Projeto Memória Petrobras
Depoimento de João Cândido Portinari
Entrevistado por Márcia de Paiva (P/1)
Rio de Janeiro - RJ - 12 / 11 / 2004
Realização Museu da Pessoa
Código do Depoimento: PETRO_CB626
Transcrito por Marlon Alves Garcia
P/1 - Bom dia.
R - Bom dia.
P/1 - Gostaria de começar essa entrevista pedindo que você nos diga seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Pois não. Sou João Cândido Portinari, nasci no Rio de Janeiro, em 23 / 1 / 1939.
P/1 - João, conta para a gente um pouco da sua trajetória, da sua formação e da sua trajetória profissional.
R - Pois não. Eu cursei o Colégio Andrews, aqui no Rio de Janeiro. Durante os meus estudos no Andrews eu tive de me ausentar em diversas ocasiões, acompanhando meu pai em exposições no exterior. Então estudei também na Argentina e no Uruguai em 1947, 1948, depois estudei na França, em 1946, com 7 anos, depois com 11 anos, depois com 15 anos. Quer dizer, houve essas quebras, mas.
P/1 - Você ia e voltava?
R - Eu ia e voltava. Às vezes por um período de um ano. Israel também. Morei inclusive num quibutz em Israel numa época também. Mas, basicamente, a minha educação primária e secundária foi no Colégio Andrews. Tirando essas viagens e esses outros lugares que eu estudei. Aí quando terminei o curso científico no Colégio Andrews, em 1957, eu prestei vestibular aqui no Rio de Janeiro para a Escola Nacional de Engenharia e para a PUC. Passei em ambas e tranquei matrícula e fui estudar na França. Eu tinha um tio casada com a irmã de minha mãe, que era um francês que era herói de guerra, que era um físico, que teve uma influência muito grande sobre mim. Foi uma espécie, assim, de ídolo quando eu era muito jovenzinho. Ele foi a primeira pessoa a me ensinar Matemática. E posteriormente nós ficamos muito amigos. E a idéia dele era que Matemática se estudava na França. E eu, influenciado por ele, então fui para Paris, entrei num liceu severíssimo, que...
Continuar leituraProjeto Memória Petrobras
Depoimento de João Cândido Portinari
Entrevistado por Márcia de Paiva (P/1)
Rio de Janeiro - RJ - 12 / 11 / 2004
Realização Museu da Pessoa
Código do Depoimento: PETRO_CB626
Transcrito por Marlon Alves Garcia
P/1 - Bom dia.
R - Bom dia.
P/1 - Gostaria de começar essa entrevista pedindo que você nos diga seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Pois não. Sou João Cândido Portinari, nasci no Rio de Janeiro, em 23 / 1 / 1939.
P/1 - João, conta para a gente um pouco da sua trajetória, da sua formação e da sua trajetória profissional.
R - Pois não. Eu cursei o Colégio Andrews, aqui no Rio de Janeiro. Durante os meus estudos no Andrews eu tive de me ausentar em diversas ocasiões, acompanhando meu pai em exposições no exterior. Então estudei também na Argentina e no Uruguai em 1947, 1948, depois estudei na França, em 1946, com 7 anos, depois com 11 anos, depois com 15 anos. Quer dizer, houve essas quebras, mas.
P/1 - Você ia e voltava?
R - Eu ia e voltava. Às vezes por um período de um ano. Israel também. Morei inclusive num quibutz em Israel numa época também. Mas, basicamente, a minha educação primária e secundária foi no Colégio Andrews. Tirando essas viagens e esses outros lugares que eu estudei. Aí quando terminei o curso científico no Colégio Andrews, em 1957, eu prestei vestibular aqui no Rio de Janeiro para a Escola Nacional de Engenharia e para a PUC. Passei em ambas e tranquei matrícula e fui estudar na França. Eu tinha um tio casada com a irmã de minha mãe, que era um francês que era herói de guerra, que era um físico, que teve uma influência muito grande sobre mim. Foi uma espécie, assim, de ídolo quando eu era muito jovenzinho. Ele foi a primeira pessoa a me ensinar Matemática. E posteriormente nós ficamos muito amigos. E a idéia dele era que Matemática se estudava na França. E eu, influenciado por ele, então fui para Paris, entrei num liceu severíssimo, que era o Liceu Louis Le Gran, onde estudaram Voltaire, Gallois, Pompidou, enfim, todos esses grandes quadros da política, das ciências, das letras francesas. Então era um liceu muito exigente, aquelas coisas que a gente vê em filme, de tomar banho gelado, de dormir naqueles dormitórios assim que parecia um campo de concentração. Mas foi muito importante. Ali eu estudei Matemática, né, dois anos nesse liceu. Prestei concurso para Escola Superior. Quer dizer, você prestava concurso para um conjunto de escolas, mas eu escolhi a Escola de Telecomunicações, então cursei telecomunicações. Me formei engenheiro de telecomunicações em Paris em 1963. Eu destacaria que todos esses estudos, né, esses dois anos de Liceu e os três anos de Escola, foram gratuitos, foi o governo francês que pagou. Aí quando eu estava terminando telecomunicações em Paris, eu resolvi fazer o doutorado nos Estados Unidos, e fui para o MIT, para o Massachusetts Institute of Technology, e aí entrei para o Departamento de Engenharia Elétrica e fiz mestrado e doutorado, em dois anos e meio ambos. Quando eu estava terminando, em 1966, eu recebi um convite da PUC do Rio de Janeiro para voltar ao Brasil e ajudar a criar o Departamento de Matemática, que não existia ainda. Eu e mais três colegas que estávamos terminando doutoramento nos Estados Unidos. Aí voltamos os quatro, criamos o departamento. Eu fui o primeiro diretor do Departamento de Matemática da PUC. Fiquei 13 anos exercendo essas funções, né, de um professor universitário, que basicamente era fazer pesquisas, publicar em revistas internacionais, orientar alunos, dar aulas e participar da administração universitária. Eu peguei um momento, assim, fascinante, que foi o momento da reforma universitária, foi 1968. Eu me tornei diretor do Departamento de Matemática exatamente em 1968, no auge de toda de reforma universitária, né, na França, o Combandie, aquela coisa toda. E no Brasil, pela primeira vez então a universidade se estruturava como ela é hoje. Quer dizer, com departamentos que centralizavam o ensino. Porque antes disso você tinha um professor de Matemática para Psicologia, que era psicólogo, um professor de Matemática para Física, que era físico, um professor de Matemática para Economia, que era economista. Era um desperdício muito grande, além de você não ter uma vida acadêmica. Os professores eram horistas, eles iam à universidade, davam aula, iam correndo para outra universidade, depois para outra. Então não havia nada que criasse um núcleo realmente universitário.
