P/1 - Patrícia, vamos lá então. Qual o seu nome inteiro, onde você nasceu e em que dia foi?
R - Patrícia Costa dos Santos Martins, nasci em Pinheiro em sete de setembro de 1983.
P/1 - Pra quem não conhece o Maranhão, conte onde fica Pinheiro, mais ou menos.
R - Pinheiro é interior do Maranhão, localizada na baixada maranhense. Nasci lá e vim pra cá com trinta dias de nascida.
P/1 - Qual a distância de São Luís de lá?
R - Nunca prestei muita atenção nisso, porque quando eu vim eu custei a ir lá de novo.
P/1 - Mas se vai lá de canoa, de barco?
R - De ferryboat.
P/1 - Qual o nome completo da sua mãe?
R - Ana Inácia Costa dos Santos.
P/1 - Você conhece os seus avós por parte de mãe?
R - Sim, em Pìnheiro. Quando eu voltei, já adulta, eu conheci eles.
P/1 - Quais os nomes deles?
R - Da minha avó por parte de pai, Romana Lindalva Passos e, por parte de mãe, Osvaldina Costa.
P/1 - Os avôs já tinham falecido?
R - Não. Minha avó da parte de mãe faleceu há dois anos e a da parte de pai ainda está viva.
P/1 - A família da sua mãe é de Pinheiro mesmo?
R - De Pinheiro, e a família do meu pai também. Os dois são de lá.
P/1 - O que os seus avós por parte de mãe faziam?
R - A minha avó sempre viveu de lavar roupa pra fora. Teve uma vida muito sofrida, muito cansada. E a minha avó por parte de pai não, ela teve uma vida mais tranquila. Foi casada até que o marido faleceu e ela ficou viúva.
P/1 - Você conheceu sua avó por parte de mãe só [quando estava] mais velha?
R - Depois dos dez, doze anos.
P/1 - E como ela era?
R - Ela teve uma vida muito sofrida. Ela criou sete filhos praticamente só, lavando roupa pra fora, cuidando dos filhos, então ela era uma pessoa muito dura, muito ressentida da vida, por conta da situação que veio da família. Muito pobre, teve que trabalhar muito cedo pra criar esses filhos, então ela sempre foi mais dura, menos...
Continuar leituraP/1 - Patrícia, vamos lá então. Qual o seu nome inteiro, onde você nasceu e em que dia foi?
R - Patrícia Costa dos Santos Martins, nasci em Pinheiro em sete de setembro de 1983.
P/1 - Pra quem não conhece o Maranhão, conte onde fica Pinheiro, mais ou menos.
R - Pinheiro é interior do Maranhão, localizada na baixada maranhense. Nasci lá e vim pra cá com trinta dias de nascida.
P/1 - Qual a distância de São Luís de lá?
R - Nunca prestei muita atenção nisso, porque quando eu vim eu custei a ir lá de novo.
P/1 - Mas se vai lá de canoa, de barco?
R - De ferryboat.
P/1 - Qual o nome completo da sua mãe?
R - Ana Inácia Costa dos Santos.
P/1 - Você conhece os seus avós por parte de mãe?
R - Sim, em Pìnheiro. Quando eu voltei, já adulta, eu conheci eles.
P/1 - Quais os nomes deles?
R - Da minha avó por parte de pai, Romana Lindalva Passos e, por parte de mãe, Osvaldina Costa.
P/1 - Os avôs já tinham falecido?
R - Não. Minha avó da parte de mãe faleceu há dois anos e a da parte de pai ainda está viva.
P/1 - A família da sua mãe é de Pinheiro mesmo?
R - De Pinheiro, e a família do meu pai também. Os dois são de lá.
P/1 - O que os seus avós por parte de mãe faziam?
R - A minha avó sempre viveu de lavar roupa pra fora. Teve uma vida muito sofrida, muito cansada. E a minha avó por parte de pai não, ela teve uma vida mais tranquila. Foi casada até que o marido faleceu e ela ficou viúva.
P/1 - Você conheceu sua avó por parte de mãe só [quando estava] mais velha?
R - Depois dos dez, doze anos.
P/1 - E como ela era?
R - Ela teve uma vida muito sofrida. Ela criou sete filhos praticamente só, lavando roupa pra fora, cuidando dos filhos, então ela era uma pessoa muito dura, muito ressentida da vida, por conta da situação que veio da família. Muito pobre, teve que trabalhar muito cedo pra criar esses filhos, então ela sempre foi mais dura, menos carinhosa, menos participativa com a gente.
P/1 - E ela ficou em Pinheiro.
R - Sim, ela sempre morou lá. Ela nunca saiu de lá pra lugar nenhum.
P/1 - E o seu avô por parte de mãe?
R - Os avôs eu não conheci. Por parte de mãe, a gente nunca teve contato mesmo, porque a minha avó foi sempre mãe solteira. Por parte de pai, também não. Com sete, oito anos ele já tinha falecido.
P/1 - Você disse que a sua avó era muito dura. Como assim?
R - Era pouco atenciosa, pouco carinhosa. Não tinha muito esse contato com a gente, diretamente.
P/1 - E a sua avó por parte de pai era assim também?
R - Não, ela era mais presente. Quando a gente viajava pra lá, ela estava sempre presente, principalmente com os filhos. Ela é uma mãe muito carinhosa, muito dedicada. Ate hoje, quando ela liga ela pergunta como está todo mundo, se está todo mundo bem. E ela sempre foi assim com todos os netos, muito próxima quando todo mundo vai pra lá. Sempre fomos mais pra casa da avó por parte de pai do que da de mãe.
P/1 - Conte um pouco mais sobre o jeito da sua avó por parte de pai. Descreva ela pra mim.
R - Ela é uma pessoa muito ativa. Está com 93 anos. Todos os anos, em setembro - ela faz aniversário bem próximo da minha data; meu pai faz [no dia] seis, eu [no dia] sete e ela [no dia] oito - a gente acaba comemorando todo mundo junto.
Ela é muito participativa em tudo. Conhece os netos, gosta muito. Todo mundo tem que ir pra lá pra passar o dia. Todas as vezes, a gente está sempre presente na casa dela, quando [a gente] pode.
P/1 - Ela aconselha vocês, conta histórias?
R - Sim. Ela conta muitas histórias da adolescência dela, e sempre aconselha a gente a obedecer os pais, a ter cuidado com as amizades. Ela gosta muito, conta histórias da infância dela, como foi lá em Pinheiro, das festas de carnaval que ela gostava de participar… Sempre conta muita história pra gente.
P/1 - E você lembra de alguma que lhe vem à cabeça agora? Alguma de carnaval, por exemplo?
R - Ela contava dos blocos de carnaval, que em Pinheiro são tradição até hoje. Todo mundo vai pra curtir o carnaval de Pinheiro. Traíra de óculos, que ela participava, onde os homens se vestiam de mulher e as mulheres se vestiam de homem. É uma tradição muito forte lá, então ela contava que gostava de participar dos blocos. E quando passava nas ruas, depois que ela já estava casada, ela gostava de ficar assistindo esses blocos.
P/1 - Você chegou a ver algum deles?
R - Não, ainda não cheguei a ver.
P/1 - Ela cozinha pra vocês?
R - Hoje não, hoje a gente cozinha mais pra ela, só que ela participa. Está sempre próxima, perguntando o que a gente está fazendo, que faz daquele jeito, bota uns temperos diferentes… Até hoje ela participa, nesse sentido.
P/1 - Ela cozinhava o que pra vocês?
R - Ela gostava de fazer peixe. Lá na baixada é mais peixe, o povo gosta muito. Ela gostava muito de cozinhar peixe pra gente, ou fritar. Até mesmo pra gente trazer na viagem ela fritava o peixe, colocava dentro da farinha, guardava pra conservar e a gente trazia pra casa, pra passar dias lanchando esse peixe frito.
P/1 - E como é a casa dela?
R - A vila que ela mora é como a Vila Canaã. São casinhas, todas iguais. É uma casa bem simples, mas bem aconchegante, onde os netos, os filhos estão sempre presentes.
P/1 - Qual o nome inteiro do seu pai?
R - Zacarias Passos dos Santos.
P/1 - Você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R - Eles eram vizinhos. A casa da minha avó era do lado da casa da minha outra avó. Meu pai é dez anos mais velho que a minha mãe e ele se apaixonou por ela. Naquela época, ele foi pedir pra namorar a minha mãe; a minha avó por parte de mãe permitiu - ela tinha quinze anos, ele [tinha] 25. Eles se conheceram e se casaram. Na época era bem mais isso, namorar e casar com consentimento dos pais.
P/1 - Você nasceu em casa, em hospital? Como foi?
R - Em hospital, lá em Pinheiro.
P/1 - Sua mãe e seu pai contaram como foi?
R - Minha mãe contou. Eu nasci no dia sete de setembro, dia da Independência do Brasil. Eram dez horas do dia e estava tendo uma festa imensa em Pinheiro, que era a festa da Independência. Naquela época, passava a polícia, os carros, todo mundo fazendo aquela… O Hino Nacional tocando e todo mundo passando.
Ela estava na janela, olhando aquela… Como eu posso dizer? Aquela beleza. Lá eles contemplavam pela janela os blocos, as pessoas passando, as bandeiras, todo mundo dançando.
Ela começou a sentir dor, só que [tinha] muita gente na rua e não tinha como… Ela chamou a minha avó, que morava bem do lado, na casa dela e disse que estava sentindo as dores do parto. A minha avó disse que como iria chamar o médico, porque naquela época não tinha tantos tipos de transporte. Era bicicleta ou carroça, cavalo… Ela acabou pedindo pra vizinha; a vizinha acabou conseguindo atravessar aquele monte de gente batendo tambor e cantando, e conseguiu chamar o médico, Doutor Maneco. Ele foi, pegou a ambulância e levou ela pro hospital.
O meu nome, ela tinha vontade de colocar Maria Rita. Minha avó disse que não, que como eu tinha nascido no Dia da Pátria, ela achava mais bonito colocar Patrícia. E até hoje eu agradeço muito a minha avó por isso. (risos)
P/1 - Você conhece esse Doutor Maneco?
R - Não, porque ele já faleceu. Era um doutor muito conhecido em Pinheiro, muito renomado. Minha mãe sempre dizia que ele já era um senhor bem velhinho naquela época.
P/1 - Quantos irmãos você tem?
R - Eu tenho oito.
P/1 - Qual o nome deles?
R - Tem o Valdo, o Junior, que tem o mesmo nome do meu pai, o José Inácio, o Michael, o Fábio, o Eduardo, a Ana Rita e a Rita de Cássia - por isso [meu nome] seria Maria Rita, pra poder completar os nove. (risos)
P/1 - E como você está nessa escadinha de irmãos?
R - Eu sou a penúltima. O último é o Michael, o caçula. Das irmãs eu sou a mais nova.
P/1 - E qual é a diferença de idade entre você e seu irmão mais velho?
R - São nove anos.
P/1 - Foi praticamente um atrás do outro. Não tem tanta diferença.
R - Isso. Não tem tanta diferença de idade.
P/1 - Você nasceu em Pinheiro. Por que você foi pra São Luís?
R - Fomos direto pra São Luís, por questões de trabalho. Meu pai morava em Pinheiro, mas trabalhava em São Luís. Quando ele chegou no oitavo filho, que fui eu, ele decidiu vir pra ter uma vida melhor - custo de vida melhor, emprego mais próximo. Decidiu deixar a casa de lá e veio morar em São Luís. Eu tinha trinta dias de nascida, então praticamente me criei no Anjo da Guarda. Morei lá 26 anos. De lá eu só saí pra cá, pra Vila Canaã.
P/1 - Suas primeiras lembranças, então, são do Anjo da Guarda. Você consegue puxar as primeiras lembranças que você tem da sua vida?
R - Eu consigo puxar… A primeira escola. Naquela época, a gente não tinha muito a questão da educação infantil. Você ia diretamente pro primeiro ano, então eu lembro muito da professora do primeiro ano, a professora Sandra. Ela marcou muito a minha vida, por isso até que eu [me] decidi [por] essa profissão, de professora.
P/1 - Como era a Sandra? Por que ela te marcou?
R - Ela era uma pessoa muito boa, muito simples, que tentava entender as situações, porque… Nove filhos, uma vida corrida que meu pai tinha, de trabalhar muito, minha mãe também tinha que ajudar em casa com as costuras, fazendo comida pra fora. A gente tinha pouco tempo pra sentar com os pais, conversar, ter aquela atenção toda, aquele carinho; acaba-se transferindo isso um pouco pra professora, que é aquela pessoa que pergunta como foi seu dia, ajuda nas tarefas… Acabou equivalendo isso tudo.
P/1 - Quando você nasceu, como era a casa de vocês no Anjo da Guarda?
R - Nossa casa, quando chegamos, era de palha. Meu pai chegou, ele logo comprou uma casinha. Ele conta que passou uns seis meses de aluguel; foi muito complicado, com nove crianças. Era muito difícil, então ele comprou uma casinha de palha. Logo depois, ele começou a fazer essa casa de tijolo, porque ele é pedreiro. Ele fez toda por fora e deixou a casinha de barro no meio.
