P/1 – Fala para mim então, pra registrar, o seu nome inteiro, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Claudio Ferranda, nacionalidade italiana, nasci na Itália em três de maio de 1939 às nove horas da manhã.
P/1 – Vamos pular então uma boa parte, pelo tempo. Você começou a trabalhar quando, seu Claudio?
R – Bom, Paula Souza eu conheço há mais ou menos, estou com quase 60 anos. Comecei a trabalhar com 18 anos e tinha que trabalhar pra pagar a faculdade. E trabalhava. E o mundo da Paula Souza naquela época era não um mundo de fantasia, era um mundo de realidade aonde basicamente grande maioria portugueses e uma minoria, menor um pouco, italianos e que fundaram um centro de comércio que abastecia quase que praticamente o Brasil inteiro de todas as necessidades que eram pedidas na ocasião. Isso ia desde arame farpado à soda cáustica pra fazer sabões, a alimentos, roupas e sapatos. O movimento que Paula Souza tinha 60, 50 anos atrás era alguma coisa como extraordinário. Os principais comerciantes naquela época tinha Martins, que era uma das maiores casas atacadistas, e tinha lojas e casas praticamente espalhadas por todo o sudoeste do Estado de São Paulo e entrava em Minas Gerais, etc. Outro que também era grandioso na época era o Veríssimo, que era a segunda casa maior, não vou fizer quem era maior e quem era menor, todas eram grandes casas. Pastorinho era a rigor a terceira. Alô Brasil a quarta. A Catarinense do João Aloisio Momisso devia ser a quinta. Depois vinha o Dias, que era um sobrinho do Pastorinho, que tinha as Casas Olímpia, Olímpia que é o nome da esposa dele. Várias casas atacadistas, depois viraram casas atacadistas e supermercados. O Sutti Neto, que tinha basicamente casas em Franca e não me recordo de outros lugares, mas todos eles compravam tudo, de um lápis a uma borracha, de um arame farpado a uma soda cáustica e todos alimentos, roupas, etc, que você pode imaginar. Essas eram as grandes dentro da Paula Souza. E depois tinha os pequenos que compravam e tinham uma ou duas casas atacadistas, que nem o Mendes, Supermercados Mendes, mas antes disso tinham casas atacadistas porque naquela época não se falava em supermercado. Você entrava num armazém, que era a casa atacadista, e tinha de tudo lá, no interior o centro de compras era São Paulo. Isso é mais ou menos uma pintura do que tinha, completamente diferente da Santa Rosa. A Santa Rosa era mais importadora de queijos, vinhos e cebolas e batatas, basicamente. Tinha outras coisas, mas essa era a grande concentração de Santa Rosa há 50 anos, 60 anos. Acho que dei uma pintura pra você das coisas. Muitos negócios que se faziam na Paula Souza eram feitos no bigode. Isso significava que era o meu nome, comprei e resolvia. E tinha um grande fenômeno na Paula Souza, naquela época, que era a Bolsinha, que era a Bolsa de Cereais. Abria às três e meia, quatro horas da manhã e eram negócios assim, não entrava governo, ninguém sabia quantos caminhões entravam, quantos caminhões saíam. Tinha a Bolsinha, sujeito comprava caminhões de arroz, caminhões de batatas, caminhões de cebola na Bolsinha, ninguém sabia exatamente como funcionava a coisa porque tudo na palavra, tudo no dinheiro à vista e ninguém pagava um centavo de imposto. Naquela época eu posso falar porque ninguém pode cobrar dívida de 60 anos atrás (risos). Mas essa era a Bolsinha que funcionava na própria Bolsa de Cereais de São Paulo e funcionava dessa maneira.
P/1 – Na Senador Queirós, né?
R – Na Senador Queirós. E isso era uma poesia, eles vinham acordar quatro horas pra ver, uma agitação, etc. E esses senhores de origem lusitana e italiana acordavam às quatro horas da manhã, eram ricos, mas compravam na Bolsa porque eles sabiam, na Bolsinha ali, na madrugada, faziam negócios muito melhores do que na Bolsa oficial.
P/1 – Que funcionavam mais tarde?
R – As Bolsas normais entrava nove horas abria a Bolsa, fechava às quatro, essas coisas. Mas essa Bolsinha da madrugada, pode ser que até hoje tenha alguns vestígios, eu não tenho certeza porque não frequento mais (risos).
