Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Jovita do Sacramento
Entrevistado por Cláudia Leonora e Márcia Ruiz
Lençóis, 17/08/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV041
Transcrito por Luisa Fioravanti
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 20/05/2008
P1 – Dona Jovita, para começar, eu queria que você dissesse seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Jovita Silva do Sacramento, nasci no dia 14 de fevereiro de 1945.
P1 – Cidade?
R – Ipirá.
P1 – E o nome dos pais da senhora, e o que eles faziam?
R – Eles trabalhavam na roça de colheita de milho, feijão, batata, aipim, mandioca, essas coisas.
P1 – E, Dona Jovita, a senhora tem irmãos, irmãs?
R – Só tenho uma, de Mato Grosso do Sul.
P1 – Mas vocês duas cresceram juntas?
R – Criamos juntas.
P1 – E como era a infância de vocês? O que vocês gostavam de brincar?
R – De boneca, fazer casinha, cantar roda, fazer aquela rodinha que chama “chicotinho, chicotinho”, de brincadeira no meio do terreiro, pular corda. Essa é a nossa brincadeira, fazer casinha com as vizinhas.
P1 – Como era esse casamento de bonecas?
R – Reunia um bocado de bonequinha, tudo vestidinha, bonequinha de pau, e vestia tudo de roupa. Fazia o acompanhamento do casamento, pegava florzinha lá no mato, fazia os buquezinhos, as capelinhas, fazia aquelas casinhas de palha lá no mato, arrumava aquele bocado de vasilhinha para fazer aquelas paneladas, para fazer o banquete do casamento, arrumava aquelas tabuinhas no chão para fazer a mesa, fazia a caminha das criancinhas, que eram os bebês das bonecas. Tudo isso era a nossa brincadeira.
P1 – E vocês faziam as suas bonecas de madeira?
R – Fazia! As nossas madrinhas e tias nos davam de presente também, compravam bonequinha de pano e nos davam de presente, e as outras a gente mesmo que fazia.
P1 – Como a senhora fazia essa boneca de madeira?
R – Pegava dois pedacinhos de pau, cruzava e fazia os bracinhos. Pegava a cera de abelha e fazia os cabelos, fazia os olhos todos de cera, borrava de carvão a sobrancelha, fazia o nariz de carvão, e os que eram bonecos-homens, a gente colocava duas perninhas de pau, um ganchinho e vestia de calcinha. E as bonecas, que eram as bonecas-mulheres, a gente fazia aqueles vestidinhos rodados, uma hora de papel, outra hora de pano, que, quando rasgava roupa velha, a gente fazia. E fazia as roupinhas.
P1 – Qual foi a localidade em que a senhora cresceu?
R – Eu cresci, que eu acabei de me criar e estudei foi em Lagoa das Vacas no município de Ipirá.
P1 – E como era o cotidiano da senhora? Acordava que horas? O que a senhora fazia?
R – Nós íamos para a escola. Quando tinha a idade de 14 anos, nós íamos para a escola e, lá da escola mesmo, já tinha um caminho que ia para a roça. Meu pai e minha mãe já tinham casinha na roça, que já tinham panela, já tinham tudo, cozinhavam comida, ficavam esperando nós, meio-dia, e, quando era meio-dia para a tarde, nós íamos trabalhar com nossos pais. Mas, nos dias de sábado e domingo, eles davam férias para nós brincarmos.
P1 – E a senhora frequentava igreja nessa época? Como era?
R – Nós não frequentávamos muito a igreja, porque na roça em que nós fomos criados, quando cresceu, era muito distanciado. A minha mãe gostava muito da igreja, mas só foi na época de Natal, Semana Santa. Aí, a gente assistia duas ou três missas. Naquelas épocas, nós tínhamos muita santa missa, ela levava dois, três dias para a cidade, para ficar assistindo as missas. É assim que nós frequentávamos a missa. Agora, tinha igreja perto, capela, mas de vez em quando, domingo, ela pegava e levava a gente para assistir a missa. Era de vez em quando, passageiro, né? De vez em quando, o padre marcava de fazer uma missa na fazenda. Aí, o meu pai e a minha mãe levavam, e a gente assistia, e a minha avó também. Porque a minha avó morreu, e pela época que ela durou, tem poucos tempos. Eu casei já tem 33 anos, tem 33 anos que ela morreu também. Ela morreu no mês de dezembro, e eu casei no mês de outubro.
P1 – Em Ipirá, tinha brincadeira? Tinha lá na roça?
R – No tempo em que eu fui criada, não. Tinha quando eu me casei, que me mudei para o município aqui de Lençóis, porque nossas brincadeiras eram tudo em Ipirá, na criação do meu pai e da minha mãe. Aí, mudamos aqui para o sertão, agora que mudou de ritmos. Eu casei, casei com um homem que chamavam de curador, que eu já tenho contado muito caso para a Ciça. Então, ele entendia de passar medicamento de remédio, de curar gente, de chegar gente perturbado de cura, amarrado de corda, ele mandava para o médico. E ele foi mudando o meu ritmo, e eu fui criando filho, e os encantados dele participavam de negócio de conhecimento demais, e as mulheres gestantes. É que já faz muito tempo, é que eu casei com viúvo, mas, antes da falecida morrer, trabalhava com isso. E a primeira mulher dele concorria, não dava para essa profissão que eu peguei, de pegar menino, de assistir uma gestante. Agora eu já fui comigo.
P1 – Foi com ele que a senhora aprendeu essas coisas?