P/1 - Um vínculo.
R - Um vínculo com os alunos e os professores. Então nós criamos isso tudo, o departamento, a idéia de que o aluno devia ser monitor o mais cedo possível. E ele então ingressava na vida acadêmica, isso fixava o aluno na universidade também, o aluno passava a viver o seu dia todo na universidade, com contato com outros alunos, com contato com professores, na biblioteca. Foi um momento muito importante. (PAUSA)
P/1 - Então, eu passei, como eu disse, de 1967. Quer dizer, eu regressei, eu comecei a trabalhar na PUC em 1967. Então até 1979 eu era um professor universitário como qualquer outro, não havia nada, assim, em especial que eu exercesse profissionalmente com relação ao Portinari, com relação à memória de meu pai. Mas é claro que aquilo ia se avolumando dentro de mim, e então em 1978 surge a idéia de fazer o Projeto Portinari. E naquele momento eu não imaginava quanto tempo o projeto iria durar. Então eu pedi u a licença sem vencimentos do Departamento de Matemática, que eu imaginei que iria durar dois ou três anos. E fazem 25 anos que eu estou nesse trabalho.
P/1 - E não retornou para a Matemática?
R - Eu sempre quis retornar, né? Eu, no início, eu tentei levar as duas coisas. Rapidamente eu vi que era impossível, que o projeto era uma coisa, assim, imensa, que ia se desdobrando e se tornando cada vez maior. Então hoje em dia, por exemplo, eu estou totalmente dedicado, eu não tenho praticamente vida social nenhuma, eu trabalho dia e noite, fim de semana, e isso tem sido sempre assim, desde 1979 até agora.
P/1 - Fala então um pouco de como foi a concepção do projeto e desses anos todos.
R - A concepção do projeto. Aqui é preciso compreender esta vivência de alguém que passa praticamente dez anos fora do seu país. Eu saí com 18 anos e voltei com quase 30. E que regressa ao seu país em plena ditadura militar. Eu não tinha experiência política, porque devido a ter saído tão novo e não ter cursado universidade no Brasil, eu não participei de movimento estudantil, então eu não tinha vínculos com o Brasil assim, eu estava totalmente voltado para os meus estudos, primeiro na França, depois nos Estados Unidos. Então quando eu volto, eu encontro um Brasil totalmente diferente do Brasil da minha infância, da minha adolescência. E aquilo foi uma coisa que foi aos poucos criando um mal-estar, um desconforto muito grande, não só com relação ao país, mas em particular também com relação à memória de meu pai, que ia se esfumando, né? Ia se esfumando, ia surgindo distorções com relação a ele, tanto com relação à obra dele como com relação à pessoa dele. E aquilo foi me incomodando muito. Esse Brasil e essa memória, que são duas coisas ligadas. E nesse ano de 1978, quando essas coisas estavam ainda um pouco confusas, assim, eu estava passando por um problema, assim, existencial, né, ligado a essa questão toda do Brasil, eu visito o Museu Van Gogh, na Holanda. E aí foi um momento, assim, desses momentos de virada decisiva. Eu já tinha estado do Museu Van Gogh, até pela mão de meu pai, quando eu era criança, mas nunca tinha tido aquela revelação que eu tive naquele momento ali. Isso mostra que a gente tem que amadurecer na vida, que tem uma hora certa onde as coisas acontecem e tem conseqüências. Eu estava lá nesses quatro andares, né, de Holanda, uma multidão ali. Velhos, crianças, gente pobre, gente rica, gente bem vestida, gente mal vestida, aquela massa compacta de pessoas ali diante da obra do Van Gogh. E eu me lembro que eu de repente pensei assim: “Mas que essa gente está fazendo aqui? Será que toda essa gente tem um interesse por pintura? - pintura no sentido, assim, mais erudito - Será que eles estão aqui comparando estilos, vendo pinceladas?’ E ficou óbvio, imediatamente, que não era isso, que essa gente toda, que pelo menos a grande maioria das pessoas que estavam ali, estavam ali para ganhar uma injeção na veia. Uma injeção na veia, de identidade, de certeza, de pertinência, né, de ter certeza que os diferenciava perante as demais nações, de que significava ser holandês. Através dessa obra genial de um artista nacional, eles estavam se nutrindo de sua própria identidade, eles estavam vendo como que aquela sociedade se organizava, quais eram os seus sonhos, quais era as suas dores, como se nascia, como se estudava, como se namorava, como se casava, como se trabalhava, como se morria, como se vestia, como se comia. Quer dizer, então eu sentia que aquilo tinha uma força extraordinária, que eles saíam dali com um sentimento reforçado de nação, de auto-estima, de respeito por aquela nação que tinha se construído daquela forma. E naquele momento me deu uma aguda tristeza de ter consciência, e uma consciência solitária ali, né, de que eu era um brasileiro e de que eu vinha de um país que tinha um pintor que tinha feito o mesmo que Van Gogh havia. Quer dizer, que havia retratado o seu país, o seu povo, sob todos os seus aspectos: os aspectos sociais, históricos, religiosos, a infância, o trabalho, a festa popular, os tipos populares, a fauna, flora, a paisagem. Quer dizer, esse grande retrato, essa grande síntese da alma brasileira, né, que está na obra do Portinari, estava completamente pulverizado, escondido e inalcançável para o público. Naquele momento, para que se tenha uma idéia do que eu estou falando, mas de 95% da obra de Portinari estava em mãos particulares, o paradeiro da maioria das obras era desconhecido, não havia catálogo nenhum, não havia museu nenhum, os livros sobre a obra e a vida dele estavam esgotados. Eu tive uma experiência, assim, melancólica, visitando o Museu de Arte Moderna de Nova York, nesta mesma viagem, constatar que eles tinham mais informações sobre Portinari do que todas as instituições brasileiras que eu havia visitado. Então quilo foi um choque para mim realmente. Quando eu voltei ao Brasil, eu voltei determinado a fazer alguma coisa. Eu não sabia exatamente o que seria, mas rapidamente também, em questão de semanas as coisas na minha cabeça se organizaram e eu pensei imediatamente na idéia de um Catálogo Raisonné.
