézinho? Eu não vi meu filho. Hoje ele tá lá em Santa Maria dizendo isso, que o Espírito Santo encontre todos vocês. Quando eu passei, aí fiquei, fiquei, fiquei, fiquei. Tomo um axé hoje com o meu marido. Ele, quando saiu para trabalhar no dia primeiro de janeiro, fechou o meu menino, acho que tinha 6 meses, e eu, grávida de triste, levou 7 anos. Hoje, quem me fez essa caridade foi a avó dos meus netos, um que é gêmeos aí. Avó dos meus netos. Pegou, fez, veio pra aqui fazer alguma coisa pra tomar meu marido pra filha dela. Mas não foi assim que Deus… Escreve assim, não é assim. Resumindo, o homem que ela queria para a filha dela era meu marido. Trouxe ela para casa de um pai de santo, e o pai de santo emprenhou a filha dela que ela queria, engravidou. Esse menino que o pai de santo engravidou é o pai dos meus netos. É uma complicação. É pai dos meus netos, deixa pra lá, é César. E daí eu sofri muito, fiquei nessa maré de manhã, de meio-dia e de noite. De manhã eu ia, agora, quando a maré enchia, ia “mossungar” o negócio, botar num negócio comprido assim um caranguejo para entrar um peixinho preto. Aquele peixe preto chama moreia. Ia vender ou ia trocar. Quando a maré enchesse, ia pescar siri, pegar aratu, quando nada, nada, ia tirar lambreta. Não sei se vocês conhecem a lambreta… Ticava a lambreta, tinha um facãozinho, metia aqui assim, tinha uma raiz, quando batia eu cavava, cavava, encontrava, ia pegando a lambreta, pegando “cró cró”, batia, batia, eu cavava, encontrava, pegava a lambreta, ia pegando e ajuntando. Amanhã acordava cedo e ia para maré, pra ter o que comer e dar ao seu filho. E ter pra trazer o marido de volta. Fiz o que quis. Daí, uma mulher ali em cima me deu o livro da Santa Catarina, da capa preta, para eu ler, para desfazer do que ele fazia, para ela seguir a viagem dela. Está entendendo? Ela tava trabalhando pra sogra da minha filha. Ela começava a fazer as coisas erradas. E me dando esse livro pra eu ler, desfazia do que Jerônimo tava fazendo pra mim. Eu gastei e gastei. Não teve dinheiro em caixa, não teve porco, não teve galinha, não teve feira, nada, acabou com tudo. Acabei com tudo e nada deu certo. Aí eu fiquei zerada, só com Deus. Aí eu dei pra viajar pra Muritiba, comprava uns peixinhos pra ir vender umas pescadinhas. Lá encontrei uma senhora do Rio, filha do finado Nezinho do Portão, Nezinho Cerqueira de Amorim. [Fala em outra língua] Encontrei. Aí ela me perguntou por ele, eu disse a ela que não existia mais ele. “Se eu gostava dele?” “Cadê meus filhos?” “Meus filhos estão em casa.” “Tem quantos?” “Um, e eu já estou com o princípio de outro.” “E você gosta?” Eu disse: “Eu gosto.” “E por que não traz ele?” “Como é que eu vou trazer ele?” Ela disse: “Você não tem pai de santo, não?” Eu disse: “Não. Tenho pai de santo, não.” “E você não quer que ele volte?” Eu disse: “Quero sim.” Ela disse: “Hoje é quarta. Sexta-feira você vem pra ir lá em casa.” Eu fui, mas quando eu cheguei na casa dela, sexta-feira tava em obrigação, ela tava de erê, não pôde me atender. Quando foi na outra quarta eu vim, voltei, aí vendi tudo, fui na casa dela. Ela me pediu umas coisas. Eu comprei e levei. Quando foi no dia seguinte, eu fui quarta, quinta, sexta. Ela me deu uma coisa que eu fazia, que eu fiz. Ela disse: “Olha, ele vai voltar. Você faça isso, acenda a isso, leve isso. Faça e espere, em três dias ele vai chegar.” Aí eu fui, fiz e fui pra feira. O Zézinho tava pequenininho, ia para o quarador – o quarador é onde o povo lava e deixa aqueles pedacinhos de sabão lá. Ponho o quarador, aqueles pedaços de sabão lá, de dona Társia e dona Raimunda, esfreguei na roupa do meu menino, botei no sol, fui para a rua. Esse horário assim, quando eu tô na rua, aí minha irmã disse, da Glória: “Aquele não é Zé que tá lá, não?” Eu disse: “É ele lá.” “Vá lá.” Eu digo: “Vou não. Ele que tem que vim.” Aí eu tinha ido no mercado aqui. Aí Tonho, que era um camarada que era muito colega dele, disse assim: “Ô dona, ô senhora, a senhora não tá vendo o Zé, não?” Eu disse: “Eu não.” “Ele já passou aqui duas vezes, ou três, a senhora não viu?” Eu disse: “Não vi, não”, como não tinha visto mesmo. Aí ele disse: “Vamos aqui, Tonho.” Aí eu saí com ele. Tava gordinha, agora não, que eu tô magra, tô velha. E saí. Quando eu chego lá, ele começou a conversar, pa pa pa, me chamou pra ir no Pereira. Eu disse: “Eu não vou no Pereira, não. Se levou tantos anos, eu não fui, não vou, não. Você faz o que você quiser.” Ele foi, fez compra de tudo. Eu vim para casa. Essa casa não era assim. Agradecendo a Deus, muito obrigado. Essa casa eu fiz esmola. Não tenho vergonha. Fiz esmola. Pegava o caderno, dava a uma pessoa. “Quem pede, pede chorando; quem dá, merece vontade. Triste daquele que pede com sua necessidade.” O povo assinava, me devolvia e pagava quando quisesse. Aí, quando ele cresceu, deu pra cair, não tinha firmeza. Disse que o pé não tinha cava. Tava aí o dinheiro que eu tirei, fez um papel assim, um envelope assim, tudo contado. Aí uma menina, uma professora que chama ______, de São Félix, disse assim: “Ô Célia, por que você não vai a Eduardo Macedo?” Eu disse: “Quem é Eduardo Macedo?” “Eduardo Macedo é o prefeito de São Félix na época. Vai que ele vai lhe dar a bota.” Eu fui para o doutor Walfredo em São Félix. Quando eu voltei, fui na casa do Walfredo. Aí ele disse: “A senhora não quer deixar, a senhora quer ir ou a senhora quer me dar? Amanhã é quarta-feira. Eu viajo todo dia. Se a senhora quiser e tiver confiança, eu levo, procuro saber lá quanto é a bota e trago para lhe dar a notícia.” Eu disse: “Então tá.” “Amanhã, às cinco e meia, a senhora vem aqui?” Aí eu esfreguei a roupa de Zézinho, joguei Zézinho por aqui no ombro, cinco horas andando daqui pra São Félix, andando e descansando, andando e descansando. Quando deu seis horas, que eu apertei a cigarra, começou a rezar, seis horas. Eduardo Macedo, Deus te dê descanso eterno, meu Deus! Abriu a porta, me entregou, eu botei pra chorar, e o meu menino, ele também. Aí ele ficou com essa bota. Esse dinheiro eu fui comprar. Um me dá um pau, outro me dá um pouquinho de telha. Foi assim. Envarou até com uma madeira, um pau que chama bambu de barro, agradecendo que não tinha nada disso. Aí veio melhorar depois que tive essas meninas. Ele voltou, veio viver, foi trabalhar na Brahma. O dinheiro que recebia da gestação é um dinheiro que tira das crianças quando tem neném. Aí peguei pra comprar uma peça, uma madeira, que não tinha uma panela, um fogão, não tinha nada. Tudo zerado, mas passei. E daí?
