Projeto Medley
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Ana Paula Junqueira
Entrevistado por
Local, data
Código: PCSH_HV967
Transcrito por Camila Inês Schmitt Rossi
Revisado por Érika Gonçalves
Uma vida pela medicina
Biografia - Ana Paula Junqueira Santiago, nasceu em Cruzeiro, interior de São Paulo, em abril de 1967. Mais velha de cinco filhos, sempre foi muito apegada à família. Nunca desistiu do seu sonho de ser médica, foi estudar fora, mesmo muito jovem. Ginecologista e obstetra, sempre se preocupou em ouvir as pacientes. Também se especializou em sexualidade. Casada, mãe de um filho, procurou adequar sua agenda para ficar mais em família.
Sinopse - Ana Paula Junqueira Santiago nasceu em família numerosa. Formou-se em medicina e se especializou em ginecologia e obstetrícia de alto risco. Dedicada a ouvir as pacientes, também buscou formação em sexualidade. Acostumada ao ambiente de UTI, acompanhou familiares em internamentos mais delicados. Descobriu a necessidade de também cuidar de si.
Palavras-chave: Cruzeiro, Líbano, imigração, comércio, falência, brincadeira, gravidez, médico de família, asma, vacina, surdez, medicina, estudo, cuidado, saúde feminina, amizade, namoro, sexualidade, gestação, amamentação, carreira, UTI, maternidade, luto, pandemia, ansiedade,
estresse pós-traumático, meditação, envelhecimento
P1 – Bom, então, vamos começar. Por favor, Ana, você podia começar falando seu nome completo, data e local de nascimento?
R – Posso sim. Me apresentando aqui: Ana Paula Junqueira Santiago, eu nasci numa cidade no Vale do Paraíba bem pequenininha – não tão pequenininha, é que depois que você mora em São Paulo ela parece menorzinha, né – chama Cruzeiro. Nasci ali, vivi toda infância ali, saí na adolescência, e nasci em 25 de abril de 67, de parto normal. Nasci de parto normal [risos], e sou a primeira filha, sou a primeira de muitos.
P1 – E qual o nome dos teus pais?
R – O pai Jair Jorge Santiago, a mãe Maria Regina Junqueira Santiago.
P1 – E você sabe de onde vieram, de onde veio tua família, qual a origem?
R – Sim, é uma história muito bonita. A história dos meus pais é uma história de amor, e que literalmente a gente vivenciou muito, nós filhos, convivendo com essa história de amor. Ele era bem mais velho do que a minha mãe, ele era um filho de imigrantes, o pai dele veio do Líbano, de uma cidade chamada Trípoli, veio pro Brasil como quase todo árabe vem, né, pra melhorar. Meu avô veio fugindo da guerra, aos 15 anos de idade, no porão de um navio, pra melhorar mesmo a vida, um cenário de vida, de qualidade de vida. E teve vários filhos: cinco filhos – meu pai é o filho caçula – e meu pai nos ensinou bastante a parte da culinária árabe, mas muito pouco da história, porque daí você percebe que pra eles era uma história pesada, né. Então meu pai nasceu nessa cidade, em Cruzeiro. O meu avô veio do Líbano, conheceu uma mineira, minha vó era uma mineira, essa cidade que eu nasci é divisa com o sul de Minas, e minha mãe também nasceu no Vale do Paraíba, nasceu em Taubaté. Então eles se conheceram no Vale do Paraíba. O meu avô por parte de mãe era um educador, então ele tinha uma direção de escolas, e escolas você ia mudando de escolas, então minha mãe foi vendo várias cidades do Vale. E conheceu meu pai ali no Vale, e se apaixonaram. Ela casou bem jovenzinha, ela casou com 21 pra 22 anos, praticamente com 22, e ele já tinha os seus 35. A minha mãe perdeu a mãe dela muito novinha, aos quatro anos de idade, ela tem uma irmã gêmea que é a vida dela essa irmã, e as duas ficaram órfãs muito cedo, então uma coisa que a gente vivenciava muito na nossa infância é que o meu pai ensinava o que era ter afeto pra minha mãe, né, porque foi uma criança que perdeu o maior afeto do mundo, que foi a mãe muito pequena, então a gente percebia ali uma relação de afeto muito grande. Nós somos cinco filhos, e meu pai quando chegava em casa, a primeira pessoa que ele beijava era minha mãe. Então você percebe que ele ensinou muito isso. Ele era muito afetuoso. Então ele beijava ela pra depois os filhos. Então era sempre assim: primeiro chegava nela, depois os filhos. Então minha mãe é uma mulher que tem uma gratidão enorme, principalmente pelo afeto.
P1 – E você falou que ele trabalhava com educação, como era o trabalho dele?
R – Esse é o meu avô materno, ele era um educador. O avô paterno era o libanês. E o meu pai comerciante, ele falava quando eu era pequenininha, ele falava que ele era negociante, que é bem libanês mesmo. E depois ele foi tendo os negócios dele, teve empresas, era empresário, a gente viveu muito isso que era um ambiente de muito trabalho, como você tinha sua empresa, você não tinha sábado e domingo, eu lembro dele trabalhando muito. E uma coisa da minha infância que me marcou bastante – eu sou asmática desde pititinha, desde os nove meses de idade eu sou asmática – e uma coisa que me marcou muito na infância é que eu precisava muito daquele pai, então era um pai que trabalhava muito, saía de casa depois do café da manhã e chegava em casa só à noite, e eu lembro de alguns momentos que eu falava "tô com falta de ar, tô com falta de ar”, pra eu subir no cangote dele pra ele me dar atenção, pra eu ficar com ele, pra eu subir aqui, andar no quintal pra me ventilar, pra depois dividi-lo com os outros irmãos. Então eu lembro que... acho que talvez – hoje eu tenho consciência maior de que a asma tem um fundo psicossomático muito importante – mas eu usava isso como um benefício secundário. Então eu precisava muito disso, então eu me apropriava daquele pouco tempo que eu tinha com ele, porque trabalhava muito.