R – Foi com ele e com a sócia dele. Depois que ele faleceu para cá, eu já tenho feito muita companhia para gestante, mas para mandar para o hospital. Na confiança dele, e da força que ele tinha, eu pegava os meninos dele, mandava eu ir quando vinha o compadre ou a comadre em procura. “Vá buscar Seu Rosalvo!” Aí, ele não podia ir, mandava: “Vai lá, Jovita, vai ver como é que está, se tiver perigo, manda me avisar, manda me buscar, se não tiver, você se vira por lá!” Lá, quando o menino era ligeiro, eu pegava o menino. Tinha hora que a mamãe não tinha quem ficasse com ele, um dia ou dois eu ficava lá com a criança. Outra hora, vinha em casa avisar a vizinha para fazer companhia à parida e ia seguindo assim. E as crianças que eram muito difíceis de nascer, eu mandava aviso para ele, e, aí, ia a hora da criança ocupar até o encantado vir, para poder fazer a força para a criança poder nascer.
P1 – O que é o encantado?
R – O encantado é um que o povo chama de caboclo, espírito, esse negócio que entra na cabeça de um e nós, por exemplo. “Vamos chamar o caboclo de tal!” Aí, o caboclo dele, do falecido meu marido, era o nome que pegava o menino, chamava Velho Nagô. Agora, quando o Velho Nagô via que era difícil e ele não podia chegar junto, ele não ia, só ia apegado com o caboclo. Ele tinha o movimento dele, chamava, tomava susto que nós tudo assustávamos aqui. Ele já conversava de outro jeito, indicava. Ia lá, rezava na barriga da mulher, se o menino fosse para nascer aquela hora, ele falava: “Não demora, não!” E se não fosse para nascer também: “Você precisa de um medicamento ou, então, arruma um médico, arruma um carro para ir ao médico!” Aí, agora que o caboclo está, quando a criança, que já estava muito difícil, que ele via que aquele menino dava jeito, o encantado entrava lá no quarto da mulher incomodada, fazia as orações, rezava, colocava o pé esquerdo em cima da barriga da gestante e, quando a gente via, a gente via ele assustar logo, assustava e virava logo para trás. Daí a pouco, eu me preparava e pegava o menino nas palmas da minha mão. Durante esses tempos, 33 anos, durante esse tempo em que eu vivi com ele vivo, foi nessa profissão, ainda peguei uns 30 e tantos meninos. Aquela nota eu esqueci! Esqueci onde foi que ele nasceu para cá, para o prédio. Nós temos feito assim para a apresentação daquela nota, que eu não sei nem a quantidade que eu anotei.
P1 – Eram 33, 34, 32, eram 30, e alguma coisa assim.
R – Eu acho que eram 33 que eu peguei com minha mão.
P1 – Trinta e três que a senhora trouxe ao mundo?
R – Sim, senhora, foram 33 crianças e quatro que não vieram na minha mão, foram mandadas para o médico.
P1 – Entendi. Agora, a hora em que ele colocava o pé e ia para trás, era o momento em que estava nascendo?
R – É, ele não assistia, não. Quando ele virava para trás, para nós tomarmos o susto, porque o caboclo já suspendia dele, ele já passava na porta e ia embora, ele não via movimento, não. Só quem via o movimento éramos eu e as companheiras que tivessem.
P1 – E como era depois para curar o umbigo da criança? Tem todo um ritual, como é?
R – Era eu mesmo. Ali, a gente arrumava as brasinhas, não sei se vocês conhecem brasa do fogareiro, mas lá na roça é lenha de madeira, pegava um caquinho, uma latinha com as brasas, colocava uma colher do cabo de ferro no fogo. Quando estava vermelhinha, corta o umbigo da criança, tampa assim, coloca aquilo em cima do umbigo cortado já! Ali, ele chia, chia, chia, até esquentar, a gente torna a colocar lá no fogo. Quando está lá no vermelho de novo, torna a colocar, aí já está amarrado com o cordãozinho, e agora passa o óleo de amêndoa, faz a puxadinha de algodão, coloca em cima, todo dia mandar o umbigo, quando for lavar a criança, não molhar o umbigo. Agora, passa esparadrapo, lavava o umbigo. Quando dava três dias, dava um banho na criança e vestia a roupa. Com um dia, dois dias, três dias no máximo, o umbigo da criança caía, aí não tinha mais dificuldade. A dificuldade é essa, sempre: durante um mês que a criança estiver sarando o umbigo, não deixar água cair dentro, cria infecção.
P1 – E qual é o cuidado que a mãe deve ter depois do parto?
R – A mãe do bebê? Dar de mamar, não deixar chorar demais para não ficar rouco, sempre limpar os paninhos, lavar os paninhos do bebê, passar ferro no caso de pegar alguma poeira, alguma coisa e dar infecção na criança. Os cuidados são esses.
P2 – E com a mãe, por exemplo...
R – Quando a mamãe acaba de ganhar nenê, a gente pega uma fraldinha daquela da criança mesmo e dá uma massagem bem na barriga. Pega bem a barriga, a barriga “zoa”, com óleo de amêndoa ou óleo de comida, bem quente. Vai esquentando a mão no fogo, coloca o óleo e esfrega bem. Agora, quando a dona do corpo chega para o lugar, amarra o pano bem apertadinho, e ela fica, durante uns três dias. Se ela quiser levantar nas 24 horas, não subir escada e nem dar mal passada, ela pode sentar na cama dela para sair para uma cadeira, qualquer canto. E, livre disso, passando os três dias em diante, pode lavar o pano do nenê, juntar essa mesa aqui e colocar a bacia, dos três dias em diante. Ela tanto sabia que, não sinta dor de cabeça, não sinta nada, porque aí o que foi da minha parteira, foi com a minha mãe, fez com a minha mãe, porque ela vai fazendo as coisinhas leves, mas não comer coisa brava. Durante o parto dela, ela tem que usar, logo no início, quando acaba de ter nenê, que a gente acaba de amarrar a barriga da mamãe e a barriga da criança, a senhora pega um dente de alho, um pouquinho de cominho e queima o dente de alho no forno, torra bem torradinho, mistura e coloca um cabo de cinza, cinza da fogueira que se faz, coloca dentro d’água e ferra a água com aquele rescaldo bem quente e guarda. E ela, para beber, só o cominho e o alho e a água.