Ele diz que um dia, quando a casa estava quase pronta, a de barro caiu. A minha mãe conta que saiu correndo com as nove crianças, a menor no colo, e a casa desabou. Aí adiantou, ele teve que fazer urgente o telhado e deixar aquela casa só o quadradão. Depois que ele foi dividindo, aí ele fez… Na minha casa tinha três quartos: um do casal, o das meninas e o dos meninos.
Depois ele comprou mais um terreno e conseguiu fazer uma casa maior. Ele fez uma casa de dois andares, com mais espaço, com ambiente pra gente brincar e um quintal muito grande. Remete muito à vila, muita fruta no quintal, muitas plantas.
P/1 - Vocês brincavam muito nesse quintal?
R - Sim, a gente brincava muito, subia nas árvores. Tinha um rio atrás, a gente brincava muito no rio; jogava futebol, bolinha de gude. Tinha muitas brincadeiras legais que a gente fazia.
P/1 - Vocês brincavam com as crianças da rua também?
R - Meu pai deixava pouco. Ele sempre foi muito rígido, forte com a gente. No final da tarde, minha mãe deixava a gente brincar, das quatro às seis. A gente brincava um pouco, jantava e dormia; a gente tinha uma vida muito certinha, tudo combinadinho. Depois das seis, já vai entrar pra casa, jantar e dormir cedo pra ir pra escola de manhã.
P/1 - Sua mãe ficava em casa?
R - Ficava, mas o tempo todo ocupada, costurando pra fora ou fazendo comida. Minha mãe trabalhava fazendo comida, ela pegava muita encomenda dentro de casa. Nunca trabalhou pra fora por causa dos filhos; como eram nove crianças, ela não tinha com quem deixar. Os mais velhos sempre tomavam conta dos mais novos. E ajudavam também quando ela fazia o ____ pros meus irmãozinhos levarem nas bicicletas, e quando ela fazia as roupas também. O pessoal vinha, ela fazia as roupas, aí no dia ela botava num saquinho, embalava e iam levar. Eles pegavam o dinheiro e traziam pra ela.
P/1 - Você se lembra dela fazendo essas coisas, como era?
R - Lembro bastante, principalmente na costura. Ela passou mais tempo com isso. Ela costurava fardas, fazia roupas pro carnaval, roupas pro Natal. Quando chegava a época de Natal, ela não parava; até quase meia-noite ela estava terminando de costurar roupa pra alguém, fazendo algum detalhe… E principalmente no carnaval, que tinha que fazer as fantasias, as roupas de Fofão, várias roupas que as pessoas encomendavam daquele estilo, pra sair no carnaval. Era a época que ela mais se apegava à costura, até as duas, três horas da manhã costurando.
P/1 - E como era a cozinha de vocês? Devia ser grande.
R - A cozinha era grande. Tinha um espaço que a gente chamava de barracão, porque tinha um espaço muito grande que meu pai cobriu. Naquele espaço, ela colocava todas as panelas em cima e ia colocando a comida no bandequinho - o arroz, o feijão, macarrão, salada… Montando. Ela sempre tinha alguém que ajudava e meus irmãos, que já estavam mais velhos, sempre ajudavam nessas tarefas de casa.
P/1 - O que ela cozinha que você mais gosta?
R - Macarrão.
P/1 - Por quê? Como ela faz?
R - Porque ela sempre coloca molho de tomate. Ela nunca desaprendeu a fazer com molho de tomate. Ela gosta. Ela coloca muito molho de tomate nas comidas dela, ela não coloca muito outro tipo de tempero. Ela faz bem suave, mas sempre tem que ter o toque especial do molho de tomate, que ela gosta.
P/1 - Nessa casa, você se lembra de já ter contato com rádio, TV? Vocês assistiam?
R - Sim, a gente já assistia, mas era aquela questão que eu te falei: era muito regrado. Tinha que ir pra escola de manhã; quando você chegava ao meio-dia, tinha aquele costume todos os dias, de almoçar, descansar - um pouco, não podia almoçar e sair brincando, fazer zoada ou ir pra rua. Almoçou, tinha que descansar, então das duas às quatro a gente assistia desenhinhos. Sempre tinha um desenho pra assistir, mas sempre dormindo cedo pra ir pra escola de manhã.
P/1 - E você assistia o que, você se lembra?
R - A gente gostava de assistir Pica-pau, Caverna do Dragão… Era mais esses desenhos bem educativos - ela não gostava que a gente assistisse filmes de terror muito fortes, ou de duplo sentido. Ela nem gostava que a gente assistisse Pica-pau, ela sempre comentava que ele era muito danado. (risos) Mas a gente sempre tentava assistir um desenhinho, a gente gostava e assistia à tarde.
P/1 - E sentava todo mundo junto?
R - Todo mundo junto. Lá nós éramos assim, principalmente na hora do almoço: almoçava todo mundo junto. Tinha uma mesa, meu pai... A gente tinha duas mesas na casa: uma mesa pra todo mundo e tinha a mesa só dos filhos. Eram nove cadeirinhas naquela mesa e cada um tinha seu pratinho, então todo mundo já sabia em cada ponto da mesa sentar e cada um sabia [qual era] seu prato. Ninguém brigava, ninguém mexia nas coisas do outro.
P/1 - Vocês não brigavam muito, então.
R - Não. Meu pai não gostava, ele nunca permitiu que a gente brigasse. Quando um irmão brigava, ele colocava de castigo. Ele sempre foi muito severo com a gente. Às vezes dava umas palmadas, mas não permitia que a gente brigasse entre irmãos.
P/1 - Como você falaria sobre a relação com seus irmãos?
R - Foi muito boa, a gente sempre se deu muito bem. Quando chegaram na fase adolescente, por divergências alguns brigaram - aquela rebeldia toda -, mas comigo, graças a Deus, não, principalmente pela parte dos irmãos. Seis irmãos homens, todos mais velhos que eu, eu [era] praticamente a caçula, então eles sempre cuidaram muito de mim. [Eles] me protegiam, não me deixavam sair sozinha, tinham um cuidado muito grande. Até hoje eles têm isso, qualquer coisa eles me perguntam, conversam comigo. A gente é muito unido nesse sentido.
P/1 - Em que rua vocês moravam? Qual era o nome?
R - Era Doutor Salomão II, porque tinha duas ruas Doutor Salomão no Anjo da Guarda, uma em cima e a outra embaixo.
P/1 - O que tinha nessa rua? Como era?
R - Essa rua era bem simples. Uma rua de comprido, que de uma parte dava pro bairro do Fumacê e parte dava pro Anjo da Guarda. A gente ficava bem concentrado no meio. Era uma rua bem bonitinha, toda feita de bloco, que a própria comunidade arrumou; meu pai desde cedo teve essa questão da comunidade, de trabalhar em grupo.
Era muito legal, porque dava pra gente brincar de bolinha de gude, dava pra jogar queimada, pra pular elástico. Dava pra fazer várias atividades e não tínhamos essa preocupação de passar carro, porque era uma rua que não dava saída pra outro lado. Ela ficava entre uma rua e outra, não tinha saída prum lado. Tinha uma escadaria que subia pro Anjo da Guarda e pro lado de lá a gente ia pro Fumacê. Era uma rua super tranquila porque não tinha movimento de carro e não tinha brigas, porque o povo era muito unido. Quando tinha festa na rua, todo mundo se unia pra fazer junto, [no] Natal botava mesa na rua e todo mundo junto, porque era uma rua tranquila mesmo.
P/1 - O bairro do Anjo da Guarda, como ele era e como é hoje?
R - Na época, ele era um bairro muito violento, mas tinha poucas coisas. Depois ele começou a crescer. Hoje é um bairro muito movimentado; se você for, parece a cidade de São Luís mesmo. Ele praticamente é uma [região] metropolitana de São Luís. É um bairro grande, tem todas as lojas. As ruas todas asfaltadas, tem várias escolas. Praticamente virou uma cidade.
P/1 - Em que escola você foi estudar o primeiro ano?
R - Na Escola Severiano de Sousa, uma escola comunitária que tinha perto da nossa casa. O senhor era uma pessoa muito guerreira, que lutava muito por essa comunidade, e quando ele faleceu colocaram o nome dele na escola.
P/1 - Você o conheceu?
R - Conheci.
P/1 - Ele era diretor, professor?
R - Não, ele era um líder comunitário, do estilo do meu pai. Era uma pessoa que lutava pela comunidade. O caso é quase parecido: a filha dele se formou em Pedagogia e depois de alguns anos assumiu a direção da escola. Mas ele nunca foi estudado, ele era uma pessoa que lutava pelos direitos da comunidade.
P/1 - Você ficou até que ano nessa escola?
R - Até a quinta série.
P/1 - Tem algum professor que te marcou nessa escola?
R - Só depois do ensino médio.
P/1 - Nessa escola você teve boas experiências, más experiências?
R - Eu tive boas experiências. Até hoje a gente tem muitos amigos dessa época, da quinta, sexta série. Era muito legal porque era todo mundo muito próximo, tipo aqui, na Vila Canaã. Morava todo mundo muito próximo - primos, irmãos, todo mundo estudando junto. Remete muito mesmo à questão da vila, essa proximidade com todo mundo.
P/1 - Nesse período você já tinha alguma matéria que gostava mais?
R - Eu sempre gostei muito de matemática. Português gostei demais, mas também gostei muito de matemática por conta do meu pai, que é muito bom e me ensinava. Quando eu trazia os deveres da escola, por mais que ele não tivesse muito tempo, ele sempre me ajudava. Sentava pra me ajudar.
P/1 - O seu pai fazia o que nessa época?
R - Ele trabalhava de mestre de obras. Começou como pedreiro. Foi sempre muito batalhador. Ele nunca foi formado, mas sempre teve essa vontade de ser engenheiro civil, então ele trabalhava nessa área.
Era muito puxado, ele saía muito cedo, às cinco da manhã, e chegava às dez. Às vezes tinha que fazer hora extra por conta de tudo isso - nove filhos, tanta conta pra pagar que ele acabava trabalhando muito pra poder manter, não deixar nada faltar. Era muito cansativo mesmo, sair muito cedo e voltar muito tarde da noite.
Poucas vezes a gente se encontrava quando eu era criança, [era] final de semana ou de vez em quando, porque a vida dele era muito corrida.
P/1 - Quando vocês saíam no final de semana, o que vocês faziam?
R - A gente ia pra praça do Anjo da Guarda, que até hoje é muito conhecida por fazer uma festa da ressurreição de Cristo. A gente ia principalmente quando tinha festa de São João, porque era um mês de festa na praça… Bumba-meu-boi, quadrilha, tambor de crioula, várias festas. Íamos sempre à noite, assistir essas brincadeiras no São João e no carnaval também, porque tinha blocos [que] passavam nas ruas, os Fofões. Era mais ou menos isso.
P/1 - Como era a festa da ressurreição de Cristo?
R - Ela funciona assim: são três dias de festa. Mostra a vida de Cristo, o nascimento, a morte e a ressurreição. No último dia da ressurreição, é uma festa muito linda. As pessoas se emocionam muito, porque vem gente de todos os bairros, de todos os lugares - de Pinheiro, de outros estados - pra assistir essa festa. É muito linda, marca muito a história do Anjo da Guarda com o teatro Itapicuraíba. O povo passa o ano inteiro ensaiando, todos equipados com as roupas daquele tempo de Cristo. É uma festa que marca mesmo o Anjo da Guarda.
P/1 - Vocês desde sempre tinham religião, iam à igreja?
R - Sim. Desde uns dez, onze anos, meus pais se tornaram evangélicos, então tivemos mais ou menos esse costume. Todo mundo acabou indo pra esse caminho de participar dos cultos, de domingo sempre estar na igreja, nas reuniões das escolinhas da igreja, participando da vida religiosa.
P/1 - Por que eles se tornaram evangélicos? Foi mais sua mãe ou seu pai?
R - Foi mais a minha mãe. A vida dela foi muito puxada. Na última gravidez, ela acabou ficando um pouco doente, entrou um pouco em depressão, e ficou depois um pouco viciada em vinhos. Não era assim um vício, mas ela tinha que tomar, até porque alguém tinha dito pra ela… Na época que ela estava doente, ela tinha consultado outra parte de religião, vamos dizer assim. A umbanda. A pessoa disse que ela tinha que fazer um trabalho e tomar esses remédios, que ela ficaria boa. Ela acabou se viciando, todo dia ela tinha que beber, mas ela não era uma alcoólatra nem ficava agressiva.
Depois ela foi pensando que não era o certo, que ela tinha que tomar conta dos filhos e tinha que trabalhar, então não poderia se dedicar a isso. Ela mesma decidiu que iria pra igreja e foi, se converteu; depois ela convenceu meu pai e foram os filhos também.
P/1 - Na época vocês iam a que igreja? Era no Anjo da Guarda mesmo?
