A mãedrasta de Cinderela
Eu morava com mãe e pai, seu Aydil e dona Sílvia, na casa da rua Cadiz, vila Alba, desde 1973. Restamos os três depois que Rose se casou, em 1987, e morreu, dona Margarita, Güelita, nossa avó materna, em 1993.
Minha irmã Rose Mary e meu segundo cunhado, Aguinaldo, resolveram comprar um apartamento em Campo Grande. Então papai, achou o casarão que o dono, enforcado, estava vendendo barato, na rua Miosótis. Com uma piscina grande e uma pequena, três suítes (uma com banheira com hidromassagem), mais um banheiro dentro e dois fora, sauna, etc. Total de seis banheiros. Assim compraram a casa que parece um clube, na travessa Miosótis, bem perto donde morávamos.
Chamava travessa mas era um beco-sem-saída. O terreno abrangia até a Madri mas no aperto o antigo dono construiu no fundo, murou e se mudou.
Como quem aluga não cuida, propuseram a papai: Em vez de alugar o casarão nos mudássemos a ele e alugássemos a casa onde estávamos. Com o aluguel manteríamos a casa nova. O que passasse do orçamento eles complementariam, depositando em minha conta.
Nos mudamos em agosto de 2000.
O arranjo foi um acordo bom pràs duas partes, feito entre eles e papai, sem minha participação. Nos mudamos a uma casa com um padrão muito superior, embora dispendiosa. Eles ganhavam, também, tendo ali a família, que cuida, conserta tudo e quando vinham podiam tomar conta do pedaço, com a suíte reservada. Coisa impensável sendo alugada a estranhos.
Mas a vida é assim. Sempre um lado acha que está sendo magnânimo e generoso. Rose disse, certa vez:
— Só um cunhado maravilhoso pra deixar uma casa desta prà sogra morar. A poderíamos alugar a um valor bem alto.
Com o acidente de minha sobrinha, durante a Copa 2002, onde uma pilastra de concreto caiu no pé, fiquei mais de ano com a conta no vermelho, ajudando. Assumi os impostos e Unimed de mamãe. Desde então Rose escorregou no trato de complementar a despesa extra.
Seu Aydil,...
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Eu morava com mãe e pai, seu Aydil e dona Sílvia, na casa da rua Cadiz, vila Alba, desde 1973. Restamos os três depois que Rose se casou, em 1987, e morreu, dona Margarita, Güelita, nossa avó materna, em 1993.
Minha irmã Rose Mary e meu segundo cunhado, Aguinaldo, resolveram comprar um apartamento em Campo Grande. Então papai, achou o casarão que o dono, enforcado, estava vendendo barato, na rua Miosótis. Com uma piscina grande e uma pequena, três suítes (uma com banheira com hidromassagem), mais um banheiro dentro e dois fora, sauna, etc. Total de seis banheiros. Assim compraram a casa que parece um clube, na travessa Miosótis, bem perto donde morávamos.
Chamava travessa mas era um beco-sem-saída. O terreno abrangia até a Madri mas no aperto o antigo dono construiu no fundo, murou e se mudou.
Como quem aluga não cuida, propuseram a papai: Em vez de alugar o casarão nos mudássemos a ele e alugássemos a casa onde estávamos. Com o aluguel manteríamos a casa nova. O que passasse do orçamento eles complementariam, depositando em minha conta.
Nos mudamos em agosto de 2000.
O arranjo foi um acordo bom pràs duas partes, feito entre eles e papai, sem minha participação. Nos mudamos a uma casa com um padrão muito superior, embora dispendiosa. Eles ganhavam, também, tendo ali a família, que cuida, conserta tudo e quando vinham podiam tomar conta do pedaço, com a suíte reservada. Coisa impensável sendo alugada a estranhos.
Mas a vida é assim. Sempre um lado acha que está sendo magnânimo e generoso. Rose disse, certa vez:
— Só um cunhado maravilhoso pra deixar uma casa desta prà sogra morar. A poderíamos alugar a um valor bem alto.
Com o acidente de minha sobrinha, durante a Copa 2002, onde uma pilastra de concreto caiu no pé, fiquei mais de ano com a conta no vermelho, ajudando. Assumi os impostos e Unimed de mamãe. Desde então Rose escorregou no trato de complementar a despesa extra.
Seu Aydil, na época em que viajava todo o antigo Mato Grosso, década de 1960, trabalhando na CEM (Campanha de erradicação da malária) teve três malárias. Depois, numa ida a Goiânia, teve uma dengue. O caso de Euclides da Cunha ilustra bem. Com uma malária a febre intensa cozinhou o cérebro a ponto da pessoa inverter a afetividade e decair intelectualmente.
Lendo Anna de Assis, de Judith Ribeiro de Assis, onde foi narrado o caso em que Euclides da Cunha matou o amante de sua mulher, constatei que os sintomas da seqüela da malária que acometeu ao famoso escritor, decorrentes de febre muito alta a ponto de cozinhar o cérebro, eram os mesmos que estava apresentando seu Aydil, tais como diminuição de atividade intelectual e inversão de afetividade: Ecomania, atitude mental agressiva ante familiares mas humilde ante autoridades e pessoas em geral; abissinismo, conduta dos que têm como norma atacar apenas os que caem e louvar os que sobem ao poder; e solipsismo, atitude mental de egoísmo tão extremado a ponto de se considerar o único ser vivo, os outros apenas autômatos.
Euclides teve uma malária, seu Aydil teve três malárias e uma dengue!
No final de 2006 a situação já estava insustentável. Seu Aydil começou a beber, agarrar as empregadas, agredir fisicamente o filho e verbalmente a esposa, ficar furioso por ninharia e outras tantas. Ralhava com a empregada se não encontrasse a caneca de alumínio no congelador, pra tomar cerveja no almoço, ameaçava me agredir quando contrariado.
Uma vez, quando Rose estava, no Natal, seu Aydil rasgou uma foto que uma amiga que acabara de a visitar emprestara pra ela ver. Rasgou só porque viu as fotos e ficou bravo porque não estava nalguma delas. Noutra vez não deixou o pessoal acender as lâmpadas da área da piscina, pra economizar.
Seu Aydil nunca foi bebedor mas começou a secar minhas garrafas de pinga. Foi a empregada quem me alertou. Então Rose, via telefone, sugeriu que eu escondesse as garrafas:
— É pão-duro. Acabando a pinga não comprará outra.
Assim fiz. Só que, pra minha surpresa, Rose deu a ele, de presente de natal, uma garrafa de cachaça artesanal. Depois, já tendo ido embora, achei a oportunidade de dizer, delicadamente, conversando na internete, da incoerência dessa atitude. Ficou muito sem-graça.
Até um casal de amigos meus evitava aparecer, por causa de seu Aydil. Gláuder e Lígia se conheceram quando ele foi prestar serviço ao computador dela. E foi em nossa casa, ao redor da piscina, que começaram a namorar. Às vezes eu fazia um jantarzinho, com queijo, vinho e camarão, pra nos encontrarmos e conversar. Uma vez os recebi, passando na cozinha, onde nos retivemos uns minutos enquanto eu terminava de ajeitar a mesa. Seu Aydil chegou e os tocou dali, dizendo que cozinha não é lugar de visita. Foi muito engraçado o jeito com que Lili correu, assustada feito uma galinha. Depois Gláuder confidenciou que Lili tinha medo de meu pai mas isso era desculpa esfarrapada.
Nessa mesma ocasião abri o portão pra que deixassem o carro dentro. Quando eles saíram seu Aydil disse que não é pra eles estacionarem o carro dentro. Eu disse que quis assim porque é mais seguro. Ele disse Quem manda aqui sou eu e não é pra pôr! Bati o pé e disse que ponho sim. E ficou a discussão.