P/1 – Entendi. Agora em questão de alimento mesmo lá na Paula Souza você falou que na Santa Rosa era muito batata e cebola.
R – Certo. E vinhos e bebidas.
P/1 – Agora na Paula Souza era tudo mesmo.
R – Tudo, tudo, tudo.
P/1 – Até cebola e batata também.
R – Cebola, batata, arroz, feijão, tudo o que era necessário para abastecer as suas casas que revendiam, eram casas atacadistas naquela época, que revendiam tudo o que você pode imaginar, de sapatos a band-aid, tudo, tudo era comprado e abastecido porque tinham que abastecer cidades do interior, pequenas, médias e grandes. Então tinha que realmente, compravam de A a Z tudo o que era necessário. Frutas, enlatados, importados, cereais, ou seja, tudo era abastecido, eles compravam e abasteciam.
P/1 – Entendi. Então não era tanto mais pra cidade de São Paulo, era mais para o interior, ou também?
R – Não, algumas coisas pra cidade de São Paulo também, mas as grandes casas atacadistas compravam para abastecer o resto do Brasil.
P/1 – E mesmo esses artigos como arame farpado, sapato, eram no atacado?
R – Eram no atacadão. Faziam importações, pra você ter ideia, importavam alimentos em latas, atum em lata, queijos, tudo era importado, vinha e era revendido por eles. O arame farpado era importado normalmente dos Estados Unidos, que era o tipo Motto que não me recordo, eram três fios, quatro fios, com tantos espinhos, etc., eram importados dos Estados Unidos e revendidos no Brasil. Tudo o que você possa imaginar que era para abastecer uma cidade a Paula Souza, naquela época, fazia importações e supria. E tinha pequenos importadores que importavam determinadas especificamente e vendia para eles. Por exemplo, D. W. Albaneze era uma empresa que importava basicamente de tudo e revendia para os grandes atacadistas, se especializava em determinadas áreas. O D. W. Albaneze era o Walter Albaneze e Euclides Carli. Euclides Carli hoje é vice-presidente da Federação do Comércio. Vocês deviam entrevistar o Euclides Carli que ele tem uma história muito mais linda que a minha.
P/1 – Não, a gente falou com ele já.
R – Já falou? Euclides Carli é um grande amigo meu, está com 92 anos, extremamente lúcido e extremamente honesto e simpático. E ele foi praticamente um dos mentores que me levou para a Paula Souza.
P/1 – Queria que você contasse essa história pra mim, como é que foi?
R – Veja, naquela época importávamos soda cáustica basicamente da França e Estados Unidos. E surge na Bahia uma fábrica que fez a primeira soda cáustica em escama. Tínhamos no Brasil já uma soda cáustica que era a Carbocloro, que fazia soda cáustica e cloro, mas soda cáustica na forma líquida porque não tinha cristalizadores e vendia-se, como até hoje se vende soda cáustica líquida, nas grandes indústrias de papel, nas grandes indústrias onde a soda era necessária, têxtil, etc. Mas a Paula Souza precisava da soda cáustica sólida ou em escama. E surge então uma fábrica, Indústria Química IQR, Indústria Química Resende? Não, Indústria Química do Recôncavo. Eles botam as células De Nora, que são as células pra fazer a soda cáustica, são células eletrolíticas e trazem da Itália, da De Nora mesmo, que é um grande fabricante de equipamentos, trazem os cristalizadores e fazem soda cáustica em escama, que era mais cara do que a importada. E o governo então, pra ajudar a indústria nascente na Bahia, dá o direito para cada um que comprasse uma tonelada de material da IQR, Química do Recôncavo, poderia importar um tonelada de soda cáustica sem pagar imposto. E eu fui chamado como jovem químico a vender esse material em São Paulo junto com meu ex-sócio Tito Cesare e nós vendíamos a soda cáustica. Então nós éramos muito queridos porque eles compravam soda cáustica mais barata e faziam um preço médio. E isso abriu todas as portas a todos esses grandes importadores naquela época. Éramos queridos porque precisavam de nós e nós tínhamos nossos frutos porque eles precisavam e nós vendíamos.
P/1 – E os importadores são esses atacadistas?