P/1 - Bem francês, né, quase Iluminista.
R - É verdade, não deixa de ser. A minha formação toda era essa, né?E o Catálogo Raisonné ainda era um bicho absolutamente desconhecido para todos no Brasil. Até hoje ainda é um pouco. Esse que nós publicamos agora - eu estou me adiantando um pouco - é o primeiro catálogo em toda a América Latina. Então naquele momento eu senti que o trabalho deveria começar por aí. Eu não sabia quais seriam os desdobramentos disso, mas o trabalho deveria começar por um inventário. Quer dizer, onde está a obra do Portinari? E uma vez encontrada, documentá-la de todas as maneiras, né, fotograficamente, em textos, com depoimentos. Rapidamente surgiu uma outra dimensão do Portinari, que era óbvia também, mas houve um processo aí de conscientização disso, que era de que ele não era apenas um pintor. Se você estivesse falando de um Pollock, de um (Clide?), de um Mondrian, né, que são coisas que são arte, evidentemente, e boa arte, mas que não estão diretamente ligadas a uma mensagem humana, né, na sua expressão pictórica. Mas Portinari não. Portinari, ele foi, além de pintor, um homem que carregava dentro de si, durante toda sua vida, valores sociais e valores humanos, e que usou a sua arte e toda a sua vida, inclusive a sua militância política, na luta por esses valores sociais e humanos. Que valores eram esses? Quando a gente olha o como mundo está hoje, a gente se dá conta da importância extraordinária que esses valores têm hoje, inclusive. Que são valores de justiça social, de não violência, de paz - ele lutou pela paz a vida toda -, de fraternidade, de espírito comunitário, de solidariedade humana, de respeito pelo sagrado da vida.
P/1 - De igualdade.
R - É. Então, aí nesse momento você começa a se perguntar como era aquele momento que ele estava criando, e você se dá conta que ele foi, na sua época, uma espécie de pólo de captação e de irradiação das preocupações principiais da sua geração. Nós estamos falando de gente aí, ele conviveu com Mário de Andrade, com Manuel Bandeira, com Graciliano Ramos, com Drummond, com Jorge Amado, com José Lins do Rego, com Villa Lobos, com Cecília Meireles. Quer dizer, quando a gente começa a olhar de quem nós estamos falando, nós estamos vendo que nós estamos diante de uma geração que praticamente inaugurou o Brasil em termos brasileiros.
P/1 - Que desenhou, né?
R - É. Que deixou de ficar olhando para a Europa ou de ficar olhando para os Estados Unidos e voltou-se para dentro. Então, essas preocupações que essa geração tinha, que são preocupações estéticas, artísticas, culturais, sociais e políticas, seria importantíssimo resgatá-las sob a forma de uma grande base de conhecimentos, a partir do levantamento de Portinari. E aí nós começamos, nós ampliamos o escopo do projeto, que inicialmente era apenas a obra dele, para toda uma base de documentação. E só para ter uma idéia, quer dizer, hoje nós temos 30 mil documentos no projeto. Entre esses, nove mil cartas que ele trocou com essa gente toda, 12 mil recortes de periódicos. Nós fizemos um programa História Oral, que tem 130 horas gravadas, inéditas, com Luiz Carlos Prestes, com Afonso Arinos, com Lúcio Costa, com Oscar Niemeyer, com Drummond. São 74 depoentes que nós conseguimos ainda pegar vivos. Raul Bope, Clarivaldo PradoValadares, muitos. Alguns já tinham morrido. Aí você se dá conta que se o Projeto Portinari tivesse começado 10 anos depois, você teria perdido toda essa memória viva, desse programa História Oral. Então voltando ao ponto onde nós estávamos. Essa idéia do Catálogo Raisonné, né, rapidamente se ampliou para abranger essa base de informações. Agora, como viabilizar isso? Quer dizer, uma coisa é você ter essa idéia, e ter até alguns colegas que oferecem a sua adesão a isso, outra coisa é você viabilizar financeiramente isso. Então aí eu parti para uma peregrinação às fontes de financiamento que haviam naquela época. Eu achei que o lugar, a porta canônica na qual eu deveria bater, deveria a Funarte. E aí, só para que se tenha uma idéia de como que eram as coisas - e de uma certa forma elas ainda continuam assim. Eu me lembro que na Funarte tinha um órgão chamado Instituto Nacional de Artes Plásticas, era o INAP. Eu falei: “É aqui! Este é o lugar onde eu tenho que bater.” E me lembro da entrevista que eu tive com o diretor do INAP naquela ocasião... (PAUSA)
P/1 - É, eu estava falando nesses primeiros esforços em viabilizar o Projeto Portinari, porque eu acho que isso pode ser de interesse para outros pesquisadores, para outros projetos, né, essa experiência que nós tivemos em procurar viabilizar o projeto. Então eu estava contando que eu fui à Funarte, porque me pareceu que era o lugar adequado. E na Funarte, no Instituto Nacional de Artes Plásticas. E aí comecei a expor a idéia do Projeto Portinari ao diretor, e quando eu estava falando eu percebi no olhar dele uma expressão, assim, de um certo descrédito, até quase uma ponta de desinteresse. Mas eu engoli em seco e continuei explicando. Nós estávamos em agosto de 1978. Quando eu fiz uma pausa, ele disse: “Olha, Joâo Cândido, eu acho esse seu projeto muito interessante, mas você volta em março, porque nós estamos sem formulários de pedido de auxílio.”