Na verdade Lili usa essas coisas mais como pretexto. Já tendo conseguido Gláuder não tinha interesse em cultivar os amigos. Lili é extremamente egoísta e não tem sentimento, a não ser o sexual. Pra ela só Gláuder interessa. Por isso Cyro, que foi o amigo através do qual todos os outros se conheceram, passou a odiar Lígia. Aquela falsa!, dizia. Lígia é o tipo de pessoa sem ternura, que dispensa os outros sem remorso. Não sendo mais útil ela esquece imediatamente a pessoa. Uma psicopata sem sentimento humano, avarenta e desequilibrada.
Só vinham quando era interesse. Infelizmente Gláuder entrava totalmente na dela. Como não tinha emprego, vivia de bico de serviço de computador, e também vivia em crise com a mãe, sendo que o irmão era o filho preferido, viu em Lígia a tábua de salvação. Foram morar juntos.
Eu disse a ele que essa de deixar a mulher dominar é péssimo negócio. Se perde o respeito. Depois, quando quiser reagir, fica difícil, tem de rodar a baiana, mesmo, pra se impor. Eu disse:
— Vejas o que me aconteceu. Eu vivia me anulando pra não ter conflito. Deu no que deu.
Aconteceu várias vezes ir com seu Aydil ao terreno, onde tinha um pomar e galinheiro e onde moro agora, e ele voltar a pé. Íamos em meu carro, eu dirigindo. Na vez mais grave, quando já íamos de volta, chegando ao carro, ele com um balde de goiaba que colhi naquele momento, pôs o balde atrás do banco. Eu disse, normalmente, que deve pôr na frente, entre as pernas, pois numa curva o balde tomba. Saiu do carro, bateu a porta, gritou um desaforo qualquer e foi andando, a pé, ao lado oposto. Eu ia atrás e ele sacudia os braços em desaforo. Tive de ir embora. No meio da tarde voltei com mamãe e o encontramos refugiado na edícola. Nos vendo saiu à rua, sem camisa. Rose, de Sobradinho II, ao telefonema de mamãe, disse que não é coisa de pessoa normal, que onde se viu brigar com uma pessoa e se refugiar na casa dessa pessoa em vez de a evitar. Chegou a casa 23:30h, andando sem rumo, sem camisa, como um mendigo.
Noutra vez, por uma picuinha, ameaçou me bater. Fazia o tipo altivo, agressivo, sempre falando:
— Cales a boca! Quem manda aqui sou eu!
— Se queres mandar me dês dinheiro em vez de me pedir. Se queres mandar em mim me sustentes e não precisarei trabalhar. Passarei os domingos passeando na Afonso Pena paquerando as garotas.
Como não me intimidei bateu mesmo. Acertou um soco na sobrancelha, esfolando. No reflexo acertei o óculos, que se espatifou no chão. Tudo na frente da empregada. Quando mamãe soube a empregada confirmou que quem provocou foi ele. Fiquei muito envergonhado, pois tanto apanhar como bater num velho de quase 80 anos é muito estúpido.
Demitiu outra empregada a berro, pois não aceitara sua proposta de ser amante. Dissera que nada faltaria a ela e que fosse morar em minha edícola.
A situação só foi piorando. Abandonava as contas de eletricidade, água, telefone, sem avisar, esquecia o portão aberto, o motor da piscina ligado e a torneira da mangueira aberta e pegava faxineira ou empregada na praça, sem referência.
Eu disse a mamãe que ia embora porque não agüentava mais.
— Não, meu filho! Aonde fores irei. Me separarei se for preciso.
Então dona Sílvia decidiu se separar. Conversou com a filha, Rose, que mora em Sobradinho II, que consultava o advogado. Passou mais de mês e só conversa. A velha tonta acreditava, piamente, que a filha sonsa estava providenciando, pra me deixar zonzo, mas eu sabia que não, pois no ano anterior me dissera:
— Se mamãe disser que quer se separar finjas concordar. Separará nada! Ficará brava, reclamará, xingará e logo passará.
Era óbvio que Rose só estava enrolando. Pra ela era muito cômodo tudo como estava. Qualquer mudança no estado familiar geraria incerteza e despesa. Então perguntei a mamãe se queria, mesmo, se separar. Confirmou. A levei a um advogado e ficou tudo combinado. Mamãe disse que se não fosse por mim não faria, porque não saberia fazer, correr atrás de papel, etc. Que nem tinha idéia de como começar. Que por isso me agradecia muito.
Foi uma trabalheira, porque o advogado era péssimo. Mas, ao menos, funcionou. Corri atrás de cartório, voltava porque faltava algo, outra coisa estava errada, etc. Muita idas-e-vinda e atropelo. E a pressa. O clima doméstico estava insustentável, pois depois da última agressão não mais falei com meu pai. Ficamos brigados. Tinha pressa que saísse logo, pois sua agressividade me deixava inseguro.
Espantosamente seu Aydil abriu mão da casa própria. Seja pra não vender o carro, seja na ilusão de que Rose o manteria na casa. O juiz decidiu que ele deveria desocupar a casa em 60 dias. Mas ele argumentou que a filha e o cunhado o puseram como administrador da casa. Então, por estarmos morando em casa de terceiro o juiz decidiu que a dona da casa teria de decidir quem ficaria. Esse foi o pomo da discórdia.
Ao saber disso a sonsa Rose disse:
— Ai, ai, ai! Não queria me meter nisso!
Então eu disse a mamãe do absurdo da posição de Rose.
— Como não quer se meter? Não é filha também? Só porque mora longe? Nada de ficar encima do muro. É optar por pai ou por mãe. Muito simples!
Apertei mamãe, que telefonou a Rose e disse que a situação está crítica, que o marido é violento…, que mamãe está doente, que ele não cuida, não dá atenção, fica alienado e que se ela não decidir quem sairá teremos de sair, voltando à casa que está alugada. Foi a primeira das duas coisas sensatas que mamãe fez neste caso.
Foi só assim que Rose concordou. Ficou de enviar o documento, declarando ser a mãe quem ficará na casa. Passei o endereço e o imeio do advogado. Tive de me instruir pra explicar como fazer. Como se não bastasse ela perguntar a seu advogado, simplesmente. Ficou se fazendo de desentendida.
Na semana seguinte mamãe disse que Rose traria pessoalmente o documento na vinda de final de ano, pois costumavam vir no Natal ou Ano Novo. Que Rose faria uma reunião pra explicar ao pai que ele sairia porque ele é aposentado e mamãe não, porque ela está doente, etc. Jogo duplo: Combinou uma coisa comigo e outra com mamãe.
Quando vieram fiquei aguardando a tal reunião.
Verificando os documentos Rose achou um erro de cartório e disse bem alto, brandindo o documento na frente de todos:
— Olha aqui! Tem um erro e não viste!
Eu poderia ter imposto respeito, dizendo não admitir que fale nesse tom comigo, etc. Mas foi melhor assim. Ninguém pode me acusar de ter criado clima. Uma mãe decente não aceitaria que um filho tratasse o outro com tanta falta de respeito.
Não respondi à altura pra não tumultuar. Deixei pra pensar como agir, sem ação emotiva. Quando foram embora comecei a relembrar tudo, como um filme, e fui decidindo.
Antes disso aconteceu algo constrangedor em Ponta Porã. Toda vez que vêm viajam a Ponta Porã e Pedro João Caballero pra comprar uísque. Vão na camionete e levam o máximo de gente pra dar cota. Como nessa vez Vilma, amiga, não viera, tive de ir pra poderem trazer mais uísque. Até então não acontecera confusão. Eu não tinha motivo pra negar ir, mesmo detestando ir a Ponta Porã.
Fomos no começo da manhã. Pararam num restaurante de beira de estrada pra comer pastel. Não comi, pois me recuso a comer essas coisas suspeitas em viagem. Ter dor de barriga em viagem é coisa bem desagradável, e tudo por um reles pastel. Tenho, firmemente, esse hábito. Chegamos e primeiro foram procurar tabaco tapocó, pedido de mamãe. Tapocó é a folha de tabaco ao natural, apenas um pouco desidratada e vendida assim, como aqui as folhas pra chá. Aguinaldo foi meio contrariado. Esse é o cunhado tão gente-fina! Ficamos o tempo todo na casa China, uma loja gigante. Nada de almoço nem lanche. Então, na hora de passar no caixa, pus uma barra de chocolate junto. Aguinaldo foi tirando o sarro na frente de duas caixas:
— Pô! Tanto chocolate importado, de qualidade, e pegas essa marca porcaria!