R – São esses atacadistas que eu falei, os grandes importadores. Importavam, realmente, quantidades bastante fortes. Para o Brasil de 50 ou 60 anos atrás.
P/1 – Você acha que vendia-se mais o quê nessa época? De tudo ou mais alimentos, ou mais?
R – Basicamente sempre foi, o alimento sempre foi o forte da Paula Souza, ou seja, gêneros de primeira necessidade são sempre de consumo praticamente obrigatório e imediato. Uma calça você pode deixar pra comprar no mês que vem, mas o alimento você não pode deixar para comprar na semana que vem. Então alimento realmente era o forte deles.
P/1 – Agora como que você acha, ou você sabe, que começou essa Paula Souza? E tem alguma coincidência em todos seres portugueses?
R – Não é uma coincidência. Chegava o tio e montava o negócio dele e, Portugal há 60 anos estava com uma condição econômica muito débil, muito fraca, etc. Então ele chamava o sobrinho pra vir ajudar e esse sobrinho vinha, trabalhava quatro, cinco anos com o tio, ou com o irmão, mas basicamente eram tios e sobrinhos que trabalhavam, que era os homens de confiança dele. Então ele pegava um sobrinho, jogava numa casa atacadista no interior, pegava o outro sobrinho e jogava numa casa assim e depois de quatro, cinco anos ele faz o próprio negócio. E dessa maneira é que você tinha naquela época, na Paula Souza, basicamente você tinha uma grande, uma grande influência portuguesa na zona atacadista. Você tem o Martins, o Veríssimo, o Dias, o Sutti – não, o Sutti era descendente de italianos – mas uma porção deles eram todos, todos, todos de origem portuguesa e muito ligados familiarmente.
P/1 – Sim, eu ia perguntar isso.
R – Muito, muito ligados familiarmente, inclusive um Martins casava com um Veríssimo, etc., porque era uma batota, se conheciam e mantinham o poder dessa maneira.
P/1 – Agora, por que você acha que isso foi criado nessa rua Paula Souza e nessa região específica?
R – Por causa do Mercado.
P/1 – Mercado Municipal?
R – Lógico. Tudo orbitava em relação ao Mercado Municipal. Então começava a montar uma lojinha porque o Mercado Municipal, ou compra aqui, revende, etc, começou dessa maneira. Você tinha um polo catalisador que era o Mercado Municipal e em volta dele você tinha as casas atacadistas. Isso você pode notar que existe no Brasil, centros. Você quer compra eletrônica, onde você vai comprar coisas eletrônicas em São Paulo? Na Santa Ifigênia! Ou seja, montou uma lojinha, teve sucesso, outro botou, outro botou e você tem uma característica. Paula Souza não fugiu dessa característica. É isso aí, mas era um mundo realmente gigantesco onde até os 70 se movimentava grandes somas de dinheiro, mas realmente grandes somas de dinheiro.
P/1 – Agora, por que você acha que a Paula Souza, ou também a Santa Rosa, essa região acabou tendo a responsabilidade de alimentar o Brasil?
R – Ela tinha responsabilidade. Primeiro, negócio é negócio, você ia para um lugar e percebia que precisava determinadas coisas, você abastecia, o que é normal. E Paula Souza começa a desaparecer com o evento dos supermercados. Então Pastorinho, que tinha grandes casas atacadistas, entrou no supermercado. Veríssimo entrou no supermercado, Alô Brasil entrou no supermercado. E depois o tipo de negociação de supermercado é muito mais complicado, mercadológico, do que uma casa atacadista. Gôndola, freezers, etc., etc., as casas atacadistas não tinham. E a dinâmica também foi mudando e isso acabou desaparecendo, aquilo que foi durante 40 ou 50 anos.
PAUSA
P/1 – A gente estava falando dos produtos que eram vendidos lá. Agora, você falou que a Paula Souza se estabeleceu ali aquele comércio por causa do Mercadão. Mas explica pra gente que não entende tanto assim qual é essa relação dessa região com o Mercadão.
