IDENTIFICAÇÃO Carlos Cotia Barreto. Eu nasci em Volta Redonda, Estado do Rio, em 22 de fevereiro de 1951. FAMÍLIA / PAIS Meu pai é Humberto Rea Barreto e a minha mãe é Elza Maria Barreto. Minha avó paterna é Carmela, que era espanhola. Do meu avô paterno eu não me lembro, ele ficou na Espanha e não lembro o nome dele. E os maternos são Edgar e Georgina. Meu pai foi, talvez, um dos primeiros operários do Brasil, que trabalhou na Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda – primeira usina de aço do Brasil, naquela história do Getúlio com a guerra. Minha mãe era dona de casa. Meus avós, eu acho que ambos – materno e paterno – eram comerciantes. Na realidade, os avós paternos vieram quando começou o franquismo na Espanha e a guerra civil. Meu avô veio – ele mexia com tabaco, charuto, essas coisas nas Ilhas Canárias –, trouxe a família, deixou a família aqui, voltou para a Espanha e sempre morou lá. Num determinado período, melhorou a situação política, aí ele levou a família de volta. Meu pai já havia nascido aqui, minha tia também, a irmã dele. Eles moraram um tempo na Espanha, aí a coisa recrudesceu de novo, ele voltou, trouxe a família de volta para o Brasil e ficaram todos aqui e ele lá. Ele voltou. E lá ele morreu e a família acabou ficando aqui. Meu pai, na época, devia ter uns 15 anos, eu acho. Já ficou toda a família aqui. Em casa, nós somos cinco filhos, uma mulher e quatro homens. Eu sou o mais velho. INFÂNCIA EM VOLTA REDONDA Morei em Volta Redonda até os 15, 16 anos. A Siderúrgica foi construída pelos americanos – não sei se vocês conhecem Volta Redonda – então é uma cidade que é um modelo de cidade americana, exatamente aquele modelo, com casa sem muro. Vocês conhecem Volta Redonda? É muito interessante isso, até para registrar. Trouxeram para cá para o Brasil o modelo de cidade americana. Inclusive os bairros são de acordo com a...
Continuar leituraIDENTIFICAÇÃO Carlos Cotia Barreto. Eu nasci em Volta Redonda, Estado do Rio, em 22 de fevereiro de 1951. FAMÍLIA / PAIS Meu pai é Humberto Rea Barreto e a minha mãe é Elza Maria Barreto. Minha avó paterna é Carmela, que era espanhola. Do meu avô paterno eu não me lembro, ele ficou na Espanha e não lembro o nome dele. E os maternos são Edgar e Georgina. Meu pai foi, talvez, um dos primeiros operários do Brasil, que trabalhou na Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda – primeira usina de aço do Brasil, naquela história do Getúlio com a guerra. Minha mãe era dona de casa. Meus avós, eu acho que ambos – materno e paterno – eram comerciantes. Na realidade, os avós paternos vieram quando começou o franquismo na Espanha e a guerra civil. Meu avô veio – ele mexia com tabaco, charuto, essas coisas nas Ilhas Canárias –, trouxe a família, deixou a família aqui, voltou para a Espanha e sempre morou lá. Num determinado período, melhorou a situação política, aí ele levou a família de volta. Meu pai já havia nascido aqui, minha tia também, a irmã dele. Eles moraram um tempo na Espanha, aí a coisa recrudesceu de novo, ele voltou, trouxe a família de volta para o Brasil e ficaram todos aqui e ele lá. Ele voltou. E lá ele morreu e a família acabou ficando aqui. Meu pai, na época, devia ter uns 15 anos, eu acho. Já ficou toda a família aqui. Em casa, nós somos cinco filhos, uma mulher e quatro homens. Eu sou o mais velho. INFÂNCIA EM VOLTA REDONDA Morei em Volta Redonda até os 15, 16 anos. A Siderúrgica foi construída pelos americanos – não sei se vocês conhecem Volta Redonda – então é uma cidade que é um modelo de cidade americana, exatamente aquele modelo, com casa sem muro. Vocês conhecem Volta Redonda? É muito interessante isso, até para registrar. Trouxeram para cá para o Brasil o modelo de cidade americana. Inclusive os bairros são de acordo com a posição social do trabalhador dentro da Empresa. É interessante isso. As casas dependem disso. Mas são naquele padrão americano: são casas sem muro, com jardim na frente, muito legal aquilo. Então, a infância, que eu me lembre, foi muito legal, foi muito aproveitada. A gente brincava muito na rua. A cidade pertencia à Siderúrgica. Toda a infra-estrutura, o cinema, o hospital, as escolas, tudo era da Siderúrgica. CIA SIDERÚRGICA NACIONAL Meu pai era funcionário da Siderúrgica. Ele entrou desde a fundação. Talvez tenha sido um dos primeiros operários de todo o Brasil, de revezamento. O que eu me lembro, que ele comentava bastante – meu pai era muito de conversar – era que para eles aquilo era tudo uma coisa muito estranha. Porque eu acho que foi a primeira Empresa de grande porte instalada no Brasil. Quem já entrou numa Siderúrgica sabe que a coisa é muito grande mesmo, são composições ferroviárias passando no terceiro andar de um prédio, é um negócio absurdamente grande. Para eles, eu acho que aquilo foi o primeiro contato com alguma coisa daquele tipo. Ele trabalhava numa máquina chamada Tesoura 48. Essa máquina fazia o seguinte: vinham aquelas bobinas enormes, de 40 toneladas, que é um rolo, elas iam desenrolando e a máquina cortava. Então, para ele, a impressão que eu tenho e pelo que ele falava, é que aquilo tudo era um estranhamento total. Eu acho, inclusive, que nunca meu pai conseguiu assimilar todo aquele processo. Aquilo ali foi uma experiência que ele passou a vida tentando assimilar, porque até então, ele morava aqui no Rio, era adolescente, por acaso era remador do Flamengo – naquele tempo era muito forte o time de Regatas do Flamengo – e de repente se viu numa indústria daquele porte. Eu acho, inclusive, que ele morreu sem entender exatamente o que era tudo aquilo, tentando assimilar aquele processo. E o que ele dizia sobre a fundação [da empresa] era isso, que era um negócio muito difícil, quase como as primeiras refinarias da Petrobras. VALORIZAÇÃO DOS EMPREGADOS Naquela época havia muito essa filosofia [de valorização dos empregados], principalmente porque era a época Vargas – estavam saindo da época Vargas – então, havia essa sensação de pertencer à Empresa também, de vestir a camisa. Foi uma coisa que depois eu encontrei na Petrobras. Achei muito legal também. Todo mundo trabalhava na Siderúrgica, então o assunto era sempre esse. Na Siderúrgica havia essa coisa de pertencer, de fazer parte mesmo. Essa sensação era muito presente. VOLTA REDONDA A vida da cidade toda rodava em torno daquilo. E a Siderúrgica acabava girando também em torno da cidade. Porque – gozado isso – quando os americanos vieram, eles trouxeram toda a infra-estrutura. Então, lá talvez tenha tido um dos primeiros cinemas que se fundou no Brasil, estereofônico, aquela coisa toda, com níveis diferentes. O pessoal fala de supermercado, essa coisa de você pegar e pagar no caixa. Lá tinha um, isso em 1950, ou 1940 e poucos. Talvez tenha sido o primeiro também. Então, tinha muito isso. Foi muito legal essa infância, foi muito boa. O que a gente estranhava é que a cidade toda acompanhava a Siderúrgica. A Siderúrgica fica na beira do rio, então, ela toma quase toda a cidade. E a gente se acostumava com o barulho, com as máquinas, com o tamanho, porque a gente nasceu desse jeito. Inclusive com o sistema de casas, de bairros, a gente se acostumou. Depois, eu estranhei muito isso, a falta de espaço, a falta de jardim. As ruas todas eram numeradas, não tinha nomes – como eles fazem lá – então as ruas eram por número. Era toda uma metodologia diferente que eles trouxeram de lá. E aqui, quando você sai de lá e fica um pouco maior, você começa a ver uma outra realidade totalmente diferente: cerca, muro, nome. Isso foi gozado. Até por conta dessa organização que eles faziam, de alocar as pessoas de acordo com a atividade dentro da Empresa, isso facilitava muito as coisas. Acabava acontecendo de muitas pessoas vizinhas se conhecerem e irem trabalhar juntas. Então, era muito fácil. Foi muito bom. Muito bom mesmo. ESPORTE E eles também trouxeram ginásio de esportes. Você tinha acesso a tudo isso muito cedo, o que era bem difícil naquela época. A gente fazia natação, que era o que todo mundo gostava, mas havia uma raia de esporte completo, você podia fazer de tudo. A gente fazia muita natação, porque quem não gosta de piscina num calor desses, não é? Fiz escolinha de natação e tudo. BRINCADEIRAS Ainda tinha muita área livre lá, porque eles preservaram muitos terrenos livres, então, tinha aquela ciosa de jogar bola, de papagaio, de guerra de mamona – não sei se vocês sabem o que é, são aquelas frutinhas que são meio macias – e ficava jogando um no outro no estilingue, porque ela não chega a machucar. Foi uma infância bem de acordo com uma cidade com algumas características de campo, bem legal. CSN – FASE TRANSIÇÃO Eu sou o filho mais velho. Eu acho que de nós cinco, três pegaram essa fase boa. E os dois mais novos já pegaram a época mais difícil, que foi a época já da dificuldade da Siderúrgica, depois veio a privatização, aquela coisa toda. E, à medida que as pessoas se aposentavam, elas tinham que deixar aqueles bairros e a cidade não havia planejado isso. Só havia uma cidade que era da Siderúrgica. Aí, começaram a acontecer as aposentadorias. E aí? Para onde as pessoas iriam? Não havia mais alternativa de residências. Aí é que se começou a pensar em alternativas. Essa transição foi bastante difícil, e meus dois irmãos menores pegaram bastante disso. Como sempre, surgiram novos loteamentos já para atender a essa nova realidade. Mas primeiro ela precisou se estabelecer, e aí foi que se criou o problema. Até que se estabelecesse essa nova realidade e as pessoas percebessem e buscassem as soluções, teve uma fase de transição que foi bastante difícil. Mas depois, não. Hoje, a cidade cresceu para o outro lado do rio, e já se constitui de bairros. Hoje é tudo particular, mesmo depois da privatização, tudo foi