Falou, falou, falou. Fechei a cara e disse a Rose:
— Que cara sem educação! É a última vez que venho!
— Mário, não potencializes!
Então, sem-graça, ele me deu outro chocolate. Da mesma marca.
Quando foram embora eu soube que a tal reunião aconteceu no dia em que Rose me pediu pra levar meus sobrinhos pra tomar sorvete. Me excluiu da reunião, me fez de bobo pra não apresentar o documento. Eu quem providenciou e pagou tudo!
Seu Aydil nada providenciou pra se mudar. Acreditava piamente que sendo o administrador e bom churrasqueiro permaneceria na casa.
Chegando o prazo pra sua saída lhe paguei uma viagem a Brasília. Era prà sonsa sentir a barra que é morar com aquele louco.
Ela logo o devolveu. Com instrução pra dizer que ele quis vir e que não foi ela quem pagou a passagem.
Quando chegou eu já trocara o segredo do portão e disse que não poderia entrar, que lhe reservei um hotel. Fez uma cara murcha e se foi.
Dias depois chegou querendo entrar de qualquer jeito, pra levar suas coisas. Não deixei, pois tivera 60 dias pra o fazer e não se mexera. Eu disse que entregaria todos seus pertences assim que ele tivesse um lugar, pois ainda não tinha. Não viera pra levar as coisas. Queria entrar e sair a vontade. Ameaçou ligar à polícia.
Ficou de tocaia e quando a faxineira saiu forçou a entrada. Ficamos agarrados ao portão. Ele, com a unha comprida do mindinho, costume de descascador de mandioca, fincava meu sovaco. O portão ficou manchado de sangue. Gritei a uma vizinha curiosa pra chamar a polícia e só ficou olhando, abobada. Chegou dona Sílvia e tentou apartar. Soltei. Tentou me socar. Acertei uns socos e resolvi parar porque isso não tinha cabimento. Livre, pegou uma chave-de-fenda e arrancou a fechadura do portão. Telefonei à polícia. Tive de insistir, suplicar. Demoraram muito. Chegaram, conversaram e o levaram.
Dona Sílvia disse a ele pra não vir, e sim mandar alguém pegar as coisas. Foi a segunda das duas coisas sensatas que fez neste caso.
Fiquei com a coluna e os ferimentos doendo, de tanto tempo agarrado a ele e ao portão. Enviei um imeio aos amigos. Achei que alguém ao menos telefonaria pra perguntar como eu estava. Nada. Gláuder disse que Lili não recebeu o imeio porque estava com problema. Mentira. Lili é bem do tipo que se faz de boba quando convém. E a outra correspondente, Nádia, foi perguntar a Lili o que estava acontecendo comigo. Outra sonsa fazendo média. Eu disse a Lígia:
— Ela tem meu telefone, endereço, contato msn e imeio. Essa de enviar recado por tu é pura hipocrisia.
Em 2009, via msn, falei francamente a Nádia sobre isso. Ficou muito sem-graça, disfarçou, se desculpou e sumiu.
E se Nádia perguntou o que acontecia por que Lígia não contatou? Porque não convinha!
Ter uma família dessa e amigos assim. Nem preciso de inimigo.
E ainda uma das irmãs de seu Aydil me telefonou ameaçando!
— O que fizeste a meu irmão? Vais é levar chumbo!
O advogado dissera pra chamar a polícia caso ele tentasse entrar. Pra isso eu teria de estar amparado pelo famigerado documento onde a dona da casa optava quem permaneceria. Quando fui ao advogado soube, pasmo, que Rose não enviara o documento. Então, na frente do advogado, telefonei a ela, via celular. Falei de modo seco e cordial, sem aquele dengo todo, meu bichinho, que era nosso praxe, com firmeza, que era ordem judicial, esdrúxula ou não, mas que teria de enviar o documento constando sua decisão. Que tinha todo o direito de optar por um ou por outro e que sem o documento ela estaria me pondo numa fria. Disse que mandara ao imeio mas o advogado nada recebera. Insisti que teria de ser em papel, documento, com firma reconhecida em cartório. Que se não o fizesse eu teria de comunicar ao juiz que ela não cumprira a ordem judicial.
Então o inesperado. Uma hora depois Rose ligou a mamãe, chorando, dizendo que fui grosso e estúpido com ela. Ligou ao celular, no exato momento em que entrávamos no carro pra levar mamãe ao verdureiro. Então mamãe disse:
— Foste grosso com tua irmã. Peças desculpa!
E me oferecia o telefone com a mão. Nem respondi. No trajeto foi falando via celular, metendo o pau em mim a meu lado, alto, pra eu ouvir.
— Mas sabes que ele é grosso mesmo...
Mandei às favas. Mandei desligar o telefone ou daria meia-volta. Só assim parou de me xingar. Mesmo assim nem dava bola a minha alegação de que não fui grosso.
Foi quando decidi cortar totalmente relação com Rose. Eu não podia reclamar dela, que mamãe logo me falava um monte de desaforo:
— És um grosso, mesmo. É por isso que ninguém gosta de ti. É por isso que estás se aposentando no emprego...
Nesse dia tive de pegar o carro e sair, porque não parava de falar desaforo. Só voltei no fim da tarde.
Finalmente a consegui convencer de que deveríamos voltar à casa antiga porque a nova é muito dispendiosa. Ela não queria abrir mão do luxo mas quando papai voltou daquela ida a Brasília queria morar em meu terreno, onde há uma edícola. Não aceitei porque ele se enfurece, faz o que quer, vende e joga fora as coisas, e ainda quer bater na gente. Vendeu meu fogão e queria vender meu moedor de mandioca. Eles ligaram a mamãe e a fizeram tentar me convencer a ceder o lugar a papai. Mamãe insistiu muito (claro, faz tudo o que eles mandam). Não aceitei. Fui bem taxativo. Me apertou, dizendo que eu dissera a ele que aceitaria. Expliquei que como ele é violento, se eu negasse me agrediria. Além do mais se Rose não cumpre palavra por que tenho de cumprir? Enfim, disse:
— Então teremos de nos mudar à casa antiga.
Achava que eu acharia isso horroroso. Respondi:
— Então façamos assim. Esta casa é muito dispendiosa.
Foi assim que mamãe aceitou a idéia de voltar à casa antiga, que antes teria de ser reformada.
Isso não me era tão confortável, pois também lá teria de aturar Rose telefonando a mamãe todo dia, além dalguma anual hospedagem caso vendesse o casarão. Eu queria morar em algo meu, pois se mamãe morresse Rose sonsa herdaria a metade, independentemente de ter sido eu quem reformou tudo sozinho.
Rose, pra me fazer pirraça, disse a mamãe, ao telefone:
— Já tenho a casa aqui, o rancho lá, o casarão aí. Passes a casa ao nome de Mário, em usufruto.
Então mamãe me disse isso. Achei ótimo. Pra passar um bem com usufruto em nome dum dos herdeiros tem de haver a concordância dos outros herdeiros. Rose se fez de ignorante no assunto (tendo um amigo advogado, que consulta sempre que precisa). Me informei com meu advogado e expliquei a ela como fazer o documento num cartório, que é muito simples e trivial. Foram passando os meses e nada. Apertei mamãe, que disse:
— Rose não enviou o documento porque não tem tempo.
— Que falta de tempo, o quê! Pra fazer festinha com os amigos sempre tem tempo. Quem fará faz logo, não fica enrolando.