P/1 - É muito interessante essa história da casa, queria voltar logo quando você nasceu. Eu quero no dia que você nasce, você sabe qual foi a história do seu nascimento? Você nasceu em casa ou hospital? [intervenção]
R - Nasci no dia 21/10/1950, num lugar que é chamado Calolé. A parteira era a finada Santinha. Não existia hospital lá. Ela ia de porta em porta, na hora da dor, chamava ela vinha atender, cortar o umbigo, dava banho até cair o umbigo. Daí, cai o umbigo pra cá... A minha mãe é filha de um lugar que se chama Calembar, Kaonge, Dendê, Palma, gente da praia, esses lugares aí, que era a terra dos meus avós. Miguel Bode, ele era conhecido por “Miguel Bode”, e minha avó, ele tinha 3 mulheres, a minha avó verdadeira, que era Josefa, a mãe da minha mãe.
P/1 - E aí, você nasceu em casa por ela, né?
R - Por ela.
P/1 - Qual é a primeira coisa que você lembra assim da sua vida, sua primeira memória?
R - A minha primeira memória que eu lembro, eu lembro que eu tinha, acho que era 5 ou 4 anos. Papai mandou eu ir ali numa venda, comprar 50 centavos, um dinheiro de açúcar. Com uma calçolinha amarrada, eu ia chegar lá, pedia 50… “Me dê esse dinheiro de açúcar, 50…” Algum nome assim, você não era nascido. Minha primeira memória era essa.
P/1 - E o que você lembra dessa sua primeira infância assim, dos 4 ou 5 anos, como era sua vida, seu dia a dia?
R - Não. Meu dia a dia era que minha mãe saía pra maré e nós ficava em casa. Saía de noite pra maré, chegava assim, hoje é 6, 7 horas pra pegar aquele peixe, aquele siri, pra botar nas vasilhas, pra mandar trocar: A, B, C, D pra mandar um pouco de farinha, um pouquinho de açúcar, um pouquinho de sal. Não tinha cama pra dormir, não tinha lençol pra enrolar, não tinha dinheiro pra fazer feira. Meu pai morava num lugar que chamava Acutinga, pra esse lado aí tinha que pagar o governo um dia na semana você morava a vida toda, trabalhava, mas um dia na semana você tinha que pagar, chamava a renda, trabalhar pro governo, e papai não queria pagar. Aí saía daqui, ia para aqui. Dava um mês, 2 meses, 3 meses. Só ia mudando, ia mudando até que veio para aqui.
P/1 - E teve algum momento que você começou a acompanhar a sua mãe na maré?
R - O meu filho está vendo essa mão de calo aqui? Eu fui para a maré três vezes no dia, para trocar por um pé de aipim, batata, quebrava o milho, deixava ali a palha para pegar aqueles tambores de milho, passar para comer com marisco.
P/1 - O que vocês comiam no dia a dia?
R - Batata, aipim, dendê, quiabo cozido, nada. Tinha maxixe, bastante maxixe, cortava aquela maxixada lá, pegava o dendê, lavava o dendê, jogava dentro do maxixe com a hortelã, apimentador para comer. Não morreu, não ficou ninguém doente, não morreu ninguém.
P/1 - E você tinha irmãos?
R - Onze. Roque, eu, Maurício, Germânia, da Glória, das Virgens, Creonice, Roquebrina e a Natália. Está dando onze?
P/2 - Deu nove
R - Nove? Roque, eu, Maurício, Germânia, da Glória, das Virgens... A Natália. [intervenção]
P/1 - Mestra, você estava falando, você brincava com os seus irmãos?
R - Brincava, sim. Nós não tinha a casa de de junto de alguém para brincar não a brincadeira só em casa com os irmãos, fazer comidinha de terra. Nunca comi terra. Meus irmãos nunca se ousaram. A mãe ia para maré quando chegava ficava tratando peixe, catando siri, catando sururu para trocar com os vizinhos, para mandar levar aquilo ali, acolá, assim.
P/1 - Você lembra de algum dia, alguma história que aconteceu na maré, assim que você quer contar?
R - Na maré não aconteceu nada. Minha mãe saiu 5 horas da manhã, me deixou. Ou o rapaz, o vizinho podia ter seus 14 a 15 anos e ficou meio a bulir. Aí mamãe deixava amarradinho quando tinha: “Quem buliu aqui?” Aí nós tinha que dizer. Eu disse: “Foi o Carlos”. Aí mamãe foi na casa dele, saber dela, da mãe dele, mocinha. Mas Jorge, porque ela saiu para gerar a vida, para dar os filhos, e Carlos foi para lá bulir comigo. Aí ele, moça, chegou, moça, era mocinha, apedido, falou com o Jorge, que era o pai. O pai pegou para bater, ele bateu no pai. Ele morreu há pouco tempo aí. Não falo com ele, mas não aconteceu nada, graças a Deus. Nunca aconteceu com minha família nada, e na maré principalmente. Nunca aconteceu nada.
P/1 - Mas você lembra de algum momento feliz? Algum momento de alegria que você teve assim com seus irmãos na maré?
R - A mamãe quando viajava, trazia um peixe pra um, um pouquinho de um sururu. Cada hora trazia uma coisa, um sururu, uma ostra, um siri, um mirim para nós ficar ali dizendo que estava na casa de quem fez da maré. Eu digo, sou muito feliz. Vivi. Já passei muito altos e baixos. Quando eu tava no Curriachito, de 15 até 20 eu sofri muito. Mas hoje eu agradeço aquela vinda do meus 15 anos para o Curriachito trabalhar ali, aquela aquela vinda que eu levei 5 anos no Curriachito ali para minha faculdade. Não é tudo que os olhos veem que a boca pode falar.
P/1 - E nesse tempo, tem coisa que é segredo, mas o que que você pode contar desse tempo, do Curriachito?
R - Não é segredo, não. Que ela morreu, não destruiu, secou de tanta maldade, que hoje eu podia…. Eu estudei, quando eu ia pegar a comida do cachorro no Agostiniano Pontes, que não existe mais, aí quando eu subia, os meninos, vinha pra essa Sacramentina aqui, acolá, eu não sabia nada. Aí eu fiquei à vontade, aquela dor. Aí tem uma senhora que permaneceu, o Bendito, Eugênia. Aí eu falei com ela: “Eu queria estudar”. Aí ele disse assim: “KKKKKKKKKKKK. Olha, Joaninha, Celina quer estudar porque tá vindo…” - me chamava Celina - “Porque tá vendo ABC indo pro colégio estudar, a mãe dela de maré abaixo. Ela quer ir estudar, pra ir pro ginásio”. Eu tenho uma dor disso.
P/1 - Você queria estudar?
R - Que eu queria estudar, que minha mãe era da maré. Como é que eu podia estudar? Passou. Aí tinha uma moça que fez aniversário no dia 13 de março. Ela se chamava Máxima Santana. A mãe dela era bizu, a senhora velha. E ela dava uma ‘coleginha’ lá em casa. Aí eu falando com Daniel: “A dona Eugênia falou com Joaninha”. Ela passava, aí conversou. Aí eu fui eu, varria, lavava, história, fazia meus deveres tudo de noite para quando chegar, e eu não tinha tempo. História, ciência… Matemática, nunca me bati. Mas tinha um enfermeiro que chama Roque, trabalha no dia da sabatina ali, que ela dava ele para me bater. Ele nunca me bateu. Não batia de jeito nenhum. Ciência, história, tudo eu sabia de cor. Estudava hoje de noite para dar amanhã uma hora a ela quando chegasse no colégio. Aí eu estudei, estudei, estudei, estudei, acordei não sei quanto tempo, naqueles livros que ela me dava. Eu lembro, ela me aprontou. Ela foi lá na porta, número 12: “Joaninha, olha, eu vim entregar isso pra menina. Eu vim entregar pra menina, que você pode botar lá no estadual. A matrícula sem pena e sem medo, porque ela tá pronta. Não deixe perder essa menina, que menina boa”. A outra disse: “KKKKK. A mãe dela é do caranguejo de candomblé. Vai botar ela no estadual pra desfazer de Caboclo Sala e Alexandre?” Alexandre era ali, defronte à rodoviária. E o Texaco, que vende a gasolina, era de Caboclo Sala. Morreu, acabou com o Sala e morreu Alexandre, eu tô aqui em nome de Jesus e ela morreu. Não destruiu, secou.