P1 – O que é cominho?
R – Cominho é um tempero que se vende. Aí, fazendo um repouso, tive a flora de horta, a gente pega os ingredientes, cebola branca, o alho mesmo, hortelã miúda, arruda, losna, mastruz, corta tudo miudinho, coloca 1 quilo de açúcar no fogo, ou meio quilo, a quantidade que a pessoa vai querer fazer, ou mel de abelha, não sendo da abelha essa italiana, que é muito teimosa, faz mal à parida. Agora, coloca no forno para ferver, quando estiver já o caldo bem feito, pega aquela folha, joga tudo dentro, mexe um pouquinho e coloca para esfriar. Coloca uma garrafa, fica lá na cabeceira da cama para a parida. A gente pode fazer até dez litros, que o visitante, a senhora vai visitar, todo mundo vai visitar e pergunta: “Cadê o xarope da parida?” O ditado aqui é esse, tem que ter qualquer pouquinho para beber, mas mistura com cachaça também, por exemplo, se for meio litro, dessa de mel, a gente coloca um copo de cachaça, cebola branca, poejo, hortelã miúda, tudo misturado. Fica gostoso, sabe? Dá vontade de beber um copo!
P1 – Mas coloca a cachaça para a mulher parida?
R – Para a mulher parida. Tem muitas delas que, passa dos três dias, e acaba o xarope. Leva na cachaça dura.
P1 – Dona Jovita, tem alguma coisa para fazer para ter leite em abundância?
R – Tem a farofa. Se ela gostar de comer a farofa, faz farofa que, em 24 horas, o leite vem. Se for dessas pessoas que não gostam da comida com farofa, faz escaldado da farinha. Pega a farinha, porque sempre nós aqui na Bahia, sempre, às vezes, fazíamos a canja da galinha. Agora, quem gosta do angu, come, e quem não gosta faz a farofa. Outra hora, quando o peito, a gente está sentindo que ele está cheio, não quer desistir o leite, pega um pente e passa nele. Quando for amanhã, a roupa está toda molhando de leite e passa até da medida. Tudo são experiências, né?
P1 – E deixa eu perguntar uma coisa para a senhora, na hora do parto tem aquele ritual de soprar na garrafa?
R – Tem. Quando a criança não vem junto com a placenta, tem que pegar uma garrafa e soprar, soprar bem com força, com o ar todo preso, para poder fazer força para ela acompanhar o lugar da criança, porque às vezes a mulher gosta de comer pele de carne, mastigar, tem umas pessoas que têm o gosto de mastigar aqueles pedacinhos de osso mole, isso tudo faz juntamente na placenta, que a placenta pega. Quando a mulher está de gravidez que tem aqueles entojos, aquele modo de fazer aquelas comidas bem salgadas, ali fica pregado na placenta, tanto que não serve, só faz mal para a placenta da criança, a criança vem solta na placenta, a placenta fica pregada. Tudo isso são experiências!
P1 – Com certeza!
P2 – Dona Jovita, por exemplo, a senhora está falando da questão da placenta. Se a placenta, a criança nasceu, fica alguma coisa na placenta, dentro da mulher, o que a senhora fazia para que o resto da placenta viesse?
R – A gente dava remédio.
P2 – Que remédio era?
R – A gente dá a palma, corta a palma miudinha, não precisa ser muito grande o pedaço, não. Corta ela bem miudinha, que ela fica aquela água “babenta”. Coloca no copo e bota um pouquinho de açúcar, pouco, somente para saber que tem o doce. E ela faz três goles e bebe. Não demora 15 minutos, vem logo!
P2 – Deixa eu perguntar mais uma coisa para a senhora, Dona Jovita. Se a mulher tem algum problema de infecção, que tipo de tratamento a senhora aplicava?
R – A gente passava a explicar sobre esse caso aí, da infecção no sangue da mulher, era água inglesa ou Elixir de João Pai! São umas garrafinhas, na farmácia vendem, a gente compra a garrafinha, a mulher vai tomando de duas em duas colheres por dia. A água inglesa já vem com o calicezinho, mas é muito regime na água inglesa, não colocar a mão na água fria, não lavar o rosto na água fria, não lavar o pé na água fria. Já o Elixir de João Pai, ele é meio ardiloso, mas ele dá para a gente levar, pode pôr na água fria, pode levantar cedo, mas a água inglesa, não. Era o remédio melhor, quando duas vezes que a mulher tomava, já lavava por dentro e colocava o que tinha por dentro para fora, livre disso. Quando ela estava sentindo muita dor e as cólicas, ela fazia o óleo de rícino preparado, que tem um remedinho desse tamanhinho, a gente pega ele e as folhas de hortas, essas que eu estou falando, e coloca no xarope. E corta tudo miudinha, joga dentro do xarope, o óleo de rícino e dá para ela beber. E agora, pronto. Sara no momento!
P2 – E banho de assento não tinha nenhum?
R – Tinha, banho de assento na casca do caju, a casca do barbatimão, mas só três dias.¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬ A mulher que ganha nenê não pode tomar mais do que isso.
P2 – Araucária também usava?
R – Não conheço.