P/1 - Bem burocrata.
R - É. Aí eu me despedi e disse: “Olha, não é por aqui.” E resolvi então procurar os meus colegas da área de Ciência e Tecnologia, e fui à FINEP nesse momento. E chego à FINEP, e está na presidência da FINEP um homem extraordinário, já falecido, a quem a ciência e a tecnologia brasileira devem muito, chamado José Perlúcio Ferreira. Um mineiro de Baipendi, que foi do BNDES, que começou como contínuo, como mensageiro no BNDES, e chegou a presidente da FINEP. Este homem tinha uma visão de Brasil e uma inteligência extraordinárias. Eu quando comecei a explicar o Projeto Portinari, ele disse: “Olha, não precisa falar nada, João, nós vamos apoiar. Você peça uma licença de um mês do Departamento de Matemática, que eu vou destacar um diretor meu para ajudar você a escrever o projeto”. E em abril desse ano de 1979 nós estávamos começando. Aí eu conclui que tem dois tipos de pessoas: tem as pessoas para as quais não adianta falar nada e tem as pessoas para as quais não precisa falar nada. (RISO) Porque o Lúcio era desses, né? Aí foi uma amizade. Bom, eu já o conhecia e ele já me conhecia como diretor da Matemática da PUC. Porque a FINEP foi um instrumento poderosíssimo no desenvolvimento da ciência e tecnologia brasileiras. E havia um programa, na época ligado ao Ministério do Planejamento, chamado FUNTEC, que o Perlúcio comandava esse programa.
P/1 - Acho que ele que criou, né?
R - Ele criou o Programa Funtec. Você conhece bem então a história aí disso tudo? Porque o Perlúcio foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento da ciência e tecnologia na PUC, inclusive, entre tantos outros. Então nós tínhamos um conhecimento já, e acho que isso talvez tenha ajudado. Esse fato do Projeto Portinari ter nascido e ter sido criado na universidade, e em particular nas áreas de ciência e tecnologia, eu acho que foi isso que assegurou a sobrevida do projeto.
P/1 - E a longevidade.
R - Fez com que ele pudesse durar 25 anos, num país sem continuidade institucional, sem vontade política para que essas coisas tenham uma permanência.
P/1 - Isso que eu queria também chegar. É um projeto atípico para o Brasil, porque aqui sempre se pensa muito a curto prazo, né? “O que nós vamos fazer: Vamos fazer uma exposição.” É isso e pronto.
R - É verdade.
P/1 - Esse projeto. (PAUSA)
P/1 - Tá, só para a gente retomar. Então, esse projeto pensado a longo prazo e feito, executado a longo prazo, se diferencia dos projetos normalmente feitos aqui no Brasil? Queria que você falasse um pouco mais sobre isso.
R - É, eu estava, até em função da publicação recente do Catálogo Raisonné, eu pesquisei um pouco dessa questão de por que um Catálogo Raisonné é tão raro. Até no primeiro mundo vamos dizer. Aí eu tentei fazer uma pesquisa quantitativa e falei: “Bom, vamos ver quantos artistas consagrados existiram em todos os tempos, em todos os países, e vamos ver quantos Catálogos Raisonnés existem publicados. E descobri uma fonte preciosa para isso, é o Bénézit. O Bénézit é uma coleção com 14 volumes que lista todos os artistas de todos os tempos, de todos os países. E são artistas consagrados, senão não estariam ali. E cheguei a um número de 170 mil artistas. Mas não só pintores: escultores, gravadores. Para estes 170 mil artistas, existem 800 Catálogos Raisonnés publicados até hoje.
P/1 - No mundo todo?
R - No mundo todo. Então é uma proporção mínima. Quer dizer, de cada grupo de 200 artistas consagrados, um tem um Catálogo Raisonné. E naturalmente não havia nenhum com as características do nosso na América Latina. Por que eu digo com as características do nosso? Por que o Catálogo Raisonné é uma publicação vertical, é uma obra de referência que pretende ser a obra mais definitiva e mais abrangente e mais minuciosa e mais sistemática sobre a produção de um artista. E esse Catálogo Raisonné tem um perfil padrão, tem requisitos para que você possa chamá-lo de Catálogo Raisonné. Ele não é um livro de arte e nem é um catálogo de exposição. Então entre esses requisitos, e talvez seja a coisa mais difícil, e por isso leva tantos anos, é que você tem que ter toda a obra por ordem cronológica e toda obra reproduzida. Por mais insignificante que seja um trabalho, ele tem que estar reproduzido. Ao lado dele tem um verbete e ele está em ordem cronológica. Esse verbete é que caracteriza o Catálogo Raisonné. Como é o verbete? Ele tem três pernas, esse verbete. Tem os dados técnicos, e isso não é tão difícil, que é dimensão, técnica, suporte, data, assinatura. Isso não é tão difícil. Tem uma coisa que é mais difícil, que é a proveniência, que é você traçar toda a trajetória daquela obra, desde que saiu do ateliê do artista atual até o proprietário, por quem passou. Isso é importantíssimo na questão das obras falsas, da autenticidade. E terceiro, que é o mais difícil de tudo, você tem que ter naquele verbete daquela obra, toda a história bibliográfica dela, nos 30 mil documentos, todas as instâncias em que há uma referência feita àquela obra. Numa carta, num depoimento, numa fotografia de época, num recorte de periódico.
