A NEBLINA DA ‘PAI’SAGEM
Os primeiros raios de sol anunciavam um novo amanhecer do mês de junho e uma bicicleta dobrava a última esquina, antes de alcançar a rua que levava até a uma Indústria Metalúrgica. Eram os últimos 200 metros do pouco mais de quilômetro e meio que separava a residência daquele destino.
O menino de doze anos segura-se no pai não somente com a intenção de equilibrar-se, mas para também proteger-se do frio que vez por outra incomodava seu peito, chegando a provocar crises de bronquite. Na condução do veículo um homem de quarenta e poucos anos aumentava sua atenção, por ser aquela rua relativamente estreita.
Embora às seis e meia da manhã não houvesse tanto trânsito, a neblina permitia enxergar em torno de 30 metros e exigia cuidado, já que, como a via possuía duas mãos de direção, qualquer imprudência ou desatenção naquele piso de asfalto poderia acarretar sérias consequências ao ciclista e seu acompanhante.
Por detrás do tronco do homem o garoto via uma paisagem esfumaçada, que aos poucos se descortinava. A calçada do lado direito se deitava aos pés de um muro interminável, ladeando uma antiga estação ferroviária desativada havia poucos anos.
Olhando para a outra calçada, apesar de o menino conhecer quase de cor as casas que se sucediam, a nitidez que paulatinamente se desenrolava parecia trazer sempre uma surpresa. Algumas vezes era uma residência com luzes acesas contrastando com outras às escuras, uma pessoa que abria o portão, um gato sobre o terraço, um cachorro que se punha a latir... O revelar da névoa sempre vinha com uma singela novidade a ser percebida.
Logo mais a bicicleta parava sob a vigilância de um enorme barracão tomando um quarteirão todo, que mostrava seu semblante de engolidor de homens. Feito um formigueiro humano, os operários entravam por uma porta estreita para registrar o horário de chegada. Uma sirene...
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A NEBLINA DA ‘PAI’SAGEM
Os primeiros raios de sol anunciavam um novo amanhecer do mês de junho e uma bicicleta dobrava a última esquina, antes de alcançar a rua que levava até a uma Indústria Metalúrgica. Eram os últimos 200 metros do pouco mais de quilômetro e meio que separava a residência daquele destino.
O menino de doze anos segura-se no pai não somente com a intenção de equilibrar-se, mas para também proteger-se do frio que vez por outra incomodava seu peito, chegando a provocar crises de bronquite. Na condução do veículo um homem de quarenta e poucos anos aumentava sua atenção, por ser aquela rua relativamente estreita.
Embora às seis e meia da manhã não houvesse tanto trânsito, a neblina permitia enxergar em torno de 30 metros e exigia cuidado, já que, como a via possuía duas mãos de direção, qualquer imprudência ou desatenção naquele piso de asfalto poderia acarretar sérias consequências ao ciclista e seu acompanhante.
Por detrás do tronco do homem o garoto via uma paisagem esfumaçada, que aos poucos se descortinava. A calçada do lado direito se deitava aos pés de um muro interminável, ladeando uma antiga estação ferroviária desativada havia poucos anos.
Olhando para a outra calçada, apesar de o menino conhecer quase de cor as casas que se sucediam, a nitidez que paulatinamente se desenrolava parecia trazer sempre uma surpresa. Algumas vezes era uma residência com luzes acesas contrastando com outras às escuras, uma pessoa que abria o portão, um gato sobre o terraço, um cachorro que se punha a latir... O revelar da névoa sempre vinha com uma singela novidade a ser percebida.
Logo mais a bicicleta parava sob a vigilância de um enorme barracão tomando um quarteirão todo, que mostrava seu semblante de engolidor de homens. Feito um formigueiro humano, os operários entravam por uma porta estreita para registrar o horário de chegada. Uma sirene logo começaria a gritar anunciando o início do trabalho pesado, que se estenderia até próximo do anoitecer.
Mesmo sendo de poucas palavras, o olhar que o homem da bicicleta dirigia ao filho era carregado de significados como “vai com Deus, cuidado, atenção, e até breve, lá em casa”. Por outro lado, o “tchau, pai!” queria dizer “obrigado por me trazer até aqui”, repleto de admiração e respeito.