R – Antes tinha trem da Cantareira, que praticamente ligava São Paulo à zona Norte e a Guarulhos. E tinha a rua da Cantareira, onde era o ponto final, onde chegava esse trenzinho de comunicação. Então você tinha comunicações com o trem da Cantareira pra Guarulhos e companhia como meio de transporte. Você tinha o Mercado Municipal com frutas e legumes, etc. Então você tinha uma estrutura já. Está um pouco fora, afastada do Centro, onde você tinha galpões, você tinha espaço. E a preços relativamente baratos porque você estava fora da área nobre de São Paulo, que seria essa área que vai desse velho centro, seria a velha Vila Buarque, que hoje chama-se Higienópolis, tá certo? Mas era Vila Buarque, onde praticamente todos os ricos de São Paulo viviam. Tinha mansões excepcionais, então estava fora da zona rica, Zona Oeste que é Lapa, etc. E perto do rio Tamanduateí que era uma zona que sofria enchentes, mas barata, então propícia para esse tipo de negócio.
P/1 – E você já viu muita enchente ali nessa região?
R – Várias enchentes na região. Ainda hoje você tem algumas enchentes do Tamanduateí porque à medida que estão impermeabilizando a cidade a água não tem onde correr, corre pelo asfalto, vai pro riozinho e enche. Mas muitas enchentes.
P/1 – Você já ficou ilhado ou já viu o pessoal perder coisas, como é que foi? Como eram essas enchentes?
R – Não, perdesse coisas, até hoje se perde coisas no Mercado Municipal com enchente. Quantas melancias ficaram boiando no mês passado ou dois meses atrás? Alimentos boiando, que tem que jogar fora, tudo contaminado.
P/1 – Mas o pessoal da Santa Rosa que a gente ouviu sofreu muito com isso, só que na Paula Souza sofreu isso também, na rua da Cantareira?
R – Todos sofreram de alguma maneira, mas veja uma coisa: o movimento de carga era tão grande que praticamente os caminhões entravam e já saíam para as casas atacadistas, não ficavam totalmente os estoques lá. E tinha gente também que tinha armazéns na Presidente Wilson, que também sofria enchentes, diga-se de passagem, por ser mais barato, etc. Isso era o comércio naquela época, era a regra do jogo e se aceitava a regra do jogo. Mas nasce, sem dúvida nenhuma a Paula Souza em relação à Cantareira e em relação ao Mercado Municipal. E também surge porque você tem o prédio da Bolsa de Valores encostado à Paula Souza, onde tem a famosa Bolsinha.
P/1 – Agora o Mercado Municipal é mais varejo, né, do que atacado.
R – Não, mudou hoje. Hoje mudou todas as características do mundo de negócios. Ou seja, hoje você tem um Ceasa que está praticamente fora de São Paulo e você já mudou toda a filosofia daquilo que era há 50, 60 anos as casas atacadistas. Hoje você tem centros enormes de abastecimento que concorreram e mataram esses centros de abastecimento, a filosofia da Paula Souza. A Paula Souza hoje, não existe em relação ao que era. Morreu. Ou seja, é história simplesmente, as necessidades são dinâmicas, o mundo tecnológico cresce e as coisas que valiam no passado não são mais válidas.
P/1 – Mas quando que começou, em que década mais ou menos, começou a mudar o comércio para esses atacadistas da Paula Souza começarem a cair?
R – Eu acredito, sem querer dizer o começo, mas já em 70, 80 já começou o declínio da Paula Souza, é a minha opinião. Eu não tenho estatísticas e números, mas aquilo que eu posso sentir é entre os anos 70 e 80 começa o declínio da Paula Souza.
P/1 – E você sentiu isso por quê?
R – Bom, três fatores grandes. Os velhos senhores da Paula Souza foram chamados pelo Pai Celestial. E houve brigas de família e houve divisões de riquezas entre sobrinhos, filhos, etc, e isso automaticamente diluiu a força do comércio. Sem dúvida nenhuma, ninguém vai te falar nisso, mas é um grande indicativo de que o desmembramento de um conjunto grande em pequenos enfraquece todo mundo e leva ao desaparecimento. Esse é um ponto. O segundo ponto é que a nova geração se formou doutores, advogados, etc. e não quiseram continuar, vamos dizer, as pegadas ou os passos dos mais velhos, é uma segunda hipótese a ser analisada. Sem dúvida nenhuma está dentro da conotação que eu lhe disse que a nova geração não quis por, ou não ter aptidão, ou por ter outra profissão. E a divisão das riquezas enfraquece o poder de compra, um fica com uma casa atacadista, outro com outra, então começa haver uma pulverização e essa pulverização, sem dúvida nenhuma, traz àquela empresa uma falta de poder de barganha de compra, surgindo novas organizações internacionais acabam absorvendo e comprando.