P1 – E tua mãe, ela tinha alguma atividade?
R – Olha, também é uma história muito bacana. Minha mãe começou a trabalhar com a minha idade, né, ela fez magistério, ela não chegou a fazer pedagogia – porque logo ela casou – eles decidiram ter muitos filhos, eles tiveram em 10 anos, cinco filhos, tá. Então minha mãe sempre conta que, assim, ela menstruava e engravidava, ficava amamentando, quando desmamava um, ela menstruava e engravidava do outro, que a gente amamentou muito tempo. Então em 10 anos, são cinco filhos. Eu sou a mais velha, depois vêm quatro meninos. Então a minha mãe passou um período da vida dela, 22 anos, 23, até os 50, praticamente cuidando dos filhos, e cuidando de uma estrutura, eu percebo, não é só cuidando dos filhos não, o marido tinha um espaço bem grande na vida dela. Cuidar do meu pai, viver aquele ambiente, era muito importante pra ela. Quanto a gente era pequeno, que a gente tinha férias, férias de verão, férias de inverno, eles iam para o hotel primeiro, só os dois, e dois/três dias depois que a gente chegava. Então eles preservavam muito o casal. Quando a minha mãe tinha mais ou menos a minha idade, que hoje eu tenho 53, o meu pai teve uma falência, ele faliu, o negócio faliu. Na sequência ele teve outra falência: ele faliu, recuperou um pouco, teve outra. Daí quando minha mãe chegou nessa idade ele virou pra minha mãe, falou assim “Regina, vou te ensinar a trabalhar, porque você vai trabalhar – e ela trabalha até hoje, aos 76 anos – eu vou te ensinar a trabalhar porque através do trabalho você vai ser independente, eu sei que eu vou embora antes de você, por um fator cronológico de idade, né (ele nem tinha nenhum problema de saúde grave, não), e eu não quero que você dependa de filho nenhum”. E ele ensinou ela a trabalhar, e ela trabalha como negociante também, trabalha vendendo malha, trabalha vendendo tricô. E ela praticamente começou a trabalhar, ele começou a ensinar com 50 e poucos, com 60 anos ela já tinha o trabalho dela, a autonomia dela, e quando ela tava chegando perto dos 75, ela falava “filha, vou trabalhar até os 75, depois eu vou parar”. Ela tá com 76. Ela fala assim “acho que eu vou até os 80, depois eu paro”. Então, ela ama o que faz também e não deixa de ser negociante.
P1 – E como era essa infância aí com tantos irmãos, onde vocês moravam, como era a casa de vocês?
R – Ó, uma infância tão boa, tão boa, eu sou tão grata à infância, porque a gente morava em casa, a gente tinha chácara, então a gente ficava final de semana na natureza, eu percebo que era uma infância de natureza. Quando a gente viajava era pra ir pra praia, e como tinha muito esse ensinamento de afeto, o vínculo entre os filhos... foi construído um vínculo de ajuda, de um ajudar o outro, de um cuidar do outro. Uma coisa que eu lembro muito, que como eu sou a mais velha e depois vieram os quatro, toda gestação da minha mãe eu falava assim “vai nascer minha irmãzinha”, tinha até nome, minha irmãzinha ia se chamar Cíntia. Eu queria uma irmãzinha, daí chegava um irmão. Daí ela ficava grávida de novo: “agora vem minha irmãzinha”. Naquela época não tinha ultrassom, você não sabia, você só sabia na hora do parto, né. Então eu falava... depois, a outra vez: “irmãzinha”. Então eu sempre ficava buscando uma irmãzinha. Então eu percebo que apesar de muitos irmãos, da gente ser muito juntos, tinha algumas atividades de infância, de brincadeiras, eu acredito que é muito mais de brincadeira na infância, que eu sentia falta. Então eu pegava minhas bonequinhas, brincava com minhas bonequinhas, e depois eu ia brincar com os meninos. Quando eu voltava pra pegar aquelas bonequinhas de volta pra brincar, elas estavam ou sem cabeça, ou sem perna, ou sem braço, elas estavam literalmente destruídas; e eu engessava as bonequinhas, eu fazia curativinho nas bonequinhas, e hospitalizava as bonequinhas, não tinha como brincar com as bonecas. Eu punha elas no hospitalzinho, eu falava “ela tá internada, depois que elas recuperarem eu vou brincar”. E eu ia brincar com os meninos. Então minha infância foi brincando na rua, brincando de pega-pega, brincando de autorama, brincando de carrinho, mas foi uma infância na rua, a gente tinha muita liberdade. Final de semana ia pra chácara pra jogar bola, subir na jabuticabeira (o cheiro da jabuticaba é um cheiro que me faz muito bem, porque eu chegava lá e ia pra jabuticabeira). Então, assim, eu gostava muito das bonequinhas, mas eu tinha pouco acesso às bonequinhas. Não sei se você lembra, mas na nossa época tinha uma bonequinha chamada Feijãozinho, essa bonequinha não quebrava, então foi a minha melhor bonequinha de infância foi a Feijãozinho porque eles não conseguiram