vendido. Então, hoje, é uma cidade comum. Aquela característica bonita de jardim, de espaço livre, de não ter muro acabou. Infelizmente, ficou uma cidade muito feia hoje. É outra realidade. EDUCAÇÃO Eu fiz uma escola – eu me lembro – que correspondia ao que se chama hoje de pré-escola, que era particular, mas também era da esposa de uma pessoa que trabalhava lá na Siderúrgica. Ela tinha gosto por isso. E eu fiz aquela escola primeiro ali. Depois uma escola de freiras, depois uma escola técnica, que se chamava Pandiá Calógeras, que era mantida pela Siderúrgica. Uma escola técnica, tipo alguns modelos que existem hoje do Senai, em regime integral, sabe? Só que naquela época – eu entrei em 1964 – nós estávamos em pleno golpe. Então, nessas escolas, os diretores, principalmente, eram militares. Eram dois coronéis e era regime militar mesmo. Essa escola chama-se Escola Técnica, mas ela tinha uma primeira fase, que hoje seria equivalente ao primeiro grau, eu acho, e uma fase equivalente ao segundo grau. No segundo grau, você tinha algumas especializações. No meu caso, eu escolhi e fiz química, sempre gostei de química. E durante esse período, foi regime militar mesmo: uniforme, cabelo cortado, igual soldado. Na época dos Beatles, já imaginou? Eu entrei com 11 anos. Quer dizer, 51 com mais 11 vai dar 62. É mais ou menos isso. Depois veio o golpe. Fiquei lá acho que até 1969, fiz a escola de química. Mas era uma qualidade de ensino muito boa, tem que se registrar. REGIME MILITAR Quando você entra numa escola que tem um regime assim, a primeira coisa que você tem que aprender – é interessante isso, porque eu estava com 11, 12 anos – é que ali você está por sua conta. Você está por sua conta mesmo. Você tem que aprender as regras de convivência, porque é um outro sistema. Isso foi um pouco duro, uma experiência – acho que para todos também – que é interessante. Ali era bem assim: coisa de regime militar mesmo. Você tem que se manter independente. Mas, em compensação, acho que é muito importante porque isso te fornece uma força de vontade, uma capacidade de encarar obstáculos muito grande, muitas vezes até sem você perceber. O regime é muito ruim. Eu estranhei bastante, eu reprovei o segundo ano. Depois você aprende a conviver com o regime, mas nunca aceitei. Nunca fui de aceitar o regime, não. Era meio rebelde. EDUCAÇÃO RELIGIOSA Até por conta da escola de freiras – e a minha irmã também estudou numa outra escola de freiras –, eu acho que eu poderia dizer que minha educação, de uma certa maneira, foi religiosa. Não vou dizer muito extremo, mas bem religiosa. A gente tinha alguns hábitos religiosos em casa. Tinha o hábito de ir à missa. Tinha alguns hábitos de rezar em casa, coisa de oração, de rezar à mesa. Com o tempo, eles se perderam, mas, na minha infância, eu me lembro muito disso. FAMÍLIA - CARINHO E ATENÇÃO Meu pai era uma pessoa muito bondosa, muito fácil de levar, mas também tinha os limites dele que a gente não conhecia, às vezes, ele se estourava. Ele levava tudo numa boa, mas quando ele se estourava, era complicado. E minha mãe não. Minha mãe ficava por ali, fazendo o meio de campo. Acho que a autoridade era dividida um pouco com os dois, sabe? Acho que eles dividiam bem isso. Eu me lembro muito – acho até interessante estar citando isso aqui, porque alguém pode estar escutando no futuro e vai ter filhos também – que meu pai era um viciado por cinema, ele adorava cinema. Então, éramos eu e a minha irmã – que tem dois anos, um ano e pouco de diferença – e eles saíam e iam para o cinema à noite. A gente ficava em casa e ficava com a minha avó, que morava com a gente nessa época, ela já tinha uns 60, 70 anos. E a gente gostava quando eles iam ao cinema porque de manhã, sempre do lado do travesseiro, tinha alguma coisinha, tinha uma bala, tinha um drops, tinha um negocinho desses lá. Isso foi uma lembrança muito boa que eu tenho da minha infância. Eu tento fazer isso com a minha filha hoje, sempre quando eu viajo, ou quando eu saio. Isso eu tento manter porque talvez eu consiga fazer com que ela guarde essa idéia. Disso eu me lembro muito bem. Então, a gente até gostava quando eles iam ao cinema, porque tinha sempre aquela lembrança do cinema, aquela coisinha no outro dia. Era muito legal isso. Isso é uma lembrança muito boa que eu tenho. REGRAS E DISCIPLINA [Escola de freiras também pode ser rígida], mas é diferente porque ali a coisa é mais compartilhada. É dura a disciplina, mas tudo se fala, tudo se repreende, mas tudo é claro, tudo é dito. Na escola militar não, tem um código que você tem que descobrir. Não tem nada para ser dito, ser falado. Tem um código que ou você descobre ou você tem que descobrir. Não é um código que alguém te diga. Tem regras, mas fora as regras que estão lá claras, estabelecidas, tem um código. E esse código é que você tem que aprender. Acho que eu aprendi esse código como todo mundo: dando cabeçada, não tem jeito. Tinha que dar umas cabeçadas aqui, tinha uma hora que você tomava uma outra atitude e via que estava errado pela reação das pessoas. E nunca era uma reação explícita, era mais uma reação de afastamento ou de reprovação meio silenciosa. No regime militar a coisa é bem complicada. Tinha alguns castigos, mas não tinha castigo físico, nada disso. Mas a simples repreensão, num regime desses, o fato de você ser repreendido ali – era grande a escola, tinha algo em torno de 5000 alunos – era um castigo violento. COLÉGIO MILITAR Eu me lembro da primeira fase [no Colégio Militar] que foi uma fase de tentar compreender aquele processo. E foi uma fase que talvez tenha durado uns dois anos – o primeiro ano e o ano em que eu fiquei reprovado. Já aí, quando eu repeti o ano e até o final, já tinha compreendido o processo, já conseguia tirar de letra algumas coisas. Aí já veio uma certa dose de rebeldia também, porque era mais velho, já conhecia melhor as coisas e você já sabia lidar muito melhor com o sistema. E em todo sistema desse tipo, muito hierarquizado, você acaba tendo que lidar com algumas pessoas que estão ocupando posições que não deveriam estar. É característico desse tipo de regime. Por algum motivo, aquela pessoa está lá e é hierarquizado demais, é por tempo, e ela chega numa posição que não deveria estar. Então, acontecia muito isso, principalmente, com as pessoas que lidavam com os alunos, que tinham que manter a disciplina. Eram muitos, mas tinha alguns que não tinham a mínima habilidade com aquilo. Então, a primeira rebeldia era aí, quando você começava a perceber que alguma coisa não estava certa. Isso foi acho que no terceiro ano de escola, no ano que eu repeti. Era 1966, 1965, por aí. GOLPE MILITAR Volta Redonda, até um tempo atrás, era área de segurança nacional. Então, no golpe militar, toda a cidade foi cercada pelo Exército. Então, tinha tanque na rua. Talvez a gente tenha sido uns dos primeiros a ver o golpe, porque na manhã do golpe, a cidade já estava toda ocupada com veículos blindados, com soldados. Tinha um quartel em Barra Mansa, que é a cidade vizinha, onde a minha mãe nasceu. Era um quartel, um Batalhão da Infantaria Blindada, que tinha só blindado. Então, no dia do golpe, na manhã do golpe, quando a gente acordou, a cidade já estava ocupada pelos militares. Tinha tanque, tinha veículo blindado, tinha soldado armado por tudo quanto era lado. Talvez a gente tenha sentido o golpe primeiro que todo mundo. No primeiro momento, ninguém entendeu. A gente era criança ainda e toda criança indaga o porquê daquilo, o que teria ocorrido. E a informação era difícil também, porque em 1964, quando aconteceu o golpe, as pessoas se fecharam. E aí, você vai indo, vai indo, vai indo, conversa aqui, ali. Eu tinha uns 13 anos e era estudante numa escola militar. E na escola militar eu tive as primeiras versões – não era uma escola militar, era uma escola dirigida por militares porque teve regime militar – aí você tem a informação deles do que aconteceu. E você começa a fazer uma comparação. O que eles diziam era aquela história que a gente ouvia naquela época, que o comunismo ia tomar o Brasil, história de subversão e aquela coisa toda. Essa era a versão deles. E era uma coisa que me parecia, naquela idade, que eles acreditavam fielmente, acreditavam mesmo naquilo, que comunista ia comer criancinha e aquela coisa toda, e que eles queriam defender a gente daquele troço. Essa era a versão que eles passavam para a gente. Depois, a gente vai percebendo que a coisa não foi bem assim. Você vai conversando, pega uma informação aqui, ali, e tinha algumas coisas malucas. Eu me lembro que, logo depois do golpe, os professores de Organização Social e Política Brasileira – acho que era isso – criaram a disciplina OSPB. E aí a função, naquela época, desses professores era fazer propaganda do regime. Então, eu me lembro que eu passei um ano estudando Transamazônica, fazendo trabalho sobre a Transamazônica. Naquela época, naquele dado período, a Transamazônica era obra do regime. E a gente começava a fazer as comparações todas, o movimento estudantil também já estava sendo muito reprimido, já estava na época da repressão mesmo, o AI-5 tinha sido colocado, aí a coisa começou a ficar mais clara para a gente. A gente já começou a entender melhor o que estava sendo colocado, mas como era uma cidade – como eu digo – fechada, televisão naquela época não era um veículo que trouxesse grandes novidades, tínhamos pouco acesso às coisas, tínhamos que conversar com alguém ou tínhamos que ter acesso a um teatro ou a um grupo de debates, porque jornal não tinha jeito. MOVIMENTO ESTUDANTIL Já se tinha uma consciência na época, porque em todo lugar os estudantes organizaram alguns movimentos. Eu cheguei a participar de algumas reuniões incipientes, não fazia parte do grupo. E tinha aquele chamamento