R - Era no Anjo da Guarda. Na época, a gente ia à Universal.
P/1 - Como era essa igreja?
R - Era uma igreja legal. A gente participava dos cultos quase todos os dias, principalmente no domingo, que meu pai tinha mais tempo. Nós íamos ao culto de manhã cedo e à tarde sempre estávamos em casa.
P/1 - Além do culto, imagino que havia várias atividades…
R - Sim. Quando éramos pequenos, participávamos da escolinha bíblica, que é onde ensinam a orar, a respeitar os pais; depois, na adolescência, tínhamos o grupo jovem. Saíamos pra evangelizar, pra brincar - tinha gincanas de uma equipe contra a outra… Era bem divertido.
P/1 - Aprendia a cantar, a tocar...
R - A cantar na frente, a fazer oração, ler a Bíblia. Cada vez era um jovem que tinha que ler a Bíblia na frente ou cantar.
P/1 - Isso cria um laço entre a comunidade, entre os irmãos?
R - Cria um laço, sim, porque tínhamos que ir juntos. E criava uma competição, mas era legal. Cada equipe, por exemplo, tinha que fazer uma tarefa: “hoje quem vai trazer mais jovens", “hoje quem vai trazer o melhor cantor”, “quem vai fazer a melhor oração”, então criava-se uma competição legal, a gente sempre queria competir com os outros.
P/1 - E você via a igreja ajudando a comunidade nessa questão de prevenção a drogas? Como era isso?
R - Sim, tínhamos muito trabalho de evangelização nas comunidades e tínhamos também trabalho de arrecadação de alimentos, principalmente no grupo jovem. Saíamos aos finais de tarde no domingo, às vezes quatro, cinco horas da tarde pra fazer arrecadação de alimentos e pra doar pra aquelas famílias mais carentes da igreja ou de próximos da igreja que estivessem necessitando. E também o trabalho de visitar as casas, de fazer oração, conversar com a pessoa, de convidar pra ir à igreja.
P/1 - E essa questão de recuperação de pessoas que estão viciadas?
R - Tinha as visitas, mas isso era com grupos de senhores ou senhoras, que iam às casas de recuperação, aos presídios fazer visitas, levar coisas pra eles - Bíblias, conversar… Estavam sempre com eles. Mas era dividido: os jovens iam fazer as atividades mais fáceis pra eles, porque os jovens não poderiam entrar em um presídio ou em uma clínica. Os mais velhos - os homens, principalmente - iam fazer as visitas nos presídios e as mulheres ficavam orando, fazendo outro tipo de trabalho dentro da igreja.
P/1 - Você saiu do quinto ano e foi pra outra escola? Pra onde você foi?
R - Foi pro Cema do Anjo da Guarda.
P/1 - Cema é sigla do quê?
R - Centro de Ensino Médio Anjo da Guarda.
P/1 - Era uma escola comunitária também ou não?
R - Não. Era uma escola municipal.
P/1 - E de lá você ficou da sexta até a…
R - Da sexta à oitava série. Lá era tipo a Vila Canaã: uma escolinha era de educação infantil, da educação infantil você saía pro primeiro a quinto [ano], do sexto ao nono era outra escola e ensino médio já era [do] Estado, então tinha outra escola. Mas tudo nas redondezas da comunidade.
P/1 - E como é que foi no Cema?
R - Foi muito legal. Era uma escola muito renomada, até hoje… Creio que em São Luís hoje só existe um Cema, mas em cada bairro existia um. Era uma escola muito vista pelo município, muito cuidada. Os alunos tinham que estar com fardamento completo, todos adequados à série certa, à idade certa. Tinha todo aquele cuidado pro aluno não repetir de ano e tinha muito apoio do município: os alunos recebiam cadernos, borrachas, lápis, todo o seu kit pra que não faltassem à escola.
Era uma escola muito rígida. A diretora de lá era muito temida, muito conhecida, a diretora Bárbara.
P/1 - E como ela fazia pra ser temida assim?
R - Ela era bem mediadora. Ao mesmo tempo que ela era brava, que ela brigava, chamava, ela também era muito acolhedora. Depois que ela dava aquela bronca toda, ela ia conversar, perguntar o que estava acontecendo, pra entender por que aquele aluno estava fazendo coisas que não eram certas. Por a escola ser muito rígida, tinha a primeira chamada, a segunda e a terceira acabava causando suspensão ou transferência daquele aluno pra outra escola.
Como era uma escola de vagas muito limitadas, os pais tinham que passar muitas horas na fila pra conseguir vaga, então a gente tinha aquele medo: “Meu Deus, e se eu perder essa vaga? Se meu pai vem aqui me bater ou me botar de castigo?” Então ela repassava muito isso pra gente, esse cuidado. “Tem muita gente querendo uma vaga aqui e vocês ficam brincando.” Remetia muito isso pra gente.
P/1 - Depois você passou pra qual escola?
R - Eu passei pro Cemag, que também era um complemento do Cema, mas já era Estado - Centro de Ensino Médio Anjo da Guarda.
P/1 - Você ia com algum irmão pra escola?
R - Fomos até a sexta, sétima série. A gente nunca estudou junto. Como cada um tinha uma idade, por mais que tivesse um ano de diferença, cada um era [de] uma série. Quando eu estava fazendo a sexta, meu irmão já estava fazendo a sétima.
Às vezes a gente ia junto, às vezes não. Como ele era menino, ele gostava mais de ir na frente, porque era a hota da gente fugir um pouco da pressão dos nossos pais. Ele ia na frente brincar um pouquinho, eu já ia mais com as minhas colegas. Ele ia com os meninos, pegando uma fruta, pulando o muro de alguém, pra poder se soltar um pouco daquela pressão toda.
P/1 - Desse tempo todo na escola, do infantil até o médio, que amizades suas ficaram?
R - Ficaram muitas amizades. O Luís Carlos, a Merceli, a Nilziene e a Vanessa, somos amigos até hoje. Começamos na quinta série, terminamos a oitava juntos e até hoje somos muito amigos. Eles moram no Anjo da Guarda e toda vez que temos tempo de se ver, embarcamos pra tomar um suco, comer uma pizza, passear. Às vezes eles vêm pra Canaã, às vezes eu vou pra lá. Estamos o tempo todo em comunicação.
P/1 - E no ensino médio você disse que os professores marcaram você.
R - Não, No ensino médio… Eu falei que teve uma professora só, a professora Benvinda. Era uma professora de português muito rígida, então os alunos tinham muito respeito por ela, um certo temor. Quando ela entrava na sala, todo mundo sentava caladinho, ninguém dizia mais nada. Mas era uma excelente professora. Buscava as atividades da gente, pegava no pé, observava farda, a unha, observava a gente de ponta-cabeça. todo mundo tinha que estar ali aprumadinho, como ela dizia pra gente. Todo mundo tinha que estar com a farda limpa, tudo bonitinho.
P/1 - O seu pai fez questão de todo mundo terminar os estudos?
R - Ele fez questão, mas eu tive um irmão que não concluiu o ensino médio porque... Como eu falei, eles todos ajudavam muito em casa, principalmente os mais velhos. Os mais novos tiveram um pouco mais de mordomia, já estávamos com uma vida financeira melhor, meu pai já tinha uma estabilidade melhor.
Os mais velhos tiveram que trabalhar muito cedo. Todos eles são pedreiros, praticamente; todos entendem de construção porque tinham que trabalhar com meus pais. Às vezes tinham que ir com papai pra alguma obra, pra ajudar mesmo. Às vezes estava um pouco aperreado, então iam pra carregar um tijolo, botar água, fazer uma massa… Eles se acostumaram a trabalhar cedo.
Meu irmão mais velho, quando chegou à oitava série, ele não quis mais continuar, mesmo com meu pai brigando, falando, ele não quis. Mas ele foi o único.
P/1 - Nessa época, no ensino médio, você pensava em seguir alguma carreira?
R - Eu pensava em fazer Direito. O ensino médio todo eu passei nessa vontade.
P/1 - Por que você queria isso?
R - Era uma profissão que eu achava bonita, que eu achava importante. Era uma profissão que eu admirava muito.
P/1 - E já nessa época você tinha namorado?
R - Não, porque meu pai era muito rígido. Ele não deixava a gente sair assim. Pra sair pra praça pra assistir alguma coisa, tinha que ir com os irmãos. Quando tinha algum evento, a gente ia junto, então eles acabavam vigiando muito. Não deixavam de jeito nenhum eu sair pra conversar com alguém ou brincar. Era todo mundo ali próximo, assistindo aquela brincadeira e [quando] terminava, todo mundo ia pra casa junto.
P/1 - Você saiu do ensino médio e foi fazer o que, então?
R - Quando eu saí do ensino médio, aí sim eu comecei a namorar um rapaz da igreja. Foi pedir pro meu pai pra [me] namorar e ele permitiu, então a gente namorou e eu casei bem jovem. Meu sonho era fazer uma faculdade, mas acabei não fazendo logo. Acabei casando cm essa idade.
P/1 - Teve filhos nesse casamento?
R - Tenho dois filhos, um de dezesseis e outro de doze [anos].
P/1 - Você teve já naquela época?
R - Depois de quatro anos. Eu casei com dezoito, com 21 eu tive o meu primeiro filho. Depois de mais quatro anos eu tive o segundo.
P/1 - Com esse mesmo marido.
R - Com esse mesmo marido.
P/1 - Qual é o nome dele?
R - William.
P/1 - Quando você casou com ele, você saiu de casa?
R - Sim, alugamos uma casa e logo depois a gente conseguiu comprar uma casa próxima à casa do meu pai. Uma vizinha que conhecia a gente desde pequeno… A filha dela acabou tendo leucemia e ela precisava muito desse dinheiro pra tentar salvar a filha, então ela vendeu por um preço muito bom pra gente, até parcelado, pra que pudesse ter esse dinheiro e pagar o tratamento. E aí eu comprei a minha casa do lado do meu pai, no Anjo da Guarda.
P/1 - O William fazia o que na época?
R - Ele era artista plástico.
P/1 - Ela pintava, fazia escultura?
R - Ele fazia quadros, vendia e dava aula de pintura.
P/1 - Como foi o dia do nascimento do seu filho?
R - Foi muito bom. A gente planejava, queria muito depois de quatro anos, então foi uma gravidez tranquila, superfácil. Não senti nenhum problema, era jovem também.
De noite, eu comecei a sentir aquelas dores do parto, só que eu não quis assustar ninguém. “Eu não vou chamar minha mãe e meu pai agora. Está muito tarde."
Quando chegou cinco horas da manhã, a dor começou a aumentar. Aí sim eu fui chamar meu pai e minha mãe, pra falar que eu estava sentindo dores. A vizinha do lado, a dona Lúcia, ouviu, então ela foi lá pra casa. Ficou lá comigo, deu a maior força, fez um… Eles chamam de mingau de pimenta do reino, que aumenta a dor pra poder dilatar e ter o parto mais rápido. Ela fez esse mingau pra mim.
Quando eu tomei, começou a aumentar muito a dor. suava, não aguentava, aí ela disse: “Não te preocupa, deixa que eu vou contigo pro hospital.” Ela disse pra minha mãe não se preocupar, porque a sobrinha dela trabalhava lá. Ela conhecia muitas pessoas nessa maternidade, que era a Nossa Senhora da Penha, lá mesmo, no Anjo da Guarda.
Foi rápido. Ele nasceu bem pequeno, com dois quilos e com cinquenta centímetros. Ele era bem magrinho.
P/1 - Como foi a escolha do nome dele?
R - Foi muito complicada. O único nome que eu queria colocar era Waddington, por causa do Ricardo Waddington, que era cinegrafista. Eu gostava desse nome. Eu já tinha decidido, muito antes de eu ter filho eu dizia: “Quando eu tiver um filho,o nome dele vai ser Waddington." Quando veio, eu coloquei esse nome.
P/1 - Foi parto normal?
R - Foi parto normal.
P/1 - Do segundo também?
R - Do segundo também, mas foi mais complicado. Quando eu engravidei, eu passei… Primeiramente, foi meio difícil porque eu não queria. Eu pensei: “ Meu filho vai fazer quatro anos, eu vou ficar mais independente pra voltar a estudar.” Foi quando eu engravidei do segundo, aí eu fiquei um pouco abalada. “Poxa, logo agora que eu ia voltar a estudar, fazer aquilo que eu queria...” Foi uma gravidez um pouco difícil.
Nessa época, estávamos no processo da Vila Madureira. Meu pai comprou um sítio lá e foi morar, praticamente passava mais tempo lá do que com a gente no Anjo da Guarda. Minha mãe também, sempre ocupada, então eu ficava muito tempo sozinha. Quando meu pai começou na Vila Madureira, a fazer parte de toda a comunidade, a única pessoa que estava mais próxima era eu. A maioria dos meus irmãos já tinha ido embora pra São Paulo e eu fiquei mais próxima do meu pai, então eu tive que ir pra lá com ele.