quebrar minha Feijãozinho. Então a gente brincava muito. Uma coisa também, Lila, assim, eu olho pra minha mãe e falo: são cinco filhos, quatro meninos, eu também não fugia disso não, uma vez na minha vida eu vi ela falando alto, eu vi ela brigando com um filho, uma vez na vida. Então era um ambiente calmo, era um ambiente que não se falava muito alto, apesar de uma grande família. Era um ambiente que hoje eu percebo que é bem de família libanesa: meu pai sentava na ponta da mesa, a hora que ele sentava a gente ficava quieto, todo mundo tinha que comer na mesa, tinha aquele ritual do jantar; ele trabalhava muito, chegava muito tarde, então o mais importante da família não era o horário do almoço, porque cada um tava num ritmo, era o jantar. E aquele jantar tinha que ser à mesa. A gente tinha muito esse hábito, um hábito que eu trouxe pra minha família que eu construí, meio sem perceber, você vai fazendo da sua família de origem um espelhamento pro que você constrói. E tive uma dificuldade, que na época eu não tinha tanta percepção, que foi uma grande dificuldade. Eu vivi a medicina antiga ali. Como eu era asmática desde pequenininha, o mesmo médico que fazia o parto, que era o médico de família... a asma eu não tinha grandes crises, não, nem grandes sofrimentos, mas na minha cidade era médico de família, né, o médico que fez o parto, que era até da família, era o que fazia parte de pediatria, era o médico de família – eu nasci na década de 1960, né, no final da década de 1960 – então foi orientado que eu não deveria tomar vacinas, então era uma época que tinha muita doença comum da infância, como que eu me vacinava: eu era orientada a ter contato com os irmãos, e assim eu peguei todas as doenças comuns de infância. Quando eu tinha 11 anos, eu tive um sarampo, e tive uma perda de audição 100%, uma surdez 100%, a minha sorte que é só um ouvido, mas uma doença evitável com vacina, né. Então você vê com a evolução, as pesquisas ajudam, porque eu falo assim, naquele momento eu não tinha muita noção do que era ser surda, deficiente auditiva, né, porque um ouvido escutava muito bem, graças a Deus até hoje escuto muito bem, a dificuldade que eu tive ali, eu tinha 11 anos, foi de aprender línguas, o pouco que eu aprendi de inglês, que a gente tinha naquela época, o básico, né, foi até os 11 anos, depois uma dificuldade enorme de aprender línguas. Só que eu fui desenvolvendo uma audição seletiva, então fui percebendo que escutar é muito importante pra mim, e eu fui ter essa percepção na idade adulta. Eu acho que eu fui ter essa percepção mesmo quando eu comecei a atender as minhas pacientes, então eu elaborei uma escuta muito ativa, porque pra eu escutar eu tenho que prestar muita atenção, então fui vendo o quanto é importante você escutar o outro, e o quanto é de gratidão eu conseguir escutar o outro, que eu poderia não tá conseguindo. Então, uma sequela de infância, eu fui desenvolvendo uma outra capacitação. Quando você perde um sentido, quando você tem uma deficiência você vai desenvolvendo outras, né, pra compensar aquela perda, né. Então se você falar pra mim “Ana, o que que você mais gosta hoje?” No meu dia a dia, que o meu dia a dia é muito profissional, eu sou muito workaholic, assumida, é escutar. Então escutar pra mim é uma preciosidade, e foi de uma perda muito jovem.
P1 – Estamos quites então, na escuta! E, Ana, você já tinha alguma ideia do que você queria ser quando crescesse?
R – Olha, se eu convenci meu pai, imagina uma filha de um libanês extremamente apaixonado por mim, a única filha mulher, se eu convenci meu pai de sair de casa com 16 anos pra estudar, que com 16 eu fui morar no Rio. Cruzeiro é uma cidade entre Rio e São Paulo, tá no meio do caminho, ali. Naquela época, o Rio era o Rio, mesmo em termos de estudo. Então eu convenci meu pai com 16 anos a fazer o terceiro ano – que seria do colegial, que é o terceiro do Ensino Médio hoje, né – no Rio. E ele me deixou. Pra eu convencê-lo aos 16, com certeza eu já falava de ser médica há muito tempo, tá. Então eu não sei exatamente se foi com 13 ou 14, mas foi na adolescência. Com 16 eu fui pro Rio. Foi muito difícil, é... dificílimo, eu fiquei um semestre. Uma coisa que eu lembro muito é o barulho da geladeira, então eu chegava no apartamento do Rio, que eu morava com uma prima, eu chegava no apartamento dela do Rio, eu abria a porta do apartamento e tinha o barulho da geladeira. Aquele barulho da geladeira está em mim até hoje. Que era o barulho da solidão. Então você imagina quando eu chegava na minha casa, como era a casa: além de ter cinco irmãos, os pais, a gente tinha duas secretárias do lar em casa. Eu abria a porta de casa, tinha