P/1 – E como que foi a ascensão dos supermercados? Se deu mais ou menos nesse mesmo período? O que explica o surgimento disso?
R – Bom, primeiro de tudo o supermercado no mundo inteiro foi um boom porque deu uma comodidade à dona de casa de comprar o que necessita, tudo num lugar só, ou seja, do detergente à vassoura, do alimento à fruta, alimento e fruta são a mesma coisa, mas a fruta ao cereal, do peixe à carne. E de boa qualidade. Então esse boom é um boom mundial no qual o Brasil entrou de uma maneira estupenda e nós temos aí todos esses supermercados que têm. E isso também vem matando as casas atacadistas porque os supermercados também foram no interior do Brasil. E as casas atacadistas nunca tiveram a filosofia do supermercado, marketing é marketing. Você tem ar condicionado, você tem a gôndola com refrigerado, você pega, vai na caixa, paga e vai embora, enquanto que as casas atacadistas eram um grande armazém, essa é a grande diferença. Quer dizer, um passo evolutivo e as casas atacadistas tentaram acompanhar, você tinha o Pastorinho, Veríssimo vêm da Paula Souza. O Dias é sobrinho do Pastorinho, tinha oito ou nove casas, supermercados. O Sutti Neto com os Supermercados Áurea, que está praticamente na zona de Franca, também veio da casa atacadista e entrou no supermercado. Mas você não pode competir quando tem três, quatro supermercados quando tem um grupo que te apresenta um supermercado em casa esquina, praticamente. Você pega Pão de Açúcar, quantos Pão de Açúcar existem em São Paulo? Existe fora de São Paulo e são gigantes. Então, isso acaba diminuindo a força do supermercado, não resiste à competição, à concorrência e desaparece.
P/1 – Então, mesmo os supermercados existem outros que são maiores e engolem.
R – E acaba englobando. Você pega um Pão de Açúcar, você pega uns quatro ou cinco supermercados, você não tem chance, você montar um supermercado. Ou você tem uma rede de supermercados, você tem uma força de comprar quantidade. Eu falo: “Eu compro 20 toneladas de batata por semana e eu tenho um preço por 20 toneladas de batata”. Agora se eu for comprar de uma tonelada só eu vou ter um outro preço, então eu não vou poder competir com você e desapareço do mercado. É uma lei natural das coisas.
P/1 – Mas você acha que o pessoal da Paula Souza pelo menos conseguiu acompanhar um pouco esse processo?
R – Sem dúvida nenhuma foram grandes fortunas. Tentaram seguir esse processo, o Momisso da Catarinense faliu, desapareceu. O Dias alugou suas casas a um grande grupo então recebe em relação ao faturamento, etc., os outros fizeram a mesma coisa, acabaram alugando se espaço que tinha no interior ou em São Paulo, alugando os espaços aos grandes supermercados internacionais.
P/1 – Agora vamos voltar um pouco no tempo, eu queria perguntar pra você, se a Paula Souza tinha toda essa, vamos dizer, essa capilaridade ao longo do Brasil, você falou que levava coisas lá pro Norte e tal, como é que eles faziam isso? Como é que eles transportavam essa comida toda pelo Brasil inteiro?
R – Tinha caminhões, né? Alguns tinham caminhões próprios, outros simplesmente fretavam os caminhões e os caminhões levavam pra eles. Ou seja, tinha uma capilaridade de interligação entre a compra e a distribuição. Se você não tem essa capilaridade o seu negócio faliria, então, tinha capilaridade. Ou transportes próprios, ou transporte de tecidos, mas conheciam e tinham capilaridade. E outra coisa, naquela coisa você não tinha assaltos em caminhões como você tem hoje. Se acontecia alguma coisa dentro do caminhão, o caminhão ficava parado e não era saqueado. Hoje não, hoje é saqueado, é moderno saquear coisa que só acontece no Brasil ou nos países realmente de cultura inferior. Nos Estados Unidos e na Europa, o caminhão acontece alguma coisa, ninguém mexe numa rolha. Aqui no Brasil simplesmente é lindo pegar o frango, botar assim e sair correndo com o frango. É coisa do Brasil.