P/1 - Mas eu não entendi aí o que que aconteceu desses 15 aos 20 anos, aí você conseguiu estudar?
R - Eu consegui. Não viu que a velha, a senhora, a professora, foi me levar em casa, levou ela, foi na porta dizer a ela que eu estava pronta, que ela me botasse no estadual, estadual é ginásio, que eu tava pronta, que não me perdesse, que eu era uma boa menina, uma memória boa.
P/1 - E como é que foi a escola nesse período?
R - Ela me aprontou, sai, acabou. Ester Brito disse a ela, disse a joaninha, elas duas. Ela ia me botar no estadual para desfazer de Caboclo Sala e Alexandre, que minha mãe não era casada e vivia da maré de candomblé. Eu não podia ir para o estadual. Eu tenho um impedimento.
P/1 - Ah, então você não conseguiu estudar nessa época?
R - Saí, saí. Se eu estudasse, eu estava formada, já tinha me formado, já estava aposentada trabalhando.
P/1 - Você ficou trabalhando na maré?
R - Foi. E fiquei trabalhando na maré, cavando peixe, pegando o siri, tirando o sururu, lambreta, um peixe, um binho e catando o siri. Tá ótimo.
P/1 - E você pode contar para mim como é que vocês conseguiam pegar o siri, a lambreta como é, como é que você?
R - Ô meu filho, pega assim, ó. Um facão, um farracho. Porque o facão, o novo é facão, o velho é farracho. Aqui é um pé de pau, um pé de mangue. Aí você pisa aqui, tem um furinhos assim, aí você pisa aqui, vê. _____ aí você começa a cavar, uns furinhos, quando você pisa, é do tamanho dessas moscas. Aí você cava, cava, cava, cava, vai pela raiz, aonde a água parar, você cava aqui, cava pra baixo de uma lama preta. Você cava aqui baixar, você vai cavando, cavando, cavando, vai encontrando, vai encontrando. Como você chegar aí no pé do pau aí, que você cavar em cima assim, cavar e jogar aquele paredão para baixo, você vê assim, você só vai pegando, pegando, pegando. Pega uns 30, 50 de lambreta. E o siri, a pessoa pega o gereré, hoje tem gereré, antigamente era puçá, mas arraiza na cordinha e jogava, quando começava a tremer, suspendia, pegava. E o mirim ia cavando, cavando, cavando, cavando, cavando, cavando, pegando e botando no coco, cavando, pegando, cavando, cavando, cavando, cavando, antes de terminar já tinha mirim. A ostra é no pé do pau, tirando e ajuntando. E quem não quer tirar no pau, mergulha abaixo. Eu não mergulho abaixo, pego aqui. Aqui ó, aqui é, Hum, Hum. Quando tivesse aqui cheia, subia para botar no balaio, aí trazia para ferventar para guardar, pra sábado vender na feria. Cada ostra, agora tá tudo pequititito, aí chama ostra de mergulho. O que você quer mais diga aí?
P/1 - Está bom saber. Você aprendia. Isso é observando ou ela ia te falando? Como é que você?
R - Quem falando?
P/1 - A sua mãe?
R - Mundial. Todo mundo, todo mundo convivia disso. Então de estar pequeno, estar vendo fazendo, vai fazer.
P/1 - E o candomblé? Você lembra a primeira vez que você viu o candomblé?
R - Assim me criei nesse candomblé. Mamãe vinha sábado, ia embora quarta-feira, vinha sábado, vinha terça, vinha sábado aí dessa roça. Não é tudo aí, tinha o que comer. Aí tinha a comida, aí tinha a boi e aí tinha bode, aí tinha a galinha, aí tinha muita comida. Toda comida a turma levava, carne de boi que vinha de um lugar que chama Conceição, farinha, feijão, a farinha vinha um saco, as carnes matavam os bois, salgava pra poder trazer, feijão do lado de Irecê, que eu não sei nem onde é. Eu vinha. Tinha muito filho de Santo lá, muita comida.
P/1 - Você lembra de alguma festa que foi marcante para você?
R - Ave Maria, ave Maria, meu filho, todas são marcantes. Ave Maria, ave Maria, [fala em outra língua] Não fala isso, não. Todas são meu filho.
P/1 - Mas assim você escolheu umas duas só pra contar pra gente como foi pra gente que não viveu nessa época, né? Como é que era a festa? Como é que era o candomblé?
R - Quando passava a vida toda, o ano todo. Quando era o dia 8 de dezembro, a caminho era estreito. Aí vinha a Nossa Senhora de lá, do lado da ali, do lado do escoar velho, no andor. Sabe quem andor? Vinha Nossa Senhora, dona Cosina enfeitava, botava Nossa Senhora enchia cheia de rosa, botava uma lampadazinha assim e subia aqui, 8 de dezembro. Aí quando a Nossa Senhora chegava, botava Nossa Senhora lá, dividia o bolo, o vinho, depois entrava no candomblé. Era a festa da casa, a festa de Iemanjá Sobá. Iemanjá [outra língua] ela minha mãe, a dona da casa. Era a Iemanjá, dona da casa, e a Iemanjá do homem, do pai de Santo que estava. E daí tem a festa, a primeira festa que vai ter aí agora é dia chuva, dia 14. Aí de Iemanjá, vem Ogum, vem Ogum, vem Xangô, Xangô. Vem aí de Congo, vem João Bala, vem todo mundo. Começa de Janot e Legbá Elegbara, aí são os exus. Aí vem Ogum, vem Iemanjá, vem Iemanjá, vem Ogum, vem Xangô, vem Oxumarê, vem Obaluaê e daí por diante. Hoje é sábado, hoje é Ogum. Pra semana, é outro, é outra festa, é outro Santo. Leva o mês todo, cada sábado é um Santo.
P/1 - E você, nessa época, já era interessada ou você só ia porque sua mãe ia?
R - Por minha mãe. Eu só fui depois que meu marido foi trabalhar. Não lhe falei aqui? A avó dessa menina que tomou meu marido para a tia dela. Já foi a avó e já foi a vó dela.
P/1 - Aí você foi por causa do marido, né?
R - Foi antes, antes estava nova. Estou com essa cara assim.
P/1 - E a coisa de rezar. Como foi que a senhora começou a rezar, benzer?
R - O tempo de Nossa Senhora, eu achei que ela ensinasse, daí não. Nossa Senhora… A moça se interessou em ensinar, mas essa reza que eu rezo, não… Assim o tempo ensina tudo, espinhela mesmo, peito, arca, não sei. Olhado, não sei, rezo e ave Maria, da onde eu boto a mão, não melhorar, não subir… Rezo com amor, com paixão. Aí rezo, se precisar um ebó, eu faço um ebó branco, um ebó vermelho, de verdura, um ebó de Exu, de cemitério, de maré, de estrada. Faço.
P/1 - Você lembra a primeira pessoa que você benzeu?
R - A primeira pessoa que eu benzi… A primeira pessoa que eu rezei… Eu acho que está muito pouco… A primeira pessoa que eu rezei, eu não sei se foi minha mãe ou se foi minha sobrinha ou se foi minha irmã que eu comecei. Não terminei o Caboclo que me pegou, não lembro.