P/1 - Você tem que fazer toda o histórico?
R - Todo o histórico. As exposições em que aquela obra esteve, né? Aí você tem ao lado da obra: carta de Drummond para Manuel Bandeira, e aí tem a referência sobre aquela obra, numa fotografia de época, num depoimento alguém cita. E a composição deste verbete é que faz com que um Catálogo Raisonné leve 20, 30 anos.
P/1 - Que é um trabalho de detetive também, né?
R - Trabalho formiga, de detetive, tem várias coisas. Eu estou falando isso porque eu fiz a ressalva, né, que na América Latina é o primeiro Catálogo Raisonné com essas características. Porque existem algumas obras na América Latina que se apresentam como Catálogos Raisonnés, mas que na verdade são coisas parciais. Por exemplo, tem um Catálogo Raisonné do Botero, mas ele focaliza apenas um período da produção do Botero. Tem um Catálogo Raisonné do Lan, do pintor cubano Lan, mas aí se dedica somente a uma técnica, por exemplo, obra gravada, a pintura, né? O nosso Catálogo Raisonné trata de toda a obra e de todas as técnicas e de todas as fases. Então nesse sentido ele é o primeiro em toda América Latina.
P/1 - São cinco volumes.
R - São cinco volumes, são 4991 obras. No quinto volume há um CD-ROM com o conteúdo de todos os cinco volumes, e uma ferramenta de busca também, onde você pode pesquisar várias chaves de pesquisa. Até mesmo uma chave na qual nós fomos pioneiros, que é de você procurar, por exemplo, todas as obras em que aparece a lua, onde aparece um peixe, um feijão. Como é que a gente conseguiu isso? A gente fez para cada obra uma descrição em palavras. Desde o início do projeto, nesses 25 anos, cada obra que era encontrada, fazia-se uma descrição. Nós criamos uma metodologia para fazer essa descrição, isso não havia. Porque não é uma descrição de um crítico de arte, não tem nada de subjetivo, né, é uma descrição que você começa no primeiro plano, da esquerda para a direita, vai adentrando o quadro, e aí você tem, por exemplo, personagem feminino de três quartos, de perfil. Quer dizer, é quase um vocabulário controlado. Na verdade você poderia extrair desse conjunto de descrições um Tesauros, uma árvore realmente com vocabulário controlado. Mais do que isso, é realmente, literalmente, um texto. Então com o desenvolvimento da informática, e isso é uma coisa fascinante também, porque nós temos a mesma idade que a indústria de microcomputadores, são mais ou menos 25 anos também. Nós assistimos, na prática, todas as descobertas, os scanners, os CDs, a preservação digital de imagens.
P/1 - Mas começaram sem nada disso?
R - Começamos sem nada. Inclusive, como nós tínhamos esse diálogo cotidiano com a física, com a informática, com a matemática, com as engenharias, cada vez que uma coisa era descoberta, no dia seguinte ela estava sendo aplicada no Projeto Portinari. Então isso explica também porque nós temos uma relação tão estreita com ciência e tecnologia, em particular porque a FINEP, que é uma agência de fomento de ciência e tecnologia, nos apoiou durante todos os anos iniciais. E nós participamos de inúmeras, realmente inúmeras situações de ciência e tecnologia. Por exemplo, eu mesmo fui convidado a apresentar, eu tenho uma palestra que eu falo do Projeto Portinari, eu fui convidado a apresentar essa palestra em praticamente todas as instituições científicas brasileiras, de Matemática, de Física, de Informática, até de Biologia na Fiocruz. Mas quando o Ministério de Ciência e Tecnologia comemorou seus 10 anos, foi uma apresentação nossa no Salão Negro do Congresso. Quando a FINEP comemorou 25 anos, nós estávamos lá também. Recentemente, na semana retrasada, eu fui chamado a falar do Plenário da Câmara dos Deputados, na Comissão de Ciência e Tecnologia, sobre o Projeto Portinari. Isso reforça aquilo que você falou de ser um ponto fora do gráfico nesse sentido, né? É um projeto muito atípico, nesse sentido. Voltando então ao projeto agora.
P/1 - Deixa eu perguntar também. Aí nesses anos todos, a equipe de trabalho foi flutuante?
R - Nem tanto, nem tanto. Isso é uma coisa extraordinária, porque eu diria que é uma equipe heróica.
P/1 - É uma equipe grande?
R - Não, é uma equipe pequena, bastante pequena, nós nunca fomos mais do que 15 pessoas. Às vezes fomos reduzidos assim. Mas, uma equipe heróica que eu digo, é porque nós nunca trabalhamos com uma garantia, né, pelo contrário, as pessoas não tinham carteira assinada, porque eram bolsas que tinham que ser renovadas, eram apoios ou da FINEP, ou da FAPEJ, ou do CNPq. Houve muitas fontes que foram mudando. Então assegurar a sobrevivência do projeto sempre foi talvez a atividade principal. Quer dizer, eu gastei, assim, um tempo infinito e uma energia infinita em simplesmente assegurar a própria sobrevivência. “Como é que nós vamos viver os seis meses seguintes?” Isso foi uma coisa aflitiva. É uma coisa aflitiva, nós continuamos vivendo assim. E o Brasil passa por crises.
P/1 - Altos e baixos.