do movimento estudantil e você ia, escutava os debates, foi quando se começou a escutar alguma coisa assim diferente. Aí, a gente começa a ter uma visão diferente do que está acontecendo. Também tinha uma crise na economia que já estava se colocando e isso fazia com que se tivesse que falar mais das coisas. A gente começou a perceber essa questão. MOVIMENTO ESTUDANTIL / REPRESSÃO E uma outra coisa que talvez [chamasse muito mais atenção] do que a questão política – uma coisa que eu me lembro muito bem, que ficou marcado – era a questão da repressão. Porque, como tinha o quartel em Barra Mansa, muitas dessas pessoas que eram presas porque eram sindicalistas, eram estudantes envolvidos, eram pessoas comuns que tinham tido, num dado momento, uma manifestação política diferente daquela, eram presas e eram levadas para esse quartel. E eram pessoas do convívio da gente, às vezes. Eram vizinhos, que você escutava falar que foi preso de noite, sumiu e a família estava atrás. Desse lado eu me lembro muito bem, o medo das pessoas e aquela coisa de “sumiu, foi levado, ninguém sabia onde estava”, isso aí eu me lembro. Eu tinha um tio, irmão da minha mãe, que servia nesse quartel e contava umas histórias meio pesadas dessas coisas. Então, esse aspecto do golpe muito cedo a gente percebeu, essa questão do medo, da arbitrariedade, da prisão, da tortura. ESTÁGIO NA CSN Nessa época eu já estava quase saindo da escola técnica. Aí aconteceu um negócio interessante. Depois que você cursava essa escola, você tinha direito a fazer um estágio, que na realidade era um estágio curricular quase que obrigatório, na Siderúrgica Nacional, para complementar aquele tipo de formação. Era uma formação acadêmica e mais uma formação industrial, porque a idéia dessas escolas era formar técnicos para a indústria. Então, eu saí da escola e fiz um estágio na Companhia Siderúrgica Nacional de nove meses. Foi muito interessante, porque, até então, eu não tinha pensado em vestibular. Até então, não havia faculdade, havia a Federal Fluminense que estava se instalando, de Metalurgia, mas era uma coisa distante da gente, não tinha me ocorrido o vestibular. Eu fiz esse estágio na Siderúrgica e aquele negócio me espantou tanto, tanto, mas tanto, ver um troço daquele tamanho. Naquele tempo, a Siderúrgica tinha 30 mil empregados ou mais, não sei, era um número absurdo. Eu sei que, cada vez que tinha uma saída de fábrica – eu acho que não dá para vocês compreenderem o que seja isso –, parecia final de jogo de futebol no Maracanã. Saíam milhares por aquela porta e entravam milhares, sabe, naquela troca? E eu olhava aquela coisa, aqueles trens, aquelas composições passando no terceiro andar. Uma vez – eu me lembro disso – eu estava no terceiro andar de um prédio, escutei uma buzina e passou um trem. Eu falei: “ah, não. Não quero mais saber desse troço não. Nunca mais na vida. Vou parar com isso aqui, vou fazer o vestibular de qualquer coisa, vou estudar, vou procurar outra profissão. Aqui nessa coisa não dá para ficar.” Naquela época – 1969 ou 1968 – era o auge do emprego lá. Todo mundo queria entrar na Siderúrgica Nacional. FAMÍLIA / EDUCAÇÃO Meu pai e minha mãe sempre tiveram muito isso: “Filho meu tem que estudar, é a única alternativa.” Eu acho que é coisa um pouco de família mais operária mesmo, talvez muito mais da minha mãe. No meu pai, acho que veio alguma coisa da guerra civil espanhola, não sei. Meu pai não era um cara muito politizado não, mas acho que, inconscientemente, ele trazia um pouco disso. Eu me lembro muito bem que os dois e a minha tia, que era irmã do meu pai e tinha morado na Espanha também – essa sim, tinha bem mais consciência política – faziam questão: “A única alternativa que filho de operário tem é estudar.” Mas também não dava para projetar muito mais do que o equivalente ao segundo grau, porque aí já teria que mudar de cidade, já era uma coisa mais difícil. Então, com essa formação de ter que estudar, de ser a única alternativa, e mais o estágio que eu fiz na Siderúrgica, eu falei: “Ah, não, não vou continuar trabalhando aqui.” Até na época o emprego era bom, o salário de técnico estava ótimo – naquela época era ótimo. VESTIBULAR Aí, eu e mais três amigos, que tínhamos feito a mesma escola militar, formamos um grupo de estudo para o vestibular. Nós estudamos juntos durante toda a escola militar e estávamos fazendo estágio juntos. Aí, nós terminamos esse estágio e fizemos um grupo de estudo, nós quatro. Depois se agregaram mais dois, e depois mais um. Acabou ficando sete pessoas e nós ficamos no grupo. Cursinhos eram poucos e também inacessíveis para a gente. E a gente ficou estudando e estudamos acho que uns sete meses direto para o vestibular. ENGENHARIA QUÍMICA Eu ainda não tinha decidido o que fazer. A gente tinha algumas escolhas. Primeiro, tinha que ser numa escola pública, não podia ser diferente. Eu sempre quis química. Eu já gostava de química, já tinha feito e tinha mais dois também que queriam fazer química. Naquela época, estava se desmembrando aqui a Federal do Rio de Janeiro, ela estava indo da Praia Vermelha para o Fundão, estava em processo de mudança. E tinha a Rural, no quilômetro 47, que era Federal também. Eram as duas [melhores]. E a nossa opção na época foi pela Rural porque na Rural tinha alojamento, tinha aquela coisa toda e tinha Engenharia Química. Então, a gente começou a estudar já para fazer o vestibular lá naquela escola, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, porque ali tinha alojamento, tinha um sistema de bolsa de auxílio também, que não havia aqui no Fundão. Então, você tinha onde morar. Nós fizemos vestibular lá. Desse grupo de sete, passamos três no vestibular da primeira vez. Depois entrou uma menina na segunda chamada e os outros três ficaram de fora, foram prestar vestibular no ano seguinte para a mesma escola também. E lá foi. Eram quatro anos a engenharia – eu fiz até o terceiro ano. Aí, no terceiro ano, a coisa já estava muito apertada em casa, financeiramente, e eu tive que sair. Saí e fui para São Paulo trabalhar. FAMÍLIA / MUDANÇAS Meu pai se aposentou por invalidez, porque ele tinha muito problema de visão, de catarata. E lá tinha um fundo de pensão, que você podia comparar com o Petros – era uma caixinha de pecúlio, na realidade não era um fundo de pensão – e se você se aposentasse em determinadas situações, você tinha perdas. Como eles trabalhavam em turnos e aquela coisa toda – não era o sistema como é hoje – não incorporava tudo. Então, ele teve que se aposentar antes do previsto. Na aposentadoria foi que ocorreu aquele processo de mudança de residência. Nós ficamos bastante tempo ainda na casa, porque não conseguia arrumar outra, depois tinha que mudar. Aí mudou a vida da gente completamente, mudou totalmente. E aí foi apertando. Mesmo na universidade, que não tinha quase custo – porque tinha alojamento na própria universidade e a gente fez aquela bolsa alimentação, a gente tinha os tickets para se alimentar, então, era só estudar mesmo –, tinha um custo mínimo de comprar uma roupinha ou uma outra coisa. MODA Disso eu me lembro claramente, parece brincadeira. O grupo era mais ou menos igual, eram todos filhos de operários também da Siderúrgica, só tinha um que estava um pouquinho melhor de situação. Mas desses três, quer dizer, dos quatro, porque tinha a menina que entrou depois, o uniforme era aquela camiseta Hering – aquelas camisetas brancas que tinham um negócio colorido na manga e na gola. Então, você comprava uma de cada cor e acabou. Jeans ainda era chique naquela época. Jeans não era assim tão simples não, mas depois se incorporou também. JUVENTUDE Mas eu acho que foi a melhor época da minha vida, apesar disso tudo, foi a melhor época da minha vida. Primeiro, porque aquilo era uma outra escola, cada alojamento era composto assim: você tinha quatro camas de um lado, quatro camas de outro e, no meio, você tinha uma sala de estudos enorme. Então, você tem que aprender a viver em oito. Tudo ali tem que ser em oito, não tem o mínimo de diferença, nem privacidade nem nada. Mas foi uma experiência muito interessante. Uma experiência de vida. Por isso que eu digo: a escola militar ajudou muito nisso, você aprende muito a viver, a se organizar e a tolerar também essas coisas. Por incrível que pareça – parece que não combina regime militar com tolerância – mas como no quartel as pessoas vivem juntas, elas têm que aprender a viver juntas e têm que aprender a se tolerar. Isso foi interessante. Por exemplo, um desses três amigos nossos que entraram na primeira vez não se adaptava de jeito nenhum. Ficarmos juntos no dormitório também era difícil, porque você conseguia vaga de acordo com a classificação, e aí ia para onde tinha vaga. Primeiro eu fui para o dormitório. Eu fui o primeiro a conseguir alojamento. Só que como havia um déficit de dormitório habitacional lá, o que acontecia? Em cada lado dormiam quatro e, no meio das camas, dormiam mais três, que eram os que a gente chamava na época de “acochambrados”, que era o pessoal que pegava o colchão, dormia e guardava o colchão no armário, porque a reitoria não permitia. Então, fui eu, e mais dois foram de penetras. Aí, o segundo conseguiu vaga em outro alojamento, mas aí você tem aquele sistema de permuta e acaba conseguindo ficar próximo. No final das contas, estávamos, eu acho, os três no mesmo alojamento. Os três primeiros no mesmo alojamento, embora em quartos separados. Era uma grande bagunça. Tinha o alojamento só das meninas, que era bem separado, e o alojamento só dos rapazes. ENSINO SUPERIO / CURSOS Era uma escola que tinha Engenharia Química, Florestal e Agronômica, Veterinária e esses cursos da área agrícola. Esse pessoal gosta de espaço, gosta de barulho. E ela tinha também, na época, um