P/1 - Conta essa história: você começou a benzer...
R - Tomou.
P/1 - E aí ele acabou a reza.
R - Aumentou. Porque aqui eu tenho o Sultão das Matas e algum do Tempo aí, mas eu tenho Iansã. Quando tá muito, muito, muito, muito, porque ele não… Aí o Tempo manda em Iansã tomar a frente. Aí ela toma, faz, sacode tudo, leva, bate pá, acontece. Porque eu mesmo, eu sou assim, eu sou essa aqui, o que que quer mais? Diga aí.
P/1 - Você contar um pouco como foi sua juventude.
R - Minha juventude aí, meu filho, foi tanto sofrimento. Mas hoje… Aí eu engravidei, engravidei, foi dois e eu não sabia. Depois foi uma, engravidei, foi duas meninas, ia pro hospital de manhã, de dia e de noite. O médico só me dava lasik, lasik, lasik. Aí fui para o médico. Quando chegou lá, Doutor Evandro, eu tinha que marcar uma perícia. Doutor Evandro não me dava nada. Mandou porventura, dar um galo a Ogum, o médico, doutor Evandro, que tem uma clínica aqui logo aí.
P/1 - Ele falou para você dar um galo para Ogum, o próprio médico?
R - O próprio médico. O doutor Evandro mandou ir porventura, dar um galo a Ogum. Eu vim embora. Fui para o doutor Everaldo. O doutor Everaldo disse que meu coração estava muito forte, podia trabalhar, “até logo meu filho”. Tudo bom. Quando chegamos aqui era chá de Melissa. Não podia ficar dessa casa, era tudo pequeno, tudo pequeno não podia ficar. Saia daqui de manhã para casa da vizinha ali na carreira, lá jogava um colchão mata marrom, chá de Melissa e Capim-Santo o Melissa. Quando tava na hora de menstruar, levava oito dias em cima da cama, cercada de travesseiro. Sabe o que é coberto de chenile? Uma que tem um umbigo assim ao redor. Aí ficava ali cercada e passando doutorzinho, né? Doutorzinho, era uma outra coisa. Aí nessa cama, nessa cama, nessa cama, a vizinha vinha e rezava. Esses filhos era tudo pequeno. Eu não sabia quem ia para o colégio, que comia, não sabia de nada. Aí minha irmã mandou, a menina Toinha ficar aqui. Toinha vinha lavar roupa, pentear a cabeça, tomar conta dele e fiquei aí. Mamãe veio aqui um dia: “Oxumaré é meu guia. Oxumaré!” Meu marido chegava e dizia assim: “Ô, Zé. Acende ali uma velha, passe aqui na minha cabeça, acenda ali pra Oxumaré”. Era a noite que eu peço para não dormir era pior, porque eu achava que ele podia fazer uma coisa a mim, ainda mais na minha cabeça, não podia. Aí eu fiquei nessa ruim, aí mamãe veio de manhã, disse: “Oh minha filha, Deus te dê o descanso eterno. Você não quer um mingauzinho, não? Como é que você fica de manhã? Não come nada, não bebe nada, só vai enfraquecendo”. Eu disse “mãe”. “Você não sente fome?” “Não, mãe”, “Você não quer um mingauzinho, de café?” “Não, digo não” “De Maizena?” “Não” “De mucilon?” “Não quero” “Não sei que eu digo mais”, “Não quero nada”, “Mesmo assim eu vou fazer um pouquinho” “Mas, não faça, não”, eu sentada na cama, chegava a fazer assim… “Eu não quero, não”. Aí ela veio pra cozinha, quando ela chegou ali na mesa e veio pro fogão fazer o mingau, eu pulei da cama. Eu estava assim na cama, mas abriu, eu fui no lugar, abriu uma coisa, que eu fui no lugar, quando eu fui, que eu botei a cabeça, o rosto no lugar que aquilo abriu, a dor de cabeça ficou lá até a data de hoje. Até a data de hoje, a dor ficou lá. Fico com a dor e a menstruação até a data de hoje. Crê meu filho? Aí passou, passou, passou, passou, passou, entra aqui, sai ali, entra aqui, sai ali, minha mãe morreu. Eu fiquei lutando com esses filhos, uma coisa e outra sozinha. Aí eu tô no lugar. Eu tive um sonho. Eu estava dormindo, tive um sonho, quando eu tive um sonho, aí eu acordei, não tomei nenhum banho, só quis abaixar na água, não tomei nenhum banho para ir contar a mamãe o que eu sonhei. Quando eu cheguei lá, aquilo trancou até a data de hoje. Eu vim saber 30 anos, foi o meu orunkó do meu santo. Você crê?
P/1 - Você teve um sonho?
R - Eu tive um sonho há muito tempo, minha mãe ainda era viva. Acordei para contar esse sonho à minha mãe. Eu não tinha feito o Santo ainda não. Já, já. Eu vim saber agora, depois que eu fiz o Santo, que é o nome do meu Santo.
P/1 - Ah, você viu no sonho o nome do Santo?
R - Do Santo. Acordei para ir contar à mamãe. Quando eu cheguei lá e disse: “Oh, mãe, um. [intervenção] Quando eu acordei me assustei para contar a ela, que eu cheguei e disse “Ô, mãe, ah viu…” Apagou.[intervenção]
R - Eu tive esse sonho, aí eu fiquei preocupada, o significado do sonho, que eu não sabia. Aí eu tava doente, passando mal, ela veio me dar mingau, aí eu morri e ressuscitei. Aí quando eu cheguei assim e disse: “Oh, mãe. Ouviu, mãe?” Ela disse: “O que, minha filha?” Acabou, sumiu, abriu o chão e entrou o que foi. Eu vim saber o que significava agora, é o nome do meu Santo, entendeu? Aí quando eu tive essas duas, dormi 72 horas, dormi 72 horas, mandei dona Marília, ave Maria, meu Deus! Doutor Zé Aldo cuidou de mim, fazer uma panela para eles dois comer. E tem mais, aquela que não foi, o que eu dormi 72 horas, e já no dia 11 de novembro sai do hospital, do dia 21 de dezembro. Parei, sai dia fechado, mas meu sofrimento foi para quem viu, não foi para mim não. Exu me segurou. Eu adoro Exu.
P/1 - Você podia contar alguma história que você teve com o Exu, as histórias que você já viveu com o Exu?