Eu disse que nunca pedi usufruto mas já que ofereceram, agora quero. Disse, também, que como é que me educou pra cumprir a palavra, sempre me cobra isso, enquanto Rose pode me fazer de bobo, mentir pra mim e tudo bem?!
Mamãe sempre teve dessa. Não queria o melhor pra mim e sim que eu fosse certinho. Desde a infância fomos educados não pra ser vitoriosos e equilibrados e sim pra ela receber elogio das visitas: Como teu filho é educado!... Uma vez chegou uma colega chata querendo ir comigo ao baile de Carnaval do União, em 1994. Eu ia avisar que não ia, pois estava com bolhas nos pés porque fui buscar meu carro, que estava na oficina mecânica, a pé, descalço, em pleno verão. Ela disse que eu dissera que ia, teria de cumprir a palavra. De besta fui e odiei a ida. Noutra vez foi quando do pivô da separação, quando papai pôs na edícola a empregada pra morar, na intenção de amasiar. Eu decidira não permitir mas, como concordara inicialmente, mamãe me disse que como eu dera a palavra tinha de cumprir, que ela já tirara os filhos da creche, patati-patatá. Pois a mulher era uma folgada. Tive de dar ultimato pra desocupar.
Decidi construir minha casa mas mamãe dizia que não, que era loucura, que seria um gasto imenso, um trabalho sem fim, que já o fizera antigamente e que sabe o quanto é difícil… Na verdade queria me manter dependente dalguma forma. O filho solteiro pra morar consigo. Tia Cecília me contou que Rose dizia que quem tem de morar e cuidar da mãe é o filho solteiro. Eu disse que quem tem de fazer isso é filha mulher e que está bem financeiramente.
Em julho fiz um acordo com mamãe. Que Rose enviasse o documento do usufruto até agosto. Só assim eu reformaria a casa pra nos mudarmos. Concordou plenamente, mas só de boca. O tempo passou e: Nada!
Vendo que o tempo urgia, que não daria pra fazer minha casa a tempo se demorasse mais, consegui, com seu Max, o pedreiro que ia reformar a casa e que pediu pra morar na edícola, outro arquiteto, porque o primeiro era um esquema exploratório que só grande empresa agüentaria.
Como os inquilinos não saíam e não sairiam, seu Max propusera comprar parte do material e colocar lá, pra os forçar a sair. Mas não abriram a porta. Assim o material ficou pendente na loja de material de construção.
Comecei a fazer a casa em segredo e desviei o material comprado. Fui comprando mais material, etc, com a poupança que tinha com mamãe, em conta conjunta, que seria usado na reforma. Usei a metade do dinheiro. Mamãe ia à missa nas manhãs de domingo e costumava passar no terreno, na edícola, onde morava seu Max, pra falar mal de mim. Disse que sou muito bom aos estranhos e ruim à família, que meus amigos me exploram, que estou metido com amigos espíritas. Num domingo passou lá e ele não estava, mas viu a construção. Então, a conselho de Rose, foi correndo fechar a conta e sacou o restante do dinheiro. E ficou dizendo aos parentes que roubei todo seu dinheiro. Tia Isolina disse:
— Mas se era conta conjunta ele tinha direito à metade!
Lili é que é espírita, Gláuder não. O caso é que dona Sílvia é católica fanática. Na verdade o espiritismo é perigoso porque mexe com forças desconhecidas. É isso que Gláuder tentava inculcar na cabeça-dura Lili mas era difícil. Desequilibrada, era uma porta aberta a ataques vampíricos. Mas essa é outra história.
Então fiz um empréstimo no banco.
No começo não sabia o que fazer. Não sabia se seria melhor vender meus terrenos e comprar uma casa, construir ou outra opção. Então fui me informar e concluí que o melhor seria construir em num de meus terrenos. Quando tia Cecília viu a casa achou linda.
— Menino, eu não sabia que sabias te virar!
— O que a gente não sabe aprende. Se nunca precisei por que aprenderia? Se ficasse náufrago numa ilha deserta acharia um jeito de construir uma cabana. Mas como nunca acontecera, não construiria uma no quintal só pra mostrar que sou capaz.
Eu diria que quando meu tio estava morre-não-morre comentávamos o que seria de Cecília, que nada sabe fazer e que sempre foi dependente do marido. Mas não quis dizer isso porque poderia ser interpretado como ironia.
Essa dos amigos que me exploram era porque costumava receber Gláuder e Lígia pra almoço, jantar ou conversar somente mas eles nunca retribuíam. É verdade que Lígia, quando almoçara em casa, prometera a meus pais retribuir o almoço assim que sua reforma fosse concluída mas nunca cumpriu. Aliás, é uma característica dela esse papo-furado. O tempo passou e nada. Até que a família se dissolveu e o almoço já não tinha mais sentido. Por mim eu já teria esquecido essa maldita Lígia duma vez, mas só por causa de meu amigo fiquei aturando aquela avarenta de pai-e-mãe. O que mais irritava era que ela ia almoçar e levava nada, totalmente sem-educação. Quando levava era um vidrinho de doce-de-leite que ela comia quase todo sozinha. Quando levava era pra si. Na única vez que decidiu levar o almoço pra almoçar em minha casa foi quando levou uma lasanha. Mal terminou o almoço e foi recolhendo a lasanha, dizendo:
— Esta levaremos. Será nosso jantar.
Fiz um esforço pra não mostrar o arrepio. Nem preciso comentar a gafe, a falta de educação. Sem contar que dá a impressão de que estão passando fome. E ela ganha bem, pois é assessora no fórum.
Uma vez fomos a uma pitsaria com a turma deles e como não avisei que ia, pois saímos direto do serviço no fim de tarde, mamãe ligou, várias vezes, a meu celular, reclamando. Foi quando Lígia falou do absurdo de minha situação. Basta eu chegar alguns minutos atrasado do trabalho e mamãe já ficava ligando a meu celular. Qualquer saída tinha de dar explicação, como se fosse criança. Velha grudenta e chata!
Anos e anos assim. Nem podia atrasar cinco minutos da chegada do serviço, que o celular já tocava dentro do carro. Quando eu chegava ela fazia aquele ar ofegante, punha a mão no coração:
— Ai! Já tentei extirpar de mim esse sentimento mas não adianta. Se não ligas, qualquer hora terei uma sapituca! Tanta coisa que acontece...
— Então pares de ver esses programas jornalísticos cheios de crime e notícia ruim.
Como fiquei muito aborrecido com o vexame, e já puto com tudo o que estava acontecendo, não dei mais bola à insistência de que eu ligasse. Não ligava e pronto! Então achava que minhas saídas eram pra visitar o casal. Não sabia que estava atendendo à construção.
Todo dia tinha telefonema de Rose, seja fixo ou celular. Mais no celular, pra eu não ouvir na extensão. Teve um dia, feriado, que ligou três vezes. Agora o cristo era Rose. Tinha de ligar quando saísse do trabalho e quando chegasse a casa, pra dizer que está tudo bem. Um dia, logo após um telefonema, mamãe foi a meu quarto e pediu os documentos da separação e a escritura da casa velha, que passara a seu nome com a separação. Era óbvio que foi por instigação de Rose.
Foram meses de agonia, com fofoca e intriga a todo lado. Em meu aniversário estavam a faxineira, afilhada de mamãe, Maura, com a filha pequena com duas colegas de escola. Assei um peixe, comprei um pote de sorvete e mais umas coisinhas simples. Quando cheguei ouvi a conversa, mamãe debochando:
— Menina! Comprou peixe, sorvete... Coisas que nem pra mim tem... Nem aquele amigo veio. Ha ha ha ha. Passou o aniversário com um bando de pirralha!
Como nem pra mim tem?, se tinha tudo o que queria e era tratada como uma rainha!
O amigo que então não viera é Gláuder. Nem poderia ter convidado porque estava com o filho recém-nascido na UTI, morre-não-morre. Morreu depois.