Já devidamente trajado com o uniforme, o garoto caminhava duas quadras até chegar ao Colégio para a atividade semanal de Educação Física. O ano de 1972 seria o último de aulas desse tipo, porque no ano seguinte estaria dispensado daquela Disciplina. Contudo, ainda precisaria acordar naquele horário, já que começaria a trabalhar o dia todo e estudar no período noturno. Essa era uma exigência da “Dona Necessidade”.
Todos os dias, no parte da tarde, o menino caminhava essa mesma distância (ida e volta) para as demais aulas curriculares. Vez por outra, no entanto, ele fazia esse trajeto pouco antes do almoço a fim de levar uma cesta de comida ao pai, para que este pudesse ter uma refeição “mais quentinha”, pois havia entrado para o trabalho por volta das 5 horas da manhã.
Quando isso acontecia, o garoto aguardava pelo pai na porta de entrada da Metalúrgica e podia observar o ambiente. O que mais chamava a atenção era o movimento de operários em meio a faíscas que saltavam de panelas em brasa em dias de fundição, além do barulho e calor reinantes. No retorno para casa, era comum ter marcas de pequenas queimaduras na roupa de serviço e algumas vezes até na própria pele.
O menino olhava para o pai com orgulho, por saber que tinha sempre próximo de si alguém capaz de vencer labaredas fumegantes, feito fogos cuspidos por dragões. Não bastasse isso, o adulto foi cortador de cana “na palha” quando criança, embrenhando-se pelo canavial, sujeito a picadas de cobras, aranhas e escorpiões. Assim, o filho olhava para o pai como se este fosse um herói. Pode soar como exagero? Não para aquele garoto.
Não bastasse superar todas as adversidades da vida, o pai ainda foi capaz de um ato ainda mais marcante e crucial. Quanto este menino tinha 6 anos, um descuido fez com que caísse numa pequena lagoa, que apesar de pouca profundidade, teria sido suficientemente fatal para alguém de sua idade, não fosse a pronta intervenção paterna. Afinal, o menino tinha ou não razões de sobra para ver no pai um Herói?...
Mas heróis também envelhecem e adoecem. Por ser de carne e osso, ele esteve ao sabor de tudo que a vida é capaz de trazer, inclusive um recente revés. Quando ouviu o diagnóstico do médico, dizendo que seu caso de saúde era bastante delicado e que teria um tratamento a ser feito, o velho surpreendeu pela serenidade nas palavras:
— Eu não tenho do que reclamar. Eu tô com 91 anos e quantos chegam aos 90?... Se tem um tratamento pra fazer, eu vou fazer, então! Eu não sou diferente de ninguém, não é verdade?
Assim, os meses foram passando e ele foi perdendo a força, aos poucos vendo-se privado de caminhar, depois quase preso a uma cama e foi ficando mais leve. Cada dia mais leve e mais leve... Até que, finalmente, o herói voou!...
Aquele menino, depois de crescido e agora com alguma vivência, escreveu este texto, algum tempo depois da partida do pai. Todos os anos, no dia de seu aniversário e no “Dia dos Pais”, principalmente, eu me lembro daquele que me deu a vida, salvou minha vida e que foi (e sempre será) um exemplo de vida.
Hoje em dia, quando passo pela rua que leva onde existia a Indústria Metalúrgica, eu vejo o mesmo muro da antiga estação, que agora é um parque arborizado para caminhadas públicas, e ali a natureza continua a primaverar, veranear, outonear e invernar, seguindo os trilhos de viagens que o tempo leva.
Atualmente as manhãs de neblina são mais raras. Mas acredito que o futuro seja semelhante à neblina que vemos na paisagem. Algo que vai se revelando aos poucos diante de nossos olhos e, apesar de pensarmos saber o que vem pela frente, sempre iremos nos deparar com todo tipo de surpresas pelo caminho.
Tomando por base a frase dita ao médico pelo meu pai, posso dizer que tenho pouco a reclamar. Afinal, quem tem a dádiva de conviver com seu pai por mais de 60 anos? O que me resta é agradecer (e muito!) por tudo que ele representou e ainda significa na minha vida.
Para todos os pais que ainda têm os filhos ao seu lado... E também para aqueles que se foram e nunca sairão do coração!
TEXTO: Paulo Cesar Paschoalini
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