P1 – Como a senhora coletava essas folhas todas? Pelas matas? A senhora tem na casa da senhora?
R – Na região. Quando eu não tenho, a vizinhança tem, e a gente fala e manda buscar.
P1 – Será que a senhora podia contar um pouco para a gente como foi esse processo que a senhora aprendeu com Seu Rosalvo? Como ele começou a ensinar a senhora para pegar criança, conhecer as plantas? Como foi isso?
R – Eu acho... Porque eu não sabia nada. A minha mãe não sabia, ela acompanhava a gestante, que nem eu estou acompanhando agora, mas nunca pegou um filho, um menino. A minha mãe, não. Já a minha avó tem a profissão, mas no tempo em que eu ainda não era nascida. Não sei como foi isso. Quando eu casei com ele e ele tinha essa profissão, acho que chegou a coragem por causa da força dele, que me ajudava, e, como agora não tem mais coragem de ficar com gestante, o Nagô falou: “Vamos caçar o médico!” Ajuntou com o caso que está hoje em dia, tem pressão, porque a pressão hoje em dia está sendo a doença que estão tendo até as criancinhas. Esse caso de pressão, eu não entendo. Caso da minha leitura é muito pouco para pegar um livro de receita, para olhar, para saber que remédio que vai ser para baixar aquela pressão, isso tudo acontece. Ainda mais isso, quando a mulher caiu na minha mão, não tinha passagem para a criança, que jeito que eu ia dar para essa criatura sem saber o que era? Dizendo que a criança estava nascendo, e a mãe morrendo, e agora o que me intimidou foi isso. Porque quando eu ia acompanhar, que ele mandava eu ir, eu ia por força dele. “Quando tiver qualquer perigo, você manda me dizer!” Eu mandava dizer para ele ou ele ia ou mandava uma oração que ele tinha, que eu já conversei com ele, e ele tinha uma oração, a Velha Bela. Eu acho que você já pegou o relatório dela, né?
P2 – Não, mas pode falar, quem é a Velha Bela?
R – Já é falecida. A Bela era uma parteira que era mãe de “pegação” dos meus filhos. Ela tinha essa oração de ajudar criança, e o meu marido também tinha, e nada disso que eu não possa resolver, essas orações morreram e eu nem sei quem tomou conta, não sei se está no museu, não sei onde está. Mas não serve, faleceu, só serve para o dono usar.
P1 – É pessoal essa oração?
R – É somente para a pessoa, que é uma das orações que meu marido mesmo, quando inteirava sete anos, ele tinha que trocar. Mulher não escreve essa oração. Só que escrevia, ele não sabia ler, o meu marido. Quando completava os sete anos, ele chamava o compadre dele, fazia lá quietinho para ninguém saber, só ele e o compadre. Eu não tenho essa segurança. Como vou enfrentar mais uma coisa que eu não posso?
P1 – Dona Jovita, como a senhora aprendeu a reconhecer as plantas? Essa é boa para isso, essa é boa para aquilo, faz o chá...
R – Mas acho que era o entendimento dele mesmo, que eu via como eram os encantados dele, ensinar para as gestantes trazerem aquele remédio. E aquilo entrava na minha cabeça, e, quando era na hora da precisão, eu já sabia pregar, já sabia que ia dar resultado. E agora acabou. Hoje em dia, eu ensino um remédio de gripe, dor de cabeça, mas, na frente de uma mulher gestante, dizer “eu estou sentindo dor e o menino vai nascer”, seguro que ele não cai no chão, não. Aí, eu pego.
P2 – E o Seu Rosalvo levava essa oração na hora do parto?
R – É. Quando chegava, logo. Tanto que, quando eu ia sozinha, ele não me entregava a oração, só botava com as mãos dele. Agora, quando a mulher estava gemendo ou quando a dor apertava, colocava lá no pescoço, e, agora, quando a força vinha antes de o menino nascer, ele já mandava tirar. “Tira a oração”, porque a gente conhece a hora que a criança vai nascer pelo esforço que faz, a gente conhece. Aí, a gente mandava tirar, estava fazendo força, pode tirar a oração. Tirava de uma vez, aí a criança, se não cuidasse, caía no chão!
P1 – A senhora se lembra do primeiro parto que fez? Conta para a gente como foi? O que a senhora sentiu?