P/1 – Então basicamente era feito por caminhões, por rodovias.
R – 90%. Veja, o que aconteceu no Brasil com o advento da indústria automobilística, o Brasil deu uma atenção extraordinária em autoestradas, ou seja, e deixou pra trás três coisas que no mundo moderno fazem falta: estrada de ferro, nós temos uma deficiência enorme. E lembre-se que na época do império, ou seja, Dom Pedro II, o Brasil tinha uma malha ferroviária extraordinária e essa foi perdida. Juscelino, todo mundo diz que foi o maior presidente do Brasil, eu acho que uma parte ele trouxe realmente a indústria pro Brasil, mas cabotagem, o Brasil é um país de todas as capitais, com algumas exceções, estão sempre à beira do mar. E o Brasil na época de Dom Pedro era a segunda marinha mercante do mundo. Porque todas as ligações eram feitas por cabotagem. Nós perdemos os portos, perdemos os navios, perdemos estradas de ferro e só ficamos na indústria automobilística porque gerava emprego. Foi um erro que aconteceu. Nos temos rios fluviais enormes, podemos sair do Tietê e irmos pra Buenos Aires. Há 20 anos, falta uma eclusa, fizeram 12 ou 13 eclusas, faltou uma eclusa pra ligar basicamente o rio Tietê a Buenos Aires. E em 20 anos não sai. Por que não sai? Essa é uma pergunta que não cabe à Paula Souza responder (risos).
P/1 – Entendi.
R – Certo?
P/1 – Certo.
R – É isso aí. Então essa capilaridade dos transportes, etc., existia naquela época, tinha estrada de ferro que ainda funcionava, não tão bem mas funcionava. Tinha caminhões, etc. As estradas de ferro no Brasil foram totalmente desativadas.
P/1 – Agora, como era o dia a dia na Paula Souza. Me diz como era a rua.
R – Uma loucura. Era a 25 de março hoje, uma loucura de gente. Movimento, uma sensação realmente de riqueza, de negócios, etc. Realmente era uma loucura. Pra falar com um tinha que esperar meia hora, 15 minutos, 20, senão você não vendia, não fazia nada. Quer dizer, era uma agitação e hoje praticamente não existe mais nada daquilo, a não ser na lembrança dos mais velhos.
P/1 – Tinha muito caminhão na rua?
R – Camelô na rua?
P/1 – Caminhão.
R – Sim. Você vai hoje no Mercado você acha n caminhões. Transportava. Se você passa na Paula Souza hoje, veja os armazéns que são garagens, eram armazéns dos grandes senhores. Os armazéns eram enormes, ou seja, aproveita e leva a máquina e entra dentro das garagens que eram os armazéns. De Dias Martins, de Veríssimo, do Suti, da Catarinense, da Casas Alô Brasil, todos eles enormes, e você vê já está tudo hoje praticamente abandonado, vive esses espaços em relação ao Mercado Municipal e o grande comércio de produtos chineses que está sediado na 25.
P/1 – Mas como eram esses armazéns? Você falou que eles eram enormes. Mas assim, tinham placas na frente, tinha uma balcão?
R – Tinha um balcão, tipicamente um balcão português, como se fosse de mármore, ficava lá sentado, levantava, te cumprimentava. Do balcão pra cá fazia-se o negócio e o resto era um depósito. E tinha os seus auxiliares de compra, contabilidade, tudo lá misturado mas de lado e o resto era armazém que ia e entrava mercadoria, saía mercadoria.
P/1 – E como era a relação com os chapas? Você lembra desses ajudantes gerais?
R – É a mesma que tem hoje. Ou seja, o chapa é nada mais, nada menos, tratado como um ser humano mas inferior, infelizmente. No mundo inteiro é assim. Fazer o quê, o relacionamento de chapa, carregou, levou, não carrega, não leva.
P/1 – E você se lembra de alguma passagem, alguma história que você viveu na Paula Souza que você se lembra por qualquer motivo?