R - Então. Agora, é uma equipe extraordinária nesse sentido de que há uma paixão. Você entrando dentro do Projeto Portinari, você sente desde o mensageiro até o diretor de tecnologia, você sente uma paixão realmente, porque são pessoas que estão ali por um ideal realmente, que ganham pouco, que não têm garantias trabalhistas, que não têm carteira assinada, e que estão ali por amor realmente. E isso há 20 e tantos anos. Eu tenho pessoas na equipe que estão comigo desde o início até hoje.
P/1 - João, e os patrocínios? Você falou essa necessidade, essa angústia?
R - Ao mesmo tempo isso é um paradoxo, viu Márcia. Ao mesmo tempo que a gente fala dessa aflição, dessa angústia, a gente constata que houve uma solidariedade maciça da sociedade brasileira como um todo, com relação ao Projeto Portinari. É uma coisa comovente que mostra como o Brasil, com todas as dificuldades que tem, quando ele acredita numa determinada coisa, a capacidade de ajudar e de se solidarizar com aquela coisa é extraordinária. Eu vou citar alguns exemplos para comprovar isso. Logo no início do nosso trabalho, o Ministério das Relações Exteriores mandou circular a todas as missões diplomáticas brasileiras no exterior, pedindo que em cada local, a embaixada, o consulado, a missão comercial apoiasse o trabalho do Projeto Portinari, em fazer o levantamento de obras e documentos. Então eles apoiaram não só no sentido assim de fazer a logística, né, das visitas e tudo, mas até mesmo na coleta de informações. Isso foi uma coisa extraordinária, que se manteve ao longo de todos os anos do levantamento. A Varig mandou um telex para todas as agências no mundo inteiro, mobilizando essas agências da mesma forma que o Itamaraty havia feito. E além disso, pagou passagens para pesquisador e fotógrafo, para fazer todas as viagens, durante anos.
P/1 - Legal.
R - A Fundação Roberto Marinho e a Rede Globo criaram uma campanha de chamadas pedindo a ajuda do público, que foi uma campanha extraordinária, porque ela foi uma campanha nacional e regional. Você tinha chamadas nacionais em todos os horários, inclusive horário nobre de novela. Você tinha chamada regionais para cada região, em que se apresentavam obras de Portinari, se falava do trabalho do projeto e que se pedia ajuda. Os Correios nos deram a Caixa Postal 500. Então a chamada terminava: “Se você possui alguma obra ou documento, informe seu nome e endereço para a Caixa Postal 500, Rio de Janeiro.” E nós recebemos mais de três mil cartas do Brasil inteiro, com informações. Então isso já caracteriza em alguma coisa.
P/1 - Em um movimento.
R - Se você for quantificar isso, o quanto isso representa em recursos financeiros, é incalculável, né? Mas houve esse envolvimento. Depois a Kodak deu todos os filmes, reveladores, gratuitamente. A IBM deu hardware, software e consultoria. Nós tivemos instituições como o INPE, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, nas primeiras experiências de digitalização de imagens, quando não havia scanners no Brasil. Quer dizer, eu me lembro que a primeira vez que a gente escaneou uma obra, teve que se levar essa obra a Venezuela, porque só a IBM da Venezuela tinha o scanner, não havia scanner no Brasil. Então a coisa da área científica também, as primeiras perguntas, como é que você digitaliza um slide? Quer dizer, nós tínhamos essa grande aflição de vocês estar percorrendo o mundo inteiro, e o que restava dessas visitas era o slide, era o único registro visual colorido da obra de Portinari. E a gente tinha a aflição de saber que aquilo era uma coisa perecível. Como é que a gente ia preservar aquilo? Eu fui à Kodak, em Rochester,eu visitei o Museu Internacional de Fotografia, eu fui à Pollaroid em Boston, eu consultei os cientistas que trabalhavam, assim, na fronteira da preservação da imagem colorida. E concluí disso tudo que os métodos que se tinha na época, que eram métodos físico-químicos de baixa temperatura, de baixa umidade relativa, de proteger contra agressões, assim, de natureza físico-química, que talvez aquilo não fosse o caminho, que a informática estava surgindo com toda força, que talvez o caminho fosse digitalizar essas imagens e guardar esses arquivos digitais em meios de grande permanência. Mas também não havia CD ainda. E até o próprio cálculo, que eu me lembro muito bem, de quantos megabites você teria que ter nesse arquivo, para que você tivesse toda informação que estava no slide, eu me lembro eu sentado com um cientista da M & M, que era Jean Paul Jacob, que até hoje está lá em Almadém, na Califórnia, que foi meu colega na França, nós estudamos juntos, e a gente dizendo: “Quantos pontos por milímetro nós temos que amostrar no slide para ter certeza de que a gente tirou a informação toda?” Se você amostrar pontos demais e ficar muito apertadinho, você vai estar capturando artefatos da emoção que não têm nada haver com o que foi fotografado. E se você tiver pontos de menos, você vai perder informação. Então tinha um lugar ali, que era (Optimal?). Uns cientistas da Kodak, da Pollaroid, lá em Rochester, não sabiam, alguns diziam que eram 50 pontos, outros diziam que eram 400 pontos. E nós assistimos o progresso científico nisso, convergindo para 100 pontos por milímetro, que foi a resposta que nós adotamos depois. Ora, se você tem 100 pontos num milímetro e você tem um slide que era seis centímetros por seis, que era o nosso slide, você está falando de seis mil pontos por seis mil, você está falando de 36 milhões de pontos que você tem que amostrar. 36 milhões de pontos, cada ponto você tem três cores, o RGB, então você tem que multiplicar esses 36 por três, você chega a um arquivo de cento e tantos megabites para cada slide. Naquela época não tinha métodos de compactação de imagem.
P/1 - Aí vocês foram podendo aproveitar toda essa evolução também?
R - E agora, este ano, quando nós fizemos o Catálogo Raisonné, nós realizamos esse sonho extraordinário que nós tínhamos naquela época, que era, ao mesmo tempo que a gente capturava digitalmente essas imagens para produzir o catálogo, nós ao mesmo tempo trazíamos uma captura em altíssima resolução para preservar para sempre. Então hoje nós temos 700 gigabites, que são o registro visual da obra completa de Portinari, preservado para sempre.