sistema em que ela tinha alguns postos de vestibular fora do Estado do Rio. Tinha dois postos no interior de São Paulo. Eu sei que vinha gente de vários estados que prestavam vestibular. E tinha também um convênio internacional, que recebia estudantes de outros países da América Latina, para esses cursos de Veterinária, Agronomia, Florestal, esses cursos dessa área. Então, era um negócio meio complicado. TROTES No começo do ano era uma bagunça mesmo. O trote lá, imagina Almoça junto, janta junto, dorme tudo no mesmo alojamento. Imagina o trote? O trote começava em março e terminava no dia 13 de maio, que era o dia da libertação dos escravos. O que eu encerei de apartamento Encerava, encerava. De noite, lá dormindo, vinha o cara: “vamos encerar” E você ia lá encerar o apartamento do cara. Encerava, encerava, limpava. Todo começo de ano era uma bagunça. E tinha também aquelas coisas que você, às vezes, vê um pouquinho em filme americano, aquelas maluquices daquelas festinhas que se fazia. Aí, era festa de mulheres e festa de homem. Já imaginou festa de homem só com homem? Como é que pode dar certo? Era uma coisa de louco. Tinha uma bacia – eu me lembro, era uma bacia enorme – os caras arrumavam uma bacia de metal, aquelas bacias antigas, para fazer caipirinha ali dentro. Tinha um peruano que tinha um taco de baseball, socava com aquele negócio ali e ficava todo mundo de fogo. LAZER / MÚSICA Naquela época, havia muita atividade no movimento estudantil, atividades culturais, inclusive. Eu assisti a muito show em circuito universitário: Chico, Vinícius, esse pessoal dessa época, Bethânia. Eles iam aos estádios, iam aos ginásios fazer shows, e a censura ia junto e aquela coisa toda. Então, a atividade cultural na época era muito intensa. Tinha muito teatro também para estudante. E eu participei de muito, muito show no Rio. Vi teatro desse circuito específico, porque havia uma censura muito grande, aí o que acontecia? Principalmente esse pessoal que resistia buscava esse público alternativo. Então, eu me lembro que eu assisti a muito show da música popular brasileira, muito espetáculo de teatro, tipo Carcará, aquelas coisas, Teatro de Arena. Naquela época, isso fervilhava. Sempre assim: você pagava e assistia no ginásio. Eu não me lembro direito, mas eu acho que eu só assisti a um show em teatro. A maioria foi show e até peça de teatro mesmo. Mas tinha muito e isso fervilhava naquela época. Disso, a gente participou bem. Aí, sim, aí se formou a coisa da resistência, da não aceitação da ditadura, da falta de liberdade. RESISTÊNCIA ESTUDANTIL Aí, a gente já tinha uma participação em movimento estudantil, porque esse foi um período complicado para as escolas federais. A Rural foi uma delas, foi uma das escolas que foi invadida por polícia, o diretório foi invadido, quebraram, arrombaram o arquivo, arrombaram o alojamento, prenderam um monte de estudante, sumiram com um monte deles. Então, essa Universidade tinha uma história de resistência também, porque tinha muita gente do campo. Porque era assim: os prédios da universidade eram meio separados do alojamento e dos restaurantes, que eram áreas quase que [exclusivas] dos estudantes. Então, na época do golpe, fizeram barricadas, teve tiro e essa coisa toda. Sumiu muito estudante. Então, tinha um histórico desse e a reitoria controlava muito os diretórios acadêmicos, os grêmios, que tinham seus espaços lá certinho, mas eram muito controlados. Então, já havia todo aquele processo de renovação, aí a gente já participava mesmo. Era uma coisa que você entrava na escola já escutando a história. Tinha muito [estudante que era] clandestino no movimento estudantil. No meu alojamento mesmo, uma vez, pegaram um rapaz à noite. Eu não tinha nenhum envolvimento nesses grupos que já eram organizados, que já estavam organizados antes, já estavam quase que num processo de eliminação. Então, eu não participei de nenhum desses grupos não. A gente tinha uma participação política, mas esses grupos, na época, já estavam bem desarticulados. Mas eu me lembro que tinha um rapaz que estudava conosco que foi levado pelo pessoal da repressão. Numa determinada noite, chegou o pessoal da repressão com alguém da reitoria, cercaram as duas portas do alojamento e levaram o rapaz. Ele fazia Zootecnia, uma coisa que não tinha nada a ver, e era um cara que fazia manifestações políticas. Mas era uma briga de reconhecimento do curso, do currículo, uma coisa que não tinha uma atividade política necessariamente de contestação ao regime não. Ele era um ativista porque o curso dele ainda não tinha reconhecimento. E aí, ele acabou se envolvendo, claro, com alguns grupos organizados. Mas a militância dele era basicamente essa. E prenderam o rapaz. Ele tinha um irmão que também estudava na escola, morava no outro alojamento. Eu lembro que na noite que prenderam o rapaz, a gente avisou o irmão – eles eram do Mato Grosso e faziam esses cursos na área de agronomia. Aí avisou a família, a família se mobilizou, botou gente para procurar e o rapaz sumiu. Sumiu. Era o Ênio, quero registrar o nome dele aqui: Ênio. A gente só ficou sabendo dele na época, porque a mulher do Jimmy Carter, o presidente americano que defendia a bandeira dos direitos humanos, esteve no Brasil, justamente nessa questão dos direitos humanos. Aí, os presos políticos na Bahia conseguiram entregar uma carta para ela com a relação de todos os nomes dos presos e aí o nome dele apareceu entre esses lá na Bahia. Isso depois de seis meses que ele tinha sumido. Foi aí que a família conseguiu localizar ele, trazê-lo de volta – não tinha acusação, não tinha nada – e ele voltou para a Universidade. TORTURA Ele não gostava de falar, mas, de vez em quando, ele contava alguns trechos da situação que ele viveu. Ele foi preso, torturado e foi do Rio para a Bahia – ele e mais meia dúzia – no piso de uma Kombi, todos eles algemados e nus. Do Rio até a Bahia naquele troço E sofreu tortura de todo tipo, apanhava muito, pau-de-arara, essas coisas todas. Ele nunca mais conseguiu ficar legal. Às vezes, a gente estava dormindo e ele dava uns gritos e queria beber alguma coisa, mas não tinha bebida – não podia entrar bebida lá no alojamento. Embora, nas festinhas, o pessoal levasse clandestinamente, não podia ter. Mas tinha álcool, o pessoal usava muito álcool porque tinha muito pernilongo, e ele bebia álcool, assim de monte. Até que ele foi indo, foi indo e desistiu, foi embora, acho que ele foi fazer algum tipo de tratamento nessa área Mas aquilo foi uma experiência terrível também. TRANCAMENTO DA FACULDADE Eu não eu pensei em sair de lá [da faculdade], aquilo ali era tudo para mim, eu gostava muito. Aquilo ali era o meu sonho. Faltava um ano, mas a coisa ficou insustentável porque não tinha jeito, nós somos em cinco, não adiantava só eu [estudar]. Eu me lembro que, na época, apareceu um serviço para universitário que era o planejamento do sistema de rotas de tráfego daqui do Aeroporto Internacional, do Galeão. Eles foram às universidades e contrataram os universitários para fazer todo aquele levantamento. Eu participei e recebi um salário razoável, uma grana razoável por aquele trabalho especificamente, era um contrato. BUSCA POR EMPREGO Com essa grana, eu fui para São Paulo. Eu disse: “bom, não dava mais, eu vou trabalhar.” Não queria ir para São Paulo, porque a imagem que eu tinha de lá não era boa. Fui para Belo Horizonte. Mas em Belo Horizonte, a coisa estava complicada. Aí, a alternativa foi ir para São Paulo. Foi até interessante essa experiência: eu pegava o ônibus aqui domingo à noite, chegava em São Paulo na segunda de madrugada, comprava o Estadão, que é o jornal que tem tudo quanto é classificados. Lia todos os classificados, separava aqueles que eram da minha área, e ia nas fábricas, procurando, fazendo prova e tal. Preenchia a semana assim. Terminaram as provas, eu vim embora. Fiz isso algum tempo. Até que, aí, ficaram duas alternativas das várias provas que eu fiz. É interessante que, na época, eu tinha feito aqui no Rio, a primeira tentativa era ficar no Rio. Claro, queria ficar no Rio porque teria a possibilidade de ficar estudando também. Estava abrindo aqui no Rio, no comecinho da Dutra, uma fábrica de sorvetes chamada Rico, que chegou a ser grande aqui no Rio. E tinha 800 candidatos. E aí a gente foi fazendo prova, prova, porque era para supervisor de produção, para trabalhar em três horários. Ficamos fazendo prova e restaram eu e mais dois que foram classificados. Eu me lembro claramente o que a gente ia ganhar aqui no Rio, fazendo três horários, sem condução, para chegar lá no começo da Dutra: ia ganhar 550 – acho que era cruzeiros, não me lembro exatamente a moeda. Era muito pouco mesmo. Nesse serviço que a gente tinha feito lá de universitário eu tinha ganho mais. Aí, não tinha jeito. Procurei as alternativas de Minas e depois de São Paulo. Em São Paulo eu fiz as provas e, por coincidência, eu fiz provas na Pirelli, na Volkswagen – nas montadoras – e na Refinaria, que se chamava na época Refinaria União, que era do Pólo Petroquímico União, uma empresa privada. Tinha a Petroquímica União e a Refinaria União, que era o primeiro pólo petroquímico do Brasil. Fiz lá também. E naquela situação, o dinheiro estava acabando, já tinha acabado, então o primeiro que saísse, eu pegava. Eu acho que eu estava fazendo uns quatro ou cinco exames médicos em firmas diferentes, nessa perspectiva: a primeira que sair, eu comparo o salário, as condições. Aí, ficou a Pirelli e a Refinaria. Para vocês terem uma noção, na época, depois de tudo que passou aqui, que ia ser 550 cruzeiros para trabalhar em três horários, lá dava 1600, para trabalhar só de dia, com transporte, alimentação, assistência médica. Só para você ter noção. Esse número eu guardo até