R – Já faz tanto tempo já. As mulheres lembram do passado com muita facilidade, nós homens esquecemos (risos). É uma grande verdade, esquecemos, passa. Eu posso dizer uma coisa, que pequenas exceções, a maioria era gente extremamente honesta, bons comerciantes, duros mas extremamente honestos. E dava gosto conversar com eles, palavra empenhada era basicamente sagrada. Respeitavam o próprio bigode e a própria palavra. Dos velhos. Depois começaram as corruptelas com outras gerações, mas isso é a evolução da espécie.
P/1 – E me diz uma coisa, como é que vocês... tem esse negócio do fio do bigode, mas como eram feitos os pagamentos? Era em dinheiro?
R – Não, não. Tinha nota, meia nota, três quartos de nota, nota inteira, isso não será discutido. Isso é passado, mas existia toda forma de negociação.
P/1 – Entendi. E como era o seu negócio, especificamente, soda cáustica? Fala um pouquinho.
R – Meu negócio de soda cáustica, como eu representava uma empresa bastante grande era faturado diretamente e eles queriam a fatura inteira porque dessa maneira existia isenção fiscal. Ou seja, quando importavam não existia imposto de importação. Ou seja, ele apresentava que comprou tantas toneladas e tantas toneladas ele podia importar, era isento de importação. E isso era naquela época era um incentivo muito grande à indústria nacional. Eles se aproveitaram disso e fizeram muito bem.
P/1 – Mas eu digo, o negócio de soda cáustica ao longo do tempo mudou também com a saída desses atacadistas?
R – Veja uma coisa, mudou porque antigamente o grande da soda cáustica, sabão, etc. Hoje em dia com a tecnologia moderna você não faz sabão mais, você vai, compra um detergente, compra o sabão que você quiser, etc., você tem uma distribuição menor e muito mais barata do que você pegar a gordura, ferver na soda cáustica pra saponificar e depois virar sabão pra lavar roupa. Ou seja, a evolução também matou o negócio da soda cáustica nas casas atacadistas. E começaram a vender detergentes, tem hoje 300 tipos de detergentes pra 300 tipos de uso. Naquela época não, naquela época só o sabão mesmo e ponto final. O xampu era sabão feito em casa (risos), principalmente no interior.
P/1 – E como é que você se virou nessa época? O que você foi fazer?
R – Eu estudava, o importante era eu me formar. Estudava, ganhava, vivi bem, não posso me queixar. Ganhei, frutifiquei, vivi um período que pra mim é um período de aprendizado, de postura, de saber me colocar, saber me expressar. Foi bonito. Então me ajudou a evoluir e crescer.
P/1 – Você ficou de que ano até que ano, mais ou menos, fazendo negócio com eles na Paula Souza?
R – Dez, 12 anos mais ou menos. Depois lentamente eu fui saindo, já estava com a minha profissão, montei minha empresa.
P/1 – Foi em 50 e?
R – Mais ou menos por volta de 60. Nós estamos falando de 50 e poucos anos atrás.
P/1 – Entendi (risos). E era difícil negociar com esses caras ou não?
R – Com o meu produto não porque eles tinham interesse. Mas eram duros pra fazer, olhavam qualidade, olhavam preço, olhavam velocidade com que você entrega, o turnover que eles tinham, etc. Eram duros mas a coisa fluía.
P/1 – Você nunca teve grandes problemas.
R – Grandes, grandes problemas eu nunca tive nessa área. E a coisa andou bem. Depois, quando viram as outras gerações aí a coisa começou a degringolar. Os jovens compravam Mercedes-Benz e coisas que o velhinho não fazia, mas a nova geração tinha e andava de Mercedes-Benz, gastava mais dinheiro, tinham três famílias em vez de uma. São coisas da vida, acontece em todo lugar do mundo. Mas da Paula Souza você vai ter, você já conversou com Euclides Carli, você conversou com o pessoal aí, você vai ter uma ideia bem melhor do que a Paula Souza em relação às adjacências que têm.
P/1 – Agora, você acha, se eu for nomear a Zona Cerealista, você acha que o principal seria a Paula Souza.
R – Sim. Veja, a Paula Souza começou a sentir grandes dificuldades quando foi fundado o Ceasa na Lapa, no Alto da Lapa, aquela zona lá. E começou a haver já um deslocamento de valores. Então você tem mais ou menos como surge e como desaparece a Paula Souza. Comecei falando do surgimento, agora estamos falando de como a Paula Souza vem a desaparecer como Zona Cerealista.