muita gente, era uma casa muito alegre. E no Rio, a geladeira naquela época era muito barulhenta, então a solidão tomou conta de mim. Aguentei ficar um semestre, no meio do ano falei “não aguento, vou voltar”. Não foi muito aceita essa minha decisão, eu tive que fazer tudo sozinha, matricular na escola antiga (que eu já não estudava em Cruzeiro, estudava numa cidade pertinho que chama Lorena), então eu já fiz esse momento de sair de casa pra estudar, que eu fazia um bate/volta, eu saía de lá cedo, né. Porque eu fiz essa saída aos 16, no meio do ano eu recuei, não fui muito bem aceita. Eu lembro que a hora que eu entrei dentro de casa minha mãe super me apoiou mas o resto da família não. Eu lembro quando eu entrei dentro de casa, estava meu pai, e os meus quatro irmãos assistindo o Flamengo, eles eram flamenguista roxo; eu entrei, como se nada tivesse acontecido, ninguém olhou pra mim, ninguém deu muita bola pra mim, entendeu. Daí ali também eu vi: “eu vou ter que ir atrás do que eu quero”, daí eu voltei pra essa escola que eu estudei colegial, né. Voltei, batalhei, voltei. E depois eu terminei o terceiro ano e vim pra São Paulo, isso com 17, pra fazer o cursinho. Eu fiz o cursinho aqui, fui morar no pensionato de freiras, eu fiz cursinho ali na Avenida Paulista e morava na Consolação, e morava no pensionato de freiras só com mulheres. Foi muito bom. Eu tinha muitas amigas também na infância, mas tinha amigas irmãs, assim, então pra mim foi muito bom aquela convivência no pensionato, foi um momento muito bacana da minha vida. E depois eu passei na faculdade em Minas. Eu cheguei a passar no estado do Rio, fiquei um mês, mas depois eu fui pra Minas e eu fiz faculdade também pertinho do Sul de Minas, pertinho de Cruzeiro, uma cidade que se chama Itajubá, não sei se você já ouviu falar. E como era uma faculdade pequena, não era uma universidade, era uma faculdade, ali também nasceu uma grande irmandade, né, como a gente fala “o melhor período da sua vida é o período da faculdade”, hoje aos 53 eu não sei. Hoje aos 53 o melhor período da vida é o hoje, é o hoje, né; mas por muitos anos ficou isso pra mim, que o melhor período da vida foi o período da faculdade. E ali, além de tá fazendo faculdade que eu queria, eu gostava de estudar, não era uma dificuldade pra mim, mas eu gostava muito dos amigos, então gostava muito de aproveitar. Então eu lembro que no primeiro pro segundo ano de faculdade, eu tinha um carro, eu peguei esse carro, pus três amigas e nós fomos dali, de Cruzeiro, até Porto Seguro de carro, entendeu?! Então a gente fazia aventuras assim, então pra mim sempre foi importante o estudo, o trabalho, mas pra mim é fundamental o lazer. Então você vai vendo que é desde pequena, e dessa história de infância. Trabalhava-se muito, mas final de semana ia pra chácara, então tinha isso. E ali na faculdade eu já percebi que eu gostava da saúde da mulher. No quarto ano de faculdade eu saía de Itajubá, que é Minas, e vinha pra São Paulo dar plantão na Casa Maternal aqui, isso no quarto ano. No terceiro ano de faculdade, a gente tinha Psicologia Médica, era um ano de Psicologia Médica. Eu gostei tanto que eu fui monitora no quarto ano, no quinto ano. Então a gente vai vendo que, o que eu tenho hoje, vem da Ana Paula muito jovem, né. E quando eu vejo a minha origem, da minha família de origem, por ser a única mulher e talvez a mais velha, eu era cuidadora. Quando eu fui ver as fotos, eu vi as fotos eu cuidando. Então, assim, meu irmão mais novo é 10 anos mais novo do que eu. Então quando eu entrei na faculdade eu era uma adolescente e ele era uma criança. Então, assim, ser cuidadora é minha essência. Eu acho que ser de uma mãe cuidadora, também, né. E adolescência não tive crises também, não foi uma adolescência difícil. Foi uma adolescência que eu tinha que lutar, no sentido: eu queria sair de mini saia, meu pai não deixava, eu saía de casa enrolava a saia e saía de mini saia, entendeu, de muita determinação, de muita segurança, assim, eu sabia muito o que eu queria. E até esse momento, eu fui conhecer meu marido bem depois de formada, o casamento foi depois disso, eu acredito que foram períodos de vida com muita saúde e pouca dificuldade. Tirando aqueles momentos de falência da família, exatamente aquilo que a gente tava falando no começo, quando tem a falência é muito difícil, mas depois você sabe que você sobrevive com menos, e você tem a união de todo mundo, é um grande presente. Então não foram momentos que abalaram muito a minha saúde.
P1 – E você falou que você dá muita importância pros amigos, e na época de escola, no primário, como que era? Como era seu relacionamento, como era sua escola?