Nádia, colega do Fórum, também compareceria. Eu a pegaria em casa porque não tem carro. Estava recém-separada e viria com as duas crianças. Mas encima da hora telefonou, avisando que não poderia vir. Comportamento típico e corriqueiro de Nádia. Conseguia ser ainda mais papo-furado que Lili. Há anos eu tentava a fazer conhecer a casa. Sempre mancava. Marcávamos de ir à casa de empanada, à sorveteria, etc. Nada. Nádia era nada. Aquela seria a última oportunidade. A atitude hipócrita de quando eu estava machucado, e agora esta, a gota dágua. Então decidi a ignorar duma vez.
Logo que fiz a mudança dona Sílvia insistiu pra eu levar os topueres, potes, etc, porque teria de doar tudo, afinal moraria com a filha em Sobradinho II.
Pus tudo no carro e levei. O que fosse excesso eu repassaria a seu Max, que estava morando na edícola. Quando voltei entrei com pé-de-pluma e novamente a flagrei ao telefone debochando:
— Ha ha ha ha. Já fez a mudança. Menina! Precisava ver! Levou um monte de bagulho!
Numa discussão eu disse:
— Ficas ao lado daquela picareta que só ficou te enrolando. Com ela nunca te separarias. Comprei o televisor que querias pôr na cozinha, fiz a separação que não sabias fazer, corri atrás dos documentos, paguei tudo sozinho.
— Á! Isso é passado!
Noutra vez me disse, torcendo a boca em trejeito gozador:
— Me admiro que tu, que lês tanto, que és tão inteligente...
— Me admiro de tu, que rezas tanto, fazes tanta fofoca e baixaria!
A velha beata, carola e santarrona reza o dia todo. E pedia pra me tirar o diabo do corpo. Uma vez disse que o que estava acontecendo era obra de Satanás.
— É Satanás que telefona a ti todo dia. Se divertindo em intrigar. E entras na onda direitinho. Onde se viu?: Morar com um e jogar no time do outro. Traiçoeira! Carola! Beata! Velha santarrona! Bruxa católica!
Eu enviara um imeio ao cunhado, avisando que se Rose continuar a se meter em nossa vida providenciarei minha casa e a mãe que vá morar com ela. Ninguém respondeu. Então cumpri a ameaça.
Quando resolvi me mudar enviei a última mensagem, avisando ao cunhado de que como não me respondera cumpri a ameaça. No final do imeio escrevi: Com essa gorda sonsa, toda espertinha, ganharás é chifre.
Ora reclamava porque tinha de comprar pão, porque queria tal e tal doce. Pedia macarrão e reclamava que esse macarrão muito fino é ruim. O pão de tal supermercado não presta, tem de ser do tal outro. Pedia pra comprar remédio, dava uma nota de 50 reais com um monte de tampa da caixa como amostra. Chegando até lá o preço era 200, 250 reais. Eu comprava e ainda não era bom filho.
No almoço vinha com a bengala, se arrastando. Gemia, resmungava e suspirava o almoço inteiro. Porque o joelho está ruim. Ai-jesus!...
Quando Rose ligava, atendia assim:
— Ai, mi rreina! Minha princêça. Você ê minha única chôia preciôça.
Uma vez almoçávamos e tia Cecília, que estava em Brasília (essa, sim, mora em Brasília mesmo, não no subúrbio), ligou. Mamãe aproveitou pra falar coisas pra eu ouvir:
— Pois é. Já me disse Não quero morar contigo! O que mais quero ouvir? Não me dá satisfação aonde vai, nada.
Como mamãe disse que moraria com a filha, contatei um corretor pra avaliar a casa. Disse que a pessoa pode desistir do contrato, sem multa. Então pus a venda. Na última hora dona Sílvia decidiria se venderia.
Em janeiro de 2008, já quase completamente mudado, permaneci a pedido de mamãe, pra fazer companhia até eles chegarem, nos próximos dias. O advogado de Rose ligou a meu celular dizendo que eu estava tentando vender a casa e que dona Sílvia disse que não queria vender. Que ligou ao corretor avisando que não era pra vender e que era pra eu desocupar a casa até quinta-feira.
Falei com mamãe, que disse que não venderia. Então decidi me mudar em definitivo. Rose ligou várias vezes, furiosa, dizendo que era pra eu desocupar logo.
Quando terminei a mudança avisei que só viria buscar a antena parabólica e, então, entregaria todas as chaves. Quando voltei o segredo do portão fora trocado. Entrei no portão da garagem, pois se esquecera de trocar o segredo do controle remoto. Joguei as chaves ao chão, junto com o controle remoto e disse que ainda decidiria se levaria a antena.
Desisti da antena velha, que só serve pra poleiro de urubu. Programação ruim, péssima sintonia. Decidi que não valia a pena a levar. Deixei lá.
Durante uma semana fiquei na casa de tia Cecília, que estava em Brasília, pois ainda faltava terminar o piso de minha casa, o banheiro e a cozinha. Fiz a barba e tomei banho no escuro, até religar a luz, que ficara muitos meses sem leitura até ser cortada. A água quase me deu dor de barriga tomando água da torneira, meses empoçada, porque o filtro era elétrico, não podendo tirar água sem eletricidade.
Logo que me mudei soube que Rose mandara entregar a antena parabólica à casa de tia Cecília, que, obviamente, recusou. Não sei o que fizeram dela. Dei muita risada com isso.
No primeiro mês não tinha geladeira nem fogão. Se bem tinha um fogão a lenha. Vez ou outra almoçava em restaurante. Quando tia Cecília me chamava eu ia. Acaso meus amigos me ofereceram pra dormir ali naqueles dias em que estava terminando meu piso? Tomar banho? Nada. Depois, quando não precisava mais, Lígia disse:
— Nem te oferecemos pra dormir aqui, tomar banho. A cabeça a mil...
Usaram o fato do nenê estar na UTI como desculpa. Mas tenho certeza que não tivesse nenê na UTI daria na mesma. Afinal tive dois aniversários seguidos em que eles ignoraram completamente. O primeiro sem desculpa mesmo, o segundo com o nenê na UTI. Poderia parabenizar depois, dizer algo carinhoso, só isso. Mas e o medo de ter de dar algo? Pois que me separei da família, tive toda essa transição, todo esse trauma, e nunca pude contar com um apoio, a não ser algumas raras ocasiões pra conversar. Montei toda minha casa e não ganhei um pano de prato.
Avarenta de pai-e-mãe. A mãe de Lili, dona Ranulfa, disse que me adotara como filho, depois de todo o apoio que dei na longa UTI e conseqüente morte do nenê. Mas eu sempre tinha de ir os visitar. Que mãe que nunca me telefonou, nunca perguntou se estou bem, se preciso algo, nunca visitou. Também nunca deu um pano de prato!
Noutras culturas, quando alguém passa uma transição (casamento, mudança, etc.) os amigos se reúnem, fazem uma vaquinha e dão algo que julgam útil. Quando não fazem um mutirão. Pra mim foi um choque, contrariando e ignorando tudo o que aprendi sobre relação humana, amizade, seja nos filmes e gibis, seja na escola ou em casa. É a cultura (ou falta de) do campo-grandense.
Eu procurava proporcionar mil ocasiões prà gente se encontrar, conversar. Levava pitsa, levava almoço, combinava ir a algum lugar. Quando eu fazia almoço era só pra eles mas eles só me convidavam aproveitando algum almoço onde convidavam a família toda e mais a amiga Natália. Então a conversa era outra, outro clima, nada a ver. Nunca me convidaram sozinho, só a mim. Sempre, já que tinham de fazer um evento, aproveitavam de me convidar. Mesmo essas ocasiões foram só duas em anos! Pura economia.
Quando eu aparecia nunca diziam Fiques pra almoçar ou Façamos um lanchinho. Agiam como se fossem paupérrimos.