R – Lembro. O primeiro parto, eu não senti, não. Eu pensei que não ia acontecer aquele caso comigo. Foi com uma neta dele, do Rosalvo, era vizinha comigo. A menina era neta dele, e o rapaz, sobrinho. Aí, ele ajuntou com essa menina lá perto de casa, sobrinho do meu marido. Foi indo, foi indo, e apareceu a notícia que Neusa estava grávida. E morava tudo pertinho de mim, a mãe dela já era falecida. Um dia ela foi lavar roupa, num dia de segunda-feira, e eu vim aqui para Lençóis com Rosalvo, o meu marido, e o pai dela. E o marido dela tinha ido na fazenda do pai dele, lá no Andaraí, na Chapada. Saiu todo mundo. Quando nós chegamos de tarde: “Cadê Neusa?” “Está aí, deitada.” O menino que eles criaram lá. “O que Neusa tem?” “Está doente!” Aí, ela me chamou: “Jovi, estou sentindo uma dor no pé da barriga e não sei o que é, que até a minha roupa fui lavar e me senti...” Não aguentou trazer tudo, e a roupa ficou lá na beira do rio. Aí, Rosalvo, o velho pai dela, o Cipriano, chegou e falou: “Rosalvo, dá um jeito nessa mulher porque essa criança só vai chegar amanhã, e eu não sei o que vai fazer com essa mulher, com essa dor no pé da barriga!” Lá, Rosalvo me mandou pegar essa mesma folha, cortar miudinho, fizemos um xarope, mas ele sabendo e não queria dizer. Fez um xarope e deu a ela para beber. No momento, essa dor melhorou. Agora, essa dor vinha, vinha hoje, amanhã passava, não vinha, aí depois ela tornava a sentir. Uma hora era nas cadeiras, outra era no pé da barriga, levou 15 dias nessa vida. Aí, ela deu de incomodar mesmo foi um dia de segunda-feira novamente, e vieram Rosalvo, Cipriano, o pai, tudo aqui para fazer a feira, moram tudo na roça. Essa dor apertou, apertou, mas Rosalvo era sempre mais ligeiro, chegou mais cedo da feira. Quando chegou, digo: “Rosalvo, a Neusa está com a mesma dor que a outra vez!” Falou: “O que será? Agora é menino que vai nascer!” E estava com sete meses de gravidez! O velho chegou também, tudo à tardinha. Aí, o meu marido chegou: “Essa Neuza vai sentir dor!” Pegamos um bocado de moitinha, é um matinho que tem, ele enche de florzinha azulzinha. Ele mandou pegar uns três pés, cozinhar e dar o banho em Neuza, da cintura para baixo. Mas foi o mesmo que dar uma anestesia! Na base das seis horas, seis e meia, deu esse banho, e Neuza foi dormir. Quando foram umas 11 horas da noite, a gente acordou e, na porta: “Tio Rosalvo, tio Rosalvo!” “O que está acontecendo?” “Foi Neuza que piorou e agora está ruim!” “Embora lá!” Era pertinho. Eu levantei, fui e, quando eu cheguei lá, ela já estava fazendo força para o menino nascer. O menino nasceu logo. Quando ele chegou e olhou e benzeu, botou o pé em cima, pé esquerdo, saiu para lá, o povo: “Corre aqui, corre aqui, Rosalvo, a Neuza está ganhando nenê!” Eu e ele, o pai e o marido, o marido ficou lá pelo terreiro chorando, e agora ficamos eu e o velho e Rosalvo, e, agora, quando eu vi, para não dizer que nunca tinha visto menino nascer, a minha menina mais velha estava com cinco meses, estava lá na cama dormindo. Eu nunca tinha assistido uma mulher ganhar nenê! Achava sem coragem, eu não tinha, não. Ficava por lá, fazia um chá, um banho, mas não entrava no quarto de uma mulher incomodada, de jeito nenhum! Daqui a pouco, a menina nasceu, nasceu complicado: “Vem cá, Rosalvo, vem ver como essa menina está! A menina está toda amarrada.” Eu não conhecia ainda, não sabia. Aí, que ele chegou, fez o remédio e desafogou a menina. No dia que completou sete dias, a menina morreu. Nasceu sem unha, sem cabelo, morreu no final de sete dias, morreu. Daí para cá, ele me explicou um bocado de coisas, fazendo explicação para mim como que era de ser, como não era, que, às vezes, um dia ele morria, não sabia, e podia ter uma precisão ligeira e ser preciso ser chamada. Foi me passando essa orientação. Agora, foi para 30 e poucos, eu me esqueci se foram 32 ou 33 que passaram nessa mão. Com essa daí, foi a primeira. Encaminharam, ninguém queria procurar mais, não. Bela adoeceu logo, veio aqui no comércio para se tratar, Dona Neuza pegou ela para se tratar porque ela tinha pressão, baço, essas coisas. Ela veio para cá, e, qualquer coisinha, mulher gestante, é Jovita. Agora, depois que ele morreu, fiquei sem coragem.
P2 – Como ele cantava?
R – Cantava, chegava, mas aí era no festejo. No dia desse negócio de nenê nascer, ele não cantava, não. Agora, na brincadeira dele, que era no dia 20 de janeiro, no dia que Rosalvo fazia aniversário foi o dia de São Sebastião, era o dia que ele festejava a festa dele de aniversário.
P1 – Ele cantava!