R – Ai, a escola... que memória deliciosa. Era uma escola pública em Cruzeiro, as carteiras eram duplas, então isso facilitava muito. Você não tinha carteira individual, você sentava você e um coleguinha. Então, assim, foi uma infância bem rica de amizade. Eu tinha uma professora do pré-primário, dona Alice nunca vou esquecer, as minhas melhores amigas daquela época são minhas melhores amigas hoje, entendeu, tem uma amiga que eu chamo de irmã, porque como eu sempre queria essa irmãzinha que não vinha, quando a gente viajava eu sempre levava amiga, e essa amiga que estudou comigo, que é a Cri, que é a minha irmã até hoje, então amizade era de muita amizade, tinha uma coisa bem coletiva. E essa carteira, uma memória que eu tenho, essa carteira dupla, né, e eu tinha um coleguinha que eu gostava de sentar com esse coleguinha, só que não podia, você podia sentar só com as coleguinhas - eu to falando aí do começo da década de 1970, né, você só podia sentar com as coleguinhas – e a minha professora do pré-primário, a dona Alice, falava assim “vocês dois não têm jeito”, porque a gente tentava sentar nessa carteirinha de escola junto, e foi um namorado de adolescência. Isso foi no pré-primário, a gente não tinha nem seis anos, e foi um namorado que eu tive na adolescência. Então na adolescência também, além dos amigos, eu tive relacionamento afetivo muito saudável, né, o que eu escuto muito hoje, eu ativo muito essa escuta, o quanto é importante você relacionar com pessoas saudáveis, o quanto é saudável pra sua saúde emocional, física, você ter relacionamentos saudáveis. Então eu acho que esse contexto familiar, escola pequena, tudo isso, me favoreceu muito.
P1 – Era Alice a professora? E por que te marcou? Por que você lembra dela?
R – Eu lembro porque foi o primeiro ano na escola, eu acho que eu adorei. Eu adorei. Era pré-primário, lembra disso? Pré-primário era antes do primeiro. Você não ia pra escola antes disso, e como eu acho que eu queria amiguinha, brincar com amiguinha, foi a primeira oportunidade que eu tive de sair do contexto ali familiar e ir pra escola, né, porque não tinha esse negócio de educação infantil, de ir pra escola com dois anos de idade, não, era o pré-primário. Então me marcou muito acho que por ser o primeiro momento, e ter sido muito feliz nesse primeiro momento, em termos de amizade mesmo, de coleguinhas. Lembrando, esse ano mesmo agora na pandemia, eu fiz o parto de uma paciente que é de Cruzeiro, filha de um colega dessa turminha aí. Muito bacana, muito bacana! E a gente lembrou dessas histórias.
P1 – E na adolescência, você morou até os 16, como foi quando você começou a sair, a ter suas primeiras saídas sozinha, sem os pais?
R – Libertador. Adorava, adorava, adorava. Eu ia muito pra Ubatuba, é perto, né, a cidade mais maravilhosa perto de Cruzeiro é Ubatuba, então a gente passava muitas férias lá. Meu pai tinha um senhor que era um amigo dele, que gostava muito de sair, então quando ia sair... e eu sempre levava uma amiga pra Ubatuba. Quando a gente ia sair, ele meio tomava conta, ele ficava de longe, meio olhando, porque a gente era muito nova mesmo, talvez 13 anos, então assim, sair – e sair sexta, sair sábado, domingo não tinha muito essa de sair não, porque segunda-feira tinha que acordar cedo pra estudar – mas sair sexta, sair sábado, era uma coisa que fez parte da minha adolescência. E sair era ficar na rua, né, a gente sentava na rua, eu lembro a gente sentando na rua. A gente não era adolescente de boteco, de bar, não tinha isso. Eu acho que também não tinha dinheiro, financeiramente falando, assim, ninguém pagava conta de restaurante. A gente ficava muito batendo papo na rua ou na praia em Ubatuba. Então era uma adolescência, que o vínculo é extrafamiliar, né, te tiraram daquilo, te coloca nas suas escolhas, você faz as escolhas ali. Então esse período da adolescência eu percebo que eu me empoderei, porque eu tinha que conquistar. Pro meu pai deixar sair eu tinha que depois ajustar a saia, tinha sempre alguém supervisionado. Na minha família, na minha casa, a gente tinha duas secretárias do lar, que é da família, uma que eu sempre chamei de segunda mãe, uma outra que morava dentro de casa a vida toda. Ela, a Vilma, me levava para o carnaval, então fazer bloquinho de carnaval, e era um bando de amiga, ela tinha a mesma fantasia da gente, ela fazia parte do bloquinho, porque daí a mãe de todas as outras amigas deixava: “a Vilma vai, então pode ir”. Então eu tinha bastante liberdade mas eu tinha que conquistar, porque eu tinha uma supervisão também, hoje eu vejo que é uma supervisão grande, sempre tinha alguém de olho ali. Acho que por ser a primeira. Pros meus irmãos, pros meninos, foi tudo mais fácil.
P1 – E os primeiros namorados?