Também nunca vieram a minha casa. Agora não tem mais a desculpa de meu pai. Viste que era só desculpa mesmo? Falei! Quando terminou o almoço deles em comemoração à recuperação do filho na UTI (mas que logo a seguir morreu) eu disse, claramente:
— Poderíeis ir até lá também. Só eu venho àqui. Só passar na frente, dar uma buzinada: Oi. Só pra dar um alô. Tudo bem aí? Ou um telefonema.
Sabeis o que Lili respondeu?:
— Á, não! Isso não faço!
Me segurei pra não dizer um desaforo. Se isso é coisa que ela não faz, então indo até lá estou fazendo algo que ela é contra. Que gafe! Depois só disse a ele, via msn:
— ...pois é, e ainda recebi uma resposta babaca.
— Que resposta babaca?
Não respondi.
Acho que qualquer pessoa com um mínimo de bom-senso (só excetuando as retardadas mentais, com doença grave ou drogadas) há de concordar com minha idéia de que quando se tem uma relação afetiva o estímulo tem de ser recíproco. Creio que isso não seria pedir demais. Imagines um namorado que nunca liga à namorada, que só ela liga, que nunca a procura, nunca sugere algo, que apenas concorda ou discorda, que se comporta como uma boneca inflável. Creio que seria insano um relacionamento unilateral, onde só um lado tem ação, como quem cuida dalguém em estado vegetativo. Pois já dá pra dar uma idéia do que eu sentia.
O pior foi quando veio meu primo Preto. Eu ainda estava na casa de tia Cecília, o nenê recém falecera. Eu ia comprar uma pitsa e fazer uma reunião rápida lá, pra todo mundo se conhecer. Mas decidimos não fazer ali, pra não atrapalhar a hora da telenovela que tia Cecília gosta de ver.
Então sugeri fazer na casa deles mas meu primo disse que nesse caso, pra esquecer a tristeza, melhor seria sair. Fomos a uma pitsaria.
Na hora da conta eles nada. Quietos. Então meu primo resolveu pagar tudo.
Fiquei pensando: Quando insistiu tanto pra eu ir à pitsaria com eles, eu não queria quando soube que era de turma. Ele insistiu tanto e acabei indo. Ali cada um pagou sua conta. Agora, quando eu convido tenho de pagar por todos?!
Fiquei pensando, também:
— Queriam que eu fosse padrinho do moleque. Mesmo eu dizendo que não quero participar de missa, insistiram. Tudo eu tenho de ceder, abrir mão, em nome da amizade. Mas quando é eu quem pede, ainda mais uma coisa tão simples, são irredutíveis. Chega de ser manipulado! Chega de ser bonzinho!
Decidi não mais os visitar. Já não mais ficava indo levar coisas, pois vi que estava fazendo papel de trouxa. Procurava ir só quando ela não estava, mesmo assim muito rapidinho e muito raramente. Mas logo tive de radicalizar mais.
Fiquei imaginando. Será que noutras épocas e ou outros países as pessoas são mais amigas? Será que existe amigos pra valer? Existirão famílias pra valer?
Não sei.
O que sei é que existe tia de verdade.
Tia Cecília e tia Isolina (que mora em Campinas) foram meu único apoio nesse vendaval todo.
Não suportam Rose e dona Sílvia. Nem as primas Estela e Cláudia as suportam. Estela odeia a vulgaridade de Rose, tanto que nunca a convidam pra evento. Só comparecem, muito raramente, por causa de primo Preto ser funcionário subordinado a Aguinaldo. Estela detesta dona Sílvia porque ela criticou a filha de Estela, Samara, por não paparicar João Vítor, filho de Rose, pequenino, numa dessas ocasiões de almoço ou jantar. E depois, quando dona Sílvia disse que Cecília ficou pão-duro depois que Estela esteve lá, controlando as contas da mãe, e foi reclamar a Lúcia, irmã de Estela, dizendo que só é dama-de-companhia de Cecília pelo que ela paga, não pelo amor de irmã. Cláudia e sua mãe, tia Isolina, detestam Rose porque na década de 1980, quando adolescentes, Cláudia esteve aqui. Depois que Cláudia foi embora Rose a acusou de roubar os namorados e falar mal dela e de todos. Disse que só de mim não falou mal. Então Rose escreveu uma carta bem desaforada e remeteu a Campinas.
Rose é incapaz dum ato de generosidade e sutileza. É estúpida como a mãe. Até nos gestos e ironias são idênticas. Quando flagrou o noivo beijando outra dentro do carro fez um escândalo monumental.
Quando morreu tio Benedito minha mãe passou a ser dama-de-companhia da irmã. Ia no final da tarde, pois moravam a poucas quadras de distância, e voltava na manhã. Quando o joelho começou a falhar eu levava e trazia. Ao despertar telefonava e eu ia buscar, de carro. Uma vez era carnaval e dona Sílvia telefonou bem cedo. No outro dia tia Cecília disse a mim:
— Sabe que gostas de carnaval. Por que ligou tão cedo? Poderia te deixar dormir.
— Pois é. Sabe que sou louco por carnaval e que passo a noite vendo na tevê.
Pois dona Sílvia sempre foi assim, sem desconfiômetro, indiscreta. Eu tinha de tomar muito cuidado pra não me expor e passar vergonha porque fala e faz sem pensar. Quando criança eu evitava chegar perto, tanto da mãe quanto do pai, com colega de colégio, pois era fatal levar uma bronca como se estivesse sozinho. Sutileza, delicadeza e sensibilidade não é são forte da família. Tia Cecília conta que tio Bené vivia falando indireta quando queria que ela emburrasse e o deixasse em paz. Uma pessoa tão burra é muito fácil de manipular. Meu pai conta que uma vez ela, numa repartição pública, fez uma pergunta atrapalhada ao atendente, que respondeu:
— Assim, sem formular a pergunta direito, a senhora nunca obterá resposta.
Dona Sílvia sempre foi dramática, neurótica, com rompante de fúria. Sempre reclamando da vida e do marido. Quando pequenino vi ela atirar uma lata de azeite a papai, cortando o lábio. Já adulto vi um desses acessos de fúria, chegando a atirar um chinelo a mim e meu cunhado Ivandel. Era uma espécie de mãe de Sybil, aquela das múltiplas personalidades. Quando vi o filme Menina de ouro (ou Sonhos vencidos) (Million dollar baby), embora filme muito ruim, me identifiquei logo com a personagem em meu aqui-agora. A garota fazia tudo pra agradar mãe e irmã tranqueiras mas só recebia patada. Não pude resistir a uma exclamação: Caramba! Igualzinho! Tal e qual! Desde pequenino aprendi que não podia fazer confidência com ela porque na primeira oportunidade jogava na cara ou contava a outros. Foi quando de minha primeira paixãozinha, com cinco anos, em Rio Verde. Cheguei da escola e ela estava na sala, reunida com suas amigas. Uma, tão indiscreta quanto ela, disse:
— É esse que gosta de Adelinha?
Tia Isolina, mesmo sendo a mais pobre sempre foi a mais presenteira. Mas tia Cecília também sempre foi muito presenteira. Bem diferentes de seu Aydil e suas irmãs, a irmandade dos pão-duros. Das três irmãs Tapocó (alusão às irmãs Cajazeira da telenovela O bem-amado), pois são mascadoras desse fumo em folha que se vende no Paraguai, Cecília é a mais abonada, pois se casou com militar e hoje goza uma bela pensão de viúva. É, como se diz, quem nasceu empelicada. Nunca trabalhou, se casou e foi muito amada, paparicada e sempre teve dinheiro e fartura. Isso sempre causou uma inveja imensa em dona Sílvia, que se casou com um pobretão meio gigolô meio descabeçado e pão-duro.
Tia Cecília sempre foi uma mãezona pra mim. Com sete anos, 1971 e 1972 morei em Brasília, acho que porque meu pai me batia muito e isso me deixava um tanto desajustado. Eu, tia Cecília, tia Isolina, Estela e Samara somos louros. As características mentais desse ramo da família, mais aristocrática, se opõe nitidamente ao dos morenos, como Rose e dona Sílvia, bem barraqueiras. Estela também é generosa como Cecília. Raridade se encontrar pessoa que não seja pão-duro nesta nossa civilização.