Além de ser uma gravidez mais complicada, eu não tinha tanto tempo. Eu tinha que sair todos os dias de manhã cedo pra ir pra Madureira e voltar à tarde. Às vezes tinha que ir pro serviço e pegar ônibus, aí enjoava no meio do caminho, passava mal, então foi um pouco mais difícil.
P/1 - O dia do nascimento foi mais tranquilo?
R - Também não foi. Nós já estávamos aqui na vila, mas como eu fazia o pré-natal… Eu estava pensando em fazer laqueadura, tinha decidido que não teria mais filhos depois desse. Eu já tinha planejado, então eu teria que voltar pro Anjo da Guarda pra ter ele, fazer a laqueadura e voltar pra cá de novo.
Quando deu oito horas da manhã, eu estava com muita dor.
P/1 - Aqui na Vila Canaã.
R - Aqui na Vila Canaã. E minha mãe estava ocupada, porque tinha que ficar com meu outro filho, que só tinha quatro anos. Meu pai estava resolvendo outras coisas e o seu Zé Domingos, que morava do lado da minha casa, ia pro Anjo da Guarda nesse dia. Eu estava com muita dor e ele disse: “Eu te levo, te deixo lá e depois alguém vai te acompanhar. Se alguém quiser, vai junto e eu te deixo lá.”
Eu fui pra Nossa Senhora da Penha pra ter ele. Cheguei lá umas nove horas. Eu fui ter ele [às] quatro e meia da tarde, já cansada, sem forças. Simplesmente fiquei lá e não tive ninguém pra acompanhar, nem pra dizer o que eu estava sentindo.
Ao meio-dia, meu pai ligou pro hospital, perguntando se eu já tinha ganhado o nenê. A moça disse: “Não, nem sei quem é a Patrícia. Ela está aqui?” Ele disse: “Está”. Ficou muito bravo. Disse que ia ao hospital, que não ia dar certo porque isso não se fazia, não era justo.
Quando deu umas três horas, uma enfermeira passou perguntando se eu estava sentindo muita dor. Eu disse: “Eu estou.” “Mas você está aí, deitadinha. Por que você não…” “Eu não consigo nem levantar. Tô sentindo muita dor e fico com medo de levantar e acontecer alguma coisa.”
Ela foi e tinha uma menina do meu lado. Ela disse: “Você está com muita dor, eu vou chamar alguém.” Ela foi chamar, disse: ”Olha, a menina não tá mais aguentando. Se ela não conseguir ter essa criança agora, ela vai morrer.”
Eu não tinha comido nada, desde as oito horas da manhã naquele sufoco todo. Quando deu quatro e meia da tarde, eu já não aguentava mais. Foi aí que o médico chegou, examinou tudo; levou pra sala de parto, botou um soro pra que aumentasse a dor, pra forçar um parto normal - eu não sei se era o correto, mas foi um parto normal.
Foi muito cansativo. Eu estava com fome, cansada, com dores o dia inteiro pra ter essa criança, e sem acompanhamento nenhum. Depois do parto, me deram um pouco de sopa e eu fui descansar.
A moça do lado, que estava tendo neném, a mãe dela me conhecia. Disse: “Olha, a Patrícia tá aqui do lado. Ô, minha filha, teu filho já chorou tanto!” Eu disse: “Eu estava cansada, consegui dormir um pouco agora.” Aí ela colocou ele do meu lado, ficou do meu lado até que a minha cunhada chegou, umas sete horas da noite, pra ficar comigo, passar a noite no hospital. O segundo parto foi mais complicado pra mim.
P/1 - Seu pai chegou a que horas?
R - Ele não foi. Ficou tentando resolver as coisas por aqui, aí entrou em contato com a minha cunhada. Depois do serviço, ela conseguiu ir pra lá e passar a noite comigo.
P/1 - Ele nasceu de nove meses?
R - Certinho, nove meses. Nasceu com quase quatro quilos, já um meninão. Minha mãe sempre falava se eu consegui ver o parto. Eu disse: “Não consegui.” “Imagina se trocaram teu filho?” Eu disse: “Se trocaram, eu vou ficar com esse, não devolvo mais não.” A gente tem essa brincadeira até hoje, ela sempre pergunta, mas ele é muito parecido comigo.
P/1 - Indo pra Vila Madureira, o seu pai, a sua família começaram a ter contato com a região quando e por quê?
R - Foi praticamente em 1998. Meu pai comprou um sítio lá, de um senhor, o seu João. Ele queria vender, então meu pai comprou, mais pra finais de semana. “A gente vai pra lá, tem um espaço melhor.” O Anjo da Guarda não era mais aquela vila, era um bairro mesmo, muitas casas. A maioria das plantas do quintal já tinha acabado, o rio tinha secado; já tinha virado uma cidade, com todos os seus prejuízos, então ele resolveu comprar esse sítio.
Ele tinha um caseiro pra tomar conta de lá e aos finais de semana nós íamos pra lá, num caminhãozinho azul que ele tinha. Ia todo mundo em cima do caminhão, os vizinhos… “Vamos pro sítio?” “Vamos!” Ia todo mundo pra lá fazer churrasco, botar rede, descansar, as crianças brincavam.
P/1 - Quanto tempo levava do Anjo da Guarda pra lá?
R - Acho que quinze a vinte minutinhos, não era muito longe. Era perto.
P/1 - Depois que você teve o seu segundo filho, você tinha 26 anos…
R - 26.
P/1 - Foi bem no ano de mudança pra cá, é isso?
R - Foi. Na verdade, eu já tinha mudado pra cá. Mudei pra cá grávida dele e no dia do parto eu tive que ir ao Anjo da Guarda pra ter ele. Tive que sair daqui bem cedo, tive ele no Anjo da Guarda e voltei dois dias depois.
P/1 - Provavelmente, foi a primeira criança que nasceu aqui.
R - Isso.
P/1 - Ele tem a idade do polo também.
R - Isso. Ele tem a idade da vila, onze anos.
P/1 - Você continua com o seu marido?
R - Não. Depois do meu segundo filho, eu fui trabalhar. Nós nos mudamos pra vila, aí teve a construção da escola, que foi um projeto da Eneva. A própria empresa fez com a gente um… “Vocês vão pra vila e vão ter escola, posto de saúde, mas também vão ter a chance de trabalhar próximo à casa de vocês.” Fizeram um convênio com a prefeitura pra que as pessoas que morassem na vila pudessem também ter a chance de trabalhar perto de casa.
Quando eu tive ele, com três meses a Beth, junto com a prefeitura, fizeram um [processo] seletivo fechado de currículos, chamando algumas pessoas pra trabalhar na escola. Ela terminou de ser construída em abril; em agosto de 2009 ela teria que funcionar, porque já estava tudo regularizado.
Foram selecionando currículos e a Beth me perguntou: “Você não teria vontade de trabalhar na escola, no administrativo? Você tem ensino médio completo, tem vários cursos. Você é uma pessoa muito comunicativa. Vamos colocar esses currículos na escola e vamos ver no que vai dar.”
Foi quando me chamaram pra trabalhar no administrativo da escola, fazendo matrícula, dando declaração, essas coisas. Foi meu primeiro contato com essa área da educação, aí eu me apaixonei. Logo depois, eu fui fazer faculdade de Pedagogia.
P/1 - Vamos voltar um pouquinho. Conta como era a casa de vocês na Vila Madureira. Como era a vila na época?
R - A vila já era uma área para ser industrializada. Não tinha muita coisa, a não ser aquele matagal todo e muita fruta, porque o pessoal que morava lá tinha plantações, sempre teve.
O acesso pra lá era muito difícil. Nós tínhamos que ir de carro ou de outro transporte, descer num certo ponto e de lá descer andando, porque era uma ladeira bem grande.
Não tinha nada próximo; todas as pessoas que moravam lá estudavam no Anjo da Guarda, na Vila Embratel ou na Vila Maranhão. Não tinha nada lá, a não ser as casas, os sítios. As casinhas eram todas de palha e o povo cultivava ali suas plantinhas pra sobreviver.
P/1 - Antes de vocês chegarem, tinha gente lá também?
R - Tinha o seu Zulu e outras pessoas que já tinham sítios, já moravam lá há muito tempo. Tinha pessoas que diziam que nasceram lá, [eram] de alguma vila próxima e fizeram [casa] lá porque era uma área de matagal e não tinha nenhum cuidado.
P/1 - Eles viviam da agricultura?
R - Isso, da pesca e da agricultura. Lá tinha um riozinho [em] que o pessoal pescava e tinha agricultura também. Alguns criavam galinha, porcos e levavam pra feira do Anjo da Guarda pra vender.
P/1 - Você já sabia ou tinha ideia de que viria alguma empresa com projeto lá?
R - No começo, não. Papai comprou esse sítio pra passarmos o final de semana. As pessoas que estavam próximas - ele, seu Zé Domingos, seu Paraíba - compraram sítio e tinha pessoas que eles botavam pra cuidar. As pessoas que tomavam conta também pediam: “Me dá um pedacinho de terra pra eu construir uma casa, porque eu não tenho onde morar.” Eles começaram dessa forma, a dar um pedacinho pra fulano, a fazer uma casinha aqui, a construir uma casa do caseiro ali, de alguém que cuidasse das plantas… A vila foi se construindo assim.
P/1 - Quando chegou a primeira empresa, pedindo uma mudança?
R - A primeira empresa não foi a MPX. Acho que foi no ano de 2004. Se não me falha a memória, foi a Diagonal. Foi a primeira que passou, fez todo o levantamento, mediu as terras e fez todo um trabalho de topografia, conheceu a área.
P/1 - Eles vieram conversar com vocês sobre uma possível mudança?
R - Sim, eles vieram conversar com alguns moradores, [dizendo] que ali era uma área industrial e não servia pra morar porque tinha outras empresas ao lado, que ia prejudicar a comunidade com a fumaça.
Nessa época, meu pai, o seu Paraíba, o seu Zé Domingos e o seu João, conversando entre si, imaginaram uma associação pra que as pessoas que estivesse na comunidade tivessem uma garantia melhor. Eles teriam uma garantia melhor, um terreno maior, mas como iriam ficar as pessoas que só tinham uma casinha e realmente não tinham onde morar?
Meu pai me chamou, falou que eles pretendiam montar uma associação. Como eu tinha um pouco mais desse conhecimento, eu poderia ser a secretária pra fazer as atas, participar das reuniões, buscar informações de como se monta uma associação, com os documentos necessários.
Chegamos a um consenso. O primeiro presidente da associação foi seu Zacarias, o seu Zé Domingos era o vice, o seu Paraíba era o tesoureiro. Depois que o irmão Paulo saiu, colocaram o irmão Ivaldo. Eu era a secretária.
Montamos uma associação pra regularizar, pra que todo mundo saísse de lá melhor, não pegasse somente uma indenização em dinheiro e não soubesse o que fazer com aquilo.
(PAUSA)
P/1 - De onde veio essa experiência de dizer: “Talvez se não tivesse organizado a associação, a gente vai sair de mãos abanando”? Veio do seu pai?
R - Eles - o seu Zé Domingos, o seu Paraíba e o seu João, conversando… Eles contam essa história até hoje: debaixo de uma árvores, eles decidiram que seria melhor montar uma associação, porque pelo menos teriam uma garantia de que não chegassem e dissessem simplesmente “vocês vão ter que sair”. A empresa poderia dizer isso e ponto.
P/1 - Como foram as negociações com a Diagonal, você se lembra?
R - Foi um pouco difícil, porque a empresa queria só indenizar. “Quanto vocês querem pelo terreno? A gente vai analisar o valor.” Buscando esses valores em termos de documento, eles iriam perder muito. Simplesmente pagar um valor pelo seu terreno ou pela sua casinha de terra não daria muito. Seria um valor muito baixo, vamos dizer, de cinco, oito, dez mil; as pessoas não teriam condições de pegar esse dinheiro e construir uma casa, principalmente em um bairro como o Anjo da Guarda e bairros com um custo de vida maior.
P/1 - Por conta disso, como foi com a Diagonal?
R - Depois a empresa mesma achou [que era] muita desvantagem pagar esses valores. Na verdade, a empresa estava pretendendo mesmo só tirar [a gente] de lá. Quando a empresa viu que eles já estavam se organizando, montaram essa associação, teve eleição, reuniões com atas feitas e registradas, ficaram com um certo temor. “Acho que eles vão querer um pouco mais, ter direito a mais.” Então a Diagonal não deu mais assistência, não voltou mais.
P/1 - Então se não fosse a organização…
R - Se não fosse a união do povo pra lutar pelos seus direitos, muita gente teria saído muito prejudicada.
P/1 - O seu pai ou você já tinham tido alguma experiência nesse sentido, de organizar uma comunidade?
R - Na verdade, ele sempre veio dessa luta. Não em associação, mas quando morava no Anjo da Guarda, sempre foi a comunidade. ”Vamos passar um cimento aqui na rua, vamos arrumar esse poço.” Ele sempre teve essa postura, de trabalhar em comunidade. Ele já vinha com isso desde a adolescência. Tudo o que ele fazia era: ”Vamos todo mundo junto. Aquele poço entupiu” - lá no Anjo da Guarda, era poço, antigamente. “Vamos limpar o poço, desentupir o esgoto aqui.” Ia todo mundo junto, fazia um lanche, tinha todo aquele movimento. Ele tinha mais ou menos essa experiência.