R – Então, o primeiro namorado foi esse amiguinho que ficava na carteirinha ali do pré-primário, que foi da minha cidade. Muito bacana, e essa minha professora falava “tem que desgrudar vocês dois, não pode, tem que ser menininha com menininha, menininho com menininho”. Então meu primeiro namorado, que foi um namoro de adolescência, foi longo, foi um pouco mais de três anos, então eu fiquei a adolescência toda com esse namorado, que é uma pessoa maravilhosa, que é dessa cidade. A gente namorou adolescência toda, toda. Foi com ele que aprendi a andar de moto, foi com ele que eu fui para as grandes aventuras, mas era um namoro, assim, de turma, nunca era eu e ele, era essa minha melhor amiga com um amigo, o outro com primo, era sempre assim, bem típico de cidade do interior mesmo, mas bem saudável, bem bacana. Então já tive um primeiro namorado de longo prazo, se você for pensar, né, que hoje os adolescentes nem querem namorar, é só ficante, eu já comecei a namorar e foi bastante tempo. Quando eu entrei na faculdade, eu tava namorando, eu nunca vou esquecer, assim, que ele super me apoiou, ficou ali do lado, prestava os vestibulares que eu prestava, eu acho que a gente tinha aquele romantismo de trilhar o caminho juntos, mas quando eu entrei na faculdade, uma coisa que não vai sair assim da minha cabeça é: “você vai ser médica, tudo, mas você não vai ficar dando plantão, né”, entendeu? Quando eu entrei na faculdade eu falei assim “eu vou casar com a medicina”, entendeu, “então não adianta eu ter relacionamentos longos, eu vou casar com a medicina”. Daí o primeiro ano de faculdade foi o ano que eu me apaixonei pela medicina, me apaixonei no ano mais difícil, primeiro ano é o ano mais difícil: anatomia é uma matéria muito difícil, é muito tempo de estudo, é ficar longe de casa, mas eu me apaixonei e ali eu já falei assim... ali eu virei uma ficante [risos], falei assim: “não, é a medicina mesmo”. E também tive um namorado de turma, que era meu colega de turma, também bastante tempo. Então no meio ali da faculdade eu tive um namorado que, tanto esse da adolescência quanto esse da faculdade, eu percebo que foram grandes amigos. Grandes amigos. Que a gente terminou, esse da faculdade, a gente terminou a faculdade juntos, se você olhar meu álbum – a gente foi ver fotos, né – meu álbum de formatura tem muito a presença dele ali. E quando a gente termina a faculdade de medicina, a gente presta Residência. Na época, prestar prova pra Residência é talvez mais difícil do que prestar o vestibular pra medicina, e eu lembro que ele passou primeiro, eu não tinha passado ainda, ele poderia estar de férias curtindo, ele ficou sentadinho estudando comigo. Então hoje eu percebo que foram grandes paixões, amores, mas mais ainda amizade. Mais ainda do que tudo, eram grandes amigos.
P1 – E quando você começou a descobrir a sexualidade? Começou a ter relação, como que foi isso?
R – Eu acho que é engraçado que ter a primeira relação sexual não necessariamente é aí que começou a sua sexualidade, né? Então eu acho que a minha sexualidade foi com esse namoro na adolescência, não propriamente dito a primeira relação, mas é você sentir o primeiro desejo, você conhecer que o corpo do outro é muito diferente do seu, né, de você ter estratégias de poder ficar sozinhos, na minha cidade a gente namorava dentro do carro. E som, né, tinha som de rádio. Eu lembro... a coisa mais gostosa do mundo era ficar dentro carro. Eu lembro uma vez que acabou a bateria, a gente teve que empurrar o carro de tanto tempo dentro do carro com o som ligado. Então eu não ponho o marco como a primeira relação sexual a iniciação da sexualidade não, né? A iniciação da sexualidade foi bem antes e foi bem lenta, bem lenta. Como tinha muita amizade envolvida, a coisa foi bem lenta. Então acho que o namorado muito amigo respeita muito a menina, né, então foi muito no meu time. Então a minha iniciação sexual foi na adolescência, mas as primeiras relações já foram na época da faculdade, que foi um namorado um pouco mais velho, que também era dessa cidade, era um médico que também era dessa cidade, e foi ali, então, a sexualidade ativa. Já foi praticamente adulta, na faculdade mesmo.
P1 – E você já sabia, já entendia sobre anticoncepcional? Como era a prevenção?
R – Entendia. Entendia. E hoje eu entendo, lógico que hoje eu entendo melhor, mas hoje eu entendo que uma coisa que não podia acontecer com a Ana Paula ali, estudante, qualquer fase que fosse, era uma gravidez. Uma coisa que eu não ia me permitir era uma gravidez não desejada, ou uma gravidez ainda estudante. Então era uma coisa que eu era... nossa, muito descolada. Nessa cidade em Itajubá eu ia no ginecologista, não tinha dificuldade nenhuma disso. Eu era bem autônoma nisso, então, aquela menina muito jovem, o medo que ela tinha era de uma gravidez. A gente não tinha muita preocupação com a camisinha, porque a questão da importância grandemente da camisinha veio na década de 1980/Aids, né, final da década de 1980, começo da década de 1990. Eu entrei na faculdade em 1986, não tinha muito isso não, mas eu entrei com essa responsabilidade total, total de que... e era pílula. O que que tinha de anticoncepcional? Não se falava muito de DIU, o DIU tinha um preconceito enorme, o DIU levava aquele tabu de ser abortivo, e o anticoncepcional era de fácil acesso. Tinha muito isso: a amiga tomou, você toma. Então como é um medicamento que não precisa de prescrição, a gente tinha muito fácil acesso. Então a prevenção da gravidez era o que mais me preocupava. Não era DST, infecções sexualmente transmissíveis, não, isso foi num tempo já praticamente formada já.
P1 – E você tomava? Você tinha alguma alteração no corpo?
R – Tomava. Tomava um anticoncepcional – não sei se eu posso falar o nome dele aqui: Diane – tomava o Diane, que era um anticoncepcional com dois hormônios, e um deles melhorava muito a pele. Então ele tinha um benefício enorme de me proteger e me deixava mais bonita. Então eu ficava muito melhor tomando ele do que sem ele, então eu tinha esse benefício secundário também. Tomei muitos anos, talvez daí por uma questão também estética, de deixar o ciclo bem regular, de diminuir cólica, não tinha esse lance de TPM (tensão pré menstrual), não tinha essa percepção de TPM, e ele deixava a pele, o cabelo bem bacana, então ele foi um grande amigo meu ali, mas também não era autoprescrição, né, assim, eu passava na gineco na minha cidade lá. E olha aqui uma coisa que você tá fazendo eu lembrar: eu falava que ia comprar um livro, eu pedia verba pra comprar o livro e era pra pagar a consulta [risos]. Eu falava “eu preciso de um livro X”, porque naquela época você comprava livro e mais livro, não tinha como estudar virtual, era só livro, e eu pagava esse médico na cidade que eu estudava com a verba do livro.