Quando soube da confusão tia Cecília disse que se dona Sílvia não gosta do filho, por que não deixou que ficasse morando em Brasília, com os primos? Quando eu era pequenino todo mundo queria me adotar porque era muito lindo, lourinho, cabelo quase branco. Por que não deu se não gostava do filho?
Nesta transição foi tia Cecília quem me deu apoio. Está sempre me ligando, me chamando, sempre pede e oferece ajuda. Bem diferente dos amigos, que nunca se comunicam e ficam só no vem-a-mim. Vamos a restaurante, fazer compra. Como não gostou da substituta de dona Sílvia, contratada pra dormir lá porque quer ter alguém perto caso sofra algo (o perigo era quando tinha freqüentes taquicardias mas depois que operou não teve mais), perguntou se eu dormiria lá duas semanas, até Lúcia chegar. Claro que minha resposta foi positiva, e de bom grado, pois que em nada me atrapalha. Levo um livro pra ler e pronto.
Tem carro mas não se atreve a dirigir em Campo Grande. Diz que só sabe dirigir em Brasília. No que está certa, pois o trânsito daqui é bem mais agressivo que o de lá, pois os motoristas de Campo Grande são os mais mal-educados do Brasil. Sempre faz questão de pagar tudo, sendo que está muito bem financeiramente e me sabendo num aperto por estar com empréstimo de construir a casa. Por isso evito fazer minha compra junto com a sua, pois quer pagar tudo. Faço minha compra depois. Até me ofereceu empréstimo, caso me apertasse muito. O que mais me encantou foi o apoio total, incondicional, pois, na família, quem não estava com Rose estava encima do muro.
Em supermercado ou restaurante, não me deixando pagar, eu pilheriava:
— Ela quer pagar tudo. É a tia que todo mundo quer mas só eu tenho.
E depois, com ela:
— Menina! Pensarão que sou teu amante.
— Hahahaha.
— Igual quando viajei com mamãe...
E contei a história das viagens, onde o pessoal achava que eu e dona Sílvia éramos namorados.
Mas tomo muito cuidado pra não violar a privacidade, coisa que preza muito, principalmente não atrapalhar a hora da novela. E ficou uma relação muito boa, com respeito mútuo, sem intromissão. E como é bem-humorada. Só o frio a faz ficar encafifada em casa. Como eu, tem o lado lagartixa. É só fazer um friozinho e parece que hiberna. Mas também não pode com o sol porque tem a pele sensível, manchada, e tomar sol pode virar câncer. Por isso só sai de chapéu e sombrinha.
Logo que me mudei tia Cecília dissera que uma hora diria poucas e boas a minha mãe. Um dia fora visitar mamãe em Sobradinho, de tanto que sua irmã insistia que fosse. Disse que não queria ir mas foi. Depois telefonou me contando que eu deveria reconciliar, que não deveria ter escrito aquele desaforo. Sem perder a calma propus um acordo: Não me falar mais deles a mim e de mim a eles. Indignado por terem lhe feito a cabeça, escrevi uma carta desaforada. Mas fui pensando, lembrando que foi quem me deu o apoio na hora mais difícil. Achei que não merece ouvir desaforo só por um deslize tão bobo. Rasguei a carta e deixei de lado a história.
Ficando viúva a sonsa resolveu morar em Campo Grande. Meu pai morreu em abril de 2008. Foi encontrado fulminado por taquicardia. Não fui ao enterro pra não encontrar as duas canalhas. Só soube porque meu primo Preto ligou avisando, e depois umas primas paternas ligaram. Foi o que eu disse a primo Preto, que fiz por meu pai tudo em vida. Não é agora que homenagearei morto só pra mostrar aos outros.
Logo depois recebi comunicado judicial do inventário. Onde a sonsa reivindicava todas as despesas de funeral. Umas três contas de 200 reais e um automóvel escort 1996. O total não chegava a 6 mil reais. Não é pra menos que não gostam dela. A mãe, em Sobradinho, ficou morando num cubículo no andar superior. Mesmo com o joelho com cartilagem gasta tinha de subir escada. Preto ficou indignado. De volta à casa-clube a mãe não ficou no quarto de antes e sim num menor, fora. Dissera que fiz algo mau a papai, que a separação foi maquiavelismo meu, mas não o trouxe de volta. Agora cobrando um parco gasto funerário, sendo que se gabava, com os primos, de receber rica pensão de viúva. Se está tão bem por que voltou a Campo Grande? E por que a mãe só telefona a Cecília quando ela não está porque diz que tem de economizar no uso do telefone?
Cecília telefonou, me contando que mamãe dissera Darei o carro a Mário. Então Cecília respondeu: Mas já ligaste a ele avisando que darás?
Qual! É só pra falar bonito aos parentes. Pensa que tia Cecília não sabe tudo, que não conto tudo a ela.
Meu advogado disse que Rose deve estar ruim de finança, pois propôs que eu fique com o carro e lhe pague a metade. Enquanto isso mamãe dizia a tia Cecília que estavam me dando o carro e que eu só pagaria o trâmite. Eu disse a tia Cecília que era mentira, que mamãe só queria fazer farol, passar por boazinha, porque pensa que não conto tudo a tia Cecília.
— Pensa que não sabes de tudo, que não te contei tudo.
Quando primo Preto chegou disse que mamãe estava com saudade, que quer reconciliar. Então, pacientemente, contei toda a história de minha vida, pra que entendesse o espírito da coisa. Eu disse que ela gosta de falar bonito aos parentes pensando que eles não sabem de tudo. Pensando que não conto tudo a Cecília. É só pra ficar com boa imagem, de piedosa. Pura hipocrisia. Ele disse que se fosse voltar teria de ser sob minhas condições. Respondi que não é assim, que elas fingem, manipulam. Depois de tudo o que passei fica tudo por isso mesmo? Quem me indeniza? Não! Se eu reconciliar tem de pôr um chapéu cônico em minha cabeça escrito BURRO.
Contei todo o deboche que flagrei ao telefone, toda difamação. Rose me difamou pra me isolar da família e ficar com tudo, sabendo que pode manipular a mãe. Contei o que disse à mãe, me acusando de coisas que eu não disse, que disse, a seu Max, que sou inconstante e que posso o matar a qualquer momento. Que só não estou na cadeia graças a ela. Eu disse que se reconciliasse teria vergonha de tudo o que ouvi. E sabe-lá o que não ouvi! Não dá! Não tem volta! Rose joga muito sujo e pesado.
Contei que Rose começou a me isolar desde o dia em que comentei com mamãe sobre o motivo da crise de Rose no trabalho. A dona da empresa, em Brasília, de repente começou à hostilizar. Trocávamos telefonema sobre isso mas nunca ficou claro o motivo: Foi fofoca, mal-entendido, Rose pisou na bola? Então cheguei a uma conclusão e disse a mamãe que o que aconteceu foi que Rose sempre foi criada como princesinha, sempre paparicada, quando adolescente todo mundo a queria namorar. Só sabe ser paparicada, tratada como princesa. Se contrariar, cobrar, entra em parafuso e se revolta. Aconteceu que mamãe lhe contou isso, então resolveu se vingar, me tendo como traidor.
Concluí isso porque mamãe conta tudo a ela. Tudo o que acontece em casa: Se a faxineira não veio, se estou resfriado, tudo. Parece um bigbró, só que auditivo. Rose tinha nossa vida a controle remoto manipulando mamãe, pois se inteira de tudo. Parece Estados-Unidos: Em tudo se intromete, nem respeita privacidade. Foi por isso que hesitei muito reformar a casa pra morar com mamãe. Quantos anos teria de suportar Rose monitorando nossa vida todo dia? Daí que a proposta de usufruto era um alívio. E tanto é verdade a monitoragem que antes de me mudar emprestei a gamela de madeira, que mamãe usa pra fazer chipa, pra seu Max dar um churrasco no terreno, aos parentes. Mamãe deu falta da gamela e cobrou, cheia de ironia. Quando eu estava trazendo a gamela de volta já foi avisando que não precisava mais, que Rose compraria outra. Ou seja, mal saí e foi contar a história à filhinha-da-mamãe.