P/1 - No Anjo da Guarda você disse que tinha uma liderança muito forte.
R - Tinha esse senhor, o Severiano Souza, que já vinha nessa luta. O seu Zequinha também, sempre teve essa luta com as escolas comunitárias, com comunidade formada, com organização não-governamental, então ele tinha esse conhecimento.
P/1 - Quando veio a MPX?
R - Creio que no ano de 2008. De 2004 a 2008 ficou parado, mas sempre [havia] aquela expectativa que alguma empresa ia chegar e tirar o povo de lá. Acho que em 2008 a MPX chegou com a mesma proposta, conversando com todo mundo.
Na época, eles combinaram que só iriam conversar com todo mundo junto. Não iriam mais na casa de fulano, de sicrano e ir perguntando. As reuniões seriam todas na associação, todo mundo junto: a empresa botando as suas ideias, eles botando as deles, pra chegar num consenso e não sair perdendo nem a empresa, nem eles. A partir dessa época, começou a ser assim. Toda a comunidade unida pra ouvir as propostas e ver o que era melhor pra todo mundo.
P/1 - Então foi diferente em relação à Diagonal.
R - Sim,
P;1 - Como foram as negociações? Vocês começaram demandando o quê, já tinha um projeto?
R - Sim, começamos na reunião a programar a questão do deslocamento pra outro local. Por que não se deslocar todo mundo junto pro mesmo local, pra pelo menos ficar próximo? Se fosse aquela questão da indenização, você pegaria o seu dinheiro e iria embora pra outro local, onde ninguém mais ia lhe ver, ou você iria simplesmente gastar todo o dinheiro e precisar, sem saber como… Então eles começaram a pensar em uma comunidade. “Não, a gente quer sair daqui todo mundo junto, pra outra comunidade, onde a gente possa ter escola, posto de saúde e campo de futebol, que era o que eles tinham lá. Não era um campo, tinha uma terra em que eles jogavam bola, como diversão nos finais de semana. Tudo isso foi registrado em ata.
P/1 - E mais pra frente surgiram mais demandas.
R - Sim. Depois foi se pensando em um posto policial, uma casa de cultura, igrejas.
P/1 - Do tempo que chegou a MPX até a mudança foi quanto tempo?
R - Foi praticamente um ano.
P/1 - Teve também pessoas que discordaram do plano?
R - Sim. Tivemos pessoas que preferiram pegar o seu valor em dinheiro e sair fora. Simplesmente decidiram: “Eu só quero o valor do meu terreno, da minha casa, dos bichos que eu tenho aqui no quintal.” Foi tudo somado, pagaram e foram embora. Decidiram não participar mais da comunidade.
P/1 - A maioria ganhou?
R - Não, creio que… O que mais eu lembro é do seu Manuel, mas o resto, a maioria preferiu… Porque a maioria não tinha casa pra morar, então optaram mesmo pela casa [na vila].
P/1 - Uma casa de alvenaria.
R - Isso.
P/1 - Você se lembra de quem tocava isso na MPX?
R - Na época, era a Deise que estava sempre à frente, junto com a Secretaria de Desenvolvimento do Estado do Maranhão, com a Margareth. Logo depois, veio a Franciel… Não me lembro agora do nome dela. Por último, quando viemos pra vila, foi que chegou a Elisabeth.
P/1 - Em que ano, mais ou menos? Você se lembra?
R - A Elisabeth chegou em 2009.
P/1 - Vocês tinham que escolher o terreno?
R - Sim. Fomos visitar várias áreas. Eu não fui tanto, porque como o terreno era do meu pai, então ele estava à frente de tudo.
Foram ao Gapara, que é uma área próxima ao Anjo da Guarda. É uma área que ainda não tem muitas casas construídas, tem muito terreno ainda, mas lá tinha problemas, parece que era de irmãos - um queria um valor, outro queria outro. Começou aquela polêmica toda e a empresa precisava de uma resposta urgente, aí eles começaram a visitar outros locais.
Foram ao Maracanã, em várias áreas que eles queriam que fossem parecidas com a de lá, locais em que pudessem ter suas casas e suas plantações. Foram em vários locais, até chegar aqui em Paço [do Lumiar]. A primeira vez que vieram visitar, aqui tudo era só mato, não tinha mais nada. Optaram [por aqui] porque era só um dono, tudo regularizado, pesquisado. E também era um município em crescimento - Paço do Lumiar não era muito reconhecido nessa época, então seria bom trazer essa comunidade pra um município que estava crescendo gradativamente, junto com a gente.
P/1 - E como foi a escolha do polo agrícola?
R - Foi o mesmo processo. Eles vieram aqui e foram ao polo agrícola também. A área de plantação de Paço é Pindoba, Iguaí, aqui é mais área pra casa, loteamento. Acharam um pouco longe, mas acabaram optando porque seria melhor ter essas duas áreas do que simplesmente não ter essa área ou demorar mais esse processo e a empresa ou eles acabarem decidindo não fazer mais esse contrato.
P/1 - Quem vier aqui vai ver que tem um terreno vazio, tem a vila e atrás tem também. Esses dois terrenos são da Vila Canaã também?
R - Não. Tem alguns terrenos que quando a empresa comprou [a Vila Canaã] já tinham outro dono. Próximo à dona Toinha é um terreno particular, próximo à nossa feirinha também é um terreno particular. Só não aqui; esse terreno próximo ao campo, que está vazio, é da associação. Esse entrou junto com o nosso.
P/1 - Não é de nenhum morador em específico.
R - Não. O sonho é construir uma creche [ali], mas não com educação infantil. Uma creche pras mães deixarem os filhos e poderem trabalhar tranquilas.
P/1 - Aqui o terreno não é próprio pra agricultura?
R - É próprio, mas não está adequado porque ele é todo [de] loteamento. Toda essa área é vendida, particular, ou empresas compram pra construir casas pra vender, então ele não poderia ser um polo agrícola.
P/1 - Como foi a sua mudança? Você lembra do dia?
R - Lembro. Foi no dia 27 de maio, à tarde. Foi… 27 de março. Depois de um mês, em 27 de abril, eu tive o meu filho.
Eu vim um mês antes. A minha mãe ficou muito preocupada, porque eu estava perto de ganhar neném, mas meu pai [disse]: “Não, você vai primeiro, vai organizando e depois eu chego com mais tempo.”
Estavam fazendo as mudanças gradativamente. Em uma semana eram [feitas] três ou quatro mudanças, conforme se organizavam. A empresa cedeu um caminhão pra fazer as mudanças. Começava às oito horas da manhã, então até que trouxesse toda a mudança e voltasse pra pegar a das dez ou onze, eram quatro mudanças por dia - duas de manhã e duas à tarde.
Cheguei aqui de tardezinha, quase de noite.
P/1 - O que você sentiu quando veio pra cá?
R - Eu estranhei muito porque eu sempre tive muito contato com o Anjo da Guarda, aquele movimento todo, aquela bagunça toda de muita festa, muito carro, muitos amigos, todo mundo próximo. Eu praticamente me criei lá, cheguei com trinta dias de nascida e fiz muitas amizades.
Quando cheguei aqui, criou um certo medo. “Um lugar deserto, meu Deus! Só tem mato pra aqui, pra lá. Vamos fazer o que aqui?” Por outro lado, nós gostamos por conta do silêncio, da calmaria, de um lugar que remetia mais ao interior.
P/1 - E já tinha algumas pessoas.
R - Já. A família da dona Isabel foi a primeira que veio. Creio que já tinham vindo umas doze famílias ou mais, antes de mim.
P/1 - E nesses primeiros dias como foi? Vocês trocavam coisas se faltasse algo?
R - Não. Não teve muito esse contato porque quem veio já trouxe suas coisinhas, suas compras. Não tinha ninguém próximo, não conhecíamos ninguém pra comprar nada. Eu, particularmente, já tinha feito aquela compra pro mês todo, comprado tudo o que precisava, e deixando sempre um dinheirinho reservado porque a qualquer hora eu poderia sentir a dor do parto, [estava] sempre preocupada com isso. Sabia que tinha que pagar um táxi pra ir ao hospital e pra voltar.
Todo mundo veio trazendo suas coisas e mais um dinheirinho, pra qualquer eventualidade.
P/1 - Como era a estrutura quando vocês chegaram aqui? Já tinha luz, água?
R - Já tinha luz e água.
P/1 - Você se lembra da primeira visita que fez pra outra família?
R - No primeiro mês eu fiquei mais dentro de casa, mas tinha o seu Zé Domingos, ele morava próximo à minha casa. Por a gente se conhecer tanto da Vila Madureira quanto do Anjo da Guarda, eu fiquei muito próxima da… E minha mãe sempre falava pra ele e pra esposa dele, a dona Valda, pra Laurinete, que era a menina que morava com eles, pra eles estarem atentos, [que] qualquer coisa que eu precisasse… Eram as pessoas com quem eu mais tinha contato. A gente sentava na porta à tarde pra conversar, ela sempre perguntava… Qualquer coisa que eu precisasse, pra eu pedir porque ele tinha carro. À noite, ele estava disponível.
P/1 - Não tinha muro alto nessa época, não é?
R - Não, na época era um muro feito das plaquinhas. A casa era dois quartos, sala, banheiro e a cozinha.
P/1 - Era pintado de que [cor] do lado de fora?
R - Branco. Todas elas eram brancas.
P/1 - Então vocês conseguiam se ver de lá da outra ponta.
R - Sim, conseguíamos porque o muro era baixo e dava pra ver tranquilo.
P/1 - Vocês conversavam por…
R - Conversávamos por cima do muro.
P/1 - Você já tinha feito isso na vida?
R - Não, não tinha feito porque no Anjo da Guarda, um bairro muito movimentado, não dava pra fazer isso, ter as plantinhas no quintal. Não dava muito, não.
P/1 - Como foi plantar árvores aqui?
R - A gente começou tudo num projeto. A própria Eneva começou a fazer as plantações. Começamos a fazer dias de campo, que até hoje existe no polo. Esse dia de campo é a colheita, todo mundo junto. Começou a mesma coisa na vila. “Vamos pra praça, plantar essa árvore.” Ia todo mundo junto.
Onde é o posto policial hoje, era a nossa horta comunitária. Era só feito o quadradinho e tinha de tudo lá: cheiro verde, tomate, enquanto não se tinha acesso ao polo. Pra remeter um pouco à Vila Madureira, a Eneva construiu uma horta comunitária bem no meio [da vila]. De tardezinha, [a gente] ia pegar um cheiro verde… Até o polo ser montado e começar a produzir.
P/1 - A Eneva entrou em que ano?
R - Foi cedo. Do processo de 2008, foi um ano só. Conhecemos a Eneva em 2008. Em 2009 já estávamos aqui na vila, e a Eneva sempre acompanhando. Não era a Eneva, era a MPX; a Eneva passou depois. Com esse nome, foi lá por 2013.
P/1 - Como foi o começo do polo agrícola? Você se lembra?
R - Eu não lembro muito porque do polo agrícola eu não participo, a não ser às vezes, quando eles pedem… Somos duas associações: a associação da Vila Nova Canaã e a associação do polo. Teve que se criar duas associações porque ia ficar muito pesado pra uma pessoa só tomar conta das duas. Eu não me lembro muito porque não participei desse processo. Eu fiquei mais na vila.
P/1 - Quando vocês chegaram aqui, o que vocês perceberam que ainda faltava, que tinha sido combinado no início?
R - Quando chegamos, nós tínhamos a escola, a UEB Canaã. A escola já estava sendo construída. Em agosto, a empresa nos entregou a escola toda montada e o contato com a prefeitura pra fazer essa parceria; a empresa construiria a escola e a prefeitura entraria com a parceria de manter a escola e os funcionários, contratar esse funcionários da própria comunidade pra gerar renda e emprego.
Depois, no ano de 2010, conseguimos o posto de saúde. A empresa foi construindo tudo que prometeu, mas gradativamente. Não construiu tudo e vai todo mundo junto.
A escola começou a funcionar, pegamos muitos alunos próximos, porque a Vila Canaã não supria tudo isso. Tínhamos apenas… Não temos nem cem crianças dentro da comunidade, mas mesmo assim a escola começou a funcionar e até o final do ano conseguimos trabalhar tranquilamente. As pessoas que já moravam próximas, como da Vila do Povo e Novo Horizonte já começaram a tirar [as crianças] das escolas mais longe e trazer pra nossa, que era mais próxima.
Em 2010, aí sim eles nos entregaram o posto de saúde. Nós íamos nos consultar na Pindoba ou no Mocajituba, aqui embaixo; fizeram essa parceria pra gente participar de tudo das outras comunidades, enquanto o nosso [posto] ainda estava em processo.