P1 – E nessa época de faculdade, tem alguma história mais marcante, assim, pra você?
R – Olha, pra mim... a gente morou em república, então era uma cidade pequena, a gente tinha condição de morar numa república, a média de meninas da minha república eram seis, então eram pessoas de vários lugares, com vários contextos de família, então pra mim foi uma experiência de troca absurda, e eu percebi que antes de morar nessa república com as minhas amigas – que muitas delas são irmãs até hoje – foi uma experiência de me tirar de uma bolha. Eu vivia numa bolha, né, eu lembro que a fronteira que eu tinha era o estado, tinha estado São Paulo, estado do Rio, tinha Brasil, eu não passava dessa fronteira. Não passava. E eu vivia muito numa bolha. Quando você vai ter experiência de morar em república, você vai ter experiência com outras pessoas de outras famílias, outras amigas. Eu aprendi muito com uma amiga judia, muito, aprendi muito com essa amiga. Me despertou muito a vontade de ler sobre religião, porque imagina, não existia isso, “você é católica...”, é isso, é aquilo que te colocam ali. A gente tinha muita experiência de estudo, eu tinha um grupo de amigas muito forte ali, só que tinha as que gostavam de estudar à noite, eu sou da noite – tanto que eu gosto de trabalhar à noite também até hoje – então, eu tinha uma amiga que nós duas éramos da noite. Nossa, estudava, tomava café, fazia bolo, então aquelas conversas ali foram me encantando no sentido de “eu quero entender um pouco mais o cérebro de uma mulher, eu quero entender a saúde de uma mulher, eu quero entender tudo isso”. Momentos marcantes é que essa super amiga teve um quadro depressivo importante, aí você vai vendo o quanto é fundamental você estar junto, você escutar, daí volta naquela questão da escuta, né. E, essas amigas, inclusive eu encontrei na semana passada, foram as primeiras que eu vi na quarentena, então assim, virou família. E eu acho que toda aquela busca que eu tinha da irmãzinha, irmãzinha, irmãzinha, a vida me deu várias irmãs, então essas foram as situações mais marcantes. E, como era uma faculdade pequena, a gente tinha um sonho, uma possibilidade de fazer o último ano numa faculdade maior, medicina são seis anos, então você fazia cinco anos em Itajubá e você tinha a chance de ir pra Belo Horizonte fazendo as ciências médicas, que é o último, o último ano era muito mais estágio, você fazer na Santa Casa de BH, e eu lutei muito por essa possibilidade, e eu fui. E deixei amigas que ficaram aqui, isso também foi uma dicotomia. Foi assim... toda escolha que você faz, você com certeza tem uma perda, então a melhor melhor amiga que a vida toda dividiu o quarto comigo, Adriana, ela ficou, as outras foram. Aí eu tenho muito essa noção de que a escolha... eu sempre escolho primeiro que eu vou atrás do meu sonho, eu sei as perdas que eu vou ter, mas se você rega isso... Essa que eu fui a semana passada é essa amiga que ficou. Então, a faculdade que eu fiz tinha isso, tinha essa possibilidade, não era todo mundo que ia, mas tinha essa possibilidade. Eu cheguei em BH, eu me apaixonei por aquela cidade, e aí eu fiquei mais dois anos lá fazendo residência, eu não quis mais saber de voltar pra São Paulo, não quis mais saber de voltar pra Cruzeiro, ali eu tinha certeza que eu queria de BH pra mais. Eu me apaixonei pela cidade, e o que foi muito apaixonante pra mim foi uma estrutura hospitalar maior, complexidade e alto risco, eu adorava coisa muito difícil, entendeu, o caso quanto mais difícil fosse, melhor pra mim seria. E todo esse período com muita saúde, muita saúde. Eu fiquei mais dois anos em Belo Horizonte fazendo residência, daí depois desses dois anos eu vim pra São Paulo, fiquei no HC fazendo alto risco um ano, pra voltar pra minha cidade. Cheguei a dar plantão lá de domingo. Eu lembro uma Copa do Mundo que o Brasil ganhou, a Itália deu um chute pra fora, se eu não me engano foi 1994, esse jogo eu assisti sozinha numa salinha de conforto médico na Santa Casa da minha cidade, porque eu tinha isso: “vou voltar”, mas no fundo eu sabia que eu ia fazer só essa experiência mas eu não iria voltar. Daí esse mesmo encantamento que eu tive com BH eu tive 20 vezes mais com a estrutura de São Paulo. A pandemia agora está me fazendo repensar; pela primeira vez na minha vida, foi quando eu fiquei no confinamento, no isolamento da pandemia, que eu vi o quanto eu queria ficar perto dos meus irmãos e da minha mãe, que meu pai já é falecido. Então foi a primeira vez que eu “hum... pode ser que quando eu deixar de ser obstetra, eu posso voltar pra minha cidade”, mas foi a primeira vez, e eu vou fazer 30 anos de formada o ano que vem.