R – Quando chegava, quando era para ele chegar, ele dizia: “Quem não conhece quando eu chego, Iaiá, quem não conhece quando eu chego, Iaiá. Ai, meu Deus, vem me abençoar...” Todo mundo ia dar benção a ele, já sabia que era ele, e quando era para entrar no batuque dele, ele dizia, a cantiga dele era essa: “O velho já está velho...” Mas Rosalvo era altão, mas, quando esse encantado chegava nele, a boca ficava lá no chão, chegava a ficar redondinho. Aí, ele cantava: “O velho já está velho, o velho já não anda mais, o velho já está velho, o velho não trabalha mais.” Era essa a cantiga dele. E tinha o outro encantado dele, que trabalhava era de perturbação, outras doenças, esse aí chamava Sete Serras. O Sete Serras, que adivinhava qualquer coisa no fundo do mundo, se chegasse uma pessoa e falasse assim: “Hoje eu vou para o jarê do velho Rosalvo para ver Rosalvo, para ver o que ele vai fazer comigo! Vou tomar uma cachaça para ver se ele adivinha mesmo!” Quando ficava todo mundo brincando, ficava todo mundo brincando, era mais tarde que cantava a cantiga dele, me esqueci. Ele cantava a cantiga dele, fazia o batuquezinho dele, ele brincava, aí ele voltava para o pessoal: “Fulano de Tal está aí na brincadeira?” Uns diziam: “Está!” Ele: “Venha cá, que eu quero conversar com ele! Não gosto de conversar de longe, não, gosto de conversar de perto!” Muitos saíam chorando. “Ah, foi você que disse que você ia beber uma cachaça quando chegasse aqui? E ia dizer que o caboclo de Rosalvo ia adivinhar, não é? Quem sou eu aqui? Qual é o meu nome?” Tem gente que ajoelhava nos pés dele para pedir perdão, de vergonha! Tem muitos que nem lá iam, que sabiam, se falavam, ele descobria. Trabalhava um bocado, trabalhava um bocado Rosalvo. Gente ir perturbado como eu estou falando: “Fulano de Tal está doido!” Amarrado de corda, aconteceu aqui dentro de Lençóis, e iam botando na cadeia. “Não, leva para a casa de Seu Rosalvo!” Na casa de um, na casa de outro, dava um remedinho e voltava, chegava em casa e ficava no mesmo. Lá na casa do Seu Rosalvo, ia amarrado de corda, amarrado de corda! Amarrava a corda, vamos para puxar para lá. Quando ele remetesse, parece que vinha para cá, e a outra corda cá. Quando ele remetia para pegar os de lá, quem estava atrás puxava, quando ele remetia para pegar os de trás, os de lá puxavam para poder socorrer. Quando chegava lá para fazer o chamado, era hora de a gente estar na roça trabalhando, eu mais ele. Quando chegava, os meninos iam buscar: “Chegou um doido lá em casa, papai, chegou um doido lá em casa, vovô!” Eu já vivia com medo dos meninos meus. Agora, estava amarrado de corda. A gente chegava, passava para lá, fazia a obrigação, ele ia, tomava o banho dele, ia lá nos pés de santo, fumava, botava os aparelhos dele, acendia vela e agora ele chegava, olhava para lá: “Tira essa corda desse doido, ele não está doido, não!” “Ah, não, não pode, não, essa noite ninguém dormiu, fez bobagem. Aqui na cidade mesmo, fez mulher, chegou em casa embuchada e nua, toda despida, sem nada, sem pano, sem calcinha, pelo menos!” Amarraram ela, foi a polícia que amarrou, essa chama Damiana. Até a polícia pegou para ajudar, para amarrar, aí levou lá para casa: “Tira corda, sou eu que estou mandando, desamarra essa mulher!” Quando tirava a corda, ela desmaiava, ou ele, ou ela, era homem, era mulher, era tudo. Quando não tinha uns, quando ia tirar a corda, ia lá bater na porta do santo, e tinham outros, quando desamarravam, caíam. É igual quando ficava internado lá em casa, passava meses, três meses, quatro meses, tudo lá dentro de casa. Os donos que fossem lá dar assistência, mas ele não dava ordem de sair de jeito nenhum. Mas quando vinha, só vinha são.
P1 – Resolvia mesmo! Resolvia todo o problema. Deixa eu perguntar uma coisa para a senhora, como a senhora conheceu o Seu Rosalvo?
R – Eu conheci Rosalvo porque, na época, teve uma crise muito grande aqui em Lençóis, e lá em Redenção tinha muito movimento de roça, de mamona, desses negócios. Aqui ficou muito acabado, lá ele tinha uns parentes. Ele foi com a família dele trabalhar lá, fazer roça de mamona. Nesse tempo, a mamona tinha muita influência. Isso lá tomamos conhecimento com ele, a família dele. A caçula, quando ele teve lá, já estava desse tamanho assim, caminhando, começando tudo. A mulher dele, tudo. Nisso que ele veio trazer para aqui, porque o tempo melhorou, ele trabalhava de vazante, chegou água nas vazantes, de arroz, essas coisas. Aí que ele veio embora, com três anos. Quando ele chegou lá, de início, a mulher dele morreu. Aí, ficou ele. Foi quando ele resolveu, acho que, quando me viu se simpatizou por mim, e agora voltou novamente para lá e me pediu em casamento. Ficou para lá e para cá, depois, quando foi a época de a gente se casar, nós ficamos noivos três anos, ainda. Logo, levou a filha caçulinha que a mãe deixou, levou para eu tomar conta. Bem casada, ela casou primeiro do que eu ainda. E aí que foi o nosso conhecimento.
P1 – Lindo! A senhora é mestre da Ação Griô Nacional? A senhora passa o ensinamento que a senhora sabe para algumas pessoas?
R – Já, o Márcio e a Lilian mesmo já foram lá em casa, lá no prédio, para eu fazer umas pesquisas com eles.
P1 – Então, vamos começar assim: como a senhora conheceu o Márcio e a Lilian?
R – Conheci por causa de Iracema.
P1 – Quem é Iracema?
R – Iracema é minha filha, professora, e, então, com esses estudos dela, ela pegou os estudos e foi chamada aqui, para fazer sempre uma pesquisa. Daí, agora que ele ia lá fazer os passeios deles, e o Velho Griô, quando ele chegava lá, tinha chamada. Quem chamava os vizinhos era eu, para apresentar. E a primeira “apresentante” que teve dos vizinhos lá sou eu, no lugar, por causa de Iracema. O conhecimento começou de Iracema por causa de estudo dela aqui na escola, que ela estudando e acompanhando os griôs. Aí, agora que tomamos conhecimento.
P1 – E a senhora acompanha o Velho Griô?
R – Lá, quando ele vai na roça, eu acompanho, mas aqui, não. Agora, aqui, de Lençóis, para ir para outro canto, nunca fui, não. Nunca deu para eu ir, porque nunca deu mesmo. Mas, quando ele vai lá, a primeira pessoa que vai fazer encontro com ele sou eu.
P/1 – Conta para a gente como é essa caminhada que vocês fazem. Vocês vão parando de casa em casa? Como que é isso?