Uns dois anos depois - três, praticamente - foi o posto policial. Tínhamos a hortinha lá, o pessoal começou a ir para o polo agrícola, então aquela hortinha começou a morrer, porque o povo que cuidava era mais os agricultores. Nós não tínhamos muito esse cuidado porque não sabíamos como cuidar. Começou a ficar um terreno vazio, aí começou-se a cobrar pelo posto policial, que era uma segurança pra nossa comunidade. A empresa construiu porque tudo foi registrado em ata, ela estava cumprindo o seu papel - aos poucos, mas estava cumprindo.
P/1 - No início, como era a relação da Vila Canaã com as vilas do entorno?
R - No começo, foi um pouco pesado porque eles achavam que nós estávamos sendo privilegiados pela prefeitura, ou não entendiam esse processo. Quando chegamos aqui com escola, com toda essa infraestrutura, criamos um laço com algumas pessoas e inimizade com outras.
“Por que essa comunidade chegou e tem posto, tem isso, aquilo e a gente não tem?”
Aí fomos explicar o processo: “Não é a prefeitura, não é o município. É uma negociação com a empresa.” Eles foram entendendo como foi o processo de como aconteceu tudo isso.
P/1 - E depois vocês começaram até a servir…
R - Começamos até a servir eles. O plano do começo era a Vila Canaã ser fechada; passar um muro, fazer um condomínio, aí a gente voltou pra ideia da comunidade. “Poxa, como é que a gente vai fechar com tantas comunidades no entorno? Nós vamos criar mais inimigos.” Pra eles seria pior. “Fecharam a comunidade porque não querem a gente lá.” Então pensamos [que seria] melhor não fazer esse muro e fechar a Vila Canaã.
Eles começaram a vir à nossa escola, a procurar vagas, a participar do posto de saúde. E a gente sempre levava essas informações. “É nosso, a comunidade é nossa e está aqui pra servir todo mundo.” Mas foi um processo um pouco complicado, porque no começo criou-se uma rixa. Às vezes, vinha gente de outra comunidade pichar parede, quebrar alguma coisa da praça, um brinquedo, riscar a parede do posto…
Começamos a ter reuniões, pra explicar pra todo mundo o que acontecia. Graças a Deus, hoje a gente conseguiu criar um vínculo com eles. Hoje não acontece pichação, nada disso porque eles nos consideram. A gente virou uma irmandade.
P/1 - Tem outras associações aqui no…
R - Temos a Associação da Vila do Povo, do Novo Horizonte. Todas essas comunidades, logo depois, começaram a criar associações.
No mês passado, eu estive na Vila do Povo. Eles estavam fazendo uma reunião pra montar uma associação e me convidaram pra participar. Eles conseguiram entender que uma associação, uma comunidade unida consegue um pouquinho mais do que aquilo que eles ficam pedindo às vezes e não são tão vistos. Eles começaram a entender, as comunidades próximas daqui começaram a aprender com a gente.
P/1 - Como foi a criação da associação daqui?
R - Aqui ela não foi criada, ela foi transferida, Nós já tínhamos na Vila Madureira. Lá se criou uma ata de transferência e um estatuto de mudança. Já existia a UECOM, a União de Moradores da Vila Madureira, e depois se tornou a Associação dos Moradores da Vila Residencial Nova Canaã. Quando chegamos aqui, tivemos que ir ao cartório pra mudar endereço, mudar documentação.
P/1 - Por que se escolheu o nome Vila Nova Canaã?
R - Porque, na verdade, é o Loteamento Nova Canaã. Novamente eles, com a ideia - e papai na frente - acharam que deveria ser Vila Residencial Nova Canaã. eles não queriam tirar esse “vila”, não entendo por quê. Eles queriam esse “vila” no meio, “porque remete à vila onde a gente morava”, então ficou assim.
P/1 - Mas por que Canaã?
R - Esse loteamento todo aqui é Nova Canaã. Aqui nessa área, eles usam esses nomes bíblicos - Nova Canaã, Novo Horizonte, Nova Jerusalém… Já existia esse nome.
P/1 - Na Bíblia, Canaã é o quê?
R - A terra prometida.
P/1 - Em que parte? É no Velho Testamento que aparece?
R - É do Velho Testamento.
P/1 - É como se fosse o céu?
R - É como se fosse uma terra onde emana leite e mel, dá bons frutos. Uma terra que é produtiva, então eles remeteram muito isso pra eles. Um lugar que a gente pode plantar, colher, que vai dar tudo isso de novo.
P/1 - Vocês acharam coincidência?
R - Achamos muita coincidência essa ideia, Nova Canaã. A Bíblia já falava sobre isso, a maioria das nossas pessoas é evangélica - tinha o irmão Ivaldo, então gostaram desse nome. A Bíblia relata isso: “Darei-lhes uma nova terra e se chamará Nova Canaã”.
P/1 - Que doideira…
R - (risos) Mas combinou perfeito. (risos)
P/1 - Combinou bastante.
Agora me conta da UEB. Quando começou, quem eram os professores e o administrativo?
R - Olha, os professores eram todos contratados pela prefeitura. Eu fui [do] administrativo pela manhã, com os alunos do primeiro ao quinto [ano]; a Val ficou à tarde, com os alunos do sexto ao nono [ano] e a Bruna ficou à noite, com os alunos do EJA [Educação de Jovens e Adultos]. Nós tínhamos educação do primeiro ao quinto, o fundamental maior, do sexto ao nono, e tinha a educação de jovens e adultos, então eles contrataram três [funcionárias para o] administrativo pra ficar na diretoria, fazendo matrícula…
Nós fizemos um pequeno curso. Depois que fomos contratadas, veio uma pessoa da SEMED [Secretaria Municipal de Educação] e passou uma semana nos ensinando como é que [se] trabalhava com essa documentação escolar - quais os documentos necessários, como a gente teria que fazer as matrículas, assinar bonitinho, guardar esse documento.
Nós fomos gostando dessa ideia. Depois, a gestora da escola começou a observar essa questão da gente. Ela disse: “Pati, por que você não faz Pedagogia? É muito a sua área. A gente vê que é uma coisa que você gosta."
Eu fui a primeira e comecei. Logo depois, a Val também resolveu fazer Pedagogia e começamos a trilhar esse caminho. Hoje, a Bruna tá quase terminando. Ela começou Educação Ambiental, depois optou por Pedagogia porque é uma área que a gente está envolvida desde 2009. Acabou unindo o útil ao agradável.
P/1 - Como foram os primeiros alunos, as primeiras turmas? Não era uma coisa que você estava acostumada ainda.
R - Não, não era uma coisa que a gente estava acostumada, mas foi assim: os primeiros alunos foram os nossos filhos, todos estudaram aqui - principalmente o meu, que nasceu e com dois anos teve que ir pra educação infantil. Todos os nossos filhos, sobrinhos, filho do amigo, filho do colega… A gente acabou criando esse amor, essa paixão por essa escola.
Depois a educação foi melhorando. As pessoas vinham à nossa escola e achavam linda a estrutura, achavam lindas as salas ventiladas, bem amplas, então começavam [a dizer]: “Vou trazer o meu filho pra cá no ano que vem. Aceitam?” “Aceitamos.”
A base de alunos chegou a seiscentos, as salas lotadas. Lá embaixo funcionava a educação infantil, o fundamental maior, menor e o EJA. Depois nós tivemos que construir uma escolinha de educação infantil pra cá, pra tirar de lá e conseguirmos abranger mais alunos, porque estava lotada.
P/1 - Você se lembra das primeiras vezes que entrou em sala de aula pra acompanhar, estagiar?
R - Lembro. As únicas vezes que eu entrei, a não ser como gestora da escola, foram pra acompanhar a aula do professor.
P/1 - E o que você achou, como foi?
R - Eu achei superbom. Eu nunca me identifiquei muito com a educação infantil; gosto, mas não me identifiquei. Nunca foi a minha área - cortar, desenhar, pintar. Eu me identifico muito com a educação de jovens e adultos. Quando eu estava como gestora adjunta, a gente combinava. Como a minha gestora morava longe, ela dizia: “Patrícia, você fica à tarde e à noite porque você mora perto. Eu fico de dia e à tarde.” Nós fazíamos uma tabela pra conseguir trabalhar e ficar um pouco mais folgado, então a minha experiência maior foi com EJA. Às vezes o carro do professor quebrava no meio do caminho, acontecia alguma coisa, aí sim a gente assumia a sala de aula.
P/1 - Quem frequentava o EJA?
R - Eram os próprios moradores da comunidade do Canaã, da Vila do Povo, do Novo Horizonte.
A dona Isabel tem uma história muito linda. Ela não sabia escrever o nome dela. Quando chegamos aqui na Vila Canaã ela começou a estudar, até conseguir escrever o nome todo. No dia que ela conseguiu, ela ficou muito feliz.
Muitas pessoas não sabiam escrever seu nome e aprenderam na própria escola.
P/1 - E a ler também?
R - A ler também.
P/1 - Esse pessoal do EJA, imagino, recebia pessoas da agricultura.
R - Da agricultura, senhores, pessoas que tinham deixado a escola há muito tempo estava voltando agora por questões de trabalho… Alguns jovens que devido à infância deixaram de estudar; tiveram que voltar, mas à noite porque não podiam ocupar o espaço das criancinhas. Tem a questão de série e idade certa. Quando o aluno passa dois, três anos repetindo a mesma série, se ele estiver acima de quinze [anos], ele pode estudar à noite pra unir as duas turmas e adiantar, pra chegar ao ensino médio mais ou menos com a idade certa, não ficar muito distante.
P/1 - Essas perspectivas todas vocês não teriam na Vila Madureira.
R - Não teríamos.
P/1 - O que você acha disso?
R - Eu acho que foi muito bom. Eu digo por mim e por muitas pessoas que moram na comunidade e conseguiram abrir a visão para isso. Sair de uma comunidade, vir pra outra e conseguir estudar, conseguir se formar, trabalhar, melhorar de vida… Acho que isso foi muito bom pra gente.
P/1 - Como é ver seus filhos estudando aqui?
R - Pra mim, foi maravilhoso. Quando chegamos aqui, o meu filho mais velho, que hoje está com dezesseis anos, estava com cinco. Ele veio estudar a educação infantil e depois foi até o nono ano. Saiu daqui no ano passado, quando teve de ir pro ensino médio.
Pra mim foi excelente trabalhar próximo de casa, cuidar do meu filho mais de perto e confiar esse estudo na mão de pessoas que eu conhecia, professores que participavam da comunidade. Não poderia ter sido melhor.
P/1 - Você acha que isso ajuda na educação do aluno?
R - Sim, ajuda porque a gente tem todo esse contato. Os pais estão próximos, as professoras conhecem você. Se [o aluno] fizer alguma coisa de errado ou acontecer alguma coisa, a gente está mais próximo.
Meu filho achava chato isso. “Ah, mamãe, eu não posso fazer isso que já estão te ligando porque a senhora é a diretora da escola!” “Não quero saber, você tem que dar exemplo.”
Pra gente, foi maravilhoso. De certa forma, eu consegui unir o trabalho e cuidar dos filhos, próxima de tudo. Trabalhar próximo de casa, cuidar, vai em casa, faz alguma coisinha, vem de novo… Isso agregou muito pra gente.
P/1 - Quando vocês tiveram que criar a escolinha infantil?
R - Foi no ano de 2013 pra 2014.
P/1 - Já não estava comportando mais.
R - Nós estávamos com sala com 42 alunos e por lei não é o certo. Por lei, o certo é de primeiro a quinto [ano] 25 alunos, porque eles estão na fase de alfabetização - principalmente no primeiro e segundo ano. O professor não consegue administrar 35 alunos naquela fase de cinco anos. Um belisca o outro, morde, bate, então não é o certo, mas a gente acabou passando um pouquinho desse limite porque os pais queriam muito que o filho estudasse [aqui], era perto a escola. A escola era legal, a educação diferenciada, a gente tinha um cuidado com as crianças.
Não comportou, então chegamos à conclusão que deveríamos criar uma escolinha comunitária, que tiraríamos as crianças menores. Ficariam concentradas em um local e ali ficaríamos com o primeiro ao nono ano, que é o certo, que o município coordena - ensino fundamental menor e maior.
P/1 - Tem algum aluno, alguma professora que vocês lembram com mais carinho?
R - Alunos, todos. Hoje a gente se encontra… A maioria deles, quando eu vejo, principalmente quando eles chegam pra gente [e dizem]: “Ah, tia, eu já estou na faculdade.” Pra gente, é muito bom, é privilégio demais.
Tem muitos professores marcantes. Tem professor que trabalha com a gente desde 2009, desde quando fez o seletivo. Não quis mais sair do Canaã, se sentiu em casa, todo mundo acolhedor. Faz seletivo, passa, “mas eu vou pro Canaã”. Não quer ir pra outra escola por conta desse aconchego que a gente tem da comunidade, de todo mundo unido.
P/1 - Quando você terminou Pedagogia, você voltou pra cá pra ser gestora ou pra entrar em sala?