R - Ó, meu filho, eu dizendo a você que eu xinguei Zé Aldo mais dona Marília. Eu não quero nem um palavrão baixo… Como é? Baixo astral. Doutor Zé Aldo com a Marília, achei naquele hospital médico, aí falando… Quando eu tava. Aí o Zé Aldo deixou minha irmã segurando aqui, ia completar 72 horas. Eu tava acordando. Se eu quando acordasse e lembrasse de alguma coisa que não ia ter nada, e se eu não lembrasse que eu ia deixar não lembrar, eu tava morta. Aí quando levantei: “Cadê Zé Aldo”. Disse “isso, isso e isso”. Cadê dona Marília? “Essa, essa, essa, essa, essa, essa”. Aí perguntei a Davi: “Cadê minha a argola? Quem tirou da minha orelha?” “Foi dona Marília” “Pra que isso? Para que aquilo, que ela tirou a minha argola?” Aí botei para brigar e xingar: “Por que foi que ela tirou a minha argola? Eu quero minha argola”, porque eu alembrei. Aí me mudou de setor daqui para lá, fiquei lá no meio do povo, comendo, bebendo, dormindo, conversando. Quando eu vim mãe, eu sonhava. Eu aí fui no sonho, estava perto de completar 72 horas e eu disse a Davi de minha irmã. Ó, eu sonhei que aqui era um caminho, o caminho estreito, estreitinho assim, dava na roça, cheio de uma florzinha que chama mal me quer, um lado e outro, que Maurício veio aqui me ver. Quando me viu, botou para chorar, eu contando a David de minha irmã que Maurício foi me ver no hospital, quando chegou lá, me viu naquela situação, botou para chorar. Aí eu, ela me contando, aí eu disse: “Aquele, esse e esse é meu irmão”. Todo mundo veio ver, não chora, ele que veio chorar. Ele que vá para aqui, para ali, para acolá. Quando eu, que vim acordando, eu sonhava que tinha uma casa, uma casa assim, era assim, igual a essa, não tinha nem porta e nem teto, não tinha nem porta, nem teto, essa cuja tava. Aí eu saí aqui com candeeiro, sabe o que é candeeiro? Com o candeeiro tudo molhado e eu com a roupinha aqui, uma sainha aqui escorregando, escorregando, querendo subir, escorregando, eu rodando, querendo escorregar. Aí quando eu cheguei ali, aí eu olhei pro candeeiro e olhei pra cima, a Lua tava bonita, melhor do que o candeeiro, a luz da lua tava clareando mais do que o candeeiro. Eu já joguei o candeeiro fora, quando eu joguei o candeeiro fora, escorregando, escorregando. E fiquei com o clarão da lua. Um descarado de um safado de um Exu me deu um pontapé, que eu cai em São Félix. Falei que eu acordei, eu segurei a porta quando ele, a hora que ele me empurrou, me deu um pontapé. Ele se segurou assim e me empurrou e eu caí, foi que acordei, com 72 horas. Aí eu fui, aí fiquei. Quando eu tava vindo pra ceiar, tomei sangue, sangue de todo mundo, aí eu eu me empolei todo com sangue, aí me empolei toda, aí eu vim, aí ele disse: “Amanhã você venha”, que era segunda-feira, “aqui eu vim ligeiro, mas não posso poder lhe atender aqui, não tem nada aqui”. Aí segunda-feira, quando eu cheguei ali no mercado, não tem a descida do hospital? O carro parava ali. Quando o carro parou que eu fui desembarcando, o Exu não tava lá? Ele é pequeno, preto, com a cara toda marcada aqui assim, tudo cheio de facada. Nunca mais vi. Eu não tenho nada com o Exu, não. Adoro Exu. Ave Maria! [fala em outra língua] Exu é bom, Exu é bom.
P/1 - Esse chute quem te deu foi o próprio espírito do Exu?
R - Foi Exu, foi Exu.
P/1 - Foi Exu? Não foi ele incorporado em alguém?
R - Foi Exu. Foi Exu.
P/1 - O próprio Exu?
R - O Exu. O próprio Exu. Eu, quando tava grávida, um Exu me pediu no ____ dela uma coisa, eu com a barriga grande, conversando com a vizinha, ela disse: “Você diga a ele que você não pode fazer nada agora, que você tá grávida, tá com corpo aberto. Quando você ter seu filho, você dá o que ele pediu”. Ele não esperou. Eu acabei de parir, do hospital não saí. Eu não saí do hospital no dia 11 de novembro, saí do hospital no dia 21 de dezembro.
P/1 - Porque não deu a coisa a Exu, né?
R - Não dei a coisa nem para dela, mas eu tava parida... Ele me deu um pontapé, eu caí lá. Foi a hora que eu acordei, muito obrigado. Eu não deixo, não falta, mas se for de faltar, eu quero que falte no quilo de farinha, mas não quero que falte uma vela de Exu e nem de meu Santo. E não falte farinha pra fazer uma farofinha. Exu cuida de mim eu tenho que cuidar de Exu.
P/1 - Você ficou 72 horas assim dormindo?
R - Não vi, não sei. Nem comer, nem beber. Eu tomava um soro, um sangue e uma outra coisa amarela por aqui, ó. Zé Alves não achou veia, só achou aqui, furou aqui, ó. Aqui tinha 3 coisas, um parecendo que era… Querendo ser amarelinho, o outro era o sangue e o outro era o soro aqui. E já vai fazer 40 as mulher, já. Vai fazer quarenta anos as duas.
P/1 - Você já teve alguma história de alguém tentar te matar?
R - Só isso? História, não. A mulher veio aqui na porta dizer a mamãe, dizer a mamãe que mamãe ia botar muita lágrima quando me visse morta, que eu ia morrer de parto. Eu comprei bloco, não ia botar na parede, que Oxalá não permitia. Uma chamava Lourde Café, uma Mãe de Santo que morava aqui em cima. Pergunte pra saber quem é Lourde café aí que você acha. Uma mulher que chama Lourde Café, filha de Oxalá. Mas eu não conhecia esse Pai de Santo do Portão. Não sabia quem era. Aí eu tô assim e veio aquele homem sarará alto, disse assim: “Se não me conhece não, sinhá sacana?”, o Nezinho. Aí eu fiz assim, abaixei a vista assim e disse: “Não” “Você não tá me conhecendo, não? Eu me chamo Nezinho Siqueira de Amorim. Vá e diga a Lourdes, que eu não ensinei esse detalhe a ela. Ela bata a cabeça e lhe tome a bênção”. Aí eu fui, bati a mão: “A bença, meu pai” “Ogum que lhe abençoe. Diga a ela para lhe botar aquela conta no seu pescoço”. Mas a conta que eu enxergava não era, é azul, é vermelho e branca, a de Oxalá. Aí eu acordei, falei com a mamãe, mamãe disse: “Vamos na casa da finada Zélia”. Aí nós foi lá na onde vendia lá, no escoar velho, não achou, só achou essa. Essa aí mamãe comprou. Essa conta tem mais de 50 anos aqui. Era grande, quebrou e emendei com umas umas aqui. Só ali naquela feira ali. O que é que você acha daquela feira? Aquela feira ali? Eu acho amalá, acho vela, acho pimenta, acho acaçá, acho o pombo. Você quer meu filho? O homem, acho que tem um ano lá, pegou um bocado de pombo, botou no porte e botou ali, ajeitou. A menina, no horário, saiu para ir embora, bateu e quase quebra. Uma branquinha que vende assim para lá. Mas nada me amedronta. Só tenho medo de vem de cima, o que vem de baixo não me atinge. Só faço entregar o tempo da morunganga. Ah, você crê? Aquela mulher tem um ódio de mim. Você não sabe, além dela casou com meu irmão, colocou no meu irmão e ainda tem ciúme de mim, e diz que é crente. [intervenção]
P/1 - Aí você contou essa história. Teve também uma que a senhora me contou que o rapaz veio com uma faca aqui.