hoje, era exatamente essa a proporção. A que saiu primeiro, para começar a trabalhar de imediato foi a Refinaria. Eu fui para a Refinaria e fiquei lá o tempo todo. RISCOS DA REFINARIA Assustava pra caramba, no começo. Nunca imaginei como seria uma refinaria de petróleo. Na Siderúrgica, o que assustava muito era o tamanho. Era muito grande, a impressão que você tinha era que, numa hora ou outra, aquilo ia fugir de controle. Na Refinaria não, o que assustava mesmo era o perigo. Você tinha uma noção clara do perigo. Eu presenciei algumas emergências de incêndio feias. Acho que, no segundo mês que estava trabalhando, eu presenciei uma dessas. Ali era noção de perigo mesmo. Você tinha todo o treinamento de incêndio, de segurança. E uma das coisas que você sabia, que todo mundo tinha claro, era o seguinte: se houve qualquer sinal de fogo na Unidade, era um mau sinal, porque ali tinha só derivados de petróleo. Então, fogo na Unidade de Processo ou próximo a algum tanque era um perigo, a gente sabia disso. E o alarme também. O alarme de uma refinaria é um negócio maluco. Quando ele dispara, a sua alma já vai embora, você fica sozinho ali. É um susto Porque tem o treinamento do alarme, mas não é a mesma coisa, inclusive, porque o treinamento é feito muito na hora do almoço, você está distante. INCÊNDIO E, nesse primeiro dia, o setor que eu trabalhava ficava de frente para a Unidade de Craqueamento, que é a maior unidade da Refinaria, é uma torre grande. E o incêndio aconteceu exatamente lá e, de onde eu estava, eu vi. Eu vi primeiro o fogo, você fica sem entender, não adianta treinamento. Você vê o fogo e fala: “Não é possível que é verdadeiro. Não, isso deve ser alguma coisa.” Porque tem o flare, tem essas coisas todas de controle. Aí, eu vi aquele fogo assim, na minha frente, falei: “Ih, não está certo.” Aí, quando disparou o alarme, pronto. Se ainda não teve quem descrevesse isso aqui, olha a descrição: a primeira vez que você presencia uma emergência dessas de perto, por mais treinamento que você tenha, você fica paralisado. Você não sabe o que fazer. Não tem treinamento que conserte isso. Fiquei ali. Eu trabalhava em química, sempre trabalhei com setor de laboratório de pesquisa de qualidade. Eu estava segurando um material de vidro, então, eu me lembro claramente que eu vi o fogo, mas fiquei tentando racionalizar até porque podia não ser alguma coisa. Mas na hora que tocou o alarme, tudo o que estava na mão caiu. Caiu, se espatifou. E eu fiquei ali, não sei quantos segundos, parece que foi uma eternidade, mas fiquei em pânico completo, sem saber o que fazer. Não saí correndo. Não saí porque também você é treinado para não fazer isso. Eu acho que isso é uma coisa muito boa – hoje acho que é até mais falho –naquela época, mesmo depois, na Petrobras tinha um sistema de treinamento muito, muito, muito bom. A primeira coisa que você aprende era o seguinte: não corra, porque você não sabe onde é o fogo, você não sabe onde é o problema. E cria mais tumulto, então, procure se informar, tem o pessoal da brigada e tal. Procure tomar pé da situação primeiro, para depois você tomar uma atitude, se não é perigoso. Isso, a gente tinha. Mas fora isso, que eu acho que é inconsciente, e mais o pânico, você fica paralisado. A primeira vez foi duro. Foi uma experiência que eu me lembro como se fosse hoje. Foi controlado, não foi preciso abandonar a unidade, nem nada disso. Mas sempre se machuca alguém quando tem uma emergência desse porte. Aquela foi uma emergência grande. Quase sempre se machuca alguém. Ainda bem que não foi queimado. O ruim é quando o ferimento é de queimadura. Nós também presenciamos lá, depois – mas aí você já está mais escaldado – emergências com queimadura. Mas numa refinaria de petróleo, o perigo é uma coisa que até te ajuda para você tomar muito cuidado com o que você faz. É interessante isso. É uma coisa que você desenvolve, sem querer, são aqueles hábitos de segurança. Isso é muito interessante. LABORATÓRIO Eu entrei direto para o laboratório. Foi outra feliz coincidência, porque, quando eu fui fazer prova lá, o chefe do setor em que eu ia trabalhar – que foi quem aplicou a prova – tinha estudado com o mesmo professor que eu, na Universidade, que era um senhor velhinho já, lá na parte de química analítica, que é o que se usa no setor de laboratório. Era muito comum isso: eles importavam o pessoal do Rio, porque, naquela época, a Química era aqui, na Escola Nacional de Química. Depois separou no Fundão e na Rural. Era onde havia excelência em Química, então a indústria petroquímica levou muita gente daqui para lá. Então, isso já ajudou a quebrar o gelo e facilitou muito, porque ele conhecia o cara, já tinha estudado com ele. Tanto é que fiz a prova e foi tranqüilo. Entrei e trabalhei sempre ali no setor de laboratórios. Depois, mais tarde, eu me envolvi com outras atividades de pesquisa, fiz parte de um grupo de auditoria, que foi montado aqui no Depin. TÉRMINO DA FACULDADE Duas experiências que eu preciso registrar: primeiro que eu terminei o curso, mas aí eu fiz a licenciatura, não dava para fazer engenharia. Porque não dava, não tinha jeito. Eu transferi o curso daqui para lá e, como eu já tinha feito três anos de engenharia, fiz algumas matérias e complementei com licenciatura em química. E já comecei a dar aula. Então, eu trabalhava durante o dia e dava aula à noite, em duas escolas técnicas de química. Durante quase os primeiros 15 anos, praticamente, que estive em São Paulo, eu trabalhei na Refinaria e dei aula. A LINGUA DE SÃO PAULO Dar aula foi o que me ajudou, o contato com os alunos foi o que me ajudou a entender o que é São Paulo, porque eu não entendia nada. Isso é interessante também. Não entendia nada. No dia que eu fui procurar emprego, pedi informação, me responderam, e eu não consegui decifrar nada: “onde fica a Refinaria União?” Aí, o sujeito falou para mim: “Faz o seguinte, você pega aquele ônibus ali – eu estava no ponto de ônibus – aí, quando chegar no balão da Cofap, você desce. Aí você pega a Marginal e vai até as porteiras; nas porteiras, você atravessa e vira à direita e segue a guia.” Balão eu não entendi. Marginal e porteira, menos ainda. E guia? O que acontecia? Balão era uma rotatória, onde tinha a fábrica da Cofap. Marginal é uma coisa em São Paulo que eles usam muito, de construir avenidas beirando os rios. Agora já é comum, mas naquela época era uma coisa nova para a gente aqui. Então, era para seguir aquela rua que beirava um rio. E ela ia até a porteira que era uma porteira de trem, uma porteira mesmo, que fecha e abre automaticamente. Aí, você atravessava a porteira e seguia à direita seguindo a guia – que era o meio fio – aí você ia sair na porta da Refinaria. De tudo o que ele me falou, eu não entendi absolutamente nada e fui parar na firma errada. Depois comecei a entender. Porque na época era muito difícil, ainda não tinha a Globo, que estava padronizando as linguagens. Eu me lembro que o pessoal falava, no restaurante, que tinha uma tal de sopa de mandioquinha: “sopa de mandioquinha é uma delícia” E eu ficava pensando: “que diabo é uma sopa de mandioquinha?” Aí, um dia tinha a tal da sopa. Era uma sopa amarela e, por azar meu, tinha um macarrãozinho pequenininho, parecia uma mandioquinha, pequenininha. Aí pensei: “mandioquinha é aquele tipo de macarrão, não é?” Não era. Era aquilo que, na época, a gente chamava aqui de batata salsa. Essas coisas foram muito interessantes. Muita descoberta foi assim. Ou eu falava e os alunos: “não entendi nada do que você falou.” Isso era muito comum também, essa troca, principalmente com o aluno que é mais informal. Aí, eu fui conseguindo decifrar São Paulo. Depois de uns dois anos, eu já estava doido para voltar, não agüentava mais. ALUNOS É interessante isso também: quando eu comecei a dar aula, eu só tinha um aluno mais novo do que eu, na primeira classe que eu dei aula. Eu era mais novo. Era na Escola Técnica de Química Industrial do ABC, uma escola técnica, de segundo grau, que era profissionalizante também. Porque naquela época se fazia tudo junto. Então os alunos eram dois, três anos mais velhos do que eu, todos nessa faixa. Já o pessoal do pólo petroquímico era novo. A Refinaria era antiga, mas a Petroquímica começou a funcionar em 1973, então era uma coisa nova, foi o ano que eu cheguei, então, demandou profissionais. Aí, houve muita procura de quem já trabalhava e precisava do diploma. Então, os meus primeiros alunos eram todos mais velhos do que eu e trabalhavam já na área. EXPÊRIÊNCIA COMO PROFESSOR Foi uma experiência muito boa. Gozado, eu já tinha tido uma experiência aqui, porque quando eu saí da escola militar – durante a época que nós estávamos estudando para o vestibular e mesmo depois na escola – você acaba dando aula. O estudante é sempre o professor para esse tipo de coisa. Então, eu já tinha alguma experiência em aula. E lá foi muito bom, porque, inclusive, peguei uma turma que tinha brigado com os professores e eu entrei nessa situação. Aí, acabei me entendendo bem com o pessoal. E o pessoal que me ajudou a decifrar São Paulo, me ajudou a entender as coisas. Eu trabalhava todo o dia e dava aula toda noite, e aos sábados. Eu trabalhava na Refinaria durante o dia e dava aula à noite. Trabalhar e dar aulas ao mesmo tempo foi muito bom, acho que ajudou muito. Como era uma escola técnica de química – eu sei que talvez seja difícil de localizar isso –, a parte de química orgânica é muito difícil de se transmitir para o aluno, a não ser que você trabalhe na área. E eu trabalhava na Refinaria, trabalhava só com orgânica, porque é petróleo. Isso era muito bom porque, na medida que você começa a dar aula, você começa a escrever no quadro, você começa a refletir sobre aquilo que você fez. Então, foi muito