R – Nós só vamos chamar esse pessoal que veio, que está lá embaixo, para fazer uma apresentação. É que são vizinhos, é que eles que são donos dos tormentos, tamborins, de bumba. Eram eles que eu acompanhava. Márcio, duas vezes Márcio foi, mais um rapaz que trabalhava com ele, me esqueci o nome, trabalhava com ele. E, duas vezes, eu fui mais Márcio na casa deles buscar, para fazer o acompanhamento.
P1 – Aí vocês cantam?
R – Nós cantamos, saímos nas casas, visitando. A primeira casa do encontro é no prédio.
P1 – Prédio?
R – No prédio escolar, perto lá em casa. Agora, para fora, para outro lugar, eu nunca acompanhei ele, não.
P1 – E o que vocês cantam, Dona Jovita?
R – Aí está difícil. O que a gente canta mesmo é só aquilo que o Velho Griô gosta de cantar. Como que é mesmo?
P1 – Não tem problema!
R – (Cantarola) Essas daí que são da chegada. Agora, outras, a gente vai, diz o verso, eu digo um verso, a Ciça diz outro, a senhora diz outro e diz outro e pronto. É só apresentação mesmo!
P1 – E a senhora está transmitindo esse conhecimento de planta para alguma pessoa? A senhora passa esses conhecimentos para alguém?
R – Somente quando Ciça vai com o grupo, e quando Márcio ia e fazia umas pesquisas comigo, somente. Mas, para outros lugares, não.
P1 – Que grupo é esse com que a Ciça vai na casa da senhora?
R – Turismo, porque tem umas pessoas que eu não entendo bem.
P1 – Mas eles chegam na casa da senhora, e o que a senhora fala?
R – Vai me procurando as coisas, e vão me ditando, igual a senhora está fazendo aqui. Agora, as coisas que eu não entendo deles, Ciça passa para mim.
P1 – Mas a senhora vai mostrando as plantas no terreiro da senhora?
R – Eu mostrei há poucos dias, porque de poucos dias para cá que eu comecei a plantar. Mas alguma que serve para mulher parida, não teve jeito, porque eu moro longe de água, a Ciça conhece. Não tem como, eu tenho encanação para água própria ali, eu não posso andar, e o caminho da fonte é muito longe. Só vai água para o gasto mesmo. Se não, eu tinha vontade de ter um quintalzinho para ter cada planta daquela uma, para chegar uma coisa dessas, e ter o que mostrar. Esses dias que Ciça foi com um grupo que teve erva-cidreira, capim-santo, melissa, calêndula, hortelã, essas plantas. Só tiveram essas plantas para mostrar para elas, alfavaca, essas aí.
P1 – Com essas faz chá?
R – Faz chá para dor de barriga, para disenteria, esses negócios, dor no joelho. A hortelã é bom para dor, estômago. A melissa é bom para cabeça. O pessoal está se sentindo muito nervoso, toma o chá da melissa. A erva-cidreira, está sentindo dor de cabeça, tontice, esses negócios, e quer vomitar é a cidreira com sal. Chá caseiro é chamado.
P1 – Tem alguém que a senhora queria ensinar para ser parteira? Ou a senhora está ensinando alguém?
R – Nunca ensinei a nenhum, e não tem nenhuma das minhas conhecidas vizinhas que queira. Têm medo!
P1 – Por quê?
R – Diz que não tem coragem, não. Agora, se fosse no caso de alguma dizer: “Eu vou enfrentar fazer do jeito que ela faz!” Mas o que está tomando mais medo em mim e em todas também é o caso da pressão, porque hoje em dia é difícil ter uma mulher para ter uma gravidez para não ter um problema. Primeiro, que declara a pressão, é só em lugar que tem medicamento, médico.
P1 – Mas, antigamente, será que as mulheres não tinham pressão alta e não sabiam?
R – Tinham, e acho que tratava por outra doença, eu creio que seja. Porque hoje em dia sente dor de cabeça é pressão, sente uma tontice é pressão, tudo é pressão. Antigamente: “Ah, fulano está sentindo o coração!” A gente fazia o chá de qualquer folha, de um calmante, e sarava. Mas hoje em dia não, só sara com médico. É deitar no aparelho, isso aí que é perigoso.
P1 – E o que a senhora acha: antes, essas nasciam mais de parto normal, que nem a senhora fazia, e hoje está nascendo mais em hospital. O que a senhora acha que perdeu dessa tradição que a senhora fazia com Seu Rosalvo?
R – As mudanças dos medicamentos, né? Eu acho que sejam as mudanças dos medicamentos. Essas folhas de remédio que a gente tinha, o que servia para aquilo não está valendo mais, não é?
P2 – Mas, Dona Jovita, a senhora não acha importante continuar transmitindo esse conhecimento?
R – É muito, muito importante.
P2 – E por que a senhora acha importante?
R – Porque voltar naquele tempo, eu vejo, naquele tempo. Hoje em dia, tem até algumas ajudazinhas, que Deus ajudou, um hospital perto que aqui não existia, porque em Lençóis não tinha hospital, não. Nessa época que eu trabalhava com isso, não tinha hospital. Quando acontecia, vinha um médico no posto, de 30 em 30 dias. Quando acontecia, ia ali, fazia uma consulta, um exame para mulher grávida ou se estivesse com uma doença muito grave. Para os homens, se estivesse com uma doença muito grave. E, hoje em dia, todo três dias vai no hospital que tem médico, e até que o povo não está mais se importando com esse medicamento, o medicamento caseiro. Eu acharia que é isso. Porque nós todas, naquele tempo, confiávamos na folha. Se uma sentisse a dor de cabeça, que a outra nem tinha sentido a dor de cabeça, ia dizer: “Eu vou fazer o remédio que a fulana fez porque vai passar!” Hoje em dia, não. Hoje está com dor de cabeça, amanhã, quando amanhecer o dia, vou procurar o médico. Não fala outra coisa, só consegue o médico.