R - O marido da minha irmã. Ele não veio aqui, eu fui lá, ele tava com uma peixeira, foi essa? A minha irmã já faleceu, morava lá na 62, lá depois do quiosque. Aí casou, mas a história dele acho que era outra, ela não sabia. Aí nós foi na delegacia, que eu passei uma certa ____ aí eu fui lá no pinto, encontrei ele com o senhor _____, falei pra ela, aí ele pegou a casa, vendeu, mas não era pra ter… Vendeu. Aí mais não participou a ela e ele era casado com ela. Aí um dia eu tô aqui. Quando deu assim umas 5 e meia para 6 horas aqui, ele me... Eu disse: “O que é isso, o que tá acontecendo? O que que ocorre? O que é isso?” Aí eu peguei um pano, amarrei na cabeça, saí. Quando eu cheguei lá, a porta tá aberta e eles dentro de casa, ela assim no canto do parede, ele assim com a peixeira. Eu não sei nem o que que ele falava. Eu entrei já tremendo, não sei. Tremendo, tremendo, tremendo. E ele assim, num canto assim aperreado, ele com a faca, falando com ela uma coisa que eu não vou dizer, que eu não ouvi o que ele tava falando. Tava tão coisa que eu ouvi. Eu olhei pra ele assim e disse: “Fulano, o que é isso, Ciro? Ciro, joga essa faca fora, isso não presta. Faca é pra cozinha, porque você tá em cima da minha irmã com essa faca? Você não é matador, você não é assassino”. Aí quando ele disse assim, eu peguei na folha da faca. Quando eu peguei a faca, pisei no pé dele, e sorte, sorte, sorte, largou a faca, uma peixeira assim. Peguei a faca e subi. Aí disse a ela: “Ele vendeu a casa? Você não tinha conhecimento da casa. Agora quem comprar, vai ter que assinar. Você não vai assinar para vender”. Uma cunhada de uma que mora aí fica assim…. Aí na sexta-feira ela foi pra feira como a manhã, quando ela chegou lá no fórum, aí ficou um do lado do fórum, pegar ela pra chegar. Eu tô na pia… De um lado é o fuxiqueiro. Aí quando eu saio da pia: “O que é isso aí que está acontecendo? O que está acontecendo aí?” Troquei a roupa, fui na feira. Chegou lá, a banca dela, não era sete horas ainda, arrumada de tudo coberto. Eu perguntei à outra: “Onde ela tá?” Aí eu fiquei lá até aquela hora. Pouco ela veio: “Tava onde, menina?” “O rapaz do fórum que veio me pegar aqui, que Ciro venceu a casa” “Vendeu por quê? Não lhe participou _____ ninguém dentro de casa” “Falou não” “Você assinou?” “Não” “Você assinou?” “Não” “Você disse o quê?” “Veio um aqui pra marcar uma data para trazer o dinheiro para dar a parte dele” “Vendeu por quanto?” “Por cinco mil. Dois contos e quinze pra cada”. Aí eu fui no banco na casa de empréstimo, no dia 17 de novembro, de abril eu tomei esse dinheiro, me pagaram, eu saí daqui uns cinco e meia pras seis horas fui levar ela. Pra no dia 18 para ela levar lá no fórum. Confere?
P/1 - Você já teve problema assim com crente? Desfazer de você por causa da sua religião ou alguma coisa questão desse tipo de preconceito.
R - Eu tive um problema. Eu tive e não tive. Que eu tava vindo… Porque a pessoa, quando está em obrigação, tem uma determinação de ficar lá e tem outra determinação de vir embora. Aí eu ficava lá. Quando acabou a de ficar lá, eu dava pra vim de manhã, essa hora eu subia ali. Quando era ali na rua da feira, as meninas veio, umas me pegando: “Para aqui”. Aí eu me aborreci, não teve nada. Eu disse a elas que elas me respeitassem o quanto eu respeitava elas, que cada qual come do que gosta. Que eu tava na minha religião, não tava desfazendo da dela, e nem a minha religião pedia nada dela. Que a minha festa e as minhas obrigações ia ser sábado, se ela podia fazer o favor de me acompanhar. Nunca mais elas vieram. Também acabou. Coisa pouca.
P/1 - Você pode contar um pouquinho de como foi sua feitura?
P/2 - Quando a gente faz a cabeça?
P/1 - Faz iniciação.
P/2 - Iniciação, é.
R - A iniciação não foi em pé, eu bolei, eu caí e minhas irmãs caiu por cima. Eu tive caída, aí teve que o Sandro não quis mais ser cabeludo, raspou com a navalha. Fiquei o dia no orunkó. Vim, passei o dia seguinte, fui pro salão. O Santo gritou o nome dele no salão para Deus e o mundo ver. Não foi feito no quarto, nem atrás da porta. O Sandro gritou orunkó dele para Deus e o mundo ver. Aí fiquei lá, fiquei lá, fiquei lá, fiquei lá. Quando deu 3 horas, quando deu 3 meses, aí eu fiquei vindo e voltando até o dia que eu vim. Eu fui em junho, saí de lá no dia 3 de novembro do próximo ano.
P/1 - Ficou um ano e meio, no mesmo ano, junho, você saiu em novembro do outro ano?
R - 3 de novembro eu vim-me embora, todo mundo é assim.
P/1 - Todo mundo é assim, e aí lá dentro tem uma parte que é segredo, que a pessoa não pode contar de jeito nenhum.
R - Aí é fundamento.
P/1 - Mas o que não é segredo, o que você pode contar?
R - Comer, beber, dormir, sentar no chão, dormir na esteira. Não existe segredo, existe esse tipo de coisa.
P/1 - Mas você tem contato com alguém ou fica sozinha?
R - Com os irmãos. A casa em peso. A casa tem as irmãs. Eu mesmo, meu _____ foi de quatro. _______ quatro. E aí, a vida continua.
P/1 - E quem que foi sua mãe de santo?
R - Baratinha, Lúcia… Aquela menina… Como é? Baratinha, Lúcia, Kátia, Elisa.
P/1 - E pegando dona Baratinha, por exemplo, qual que você você vê que foi o principal ensinamento que ela te deu na em vida?
R - Ô, meu filho. [outra língua] Que Deus dê o descanso eterno a ela. O que eu sou hoje, agradeço a ela. O que eu sou hoje, o saber, se eu tenho o saber, agradeço a ela. A minha mãe Baratinha de Oxum que [outra língua] dê o descanso eterno a ela. E a mãe Lúcia, todas elas, Kátia, Ilda, Elisa. Que Deus dê o descanso a elas tudo. Ela e Baratinha. Saúde a mãe Lúcia, misericórdia. Que Oxaguiã jogue o alá. É fundamento, meu filho. Não tem uma casa aberta que eu não quero. Eu não quero, não.
P/1 - Mas você lembra de algum momento que você teve com a com a dona Baratinha assim que você podia compartilhar assim alguma história, algum dia, algo especial que você viveu com ela?
R - Tive. Tudo também que tudo isso que eu sei, tudo que eu aprendi. Ela disse: “Ô sinhá sacana venha cá. Sua mãe, que ela ensinou fazer um ebó?”. Eu disse: “Não”, ela disse: “Por que ela não lhe ensinou? Um ebó é assim, assim. assim. E o ebó branco é o mais caro que tem, é o de Egun. É o mais caro que tem. Nunca faça de graça”, entende? Ele entende? É o mais caro. “Nunca faça de graça e nunca faça pelo preço de Eu”. Eu bati a cabeça. Eu fui daqui umas 5 horas da manhã no Rosarinho, ver Mãe Lúcia que tava lá. Chegou lá, Mãe Lúcia tinha descido de noite, eu abri a porta, entrei, tava encostada, entrei, ela tava assim no sofá. Aí eu fui, bati a cabeça, dei a benção a ela, entreguei o que eu levei, que era de Mãe Lúcia, entreguei ela, e ela começou a comer, lembro como hoje. E aí ela ficou conversando, conversando, ela me disse: “Venha cá, o que foi que você ela ensinou fazer? Ela preparou o ebó pra você fazer?” “O ebó que ela preparou foi mandar eu passar umas coisas em junho”, é o _____ de Mãe Lúcia. Eu comecei a fazer e não terminei. Ela disse: “Foi?” “Foi” “Cabô”. Mas Mãe Baratinha ensinou tudo. E quando eu fico assim ela disse: “Você vai ser muito feliz. Vai ter dia e hora que seu Santo vim aqui lhe ensinar as coisas” “E é?” Cada uma maldade, eu que não gosto de fazer.
P/1 - Pegando assim todo o conhecimento que você tem, né? Qual que você lembra que foi um caso difícil mesmo de você resolver? Você lembra algum assim que nossa, esse foi?