Eu disse ao primo que tive de cortar todo mundo que dalguma forma fazia ligação entre eu e Rose. Uma colega de colégio dela era meu contato no msn. Perguntou mas não quis saber de minha versão do caso. Mas depois que esteve lá passou a mensagem, a mim, de que mamãe está com saudade. Excluí e bloqueei imediatamente esse contato. Tive de dar ultimato a seu Max pra sair da edícola, pois indo reformar o telhado da casa de mamãe começou a contar coisas ditas pra eu ouvir e passar informação sobre mim. Desde o começo Rose procurou fazer um dramalhão mexicano. Eu disse ao primo que nunca quis entrar nessa, pois seria valorizar o inimigo desprezível. Que não quero disputar prestígio. Quem quiser saber que venha perguntar a mim. Que quem late a cachorro é porque é cachorro também.
Preto disse que reconhece ter sacaneado muito comigo naquela época. Eu disse que isso era fichinha perto do que passei aqui. Se referia ao fato de que quando eu morava em Brasília, com eles, eu tinha entre 7 e 8 anos e ele 14. Molecote, se identificava com seu pai. Não tinha cumplicidade comigo. Quando eu burlava a vigilância pra ver os filmes tarde da noite ele me denunciava. Me dava bronca como se fosse meu pai. Mas também me ensinava muita coisa: Jogos, brincadeiras. Tinha toda aquela pose de manda-chuva, mas isso só causa mágoa quando se é criança.
Expliquei que em Brasília era muito melhor. Eu não era obrigado a ir à missa e a rezar, não me batiam, não tinha briga de pai e mãe. Quando vim de volta foi um choque. Minha mãe não gosta de filho homem, então só me tratava com reproche. Era descompostura o tempo todo. Hoje penso como uma pessoa pode tratar assim uma criança. Não parava de praguejar, dizendo que estava com cascão, que não sabia mais rezar, que quando morava em Rio Verde eu ficava bravo quando tirava em segundo lugar na escola, enquanto hoje não tenho amor-próprio e tiro nota baixa. Que sou insuportável, que voltei de Brasília porque ninguém me agüentava mais. Contei que teve uma ocasião, lá, que tive catapora (tive caxumba e catapora, não lembro em qual delas foi o evento) e meus colegas do colégio foram visitar e que expulsei todo mundo. Tia Cecília conta rindo, achando graça, como coisa de criança, compreendendo que uma criança, irritada pela doença, ou até querendo impedir os outros chegarem perto e se contaminar, agia assim. Mamãe contava me reprochando, ressaltando como exemplo de como sou insuportável.
Preto disse que não era verdade que vim de volta por eu ser insuportável. Que não existe isso. Nunca existiu. Não é verdade. Tia Cecília conta que eu escrevia e aprendia muito rápido e que logo apagava o quadro negro antes dos outros copiarem, o que os levava a ficarem bravos e se juntarem pra me pegar na saída. Era só isso.
Contei de quando criancinha, no pré-primário em Rio Verde, cidadela do interior, distribuí meu lanche, uns pacotes de biscoito, com os colegas, na hora do recreio. Nesse momento mamãe apareceu com minha irmãzinha, e ficou furiosa, fazendo um escândalo:
— Que negócio ê esse de distribuir os biscoitos, dar aos outros? Em primeiro lugar tem que dar a tua irmã!
Falou, falou, falou. Só o que lembro de mamãe: Descompostura, lalando e praguejando o tempo todo. Era assim comigo, com papai, com os vizinhos... Só não era assim com a querida filhinha, sua Luluzinha e com Güelita, adorada mãezinha.
E teve um evento que não quero contar, de tão vexatório.
Contei de minha infância, que foi materialmente muito segura mas psicologicamente trágica. Que eu era uma criança triste, com vida interior rica, com gibis e seriados de tevê mas sem amigo. Que eu pegava meu carrinho e brincava, vruuuuuum!, sozinho. Uma criança que não incomodava, não fazia molecagem. Mas mesmo assim meu pai me batia. Com cinco anos, sem saber o motivo, via entrar no quarto aquele homem, tirar o cinto da calça e distribuir chicotada. E não tinha direito de chorar. Não parava de apanhar enquanto não parasse de chorar. Ficava com a perna toda marcada, feito uma zebra, nem podendo ir à escola no dia seguinte. Ou o castigo era ser trancado num banheirinho fedido.
Sempre fugiram do assunto. Nunca alguém explicou o motivo dessas surras e por que minha irmã nunca sofreu isso. Apenas meu pai deu a entender que seria algo que mamãe ou Güelita contava. Creio que dali Rose tomou tanto gosto em fazer fofoca e intriga. Pois tia Cecília me confirmou sobre quando papai tentou passar a perna em tio Benedito na comissão quando ficou de vender pra ele o sítio de Minas Gerais.
— Descobriu não. Foi Rocita quem contou.
Que quando voltei de Brasília sofri um choque cultural muito grande. As notas na escola estavam baixas e mamãe ameaçava me surrar e queimar meus gibis. Eu sofria assédio na escola, até dos professores. Quando da janela eu via os passarinhos, desejava ter nascido um deles, pois podiam viver naturalmente, sem tanta pressão, tanto constrangimento e humilhação. Meu ardente desejo era fazer 18 anos logo e nunca mais ser obrigado a ir à missa.
Que quando fiz a mudança encontrei um manuscrito que ficou perdido entre os documentos de papai. Ali ele escrevia a mamãe explicando que estava se separando por causa do comportamento dela. Dizia que só voltaria se ganhasse dinheiro, pois ela se casou pensando que ele fosse rico, porque tia Margô a iludira. Que não se conformava com o aborto do primeiro filho (anterior a mim, uma suspeita que sempre tivemos e que parece ser a causa de tanto fanatismo religioso) que ele acabara aceitando por estar apaixonado. Um trecho não deixava dúvida: Cuides das crianças, de Mário também. Por que essa frase de Mário também? Deixa óbvio que ela não queria saber de Mário.
Que comentei, com tia Cecília, que mamãe é matriarcal, não gosta dos homens. Disse que papai lhe reclamara a mesma coisa.
Contar isso e os detalhes de minha mudança fez Preto se situar melhor na história:
— É! A coisa foi muito mais grave do que parecia.
Preto frisou bem que meu prestígio com os primos não arrefeceu por causa da confusão, que não é verdade o que mamãe dizia, de que vim embora porque sou insuportável. Que, na verdade, eu era uma criança muito diferente, que dizia coisas engraçadas e que alguns colegas me hostilizavam porque eu era muito sabido.
A partir de 2009 tia Cecília foi ficando cada vez mais em Brasília. Depois que morreu tio Bené não era mais tão vantajoso ficar em Campo Grande, que era uma espécie de casa-de-campo, pois tio Bené gostava de Campo Grande. Então, já idosa, os filhos todos em Brasília, acabava emendando os exames médicos com o aniversário dalgum neto, Natal, Reveião, e o plano de vir ia se adiando indefinidamente.
Em 2009, como o gasto com detetive pra flagrar um vizinho que depredava, chegando a incendiar, a árvore da calçada, e a ação tardava, mais o pesado financiamento da casa, pedi um empréstimo a tia Cecília no valor de 5000 reais. Conversei com primo Preto, que cuidava da conta dela e no outro dia ela telefonou dizendo que reuniu os primos e por sugestão de prima Estela não emprestariam o valor, e sim dariam de presente!
— Quero te dar porque nunca te dei algo. Não é verdade que voltaste por ser insuportável. És muito querido pelos primos aqui, e pra mim és como um filho.
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