P2 – O que precisava fazer para recuperar essas coisas?
R – Ah, isso tudo é com vocês. Se voltasse para a gente, era muito bom.
P2 – Era mais natural?
R – Mais natural...
P2 – Eu fico pensando como pode voltar, como a gente pode pensar em fazer voltar essas coisas?
R – Está meio difícil.
P1 – O que a senhora acha importante desse conhecimento, que tem que ser guardado, passado para frente?
R – A senhora procura o que eu acho que é bom ficar no que está?
P1 – Sim.
R – Eu acho bom conseguir o que era melhor para nós ficarmos com uma coisa e outra, a parte do médico e a parte caseira. Mas só tem uma coisa, esse entendimento de curador, que nem era o do meu marido, tem bem poucos. Hoje, depois dos estudos, muita coisa, todo mundo funcionário, ninguém está se importando em ir numa serra procurar um remédio, de um experiente mais velho para se entender com ele, ou para renovar uma coisa no lugar que está mais difícil. O que eu acho é isso! Se está difícil, é por isso aí.
P1 – E o que significa para a senhora esse trabalho que a senhora tem feito com Márcio, de receber as pessoas, cantar. O que significa isso para a senhora?
R – Eu acho uma coisa ótima, eu tenho prazer. Teve aí uns dois anos que ficaram essas apresentações de Márcio sempre lá, teve vizinho que falou: “Por que é que o pessoal só caminha para a casa de Jovita? Só vai para a casa de Jovita em procuração das coisas? Quando tem qualquer coisa é Jovita, para ir cantar um “rei” é Jovita, para bater uma palma é Jovita.” Eu não sei cantar “rei”, mas gosto de bater uma palma. Venham, tem uma reunião de uma reza de santo, igual na semana passada, dia seis teve. Eu mais minha filha pegamos a cartilha e rezamos as ladainhas nos pés de Jesus da Lapa. Somos chamadas para isso, se a gente tem uma obrigação, a gente vai recolher? Não pode. É com a experiência dos mais velhos, a minha avó deixou isso, minha mãe deixou isso. Então, não é peso, não, rezar, rezar um Pai Nosso aqui na minha casa para Deus me ajudar. Eu sei do Pai Nosso, não vou rezar? Vou negar? Não pode, não.
P1 – Como é rezar uma ladainha?
R – A ladainha, no dia do Santo Romeiro, que aqui tem romaria do Bom Jesus da Lapa, bastante santo, Nossa Senhora do Milagre, Nossa Senhora das Graças, que é mais longe, lá para o lado de Milagres mesmo. Aí, tem os dias da romaria. Bom Jesus da Lapa foi no dia seis. Tem gente que faz uma promessa, essa vizinha minha, foi a mãe dela que fez uma promessa para um menino de criança para o senhor Bom Jesus da Lapa. Se o menino sair, ele está até hoje aí. Se o menino sarasse daquela doença que ele tinha, que todo o dia seis de agosto rezava a ladainha para o Bom Jesus da Lapa. Ela criou o filho dela sadio, a velha morreu. Zeca que é presidente hoje em dia, o dono dessa promessa é Zeca. Aí ficou para a irmã mais velha, a Zenilda quem faz, todo ano nós nos ajuntamos e vamos rezar para o Jesus Bom da Lapa.
P1 – Mas a ladainha é o que? Uma reza grande, comprida?
R – É.
P1 – A senhora pode falar para a gente?
R – Mas eu não estou com catecismo para essa reza.
P1 – Ah, entendi, tem que ler o catecismo.
R – É, tem que rezar no catecismo.
P1 – Dona Jovita, a senhora já deu entrevista contando da senhora, a experiência da senhora?
R – Ainda não.
P1 – O que a senhora está achando dessa entrevista?
R – Ótimo.
P1 – Por quê?
R – Com o pessoal que vai com Ciça mesmo é curtinha, não é esse tanto, não. não é porque a vizinha falou: “Olha, mãe, a Ciça falou que é muita coisa que a senhora tem que fazer amanhã de noite!” Porque eles foram me dar o recado ontem.
P1 – E o que a senhora achou de ter passado esse tempo com a gente, deixado a história da senhora registrada para outras pessoas?
R – Se eu quero deixar?
P1 – O que a senhora achou de ter feito essa entrevista com a gente?
R – Achei ótimo.
P1 – Por quê?
R - Porque achei mesmo, as coisas são tão lindas gravadas, porque eu sei que está gravada.
P1 – Então, está bom! Dona Jovita, eu queria agradecer demais a senhora ter vindo aqui dar entrevista, ter deixado a experiência da senhora, a história do Seu Rosalvo registrada, porque isso é muito importante. Em nome da Ação Griô Nacional e do Museu da Pessoa, eu queria agradecer demais!
P2 – Muito obrigado.
R – Muito obrigado todos! Eu tinha vontade que eu tivesse a foto deles, pelo menos para vocês conhecerem, né? Mas eu vou dar um jeito, porque, esses dias, Aurino me falou que aqui faz. Eu tenho uma foto dele pequenininha, a Ciça, para tirar uma maior, para deixar como lembrança para quando eles vierem.
P1 – Ah, é bom. Depois a gente vai mandar para a senhora a cópia da entrevista, e vamos mandar umas fotos também que a gente está fazendo da senhora desse momento.
R – Ótimo, deixe lá para vocês também, porque pode falar: “Eu vou para a casa de Dona Jovita!”
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