bom mesmo. Foi um processo que se casou muito bem. Um ajudou a entender o outro. E depois vários alunos vieram trabalhar com a gente, foram trabalhar na Refinaria, trabalhar na Petroquímica, veio gente para o Rio também. Tinha os concursos nacionais da Petrobras, então muita gente veio para essa área. Foi muito bom. CONTATO COM A FAMÍLIA Então, aí fui só eu [da família] para São Paulo e fiquei lá até hoje. A minha família está toda aqui ainda. Eu vinha com freqüência. Agora, é um pouco mais difícil, mas venho ainda com bastante freqüência. Minha irmã mora aqui no Rio, minha mãe mora em Volta Redonda ainda. Não perdi o contato, mas tem sido mais difícil. O Sindicato dificulta bastante. Quando eu estava na Empresa era mais fácil. REFINARIA UNIÃO / PETROBRAS Isso também eu quero registrar aqui. Isso é importante registrar porque é uma experiência. Tem que levantar um pouco da história. Na Refinaria, em 1964, na Refinaria União, já tinha havido uma greve de resistência muito grande, durante muito tempo. Começou como greve reivindicatória, e depois virou uma greve de incorporação. Uma luta dos trabalhadores para que a Refinaria, que na época era particular – tinha duas particulares: aquela e a do sul –, fosse incorporada ao sistema Petrobras. O Jango chegou a assinar a incorporação, ela foi incorporada a Petrobras e veio o golpe e devolveram a Refinaria para os antigos donos. Então, era uma Refinaria que tinha uma história de luta, muito ligada ao pessoal de Cubatão. Na época, teve toda essa história de incorporação a Petrobras. Havia um anseio já daqueles companheiros antigos de fazer parte do sistema Petrobras. E, na empresa particular, havia uma grande diferença quando entrou a Petrobras. Primeiro, na Petrobras era tudo normalizado, era tudo regrado, tudo tinha regras, tudo tinha normas. Isso eu achei o céu, porque é muito bom você trabalhar sabendo exatamente os limites de cada coisa. Nas empresas particulares, não, na empresa particular não funciona exatamente assim, a coisa é meio arbitrária, é meio da cabeça de cada um. Então, quando entrou a Petrobras, foi muito bom, as regras eram para todos, as regras eram claras, eram definidas e isso foi muito legal. E também a Petrobras trouxe uma filosofia de investir no aprimoramento dos trabalhadores, que era dispersa no tempo da Empresa particular, não tinha praticamente nada. Junto com a Petrobras, veio essa filosofia também. A incorporação começou em 1974 e terminou em 1976. Primeiro, foi um processo de transição, a maioria das ações foram compradas e, em 1976, já era completamente Petrobras, com normas Petrobras, cargos Petrobras. Foi uma mudança da água para o vinho, para melhor. Nós sentimos essas mudanças visivelmente, nitidamente. Primeiro por essa questão da normatização, tudo tem norma, isso acaba com qualquer possibilidade de arbitrariedade. É tudo muito definido, fica tudo muito claro, quais são as suas possibilidades de concurso. Isso, para a gente, que já tinha uma consciência crítica, foi o céu mesmo, foi a mudança da água para o vinho mesmo. IMAGEM DA PETROBRAS Até por conta do movimento estudantil na época do Rio – que não foi tão distante, eu fui para lá em 1972, 1973, e a refinaria foi incorporada em 1974, 1975, fiquei pouco tempo na União – já tinha muito claro a coisa da Petrobras, da luta do monopólio, isso era uma coisa que eu tinha bem claro. E com os companheiros históricos, que ainda tinha lá – porque na época da greve, 30 por cento da força de trabalho foi mandada embora, foi demitida por motivo de greve e ficaram muitos históricos – a gente tinha uma consciência clara do que era a Petrobras, do que a gente imaginava do que seria a Petrobras. E, quando ela entrou, do ponto de vista conceitual, foi bem aquilo que a gente pensava que deveria ser mesmo. Primeiro, que era uma Empresa brasileira, uma Empresa que estava num setor que até então era dominado por empresas estrangeiras. Tinha sido uma luta do povo brasileiro essa coisa do petróleo, eu lembro daquela história daquele geólogo americano, que foi contratado na época, que dizia que o Brasil não ia achar petróleo nunca, que não tinha jeito, podia desistir porque não ia achar petróleo. A gente tinha muito isso. Então, primeiro que era uma Empresa nossa, segundo que ela atuava – isso eu tenho claro até hoje, apesar da globalização, da modernidade – numa área estratégica, que é central, é fundamental. A gente imaginava também – porque na Siderúrgica tinha um pouco disso, também era uma estatal e tinha bastantes regras, embora fosse muito grande – que na Petrobras a coisa fosse mais clara, mais certa, mais definida. Então, a surpresa foi do ponto de vista de regras, de normas, de fim da arbitrariedade. Isso foi a surpresa, porque a gente imaginava que seria assim mas não tanto. Mas o conceito que a gente tinha da Petrobras já era isso mesmo, não mudou. BENEFÍCIOS COM A INCORPORAÇÃO A greve de 1964 começou pedindo equiparação com os benefícios pagos pela Petrobras. Quando entrou a Petrobras, do ponto de vista de benefícios, havia algumas diferenças, mas não eram tantas, com aqueles benefícios fixos. O que havia era aqueles que dependiam da arbitrariedade. Por exemplo, a participação – na época já havia na Petrobras e na União – era lei. Eu me lembro que a maior participação de lucros que eu recebi foi 10 por cento do meu salário líquido. E tinha sujeito que comprava casa quando recebia a participação nos lucros. Então, na União, como era? Era um bolo que era dado aos chefes de divisão, para distribuírem conforme eles queriam. Havia até um caso que entrou no folclore da Refinaria, do cara que distribuiu, sobrou e ele devolveu, sobrou dinheiro. Não tinha qualquer regra para essas coisas. Não havia regras para aquilo que não estava estabelecido. O variável não tinha regras. Na Petrobras não. A Petrobras, desse ponto de vista, melhorou muito, tudo era regrado. A primeira participação de lucro que eu recebi na Petrobras foi uma festa, um salário inteiro, imagina? Nas férias também houve uma certa melhoria. E o plano de cargos – não tanto os salários, mas o plano de cargos, porque vamos entrar nessa luta agora de plano de avaliação de cargos e salários – isso é uma coisa muito importante. Porque, embora os salários da Refinaria acompanhassem os da Petrobras, não havia um plano de cargos. Então, o que acontecia? Você entrava num determinado cargo e ficava ali a vida inteira. O salário daquele cara era compatível com o da Petrobras, só que na Petrobras você tinha uma ascensão profissional já prevista já do próprio cargo. Na União não, você entrava e ficava a vida inteira naquele cargo, a não ser que alguém resolvesse passar você para outro cargo, isso sem qualquer critério. Isso é uma coisa interessante. Embora os salários fossem mais ou menos compatíveis, não havia algumas vantagens e essa questão do plano de carreira é muito importante também. Eu estou sempre falando isso porque é muito importante, não é arbitrário, ninguém pode resolver que você merece mais do que ela. Tem regras claras, definidas para a ascensão. Para todos é igual. Isso, de certo modo, representou melhoria salarial também, porque o pessoal pôde ter progressão funcional em função de concurso, de prova e tudo isso. Então, tinha benefício também nesse aspecto, não só na comparação do salário. SINDICATO DOS PETROLEIROS Na época da União, o nosso Sindicato dos Petroleiros que havia na época, tinha sido cassado e extinto mesmo, fisicamente extinto. Então, nós estávamos sem sindicato e, por força do imposto sindical, a gente recolhia aquele imposto para o sindicato dos Químicos. Foi quando começou a ressurgir o movimento sindical no ABC, com os metalúrgicos, com a CUT, e o Sindicato dos Químicos do ABC, ao qual nós éramos ligados por força do imposto sindical – só por isso basicamente –, também começou a retomar a atividade. Os trabalhadores retomaram o controle dos sindicatos e aí, o que aconteceu? A direção da Refinaria, que na época era particular, percebeu esse movimento de que o sindicato estava voltando a ser o sindicato dos trabalhadores e ela fundou uma associação para que os trabalhadores fizessem parte dela. Fundou a associação, saímos do sindicato dos químicos, que na época era já era um sindicato combativo, e a associação ficou sendo uma associação de pessoas indicadas pela direção da Empresa, para justamente amortizar os choques. E, aí, veio todo um trabalho que a gente começou a desenvolver de retomar a associação. Retomamos a associação – nessa época eu não fazia parte da direção ainda – e refundamos o Sindicato. Voltou a ser Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Destilação e Refinação do Petróleo de Mauá. Resgatamos o nome do sindicato original, lá de 1964, embora com outra autorização, mas tentamos resgatar tudo que tinha, até o simbolozinho daquele outro sindicato. Eu já tinha militância sindical, mas não fazia parte da direção ainda, porque, como eu dava aula, eu não tinha muito tempo. Até que em 1989, com a eleição do Collor e com as propostas do Collor, que eram claramente para gente, principalmente para o pessoal de petróleo e petroquímica, aí não teve jeito, eu tinha que ir. Então, em 1989, eu fui para a direção do Sindicato, naquela época eram três diretores liberados, eu fui um dos diretores liberados – liberado do trabalho para ficar só por conta da atividade sindical. Porque a gente já percebia a vitória do Collor e já tinha sido pronunciado que ele ia privatizar esse setor, então, a gente sabia que ia encarar luta pela frente. Aí, já foi uma tomada de posição mesmo: “bom, agora não dá mais, eu tenho que ir e tenho que participar.” Fui para a direção. Eu já participava do movimento todo, só não era da direção. Aí, teve a greve de 1988, que foi um marco. Então, na greve você acaba