R - Eu lembro, eu lembro, eu lembro. Eu fiz, mas não posso devolver. Não posso passar, porque eu tive efeito e não demorou, não teve. Será que eu vou fazer uma coisa assim, aí diz assim: “Não faz, não”. Quantas vezes que eu vou para fazer uma coisa aqui, “não faz, não”. Aí eu vou para lá. Aí quando eu vim, já vou fazer outra coisa, eu esqueci, mas eu já fui lá, já fui lá, já fui. Vou a qualquer hora, mas já tô assim, não qualquer hora.
P/1 - A qualquer hora onde?
R - Aonde necessitar. [intervenção]
P/1 - Eu queria saber como foi que a senhora aprendeu a mexer com planta, garrafada, banho, chá?
R - Não tem saber, não. A garrafa de parede já sabe o que: losna, peja, arruda, assafé, óleo de rícino, um pouco de cachaça, um pouco de pó de café. Se ela estiver com resguardo quebrado, o parto vai descer, certo? E outras coisas mais. Aí você tá uma pessoa tá aí, você quer fazer um xarope? Você vai na rua, compra todas as folhas, amarro, compra folha [intervenção] Você vai na feira, compra folha, chega bota na panelona no fogo com bastante…Bota bosta de boi, bota o que você queira, aroeira, rícino, tapete, isso, aquilo, bota pra ferver. Ferve, ferve, ferve… Aroeira. Depois você coa no aropemba, no escorredor. Bota no fogo, mel, açucar. Ali fica fervendo, fervendo até diminuir. Entre casca de aroeira, entre casca de murumbu. Isso, aquilo, aquilo, aquilo. Conforme você bota, se for de cinco litros, se for de 4 l, se for de 2 l de açúcar de mel, você bota 5 kg, bota 3 kg, bota 4 kg. Se você for fazer um purgante, se depender de você, de pai, você vai se limpar, se limpar, vai torrar para botar numa colher de sopa, dá menina para ela beber, para botar o que ela comeu para fora. Entendeu? Se for macho, sua mulher que vai fazer isso, vai botar. Se você tiver constipado, se tiver com alguma coisa, vaporado, seus dedos ficam deste tamanho, seco assim, uma dor aqui respondendo cá nas costas, o processo é quase esse. Aí deixa dar o ponto. Aí, você tiver uma pessoa, você vai acordar cedo, umas 5 horas, vai assim na fonte, no rio corrente, quando você chegar assim que abaixar a cabeça, a primeira pedra que você pegar, você trás. A primeira pedra, você traz essa pedra, chega aqui, bota ela ali no fogo.. Quando ela tiver vermelha, você bota ela dentro da água, aí tira ela. Aquela água, você bota o valor de açúcar que dê pra fazer o xarope, pra pessoa ficar tomando aquele xarope pra poder botar aquilo que tá no pulmão pra fora. Botar pra fora. É. Se você se quebrar, um quebrar. [intervenção] Você ou ele tiver quebrado, pega uma folha de banana, pega assim, ó… Aqui é o pênis, pega uma folha de banana, enrola aqui, enrolou o pênis, Rezou, rezou, rezou, rezou… [intervenção] Você reza aqui e depois que rezar, amarra aqui no meio a palha. Pendura ali no fogo, na fumaça. Quando a fumaça secar essa folha, a pessoa está curada já. Confere? Você não sabia dessa. Aí reza: “Pênis desmentido quebrado”. Então, aí a pessoa reza, oferece. Pronto, está pronto. E aí, mais o que? Diga aí.
P/1 - Essa eu queria saber, como é que você aprendeu esses procedimentos?
R - Eu não sei, meu filho. O tempo.
P/1 - O tempo. Mas foi de olhar, foi na própria intuição?
R - Na intuição.
P/1 - Na intuição.
R - Essa reza mesmo de pênis, pelo amor de Deus, essa reza de pênis quem que pode estar… Amarrou meu filho, não é? Como é que pode estar com pênis na mão com a folha para estar rezando? É graça? É graça? Não é graça, não. É graça, não. Muitas vezes vai no médico e o médico não dá jeito. Uma pessoa ____ o pé. Vai, engessa, engessa, engessa, tira e bota, tira e bota. Se não pisar, não sara. Tem que pisar, puxar… A espinhela caída, as espinhelas caídas, a pessoa fica com uma dor nas costas e quando está passado, não aguenta nem engolir um gole de água. Não pode pegar 1 kg e está doendo, quando reza, reza, reza a arca, peito, a espinhela, num instante recupera. Se Deus deixou essa reza, se essa reza é de Deus, Ele que deixou no mundo, como é que não existe, né?
P/1 - Interessante isso. Você lembra de alguma história, de alguma cura que você fez com você? Lembra de alguma cura que você já fez? Já viu com essas, com esses?
R - Minha irmã trabalha em Muritiba. Eu não trabalho, não com isso. Tinha um rapaz, rapaz alto, forte, trabalhava com negócio de trabalho assim, de ajeitar os trabalhos para mandar você ir outro trabalhar. Tem o nome, né? Tem o nome dele. Aí ocorreu uma coisa aí que eu não sei. Aí o irmão dele, o parente dele, falou com minha irmã. Minha irmã disse a ele que eu rezava, ele disse que vinha aqui, que vinha aqui, vinha aqui. Eu fiquei 3 sábados, 3 domingos em jejum até 9 horas, esperando ele chegar, não chegou. Mas ele morava muito longe, não tinha dinheiro para pagar carro e ele não aguentava montar na moto. Aí ficou, ficou, ficou, ficou, ficou… O homem já tava preto. Aí ela me trouxe aí de manhã cedo, eu tô aí fora. Chegou 3 na moto, um dirigindo, ele no meio, o outro atrás segurando ele. Aí chegou, eu fui para casa de seu Cosme. Cheguei lá de manhã, eram antes de 6 horas, rezei ele, fiz o que eu tinha que ser feito fazer. Aí preparei tudo, deu uma coisa a ele para botar de costas e ajeitei tudo. O homem tava mais do que esse seu que saiu, esse rapaz. E foi bom que o médico aposentou. O médico disse que ele tava tuberculoso, isolou ele. Mas quando ele saiu daqui, na outra semana, aposentou. Me pagou, ele não aguentava, ele veio de lá de um lugar que eu não sei onde, veio de moto com 3 dirigindo, um dirigindo, um segurando ele. Para vim aqui foi a máxima dificuldade. Pra ele vir por aqui era melhor do que vir por aqui, que aqui ainda tinha um buraco, aqui não era assim. Quando você veio aqui daquela vez tava assim? Não tava. Aí levei na casa de seu Cosme com aquela dificuldade toda. Aí eu levei na casa de mãe Lúcia, ainda levei. O primeiro dinheiro que eu ganhei. Aí levei, fui lá e joguei lá no pé dela, agradecendo a Deus, Exu _____. Eu joguei lá no pé dela, aqui está o Santo, ela estava aqui, joguei lá, bati para Obaó, não levou meia hora. 8 horas ele foi embora, ainda deu o menor, dei coisa, deu as coisas para ele beber aí. Confere?
P/1 - Mestra, a gente já tá meio caminhando. Você tem alguma história que você quer contar sobre a feira? Como quer o seu trabalho na feira?
R - Que a feira não está prestando mais. Eu comecei na feira onde era o Correio. O Correio é o mercado da farinha. A feira é ali, naquela pracinha ali: maxixe, quiabo, abóbora, caranguejo, siri eu vendia ali, naquele Pau Brasil ali da frente o… Aquilo ali era do animal ali. Ali eu comecei a vender que tinha 10 para 11 anos, eu vinha mais papai. Papai tinha um boi, que chamava Invejoso, vinha para vender. Já conheço Cachoeira. Teve uma enchente que eu vendi aqui na porta da igreja, não tem a igrejinha aqui? Já vendi ali, já fui lá na porta do cemitério, no escoar velho ia vender. Já dobrei ali a pitanga, dobrei ali, onde tem a feira, tem uma igreja que chama a Igreja do Passarinho, ali não tem um homem mercado, ali naquele lago onde tem barraca e tem a igreja assim? Ali, vendia ali tudo. Já vendi lá no escoar velho. Na porta do obreiro do bem. Sabe onde é o Obreiro do Bem? Sabe? Subindo a rua lá em cima, descendo o ______ naquela praça, aquele jardim ali. E antigamente vendia, tinha muita, muita verdade. Hoje não tem, não. A população cresceu e a verdade diminuiu.