P/1 - João, e o apoio da própria Petrobras, como é que veio?
R - Pois é, o apoio da Petrobras foi uma coisa extraordinária, porque eu acho que foi o único apoio que abraçou as três grandes vertentes do Projeto Portinari. Quer dizer, se você olhar para o projeto, assim, de uma forma muito geral, você vai verificar três grandes vertentes. A primeira vertente é essa vertente que visa criar uma grande base de conhecimento sobre a obra, vida e época do Portinari. E aí nós estamos falando da geração, nós estamos falando de toda essa documentação que retrata o Brasil dessas quatro décadas que Portinari atuou. E o mundo também, porque essas pessoas tinham um pensamento universal também. Então isso é uma coisa, vamos dizer que estaria bem dentro do escopo de um projeto artístico-cultural, digamos. Então essa é a vertente documental. Há uma outra vertente que eu já mencionei também, que é essa interação com ciência e tecnologia. Quer dizer, você está diariamente em contato com colegas de ciência e tecnologia e está incorporando no projeto métodos e processos que vão sendo imediatamente aplicados ou adaptados para as necessidades da execução do projeto. Isso tem uma finalidade prática, que é você produzir ferramentas que permitam você pegar essa base de conhecimento e levar ao público. E aí nós estamos falando desde a criança do ensino fundamental e médio até os especialistas. Por exemplo, o Catálogo Raisonné é uma coisa de especialistas, mas nós temos coisas para crianças também. Que é a terceira vertente do projeto, que é uma vertente social, que é um trabalho que começou há uns sete anos, de ação social, ação de inclusão social, em que nós instrumentamos esses conteúdos para levá-los às crianças, no sentido de fazer com que essas crianças possam exercer uma reflexão crítica sobre a realidade brasileira, sobre o mundo em que elas vivem, né, a partir desses valores sociais e humanos que estão na obra do Portinari e na mensagem vida dele.
P/1 - E nisso você está falando do programa educativo?
R - Programa de Arte e Educação. Mas vai além ainda do Programa de Arte e Educação, porque há outros instrumentos também. Por exemplo, o nosso próprio site na internet tem uma área reservada à criança também. Então a idéia é você mobilizar todos os recursos tecnológicos para uma missão que na verdade é muito simples, e que está numa música do Milton Nascimento: “O artista tem de ir aonde o povo está.” Então, como levar esse artista aonde o povo está? Então todas essas ferramentas tecnológicas. E essa ação a gente tem desenvolvido, não só junto a escolas, mas até em outros lugares. Por exemplo, presídios, nós levamos à Penitenciária Lemos de Brito, ao Presídio Nilton Moreira, aqui no Rio de Janeiro, à favelas do Rio de Janeiro, ao Morro Dona Marta. A hospitais onde tem crianças com doenças terminais, câncer, por exemplo. O Albert Einstein e a Casa Ronald, aqui no Rio de Janeiro. Às populações ribeirinhas. Nós montamos o nosso programa em cima de uma chalana no Pantanal. Não sei se você sabia disso, né?
P/1 -Isso faz parte também dessa exposição itinerante?
R - Isto, isto. Essa exposição itinerante, ela tem várias maneiras de se fazer. Então nós montamos nesse barco e subimos o Rio Paraguai 1200 quilômetros.
P/1 - Essa Portinari pelo Brasil?
R - O Brasil de Portinari.
P/1 - O Brasil de Portinari.
R - Esse O Brasil de Portinari teve muitos desdobramentos.
P/1 - Que passeia pelo Brasil?
R - Passeia pelo Brasil e leva esse Brasil do Portinari também, tem um jogo aí, né? Então tem o Brasil de Portinari para escola, tem o Brasil de Portinari para Ciep, que tem um outro nome, que é “Se eu fosse Portinari”. Tem o Brasil de Portinari para os presídios, tem para as favelas, tem para os rios. Da mesma maneira que a gente fez o Pantanal, nós estamos começando a fazer o Amazonas agora, com os afluentes. Vamos fazer o São Francisco também. É realmente você procurar levar para populações - particularmente crianças - que nunca tiveram acessos a esses conteúdos. Então voltando à Petrobras, a Petrobras apoiou as três vertentes. Ela apoiou o Catálogo Raisonné, por exemplo, que é um exemplo dessa primeira vertente. Ela apoiou a primeira retrospectiva de Portinari, em 1997.
P/1 - Mas é isso que eu queria retomar. São duas exposições?
R - Não, são muitas.
P/1 - Não, tirando essa itinerante?
R - Sim. Aí você tem a Retrospectiva de Portinari no Masp, em 1997, e a exposição, bem recente agora, na Argentina. Que foi um sucesso também, emocionante. Porque foi uma revisita quase 50 anos, quase 60 anos depois. Foi em 1947 que Portinari esteve lá. Então a Petrobras essas ações, vamos dizer, de natureza dessa vertente, vamos dizer, da obra, dos documentos, né, que é o Catálogo Raisonné e essas duas exposições. O Brasil de Portinari eu diria que pertence mais à vertente social. Eu não olharia como uma exposição, eu olharia como uma ação de inclusão social, nessa terceira vertente. Em ciência e tecnologia a Petrobras apoiou o Projeto Pincelada.
P/1 - Fala um pouquinho como que é o projeto.
R - O Projeto Pincelada, ele surgiu em função de uma grande preocupação que nós sempre tivemos, que é a preocupação de como lidar com a questão das obras falsas. E aí nós tivemos problemas seríssimos, inclusive problemas de polícia mesmo. Nós tivemos sempre uma ação muito vigorosa no sentido de coibir a ação de falsários. Nós saímos inclusive à rua em diligência. O Projeto Portinari uma vez saiu em três rádio patrulhas. Uma delas subiu no Vidigal, além da linha dos traficantes, porque havia um depósito.
