VidaMeu nome é Cristiane Ribeiro, tenho 44 anos, nasci e cresci em São Paulo. Desde que me conheço por gente lembro-me de ter pensamentos questionando o sentido da vida. Acho que por ter crescido ouvindo a história sofrida da minha mãe que perdeu os pais aos 7 anos e teve que amadurecer ainda criança pra cuidar dos irmãos mais novos, de como foi explorada e viveu em condições análogas a escravidão até conseguir sair da cidade em que morava e vir pra São Paulo. Ao mesmo tempo que admirava sua trajetória, surgiam perguntas em minha mente como “qual o sentido de uma vida assim?” ou “porque algumas pessoas nascem apenas pra sofrer?”
Até os 9 anos minha vida era estável, vivíamos todos juntos eu, meu irmão e meus pais, numa casa confortável dentro dos padrões da normalidade, sem luxo mas também sem escassez. Porém dali em diante meu pai passou a trair minha mãe, foram 3 anos de muita briga, até a separação e o abandono por parte dele. Vi minha mãe cair em depressão e quase chegar ao suicídio, quando então se agarrou a fé p para se reerguer. Passamos fome, frio, muita necessidade, me lembro de tantos episódios dolorosos e humilhantes, e ela ali, tentado se manter forte, sempre sorrindo, sempre perdoando, sempre sendo integra, e crescendo em cada dor que superava.
Em contrapartida eu alimentava meus questionamentos com revolta e muita mágoa, repetia em voz alta que odiava meu pai e me irritava quando ela respondia que eu tinha que perdoar, que ele era meu pai e que aquilo só fazia mal pra mim. Muitas vezes sentia raiva dela por dizer isso, e pensava, eu não vou ser igual a ela, que aceita com resiliência essa condição de sofrimento, eu não, não nasci pra isso, quero ser feliz, que sentido tem uma vida assim?
O tempo foi passando, as dificuldades foram sendo superadas com a gente crescendo e podendo ajudar minha mãe, ou pelo menos não dependendo totalmente dela. Casamos, tivemos nossos filhos e tudo foi mudando, as...
Continuar leitura
Vida
Meu nome é Cristiane Ribeiro, tenho 44 anos, nasci e cresci em São Paulo. Desde que me conheço por gente lembro-me de ter pensamentos questionando o sentido da vida. Acho que por ter crescido ouvindo a história sofrida da minha mãe que perdeu os pais aos 7 anos e teve que amadurecer ainda criança pra cuidar dos irmãos mais novos, de como foi explorada e viveu em condições análogas a escravidão até conseguir sair da cidade em que morava e vir pra São Paulo. Ao mesmo tempo que admirava sua trajetória, surgiam perguntas em minha mente como “qual o sentido de uma vida assim?” ou “porque algumas pessoas nascem apenas pra sofrer?”
Até os 9 anos minha vida era estável, vivíamos todos juntos eu, meu irmão e meus pais, numa casa confortável dentro dos padrões da normalidade, sem luxo mas também sem escassez. Porém dali em diante meu pai passou a trair minha mãe, foram 3 anos de muita briga, até a separação e o abandono por parte dele. Vi minha mãe cair em depressão e quase chegar ao suicídio, quando então se agarrou a fé p para se reerguer. Passamos fome, frio, muita necessidade, me lembro de tantos episódios dolorosos e humilhantes, e ela ali, tentado se manter forte, sempre sorrindo, sempre perdoando, sempre sendo integra, e crescendo em cada dor que superava.
Em contrapartida eu alimentava meus questionamentos com revolta e muita mágoa, repetia em voz alta que odiava meu pai e me irritava quando ela respondia que eu tinha que perdoar, que ele era meu pai e que aquilo só fazia mal pra mim. Muitas vezes sentia raiva dela por dizer isso, e pensava, eu não vou ser igual a ela, que aceita com resiliência essa condição de sofrimento, eu não, não nasci pra isso, quero ser feliz, que sentido tem uma vida assim?
O tempo foi passando, as dificuldades foram sendo superadas com a gente crescendo e podendo ajudar minha mãe, ou pelo menos não dependendo totalmente dela. Casamos, tivemos nossos filhos e tudo foi mudando, as preocupações foram sendo substituídas por outras, momentos de tristeza iam intercalando com momentos de extrema alegria. Aos 40 anos já tinha perdoado meu pai, não foi possível reatar o vínculo afetivo, mas já havia entendido o que minha mãe queria dizer. Em 2021 ela contraiu COVID, foram 7 meses sem visitas presenciais, internada, três paradas cardiorespiratórias até sua partida. A dor foi imensa, foi como se o chão se abrisse, me senti como um recém-nascido jogado em meio a selva, parecia que do nada um muro que sempre me protegeu desabou e fiquei exposta, perdida. Foi meu fundo do poço, não tinha ânimo nem vontade de viver. Como assim? Ela se foi, agora que tudo estava bem e finalmente poderíamos proporcionar a vida que ela de fato merecia com mais conforto, os netos que a amavam, a gente enfim se reunia com frequência, não era justo. Minha mãe era saudável, era uma pessoa maravilhosa que abraçava a todos sem distinção. Ela tirava da sua boca pra dar comida a quem tivesse fome. Por que não as pessoas egoístas que só pensavam em si? Mais uma vez a vida sendo injusta com ela.
Mas não tinha jeito, tive que me conformar, ficar na cama não era uma opção, morrer também não, se ela que passou por tantas situações não se seu ao luxo de desistir e nos largar a própria sorte, como poderia eu ser ingrata a esse ponto e desprezar todo o esforço que ela fez. Vivi o luto e tive que me refazer dia após dia. Ao mesmo tempo que juntava meus pedaços fui encontrando respostas para aquelas indagações que alimentava desde a infância, e descobri que a resposta sempre esteve ali ao meu lado. Não exatamente como eu queria, pois o sentido não está no porquê, ninguém nasce pra sofrer e ninguém vive somente sofrendo. Destacamos os momentos de sofrimento, pois a dor é que nos faz crescer, o desconforto que nos move e impulsiona a sair daquele lugar pra alcançar o alívio, a satisfação de saber que fomos capaz de vencer a situação. A alegria é maravilhosa, mas a plenitude da vida está em tudo, em chorar e poder sorrir. Minha mãe me ensinou que ser uma pessoa íntegra não depende de condições externas, caráter é feito pelas escolhas, e sempre há escolhas. O mais fácil pode trazer uma falsa sensação imediata de conforto, mas alegria verdadeira a gente percebe quando supera a dor ao optar pelo difícil que geralmente é o correto. Nascemos nus, juntamos milhares de coisas durante a vida, e quando morremos a única coisa que deixamos de valor que se eterniza e faz tudo ter sentido é a nossa trajetória de vida, nossas escolhas, aquilo que muda o dia de quem cruza nosso caminho. O resto acaba com o tempo, o corpo se desfaz, apodrece.
Ouvir relatos de tantas pessoas que foram amadas pela minha mãe em seu pior momento, que tiveram o apoio dela mesmo sabendo que muitas vezes nem mereciam, me mostra a cada dia que sua vida fez muito sentido, tanto que mesmo após sua morte ela ainda vive. Hoje meu único alvo é tentar ser ao menos um pouquinho do que essa pessoa maravilhosa que tive o privilégio de ter como mãe por 41 anos foi na vida das pessoas. Para mim isso é viver.
Recolher