P/1 - E porque você acha que a população cresceu, a verdade diminuiu?
R - Porque tem mais gente. E antigamente era dinheiro aquele Cruzeiro, Cruzeiro, Cruzeiro, Cruzeiro, acho que tem 30 anos, tem 31, tem 30 ou 31 de real, não é isso? Então era Cruzeiro, vinha surubim, tinha siri. Não tinha siri, cataram. Só tinha ostra e sururu. Para você querer sururu, você tinha que comprar para catar em casa. Siri, você queria comer, você comprava o siri para catar e hoje tem peixe, tem isso e aquilo tem muita comida. Tem muita gente, não tem dinheiro.
P/1 - Você notou alguma diferença na maré de quando você era criança para a maré de hoje? Você sente que muda essa coisa do meio ambiente. Desmatou, mudou alguma coisa? Diminuiu?
R - Não, eu não acho que diminuiu nem acrescentou. Não desmatou, não. Agora que multiplicou, porque antigamente era desmatado, tirava madeira para fazer casa, fazia enchimento, aquela varinha, tirava a casa, tirava a travessa. Hoje não. Antigamente tinha caranguejo magro e gordo. Hoje, a hora que você pegou o caranguejo está gordo porque cortava o mangue, os bichos não tinham o que comer, um caranguejo, os siris vivem de fruto. O caranguejo bota uma semente, o caranguejo come, vai tudo. E hoje não tem mais. Quem vai cortar mangue? Quem tá maluco de tirar uma vara no mangue? Não pode tirar, não. Tudo que tinha ontem, tem hoje. Tinha uma moreia, tinha a tainha, tinha o mirim, tinha o robalo, tinha um merete, tem uma pescada, o acarapeba, o xangó, a petitinga. Não mudou nada, continua sendo a mesma coisa, a mesma coisa continua. Agora cada qual com o seu cada qual. Quem que quer ir para maré, para mosquito morde aqui, morde aqui, passando gás, querosene com óleo, um pouquinho de azeite para o mosquito não morder. Antigamente era assim, hoje não. Quem é que… Muitos estão procurando uma coisa aí gostoso, vai ficar na maré de noite, todo deitadinho enroladinho vai para maré de noite? Quem quer botar uma camboa para ir para dentro da lama de noite, cercar para esperar a maré vazar para pegar? Eu já fui numa camboa lá no viradouro. O rapaz, Valzinho, botou a camboa. Quando chegou era para suspender agora a boca de noite. Engoli engoli engoli. Eu tinha Edinho e Dedé sozinho. Aí a mãe dele mandou me chamar, aí eu fui, que era para ir meio dia suspender a camboa lá no viradouro. Eu fui. Não tem o pé da manga? Quem vai daqui, cortou, ali tinha manga, tinha eucalipto, tinha tudo. O peixe, a maré já tinha ido embora aqui ficou um poço. O peixe está tudo assim, a “naguejando” com os olhos vermelhos para lá e para cá. Aí Edinho deixou, acabou com a canoa assim, chegou mais cedo, botou a canoa assim e eu fiquei com o jeré, enchendo e jogando a canoa, botando uma força, enchendo a canoa. Pegou 2 sacos de peixe e o resto nós veio embora, deixou lá, que era tarde. Muito tilápia. Muito. Quem é que pesca aqui? Quem que você vê pescar? Ninguém, ninguém aqui. ____ você vê pegar siri. Nunca mais, minha canoa acabou. Eu com essas pernas assim. Ali foi o ferrolho da porta, o ferro que bateu ali enferrujado, eu tomei tetânica, mas agora aqui. Mas estou agradecendo. 250 pro médico consultar, mas eu estou agradecendo. Ele me pediu para eu não fumar porque a fumaça, a circulação daqui… [intervenção] Ah, então. Não tem nada aí, tem ninguém. Quem que vai entrar aí dentro para pegar a moreia? Eu não vou pegar a moreia, porque eu estou assim. Da casa de uma moreia, tem um buraco raso, ó. Dentro do pneu, quando faz assim, eu peguei 3 moreia. Parece que é mentira, 3 moreias do pneu. Quando eu cheguei, fiz assim, pa pa pa. Tem um rapaz que vem de lá, de um lugar, aí ele vem. A mulher dele tava grávida, ele queria uma moreia, mas não sabia onde achar. Perguntei, o parceiro perguntou, eu disse: “Essa maré é assim mesmo. Tem um lugar lá que eu vou ver, eu se achar, eu trago” Aí com a minha menina de manhã, eu fui umas 5 horas o dia clareando, quando chegou lá eu tirei treze… Doze moreias num pneu. Aí andei pra frente, fechei o buraco, tirei uma, com outra, formou 13 e uma corda desse tamanho. Eu não como ele, mas tem tudo. Quem que vai cavar mirim aí? Ninguém cava mirim. Teve ostra, aí eu tirei. A ostra ficava assim de gente, tirei ostra aí. Siri, sururu, tudo dá aí, mas lá embaixo é salgado o povo baixo vai e aqui é o lugar mais, não tinha a quantidade de gente que tem lá, então fica assim. O que você quer mais?
P/1 - Tem alguma história da sua vida que você não contou e você quer deixar registrado?
R - Não, meu filho. A minha vida é um jornal aberto. Minha vida é um livro aberto. Minha vida é esse sol clareando, e é o clarão do Sol. É o jornal, o livro aberto. Nunca matei, nunca roubei, nunca desonrei, nunca fiz mal a ninguém. Nunca matei ninguém de parto. Ave Maria. Ave Maria, meu Deus!
P/1 - Mas você é parteira também?
R - Pego, só não faço cortar. Tenho pena de cortar, mas pego. Sei rezar. Se tiver de buço ou tiver virado, eu desviro, rezo. Se ter demorar a despachar, eu vou rezar para despachar. Pra placenta vir com o menino, porque muitas vezes o menino vem e a placenta demora de vim. Aí tem que rezar, fazer o pormenor para pra placenta sair, para descarregar a mãe.
P/1 - Mestra, é isso. O que você achou de contar um pouco da sua história hoje?
R - Muito bom achei. Lembrar dos meus passados, lembrar de lá do Calembá, do Kaonge, do Dendê, dá o Palma, daquele lado de lá que são o meu povo. Que reina Iansã, com Obaluaiyê e Ogum, dono da frente: Ogum com Iansã, Iemanjá e Nanã. São os donos de lá, são donos da tribo das águas, da lama. São donos. Agora a pessoa me coisa, eu não digo nada. Não bato boca, não digo, não. Acendo uma vela. Se me provocar, eu não digo nada. Não digo, não. Não digo, nem faço. Eu só faço entregar o tempo. Não demora eu ver. Eu não queria ser assim, eu não sou assim, é um dom que vem de mim. É um dom.
P/1 - Você pode fazer uma oração pra gente fechar, uma reza?
R - Reza como?
P/1 - Qualquer uma, pra gente fechar.
R - “Meu Santo justo corpo de Deus, pelo sangue de Cristo, valei-me, meu Deus. Meu Santo lenho da Cruz, que anda diante de mim, firme nela morreu, que fale e responda por mim”. Está bom?
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