P/1 - Teve de tudo um pouco?
R - Teve de tudo, teve de tudo. Teve gangues internacionais, tinha uma gangue no Uruguai, introduzindo Portinaris falsos, né? Agora, o que nos faltava era uma ferramenta objetiva que pudesse comprovar junto à legislação brasileira, quer dizer, junto ao juiz, que aquilo que nós afirmávamos, que aquela obra era falsa, era uma afirmação com um grau de probabilidade muito alto. Porque a legislação brasileira, o juiz brasileiro, ele não aceita essa opinião subjetiva do perito, né, que diz: “Não, essa obra é falsa porque eu acho que é falsa, porque eu estudei esse pintor muitos anos, eu conheço o estilo, eu conheço a pincelada, eu conheço os processos, né? E essa obra, veja aqui, tá vendo, essa linha aqui não é dele.” O juiz olha e nada.
P/1 - Pode ser questionado, né?
R - Pode ser questionado. Então os métodos tradicionais de lidar com o falso tinham duas vertentes: eram métodos físico-químicos, em que você analisava o pigmento e o suporte; e tinha métodos subjetivos, que era o olho do perito. Essas são as duas maneiras tradicionais de se tratar a obra falsa. Em ambos os casos existem falhas, assim, famosas. O Catálogo Raisonné do Van Gogh, por exemplo, que foi feito pelo maior especialista em Van Gogh, que era o (Lafaih?), ele colocou 30 Van Goghs falsos. Ele depois veio a público pedir desculpas, que tinha se enganado.
P/1 - No Doutor Gauchet, aqueles, que é uma novela, né?
E - O Faimegarin é outro falsário famoso, que falsificou Verner, né, ele também passou pelos principais laboratórios da Europa, pelo principal perito em Verner, e nunca foi apanhado. Quer dizer, foi só quando ele confessou, e é uma história mirabolante essa história do Faimegarin. Então essas vertentes tradicionais apresentavam essa problema da falha. E nós, dentro da área de ciência e tecnologia, nós sabíamos que as tecnologias da informação estavam se desenvolvendo e trazendo ferramentas poderosas. Por exemplo, redes neurais, inteligência artificial, classificação automática de objetos, né, que eram aplicadas principalmente em segurança bancária e em problemas militares, na identificação de autoria. Mas nunca tinham sido apropriadas para a questão da atribuição de autoria em pinturas. E nós tivemos essa idéia dentro do projeto, foi uma idéia original, com um colega do Departamento de Matemática, era o Professor Jorge Vertlitnen. De olhar para a pincelada, esquecer o pigmento, esquecer o suporte, esquecer o perito, e ver se num conjunto de pinceladas retiradas de obras reconhecidamente autênticas, e um conjunto bastante representativo, né, se não haveria ali uma espécie de impressão digital do artista.
P/1 - Um padrão?
R - Um padrão. Um padrão, a palavra é essa mesmo. então nós fizemos macrofotografias de pinceladas em obras autênticas. E aí houve vários grupos na PUC, né, houve um grupo na Informática que trabalhou com redes neurais, um grupo na Matemática, com classificação automática de objetos, um grupo nas Engenharias, ainda com uma outra técnica de inteligência artificial, mas que não era a classificação automática. E começamos a olhar se esse conjunto de pinceladas encerraria essa informação, que essa o falsário não conseguiria nunca imitar. E esse projeto está em andamento. E a Petrobras apoiou esse projeto um determinado período. Esse projeto já vem há 15 anos. É um problema muito difícil. Então, mas nós apresentamos isso em congressos na Universidade de Cambridge na Inglaterra. Quer dizer, é reconhecidamente uma proposta original de abordagem de um velho problema, que foi proposta por nós, né? É um exemplo dessa ligação de ciência e tecnologia, talvez o exemplo mais sofisticado de todos, que é aquele que está realmente na fronteira do conhecimento.
P/1 - É uma pesquisona, né?
R - É.
P/1 - João, eu adoraria poder continuar. Eu acho que a gente ainda vai ter uma outra oportunidade de fazer uma entrevista, também no Museu.
R - Tá ótimo.
P/1 - Eu queria, antes de encerrar, perguntar se você queria deixar mais alguma coisa registrada?
R - Eu gostaria de deixar um grande agradecimento, né, à Petrobras, e em particular a esse governo. Porque pela primeira vez eu sinto que - nós temos um percurso de 25 anos, eu atravessei vários governos - pela primeira vez realmente o Projeto Portinari foi acolhido de uma maneira extraordinária, com carinho, com uma compreensão e com uma identidade, assim, de pensamento, de visão brasileira. E aqui eu estou me referindo especialmente ao Ministro Luiz Gushiken. E também à Petrobras. Quer dizer, as pessoas que estão na direção da Petrobras tiveram uma sensibilidade, uma consciência brasileira de identificar que esse trabalho precisava ser feito, e que sem o apoio deles corria-se o risco de não poder fazê-lo. Então eu queria registrar esse agradecimento.
P/1 - João, sua projeção é mais quantos anos? Longa vida?
R - Eu acho que nós podemos pensar em mais um tempo. Porque tem pessoas que dizem: “Bom, agora o Projeto Portinari acabou - com o Catálogo Raisonné.” Eu prefiro dizer: “Não, agora ele começou!”
P/1 - Tá começando.
R - Começou. Porque agora ele tem as ferramentas, agora nós vamos intensificar a ação que é possível desenvolver com essas ferramentas.
P/1 - E isso aí. Então muito obrigada pela sua participação.
R - Eu que agradeço, Márcia.
(fim da fita )
Palavras duvidosas:
Clide
Optimal
Lafaih
Recolher