P/1 – E o que você sabe mais da região da Santa Rosa? O que você acha dela, como que ela está hoje?
R – A Santa Rosa também perdeu muito o seu valor. Ou seja, Santa Rosa continua ainda algumas casas que são importadoras de vinhos e especiarias, mas diminuiu muito, muito, muito também a sua representatividade em relação àquela que foi no passado. Sem dúvida nenhuma é uma tendência de mercado. E outra tendência de mercado que grandes cidades do interior também passaram a importar seus produtos e vender nos seus locais sem precisar de intermediários. Você veja Campinas, veja Jundiaí, Ribeirão Preto, são centros que têm suas sedes lá, importam, revendem, distribuem, etc., isso fez com que também a Paula Souza perdesse o seu potencial como centro de abastecimento, agora existem vários centros de abastecimento.
P/1 – E você tinha algum contato com o Sindicato dos Atacadistas, conhecia?
R – Eu conhecia muita gente do sindicato, etc., mas a minha particularidade era só que eu vendia soda cáustica, vendia alguns caminhões de arame farpado importado dos Estados Unidos e aí termina praticamente a minha vivência dentro de Paula Souza. A minha vivência na Paula Souza foi mais de expectador do que realmente partícipe da vida, do day by day, do dia a dia da Paula Souza. Você via os outros se mexendo, etc., como formigas e eu estava no meu nicho bastante protegido.
P/1 – Entendi. E você está fazendo o quê hoje, Claudio?
R – Eu tenho uma indústria química, está em Cajamar, ou seja, no meio do caminho entre São Paulo e Jundiaí, bem no meio, quilômetro 34. Nós somos especialistas na indústria química em filtrações industriais, a separação de sólidos e líquidos. Somos a segunda maior empresa nesse ramo do país. Fazemos isolantes criogênicos – a criogenia é armazenamento de gases a baixas temperaturas – nós fazemos o isolamento dos grandes tanques criogênicos, estou falando de temperaturas de menos 200 graus, são temperaturas baixíssimas, muito próximas do absoluto, que é o caso do nitrogênio, oxigênio, argônio, etc., e estamos nesse campo. Totalmente fora daquilo que eu comecei, as primeiras andadas embebem ainda na vida do dia a dia.
P/1 – E o que você acha do futuro daquela região da Paula Souza, Mercadão, Santa Rosa. Você conhece mais ou menos?
R – Veja, a região da Paula Souza, como Paula Souza zona atacadista está morta. O inglês fala: completely dead. Está completamente morta e não tem chance nenhuma, que nem Fênix da cinza, sair o animal, a ave. Não tem nenhuma chance. Hoje existe zonas atacadistas no Brasil inteiro, cada uma com um maestro ou vários maestros que tocam a orquestra como zona atacadista está perdido, totalmente fundida, ou seja, não tem mais como surgir. Temos alguma coisa ainda no Mercado Municipal como um mercado histórico, mas o Mercado Municipal também perdeu a sua importância que tinha no passado. São os dinamismos de todas as cidades do mundo que temos de aceitar porque a vida assim pede e o progresso pede e temos de nos adaptar às novas ordens do negócio.
P/1 – E quais são seus planos pro futuro, pro seu futuro, os seus sonhos hoje?
R – Bom, eu tive a sorte de formar meus filhos engenheiros que nem o pai que estão tocando o barco e é com eles agora. A minha idade, eu não digo que estou aposentado mas o meu futuro já está delineado e plantado, semeado e colhido. O amanhã está na mão de Deus. Possivelmente voltaria a lecionar em universidade, com a minha idade também descartado. Usufruir, em vez de trabalhar 11 horas por dia, trabalhar quatro, cinco horas por dia e viver a minha vida.
P/1 – Está certo.
R – Você gostou da minha resposta, né?
P/2 – Adorei! Esse é o meu sonho (risos).
P/1 – Obrigado, viu Claudio?
R – Foi um prazer, espero que tenha cumprido aquilo que vocês esperavam.
P/1 – Cumpriu, fica tranquilo.
R – Tá ótimo então.
P/1 – Obrigado.
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