R - Pra ser gestora. Eu passei quatro anos, o tempo que eu fiz Pedagogia, no administrativo. Quando eu terminei, eu fui pra diretora adjunta, passei mais quatro anos e agora [sou] gestora geral. Em sala de aula, é só a experiência de quando falta um professor, acontece algum probleminha na escola, o professor precisa sair. Se o coordenador estiver ocupado, o gestor vai pra sala de aula. Mas a gente sempre tem um professor auxiliar, um administrativo, o coordenador, que tem o contato maior com o professor - ele já sabe o conteúdo, então ele segue aquele roteiro.
P/1 - Vocês pensam em expandir a faixa etária da escola?
R - Nós queremos expandir. Nosso sonho é construir a creche, mas não voltada pro estudo. Uma creche onde os pais possam deixar as crianças o dia inteiro e trabalhar mais sossegados, e também o ensino médio. Já fizemos vários ofícios pro Estado, porque aquele terreno que nós temos lá dá pra construir uma creche e três salas de ensino médio. O aluno já sai do nono ano e vai pro ensino médio dentro da própria comunidade.
Isso é um pedido dos pais e dos próprios alunos. “Ah, tia, eu não quero sair dessa escola, eu quero ficar perto.”
O terreno está disponível. Se o Estado tiver a disponibilidade de montar essa escola e assumir, não tem problema nenhum pra gente. A gente só quer trazer melhorias pra nossa comunidade.
P/1 - Faz quanto tempo que vocês estão nesse trâmite?
R - Mais de quatro anos.
P/1 - É uma coisa que não é assim…
R - Não é rápido, porque tem todo esse processo. A questão do Estado vir ver esse terreno, analisar, saber se é melhor… De certa forma, eles podem pensar que pra gente seria mais uma vantagem porque tem escola de ensino médio próxima. Aqui embaixo, perto do Valparaíso, tem uma escola de ensino médio imensa, então pra eles pode ser uma questão de… “Poxa, vão tirar os nossos alunos pra levar pra lá e a escola que a gente tem aqui é bem ampla.” Ensino médio é mais fácil, tem muitas escolas.
P/1 - Como são os espaços culturais da vila? O que vocês pediram e o que foi construído depois?
R - O espaço cultural, que é a Casa de Cultura, veio depois, quase em 2016. O último, que chegou no ano passado, foi o campo de futebol. Esse foi o último dos pedidos que a gente tinha com a empresa.
A Casa cultural é mais por conta do tambor de crioula, que temos na comunidade, que é uma coisa que vem da família da dona Isabel, e o teatro, que é do seu Valentim. Também sempre teve essa área voltada… Pedimos por conta disso, das duas áreas que tinha dentro da…
(PAUSA)
P/1 - Vocês tentaram trazer coisas que já tinha na Vila Madureira, o potencial de cada um.
R - Isso.
P/1 - Vocês pensaram os espaços pra acolher quem estava lá.
R - Isso, pra acolher o tambor de crioula e o teatro do seu Valentim, que já existia.
P/1 - E a questão das igrejas também.
R - Também, porque tínhamos pessoas… O irmão Ivaldo, junto com a sua esposa, participavam da [Igreja] Adventista, e tinha outra pessoa que participava da Assembleia [de Deus], então eles bateram muito nessa tecla com o meu pai. “Como é que a gente vai ficar? E se não tiver igreja próxima, como é que a gente vai se congregar?” Então foi mais um pedido pra empresa, que construísse as igrejas que a maioria do povo participava, que era a Adventista e a Assembleia.
P/1 - A questão da agricultura foi assim também?
R - Foi dessa forma também. A maioria das pessoas que trabalhavam com agricultura se sentiram meio perdidas. “Vamos fazer o que lá?”
Pra nós, jovens, era mais fácil pegar um trabalho na escola, no posto de saúde, dentro do posto policial. E pra eles, que sempre viveram da agricultura, iriam fazer o que nessa vila? Então foi o mesmo pedido, que houvesse um local onde eles pudessem reconstruir esse trabalho que tinham com a agricultura.
P/1 - Vocês achavam que iriam se adaptar, que iria dar certo?
R - Tinha aquele medo, né? Por isso aquela questão de bater tanto [na tecla] de todo mundo ir junto e formarmos uma nova vila. Pelo menos teríamos um pouco de contato com quem já tínhamos costume. Tinha aquele medo sim, “nós vamos pra outra comunidade, outro local, distante do nosso, que não temos muito acesso…” Mas foi um medo que a gente conseguiu vencer depois, sabendo que ia ter alguém que você já conhecia. Eu não ia me mudar pra um local onde iria fazer novas amizades. Já tinha os meus amigos, as pessoas que compartilhavam com a gente das mesmas atividades, então foi basicamente um costume que já se tinha antes.
P/1 - Essa era uma proposta de vida que você acha que, pra dar certo, teria que se trabalhar muito em cima dela? Porque vocês não iriam ganhar somente o dinheiro na mão. Era mais ou menos assim a cabeça de vocês?
R - Isso. Era mais ou menos assim, fazer essa proposta. A preocupação maior não era a questão de quem já tinha, porque tinha gente como o seu Paraíba, o seu Zé Domingos, o seu Zacarias… Outros tinham outras casas, sua sobrevivência, trabalhavam fora, tinham seu emprego, uma estrutura maior. A preocupação era com quem não tinha de fato.
Uma pessoa que não tinha tanto estudo, tanto conhecimento pegaria esse dinheiro e iria pra onde? Gastar tudo num instante, alguém iria enganá-lo e ele iria fazer o que da vida? A preocupação maior foi com esse pessoal.
P/1 - Como é essa convivência entre religiões diferentes, culturas diferentes? Tem muito disso aqui.
R - É tranquila. A gente acaba respeitando o espaço do outro. Por exemplo, a Igreja Adventista, a Assembleia, a gente acaba respeitando. O adventista guarda o sábado, então a gente já sabe. Qualquer eventualidade que a gente vai ter dentro da comunidade e precisar do irmão Ivaldo e da igreja, a gente sabe que no sábado a gente não pode contar, então a gente consegue conciliar tudo.
O tambor de crioula, que é uma coisa da família da dona Isabel, todos eles participam. São eles mesmos; eles não têm outras pessoas da comunidade que se agregaram, foram poucas. Eu não tinha esse costume, não sabia dessa religião, não tinha essa habilidade, então acabaram se agregando eles mesmos.
A gente respeita, participa. Quando tem evento deles, a gente tá sempre colaborando.
P/1 - Que tipo de festa vocês estão criando aqui mesmo? As festas são da igreja, do tambor?
R - As nossas festas são da igreja, do tambor, mas são da comunidade, Nós temos, por exemplo, as datas comemorativas. Todos os anos nós fazemos de forma diferente. Esse ano, devido à pandemia, tivemos várias mudanças. O tambor de crioula se apresentou no carnaval, mas não conseguiu se apresentar no São João. Não tivemos o São João esse ano na Vila Canaã. Todo ano temos, mesmo que sejam dois, três, quatro dias, dependendo das nossas condições. Mas esse ano não tivemos.
Temos todo ano a festa das crianças, das mães, dos pais. Esse ano não tivemos da maneira que costumávamos fazer, mas entregamos os presentes. A festa das crianças foi maravilhosa. Saímos com um carro de som cantando música infantil, as professoras vestidas de boneca e o palhaço, que foi o seu Valentim, compartilhando com a gente e entregando os brinquedos pra cada criança, Não tivemos a festa em si, como era de costume - trazer a criança pra dentro do espaço da associação, dar brinquedo, pipoca, um monte de coisa que a gente sempre faz - mas fizemos de maneira diferente.
A mesma coisa [aconteceu] com a festa das mães e com a festa dos pais. A nossa festa dos pais foi um campeonato de futebol mais fechado, reservado praqueles pais participarem. No final, ganhavam seus presentes, comiam o bolo e todo mundo ia pra sua casa, pra não deixar passar em branco.
A gente tem todas essas datas comemorativas, em que a associação realiza suas festas.
P/1 - Vocês já pensaram ou comemoram o dia da mudança, da fundação daqui?
R - Comemoramos o aniversário da Vila Canaã, que é dia nove de março. Foi [o dia em que] a primeira família chegou aqui, que foi a da dona Isabel. Todo ano a gente comemora. Nesse ano, como a pandemia não estava tão alta, conseguimos fazer um dia de Ação de Graças. Tivemos médicos, dentistas, tivemos doação de cestas básicas, arrumar cabelo, unha… Foi um dia maravilhoso. [Tivemos] consultoria jurídica, foi uma ação social muito boa.
P/1 - Como a associação é organizada? Quem é que está...
R - A associação é toda organizada, regulamentada, nós conseguimos… Lá da Madureira pra cá viemos com esse processo e aqui melhoramos mais, fomos buscar mais condições de trabalhar melhor. Todo mundo que participa mora na vila: a presidente, que sou eu, o vice, que é seu Paraíba, e a gente sempre busca melhorias em prol da comunidade.
P/1 - Conte, então, hoje quais são as funções da associação. O que ocupa vocês hoje.
R - Hoje, o que mais ocupa a gente é a educação. A gente está muito voltado pra isso, mas tem a questão da saúde, que estamos sempre brigando por melhorias, e principalmente a questão do esporte e lazer. São quatro pontos que a gente está o tempo todo trabalhando junto: educação, saúde, esporte e lazer.
P/1 - O que mais vocês estão tentando trazer pra vila, nesse sentido?
R - No sentido do lazer e esporte, a gente está pensando na praça comunitária. Nós tínhamos, no começo, um parquinho em que as crianças brincavam dentro da praça, só que depois foi se deteriorando com o tempo, porque era de madeira. Nosso sonho hoje é construir dentro da praça a nossa academia comunitária, com uma estrada em volta dela toda pra fazer caminhada. Não iremos mais fazer caminhada nas ruas, e sim dentro da própria praça.
P/1 - Tem também a questão de asfaltar as ruas.
R - Isso. A gente vem o tempo todo brigando por isso. Conseguimos uma, a última rua de lá é asfaltada, e a daqui mais ou menos, mas a gente está tentando terminar as outras. Tudo isso [tem] a associação em parceria com o município, em parceria com outras empresas pra conseguir que se faça isso.
P/1 - Como é que você vê, você sente a relação da vila com a Eneva, do começo até aqui?
R - No começo, foi um pouco complicada. Antes da Elisabeth, nós tivemos alguns impasses, porque as pessoas que estavam antes tinham mais preocupação com a empresa do que com o social. Foi uma situação muito difícil.
Quando a Elisabeth entrou, aí sim a gente teve um contato maior. Temos uma parceria muito boa com a empresa devido à Elisabeth, porque ela traz as informações da empresa e também leva as nossas informações. Somos muito bem vistos por eles devido a esse contato que temos diretamente com ela, com esse lado social da empresa que ela está à frente.
P/1 - Você acha que tem uma relação aberta, honesta?
R - Sim. A gente tenta ver que eles sempre estão buscando não só o melhor pra empresa, mas o melhor pros dois. Se eles vêm com uma proposta e a gente diz que não concorda, eles repensam em buscam uma opção melhor pros dois.
P/1 - Como é que foram esses prêmios que vocês ganharam pelo polo? Você se lembra como aconteceu isso?
R - Não me lembro muito bem das datas, mas foi muito bom ter esse reconhecimento deles. Eles lutam muito pra isso, têm várias parcerias com bancos… Pra mim, é de grande valia, principalmente pra eles, que tiveram essa cultura que não morreu. Eles queriam continuar cultivando a agricultura de lá pra cá. Eu acho fantástico esse querer deles de continuar com a agricultura.
P/1 - E é uma agricultura moderna.
R - Moderna, mas ainda um pouco rústica. Eles ainda têm muita coisa da antiga, eles uniram o antigo com o novo e fazem um projeto muito bonito.
P/1 - Você estava contando um pouco lá fora sobre o seu dia a dia. Como começa i seu dia?
R - Meu dia começa muito corrido. Às cinco horas da manhã levanto, faço uma caminhada matinal pra manter a saúde, pra poder manter esse ritmo que a gente leva no dia a dia. Deixo tudo pronto em casa, tudo organizado e vou pra escola às sete horas da manhã. Ao meio-dia vou em casa, tomo um banho, almoço, vejo as crianças - um estuda aqui à tarde, o outro de manhã em outra escola, aí trago um pra escola comigo. Quando chega à noite, novamente começa: deixar tudo organizado pro outro dia.
P/1 - Essas caminhadas você faz com outras pessoas.
R - Sim. Fazemos eu, a Cleonice, a Val, a Bruna. Temos um grupo bem legal - a dona Rosa, a Micelane… Fazemos essas caminhadas sempre de manhã cedo. Às vezes à tarde, quando o tempo dá; quando não conseguimos fazer de manhã, fechamos à tarde.
P/1 - Com o sol nascendo.
R - Isso. Ou nascendo ou se pondo.
P/1 - Patrícia, me conte um pouco como foi a pandemia aqui. Você se lembra de quando chegaram essas notícias, que ia ter um lockdown?