se envolvendo mais. Depois da greve de 1988, mais a eleição do Collor, aí não teve jeito. Houve um processo eleitoral, eu fui para a direção, fiquei no primeiro mandato como tesoureiro e no segundo fui presidente do Sindicato dos Petroleiros de Mauá – a gente fala petroleiros, mas o nome é antigo. LUTA CONTRA AS PRIVATIZAÇÕES O importante que eu quero registrar aqui também é que já naquela época, em 1990, a gente já foi para o movimento sindical sabendo qual era, basicamente, a nossa tarefa – que não seria básica, como uma luta sindical só do ponto de vista de aumento salarial ou coisa desse tipo. A gente sabia que ia enfrentar uma luta política também contra o projeto que previa a privatização. Em 1990 mesmo, nós fundamos o Movimento em Defesa do Sistema Petrobras, criado para fugir do movimento sindical, porque naquela época havia diversas correntes do movimento sindical. Criamos um movimento supra partidário e supra sindical, do qual todos podiam participar. Era basicamente um movimento em defesa das estatais. O Banco do Brasil, junto com a gente, criou um grupo e nós também criamos o Movimento em Defesa do Sistema Petrobras, que abrangia o pessoal das Petroquímicas e o pessoal da Petrobras mesmo. O Banco do Brasil também participou, porque havia uma proposta de privatizar os bancos estatais. Como, na época, boa parte desses sindicatos já pertencia à Central Única dos Trabalhadores, dentro da central nós decidimos criar um movimento que pudesse trabalhar acima de partido, acima de sindicato e de orientação, com todas as centrais. Então, criamos esse movimento, e esse movimento foi um marco mesmo. Foi um marco porque ele discutia com toda a sociedade. Ele tinha uma atuação no Parlamento, a gente montou uma base em Brasília. A gente fez um dossiê, um documento muito bem elaborado, eu me lembro até hoje – era “O Oligopólio Privado ou o Monopólio Estatal” – e esse documento foi entregue a cada parlamentar e discutido com ele. A gente ia nas escolas, em todas as escolas do interior, onde tinha um grêmio. A gente ia a todas as escolas públicas e o movimento foi crescendo, crescendo, se espalhou, se ramificou. Trabalhávamos juntos a idéia de que alguns setores não podiam ser privatizados. E aí, vinha a questão dos bancos federais, das telecomunicações – que a gente tratava como área de energia. Pegávamos os modelos que a gente tinha no mundo – e poucos eram privados – e aí colocávamos todos os exemplos. Foi um trabalho muito bom, muito intenso, inclusive, na época do Governo Collor. Logo que o Collor entrou, ele colocou algumas propostas de emenda da Constituição – as PECs – e uma delas previa a privatização de todo o sistema: petróleo e petroquímico. Isso tramita no Congresso por comissões e a gente fazia aquele trabalho corpo-a-corpo com parlamentares, deputados, senadores. Fazíamos atos nas diversas cidades, íamos nas escolas, fazíamos palestras, levávamos material, explicávamos para o pessoal o que era petróleo, por que era estratégico, por que não podia ser privado. Mostrávamos o que tinha acontecido onde ele foi privatizado – aquela história do Rockfeller na qual o próprio governo americano precisou intervir, na década de 20, 30, porque ele concentrou todas as empresas de petróleo, então racharam a empresa dele, a StandardOil, por ordem do governo – aquela coisa toda da história do petróleo, da geopolítica do petróleo, das guerras que tinham acontecido. Esse processo a gente detonou nas escolas, nas associações de moradores de bairro. APOIO CONTRA A PRIVATIZAÇÃO Em tudo lugar que a gente ia, por incrível que pareça, a aceitação era muita boa. Para muita gente era uma novidade e não era uma coisa de querer convencer a pessoa – os argumentos, os dados históricos apontavam tudo aquilo que a gente vinha dizendo, da necessidade de um setor estratégico, o que é que acontecia etc. Os estudantes, principalmente, não só percebiam o que a gente estava querendo dizer, como já se incorporavam ao processo, então participavam de passeatas, movimentos. Porque a gente também adotou uma linha que era a seguinte: a proposta de emenda constitucional vai para a comissão especial, tem um presidente, um relator e um grupo de parlamentares. Se ela sai daquela comissão especial com um relatório favorável, por exemplo, à privatização e esse relatório é votado e aprovado, isso faz com que o trâmite dela na Câmara seja muito mais fácil. Então, o que a gente tinha que fazer? Tinha que brecar essas emendas constitucionais, por exemplo, a privatização da Petrobras e das Petroquímicas, já na comissão. Então, precisava de atuação parlamentar. E aí, estudante ia com a gente no Congresso, ia atrás de deputado, a gente ia na base parlamentar de cada deputado. A gente sabia que o “deputado tal” estava meio indeciso, a área dele era, por exemplo, São Luís do Maranhão. Tinha um cara de São Luís do Maranhão, que era da Comissão. Então nós fomos para São Luís do Maranhão, na base eleitoral do cara. Fomos em todas as escolas, fomos nas emissoras de rádio, fomos em todo lugar que tinha o eleitorado daquele deputado, conversamos com a sociedade para que a sociedade cobrasse dele uma posição firme em relação a isso. E tudo isso ninguém nunca tinha feito no nosso movimento sindical. E foram se incorporando pessoas e entidades, e a coisa cresceu e foi um trabalho muito bom porque a gente conseguiu segurar aquele processo de tal modo que as propostas não vingaram, não conseguiram sair da comissão. Fomos aos partidos. A gente sabia que ia ter uma reunião do PMDB, a gente ia lá, conseguia um espacinho que fosse para entregar material, às vezes o cara abria um espaço para você conversar com os parlamentares que estavam reunidos. A gente fez isso também. Esse trabalho foi, para mim, um aprendizado de como funciona esse processo todo e foi um trabalho importante também, do ponto de vista de mobilização e de cidadania, que é muito importante. Foi muito bom. Acho que uma das boas experiências do movimento sindical que eu tive foi essa questão do Movimento em Defesa da Petrobras, essa discussão política toda com a comunidade. QUEDA DO GOVERNO COLLOR Isso foi até a queda do Collor. Fiquei mobilizado durante quase dois anos. Lembro que na queda do Collor, nós montamos telões em vários lugares para o pessoal acompanhar a votação do impeachment. Depois que o Collor caiu, essa coisa mudou um pouco, acalmou. E aí a orientação mudou também. Nós continuamos o trabalho, mas aí já em outra perspectiva. UNIFICAÇÃO DOS SINDICATOS / SP Isso também é interessante. A unificação é um processo que já era mais antigo, porque havia somente um Sindicato na nossa região, que era o Sindicato de Mauá, porque tinha a refinaria ali e tinha os terminais. À medida que a Empresa foi crescendo, foram-se criando mais bases, os terminais, os escritórios, e aí ficou difícil para o Sindicato atender na época ainda das intervenções, não era o Sindicato ainda. Aí, não dava, não tinha jeito. Então, se fundou um outro Sindicato em São Paulo. Na realidade, nem era para ter acontecido, mas aconteceu, se fundou um outro Sindicato em São Paulo, que eram companheiros da gente também. Porque cresceu muito, fizeram três terminais grandes em São Paulo, fizeram aquele escritório. Aí, acabou se fundando um outro Sindicato, mas eram companheiros com quem a gente trabalhava junto. E há muito tempo já, a gente discutia a idéia de reunificar São Paulo e Mauá, que tinham sido originalmente um sindicato só. Essa idéia era antiga. Nós tentamos isso em 1989, 1990, mas, em função daquelas dificuldades todas, de greve, daquela confusão toda da intervenção do Collor no Sindicato, acabou não acontecendo. Chegou quase a se concretizar. E agora, há coisa de três anos atrás, a gente trouxe a idéia toda de volta. A gente já vinha cultivando essa idéia há muito tempo, ela renasceu, e aí já não era de unificar só São Paulo e Mauá, mas todos os sindicatos do Estado de São Paulo. Por vários motivos: nas bases, com a questão da automação, foi diminuindo muito o número de trabalhadores. Segundo: as ações sindicais tinham que ser globais. Numa eventualidade, se você tivesse que fazer uma greve e parar uma unidade, não adianta parar só uma, você tem que parar várias unidades. Parar todas as unidades tinha que ser um processo mais global, mais conjunto. Então, isso daria força política, sustentação financeira para os sindicatos, que estavam encolhendo com a automação e, lógico, tinha a idéia antiga, tão perseguida, de unificar os sindicatos. Foi um processo que foi caminhando, caminhando, caminhando e nós conseguimos unificar os três sindicatos. A idéia era que se pudesse unificar os cinco. A gente espera que isso aconteça no futuro. A gente já está discutindo tudo para que Cubatão e São Sebastião entrem e São José dos Campos também. Mas foi todo um processo consciente. Quem primeiro aprovou a unificação foram os trabalhadores. Eles queriam unificar, porque a gente trabalhava junto, em tudo a gente trabalhava junto. Nas greves, a gente trabalhava junto, era tudo em conjunto. Então, nada mais indicado que unificar, porque você ganha força política, você ganha melhor sustentação para os sindicatos e, principalmente, você consegue ter ações mais incisivas e o seu poder de negociação aumenta. MODELOS DE UNIFICAÇÃO Nossa idéia não é unificar os sindicatos nacionalmente. Porque quando nós optamos, há um tempo atrás, nós tínhamos dois modelos de organização nacional que nós poderíamos seguir. Um seria a federação que é mais ou menos como a federação mesmo: os sindicatos se unem via Federação. E a outra seria um sindicato nacional, que é um outro modelo. Com um Sindicato Nacional, você passa ter um sindicato só de todos os trabalhadores e nas bases você tem representações regionais. Na época, foi muita discussão, plebiscito e os trabalhadores optaram por esse modelo federativo. Então, a nossa organização nacional hoje, por uma opção dos trabalhadores, via plebiscito, é o modelo federativo. Os sindicatos são mantidos e se unem através da Federação. O que a gente procurou no Estado de São Paulo foi em função da identidade política e da necessidade de estar agindo junto. Por exemplo: o petróleo todo que a gente usa em Campinas, em Mauá, em São Sebastião, em São José, chega todo pelo litoral, em São Sebastião, basicamente. Então, a gente depende do envio ou não do petróleo, gás, e exportação. Aí as atividades se inter-relacionam. O que gerou a idéia, a visão da unificação dos sindicatos do estado de São Paulo, foi a possibilidade da gente ter uma ação conjunta na medida em que as coisas estão todas inter-relacionadas. Mas não existe a perspectiva, não está colocado agora, de unir também os sindicatos de estados diferentes. Isso não está posto. O nosso modelo hoje – pode ser que mude – mas hoje, é o modelo. DIREÇÃO DO SINDICATO SÃO PAULO Eu sou Diretor Sindical do Sindicato Unificado de São Paulo e da Secretaria de Aposentados. Faço parte da Secretaria de aposentados também. O Sindicato é dividido em secretarias e os diretores são divididos também nas secretarias. Você tem a coordenação, a tesouraria e as várias secretarias. Eu faço parte da Secretaria de Aposentados e participo também de discussões. Tenho participado muito das discussões da Petros, desse processo todo que envolve o nosso Fundo de Pensão que está sendo reformulado, dessas mudanças que vão acontecer. PROJETO MOVA O Projeto Mova, na realidade, é um projeto de alfabetização de adultos. A gente até já tinha um projeto anterior a ele. No auge da crise econômica, já tinha a necessidade de requalificar os trabalhadores. O nosso sindicato é em Mauá. Mauá é uma cidade pobre, era uma cidade dormitório até bem pouco tempo atrás, com muitas carências. E ali, o primeiro que saiu do mercado de trabalho foi o trabalhador não qualificado, então era o nosso problema. Então, por ações e por uma série de organizações do partido e de causas da Central Única, na época já começaram a surgir esses embriões do MOVA, desse projeto de requalificação profissional. Então, já há muito tempo atrás, nós entramos fornecendo a estrutura do Sindicato – salas de aula, banheiro – como se fosse uma escola, e fizemos uma campanha com os trabalhadores para que eles adotassem monitores que iriam dar aula para essas turmas. Conseguimos recursos do FAT, na época, que era para vale-transporte, alimentação, que era para todos os trabalhadores que estavam desempregados, que estavam sendo requalificados. Também dentro dessa perspectiva o MOVA começou. A gente fez uma campanha, adotou os monitores, em dados momentos a gente cedeu as instalações também para o Movimento de Alfabetização de Adultos. A gente sempre procurou, embora eu só tenha citado esses dois projetos – por exemplo, os telões que eu coloquei anteriormente, mas não dei esse enfoque –trabalhar muito com a comunidade, principalmente lá, que era uma área muito carente. Então, já tinha um projeto antes que não era do Sindicato. Mas o Sindicato participou com a CUT, a Central Única dos Trabalhadores, já nesse processo de requalificação e alfabetização. E aí, quando o MOVA tomou corpo, foi fácil para a gente. Foi fácil continuar e entrar com tudo mesmo. Antes não era um projeto nosso, mas que nós adotamos, cedemos instalação, ajudamos. A experiência de alfabetização de adultos então, é um negócio muito gratificante. Quando ele começa a ler, quando ele começa a pegar um jornal e ler, é indescritível. O que ele transmite para você é indescritível. Eu nunca fui monitor não, a gente só participava ajudando. Mas a experiência de quando o cara começa a conseguir ler o letreiro do ônibus que ele tem que pegar, nossa É uma coisa muito legal, muito gostoso, viu? FILHA / MARIANA Hoje, o meu encantamento é que eu tenho o privilégio de ter uma filha de seis anos. Só tenho uma filha. A gente vinha batalhando há muito tempo. E eu tenho uma filha de seis anos que é a minha prioridade número um mesmo. O nome dela é Mariana, essa é a minha prioridade. LAZER / SÍTIO Mas eu tenho a atividade sindical e a gente tem o sítio no interior de Minas, aqui em Itajubá, e ali é o nosso lazer, cortar grama etc. Ali é meio interior, Itajubá é uma cidade que fica a 16 quilômetros, então a gente tem um sítio mesmo na área rural. E ali é a nossa diversão. Eu gosto muito desse tipo de atividade, de contato com terra, cortar lenha. Então, hoje, essa tem sido a nossa atividade de lazer, minha e da Silvana, minha esposa. E curtir a Mariana, principalmente. Ela gosta também e a gente vai para lá e fica por conta disso. Fora isso, é mais a atividade sindical e política. LEMBRANÇAS DO SINDICATO Uma conquista do Sindicato que tenha me dado mais prazer? Eu me lembro de uma em particular. Eu vou dizer duas: uma que me deu muito prazer e uma que até hoje me cobra muito. Uma conquista muito prazerosa mesmo foi todo aquele processo que culminou na Lei da Anistia, quando voltaram aqueles companheiros que tinham sido demitidos em 1964, lá na nossa base – tinha sido muita gente demitida. Lá tinha sido um foco de resistência muito grande, porque, pelo contrário, lá o pessoal queria ser Petrobras, eles voltaram para a Petrobras. E foi todo um trabalho sindical e de vários outros setores também. Um trabalho longo, de muitos anos. E quando os companheiros voltaram – aqueles companheiros de que a gente só tinha escutado falar, quase todos já estavam velhinhos – nós fizemos o máximo para recebê-los de tapete vermelho e escutar as histórias. Talvez quem tenha vivido mais isso tenha sido Bahia, a gente e Cubatão. Mas isso foi muito bom. Em 1979 foi a anistia e em 1985 eles voltaram. Então, de 1964 para 1985, vão 21 anos. Ver aqueles companheiros voltarem, só aquilo vale por tudo. Foi gratificante mesmo. Aqueles velhinhos, talvez a maior parte deles em situação difícil, com todo o tipo de história de vida. E a maioria deles voltou carregando a bandeira que saiu. Foi muito legal. Trabalharam conosco no movimento sindical, estiveram conosco nos movimentos em Brasília. Isso foi muito legal. E uma experiência que eu tenho que registrar também: um desses companheiros a gente não conseguiu fazer retornar. Porque na época do golpe, ele foi preso e sofreu algum tipo de tortura, ficou muito traumatizado e sumiu, foi lá para o interior do Pará e ficou lá. Não se teve mais notícia dele. Na época da anistia, foi muito difícil localizar muitos desses companheiros. E esse ficou por lá, só voltou para cá bem depois e ainda continuava assim, sem dar endereço nem nada. Aí, um dos companheiros o encontrou numa fila de banco ou de alguma coisa assim, reconheceu e falou: “olha, você tem direito a anistia e tal. Vá ao Sindicato.” E nós tentamos. O processo dele está correndo ainda, mas no nosso Sindicato especificamente, como ele foi fisicamente destruído, é muito difícil reunir documentação que consiga provar a coisa. Esse foi um dos que a gente teve mais dificuldade. Ele era suplente de dirigente sindical, era delegado sindical. Foi mandado embora por causa disso e teria que ter retornado. O processo dele a gente montou, correu atrás, está rolando ainda, mas ele já tem uma certa idade, deve ter 80 anos, não sei se vai conseguir ter o prazer, muito mais moral, de ser resgatado. É o senhor Antonio de Oliveira Domingos, eu me lembro claramente. Eu estava nos dois últimos anos do Sindicato, eu corri atrás o quanto deu. Me lembro direitinho do nome dele, Senhor Antonio de Oliveira Domingos. Um Senhor muito simpático, esclarecido. Essa é a tristeza que eu carrego do movimento sindical, de não ter conseguido ainda trazer esse companheiro. Continuo tentando. Agora o nome dele está nessa Comissão da Justiça, se conseguir alcançar ele a tempo, eu vou ficar feliz pra caramba. Talvez seja um outro grande momento desses de felicidade. PROJETO MEMÓRIA PETROBRAS Queria registrar que eu acho muito importante essa coisa da memória. Nós brasileiros temos muito pouco desse hábito de guardar a memória, o histórico das coisas. Às vezes, eu fico assistindo a alguns documentários e vejo que em algumas culturas existe essa coisa de ter a memória sempre presente, até como referência, como processo de aprendizado, ela fica registrada. E no Brasil, não se tem muito disso, se você precisa de algum dado histórico [é problemático]. Então, sob esse aspecto, do ponto de vista da história – de guardar mesmo, de você poder aprender, saber como foi – acho que é fundamental. E eu acho que esse trabalho só teria sentido mesmo se ele fosse feito também com a visão dos trabalhadores. Não me parece que teria muito sentido se só tivesse a visão de um lado da história, porque o poder político muda, então sempre se tem a visão do poder naquele momento – que nem sempre é uma visão real ou é uma visão apenas instantânea, não reflete todo aquele período de tempo. Eu acho que a participação do Sindicato nesse Projeto é de fundamental importância. Não estou tentando aqui, no caso da Petrobras especificamente, desqualificar ninguém, de jeito nenhum. Mas, ao longo dos tempos, tem que se ter a visão da parte dos trabalhadores que sempre teve o papel único, exclusivo – que sempre foi igual, que não muda em função das mudanças que ocorrem no poder. Então, a presença do movimento sindical e, principalmente, a possibilidade de trazer o depoimento dos trabalhadores mais antigos, que viveram a história, as lutas, é fundamental. Por isso eu acho que a participação do Sindicato e esse Projeto estão de parabéns, parabéns mesmo. Isso é fundamental, é o que a gente precisava ver. Eu já estava satisfeito de ouvir falar e estou satisfeito e feliz de ter participado.
Recolher