R - Lembro. Principalmente pra gente, que trabalha na escola, foi um choque porque estávamos acostumados com quinhentos alunos - 250 de manhã e 250 à tarde. Aquela meninada toda correndo, a hora do lanche, que todo mundo sai correndo e forma aquela fila, e de repente nos deparamos com a escola deserta. Poucas crianças, temos que fazer revezamento. Nem todos os funcionários podem estar todos os dias, tivemos que fazer uma escala de trabalho pra não ficar todo mundo junto. Os professores tiveram que mandar as atividades remotas, pra que a gente pudesse produzir apostila e levar pra esses alunos, então foi um choque muito grande de realidade pra gente.
P/1 - Como vocês fizeram ao longo desses meses pra manter as atividades? Vocês iam levar na casa das pessoas?
R - A gente fez grupos com todos os pais e a gente coloca o dia de buscar a atividade, porque outras escolas estão fazendo via internet, aula online, e pra gente não daria. O acesso à internet aqui é muito ruim e muitos pais realmente não têm condições de ter um celular pra dar pro filho estudar naquele horário. Tem pais que têm quatro, cinco, seis filhos, então a vida é corrida, trabalham muito e não têm condições, então optamos pelas aulas remotas, que era a atividade em apostila. Os professores mandam as atividades, a gente imprime, produz a apostila, grampeia; o aluno leva e tem um prazo pra trazer essas atividades.
Eles trazem de volta as atividades, nós separamos do sexto ao nono ano por matéria - o professor de Português leva só as de português pra corrigir - e tem um prazo pra trazer respondido pra vermos uma nota pra esse aluno, pelo menos pelo esforço que ele está fazendo pra não perder-se tanto o ano. Não vai ajudar muito, mas vai ajudar um pouquinho, porque eles não estão perdendo tanto. Estamos tentando nos adaptar a essa mudança.
P/1 - Quando chegaram as notícias sobre a COVID, o que vocês fizeram pra remediar? Ficaram em casa, ficaram com medo?
R - Ficamos em casa, com todos os cuidados, fomos repassar esses cuidados pros alunos, até mesmo na questão das atividades. “Pai, venha com a máscara. Peça pra ele vir com a máscara, pra trazer álcool em gel. Aqui na escola tem.” A gente teve todo esse cuidado. A preocupação também… O tempo todo conversando com as pessoas da vila, principalmente os idosos, as crianças, pedindo cuidados.
A maioria deles, mesmo no começo da pandemia, se isolou dentro do polo agrícola. Ficaram lá por ser um local mais reservado, mais remetido à natureza, longe de tudo.
P/1 - Alguém adoeceu, veio a falecer?
R - Não. Na comunidade tivemos um caso, mas não confirmado. A pessoa ficou gripada, mas se reservou dentro de casa, se cuidou e depois que ficou boa voltou à vida normal. A pessoa achou que estava porque ficou muito doente, mas logo falou pra todo mundo e se reservou, passou a quarentena tranquilo.
P/1 - E no Maranhão, em São Luís, como foi isso?
R - No centro foi muito chocante. A gente via o centro de São Luís lotado e de repente se deparar com ninguém na rua… Acho que foi muito complicado pra eles e pra gente também, porque acabou ficando todo mundo dentro da vila sem ter esse acesso. Teve a diminuição de pessoas - pra ir ao supermercado, você teria que ir sozinho, com a máscara; não poderia levar criança, não poderia aglomerar.
E pros idosos foi bem complicado. A minha mãe até hoje está reservada demais. Tudo a gente tem que resolver pra ela: ir ao banco, comprar comida. Meu pai não muito, ele se reservou mas depois foi dando aquela acalmada, mas a minha mãe se cuidou muito nesse sentido.
Eu fiquei praticamente sendo ponto de apoio pra todo mundo da minha família: pro meu tio, pra minha mãe, pro meu pai. Eu ia resolver as coisas pra fora, pra chegar… Mas com aquele cuidado: tomar banho, lavar as mãos pra que ninguém da comunidade pegasse e transmitisse esse vírus.
P/1 - Você é presidente da associação há quantos anos?
R - Vai fazer oito. No ano que vem faz oito anos e aí sim eu saio da presidência, porque tem toda uma lei que diz que depois tem que afastar. Pode até ser daqui a quatro anos, se a comunidade optar por isso, mas tem que se afastar, igual à presidência do Brasil. São oito anos, depois você se afasta.
P/1 - Como foi quando você encarou a presidência pela primeira vez, no primeiro ano? Como foi essa responsabilidade?
R - Foi muito difícil, muita responsabilidade. Eu tinha o costume de [participar da] associação, mas como secretária pra organizar as documentações, para dar apoio na questão das atas.
Quando viemos da Vila Madureira pra cá, meu pai também já tinha sido [por] oito anos presidente da associação e precisava sair, então foi aquela conversa toda de novo: “ A gente precisa continuar regularizado, brigando pelo bem da comunidade.”
Fomos para uma eleição, como qualquer outra e aí fui eleita pela maioria com a minha comissão toda. São doze pessoas da associação. Depois teve a reeleição e fomos para mais quatro anos
P/1 - Você tem perspectiva de manter o mesmo nível, a mesma linha na associação com o presidente que vier?
R - Sim. É mais ou menos isso que a gente tenta conversar. Quando a gente tem reunião na comunidade, a gente sempre pede: “Não desistam.” Tenta ver se alguém quer continuar pra que a associação continue, pra que a gente consiga melhorar nossa comunidade.
Tem gente que fala: “Não quero. É muito trabalhoso, é desgastante.” Você sabe que tem aquele lado que todo mundo gosta e o lado que não gosta, mas a gente tenta ao máximo convencer as pessoas que a gente precisa dessa associação organizada, pra se buscar mais melhorias pra comunidade.
P/1 - Como surgiu a ideia de montar uma candidatura do seu pai no meio político?
R - Surgiu… É como eu falei, ele sempre veio com essa luta, buscando o bem da comunidade. Ele nunca olhou só pra si, sempre buscou o bem do outro. Em uma conversa, a comunidade achou que também poderia ter um representante como vereador.
A nossa comunidade é muito fechada nesse sentido, de política. Nós não somos daqueles que chegam um político aqui e diz: “Eu vou te dar tal coisa.” Tudo o que temos foi a associação, junto com a comunidade, que buscou. Sempre buscamos o nosso direito.
Depois pensamos: “Poxa, o seu Zacarias podia nos representar e nos dar um poderzinho a mais. Agora temos que ter o legislativo pra nos dar esse poder, pra buscar melhorias. Não só cobrar da empresa, de outro órgão, mas agora termos alguém pra chegar lá e dizer: “A minha comunidade precisa.” Não só da Vila Canaã, mas as outras próximas.
Quem seria a melhor pessoa? O seu Zacarias. Às vezes as pessoas falam: “Por que é que você não se candidatou?” Não que eu não tenha esse perfil, eu não tenho essa história toda que ele tem. Pra alguém nos representar, tem que ser alguém que realmente tem história do que fez dentro da comunidade. É uma pessoa que nos representaria muito bem, nesse sentido da luta pelas comunidades.
P/1 - Você estava falando da relação da Eneva com você. A Elisabeth entrou e começou a mudar a questão. O que começou a mudar?
R - Vimos uma pessoa que era mais humana, que não estava voltada tanto para o lado da empresa. [Ela] estava tentando o máximo possível fazer o lado da empresa, mas também olhar o lado da comunidade. E ela foi muito bem vista, acho que a comunidade agregou ela. Ela se sente um pouco moradora da Vila Canaã por conta disso.
Ela sempre tenta ouvir as nossas demandas e levar pra empresa. É nossa ponte. Tudo o que precisamos ou tentamos convencer [a Eneva], falamos com a Elisabeth, ela leva pra empresa e depois temos contato com eles.
P/1 - Como você definiria a relação com a empresa da Beth pra frente?
R - Definiria como muito boa, uma amizade boa depois que ela entrou. A gente conseguiu ser mais ouvido, mais olhado, ter esse contato mais humano.
P/1 - Como está sendo o processo de emancipação da vila? Já foi emancipada?
R - Já. A vila sim, o polo ainda não. Um dos olhares que a empresa tem de admiração é pela vila, porque eles construíram tudo isso e a gente conseguiu assumir, pegar com pulso firme. “Não é de sicrano, de fulano. É nossa, então vamos à luta.” Temos todo cuidado com a escola, com o posto de saúde, com tudo que é nosso. Nós conseguimos trazer, então a gente tem esse cuidado, esse amor. Eles ficaram muito felizes quando conseguiram emancipar a vila e a vila conseguiu caminhar com seus próprios passos.
Hoje a gente consegue ver isso. Por isso a gente briga pra que a associação permaneça, porque consegue-se ter uma luta em prol da comunidade sem precisar tanto da empresa ou de outra pessoa que venha interferir nisso.
P/1 - No polo, o desafio é mais complexo.
R - Um pouco mais complexo, acho que até por conta de eles serem mais rudes, de não entenderem o processo por completo - digo o processo de associação em si, de não se unir pra buscar uma coisa em prol de todos. Eles acabam criando um pouco de polêmica, mas não por serem maus. Eles não têm o entendimento de agregar todo mundo, de chamar todo mundo pra si e ver que o que o Hortifruti Canaã ganhar é pra todos. Eles ainda não conseguiram dar esse passo maior.
P/1 - Patrícia, o que você prevê pro futuro da vila e o que você deseja, sonha pra ela?
R - Eu pretendo que ela continue crescendo, que daqui a algum tempo nós consigamos ter essa escola de ensino médio, que a gente tanto sonha, um espaço pra que essas mães possam deixar as crianças e trabalharem mais sossegadas. Que daqui a algum tempo as pessoas consigam principalmente voltar aos seus estudos e pensar em ter uma vida melhor, condições financeiras melhores pra si. E que arrumem suas casas pra que fiquem adaptadas pra esse ambiente que está crescendo agora.
P/1 - Como foi contar um pouco da sua história hoje?
R - Foi muito bom, relembrar tanta coisa… Foi bom.
P/1 - Uma última coisa: você se separou.
R - Sim.
P/1 - Por quê? O que aconteceu?
R - Acho que o tempo, o desgaste. A minha vida é muito corrida, não tem como eu parar, até porque foi o que eu escolhi pra mim - assumir uma comunidade, levar tudo isso pra frente. A minha vida é isso: reuniões, palestras, trabalho, curso, faculdade… Tanta coisa que não dá pra você ficar presa a isso. Depois foi havendo desavenças, ciúmes, brigas, confusões, então eu achei melhor a separação.
Não foi fácil. A pessoa não aceitou muito, a gente ainda está nesse impasse. Mas foi o que eu optei, estava muito desgastado, muito complicado, então minha opção foi essa.
P/1 - E você também optou por estar com seus filhos e cuidar deles.
R - Sim, optei por ficar com eles. Na realidade, eles são muito apegados a mim, a gente sempre teve esse contato.
P/1 - Então foi essa vida que você escolheu. Essa correria, essa luta…
R - Foi essa vida que eu escolhi pra mim. A gente foi se adaptando.
Eu tive uma mudança muito drástica na minha vida. Até eu trabalhar na escola, eu era muito dedicada à casa, a cuidar do filho, do marido; a comidinha na hora certa, tudo bonitinho. Quando eu me adaptei a trabalhar e a ter aquele contato maior com a comunidade e com as pessoas, e as pessoas virem que eu tinha esse potencial de estar à frente das coisas, eu comecei a mudar também. Comecei, claro, a ter pouco tempo pra família, a trabalhar demais, a estudar, sair muito cedo e chegar tarde. Acabei me adaptando a tudo isso e a outra pessoa não foi aceitando tudo isso. Foi criando discórdias, então eu optei por assumir essa associação.
No início, foi tudo muito complicado. Claro que a gente tem impasses: alguns concordam, outros não concordam. Algumas pessoas acham certo, outras errado. Alguns acham que um merecia e outros não mereciam. Mas foi uma opção minha mesmo.
Primeiramente, eu caí de paraquedas. Não queria, mas fui eleita pela comunidade cheia de medo do que ia fazer. Nos primeiros quatro anos, fui me adaptando a tudo isso e quando vieram os outros quatro anos eu já fui melhorando. Pra mim, foi uma mudança drástica: de uma pessoa extremamente tímida, que falava pouco, não conversava com quase ninguém, caseira, dona de casa, muito responsável, de repente dá essa volta, pra uma pessoa que fala pelos cotovelos, começou a sair e conheceu outras pessoas, [foi] viver uma vida diferente.
Foi muito boa essa mudança. Hoje eu vejo uma coisa muito boa, eu consegui me adaptar, fazer novas amizades, ver o que eu queria de fato, o que era mais ou menos o meu perfil, que sempre foi esse de lutar em comunidade. Foi o que o meu pai me ensinou desde cedo.
P/1 - Uma espécie de libertação.
R - Isso mesmo.
P/1 - Obrigado, Patrícia.
Recolher