P1 – E como é que você começou sua carreira profissional?
R – Então, em Belo Horizonte, também na residência, eu tive um professor importante, Zé Maria, ele era um bom sexólogo. Ele abriu muito o debate sobre isso, e durante a faculdade, quando eu gostei da psicologia médica que eu fiquei fazendo outros anos, a gente fazia rodas – que seria hoje uma roda de conversa, mas é presencial – o diretor da faculdade ele mediava essa roda, o Kleber, ele era psiquiatra. Eu fui vendo que esses grandes mestres foram não me seduzindo, mas foram dividindo conhecimento que me seduzia. Então a minha carreira primeiro foi obstetra, bem de alto risco, ginecologista, eu me formei em 1991. Esses primeiros – então vou pros ciclos de sete anos – esses primeiros sete anos eu fui vendo que quem foi me conduzindo foram minhas pacientes. Como eu gostava muito de escutar, eu escutava as queixas, e eu fui percebendo que maioria das vezes vem por uma doença, que era um tratamento e uma cura, mas muitas delas tinham dentro da consulta um espaço de fala, pra isso você tem que dar um espaço de escuta, e eu fui vendo que as mulheres – isso a gente tá chegando nos anos 2000 – as mulher estavam fazendo uma transição, elas não queriam fazer só preventivo, elas queriam entender porque que elas não estavam tendo desejo, elas queriam entender por que é que elas não estavam chegando na sua plenitude. Ali, e foram as próprias pacientes, elas foram pedindo e eu fui descobrindo com elas, ali foi um divisor de águas pra mim. Então as minhas pacientes que definem o que eu sou hoje, sem dúvida nenhuma. Ali eu falei: “eu vou estudar sexualidade humana”, daí eu fiz uma especialização, também com um grande mestre, Nelson Bitiez, uma pessoa muito importante na minha vida, eu fiz uma especialização, foi em 2000 isso, então eu já tinha quase dez anos de formada. E a partir daquele momento eu falei: “eu não consigo atender de 15 em 15 minutos, eu não consigo atender de 20 em 20 minutos. A minha consulta tem que ser mais longa, porque você vai na intimidade muito profunda.” Naquele primeiro momento como sexóloga, eu escutava e atendia muitas disfunções, as mulheres têm muitas disfunções na área da sexualidade, de desejo mesmo, mas eu era patologista, digamos assim, cuidava da queixa, da patologia. Dos anos 2000 pra 2010, eu também percebi uma transição das mulheres. Elas tinham passado um pouco desse estágio de “quero entender uma patologia, ter um diagnóstico” não, “eu quero ter mais desejo, eu quero ter mais intimidade, eu quero ter mais troca, eu quero enriquecer em termos de comportamento e amor”. Daí eu entrei de cabeça na saúde da mulher, né, que a saúde da mulher vai muito além da ausência de patologias. É uma questão de bem-estar e uma questão de qualidade de vida. Daí eu entrei num outro processo, e bem atualmente, depois dos 25 anos de formada, eu estou migrando pra medicina integrativa, que é uma medicina pra melhor equilíbrio corpo e mente. Então eu fui vendo que foram minhas pacientes, mas a minha vida pessoal também, porque nesses primeiros anos aí, eu conheci meu marido, eu conheci ele na praia, em Ubatuba no réveillon, foi bem apaixonante, a gente ficou um ano juntos e a gente tinha uma vida muito, muito diferente, eu já conheci ele, que ele trabalhava com esporte, ele já me conheceu médica. A vida era muito diferente: enquanto eu ficava de jaleco branco, num ambiente fechada, sem cor, né, sem cor, pálida, e cuidando só de patologia, de enfermidades, de dificuldades, ele ficava... não que fosse um ambiente fácil também, né, porque competição... mas ao ar livre, jogo, era muito diferente. Quando deu mais ou menos um ano de namoro eu falei “não vou dar conta desse cara, eu não vou dar conta dessa diferença, não vou dar conta disso”, tentei sair fora. Não deu certo, quando tem que ser, né, não consegui sair fora, a gente voltou rapidamente. Quando voltei já sabia que ia casar com ele, foi muito assim. Com quatro anos de namoro a gente casou, e ele me mostrou o quanto é importante o bem-estar, a vivência. Enquanto eu ficava no centro cirúrgico, que é um ambiente assim: você tem o vestiário, você tira a roupinha, você se paramenta, depois tem todo aquele preparo pra cirurgia, que é aquela conversa, aquela troca dos colegas. Enquanto ali é ambiente de... pode ser até de disputa, como era nos campeonatos, mas um ambiente de “ah, isso não deu certo, isso eu não quero”, de reclamações, que “o material cirúrgico não tá adequado, que tá atrasado”... e o meu marido foi me mostrando que é possível você viver num ambiente com menos reclamações, então pra mim foi um aprendizado muito grande. E quando a gente resolveu casar, a gente fez um pacto antes de casar. E esse pacto era, não sei se eu quero ter filho, eu falei pra ele: “eu não sei se eu quero ter filho”, ele tem um irmão que tem paralisia cerebral, ele falou: “você tem que saber que um dia vou cuidar do meu irmão”, então foi bem um pacto, mas a base principal desse pacto foi “eu vou trabalhar como eu quero”, entendeu, então não tem essa de não vou dar plantão, não tinha como tosar minhas asinhas não. E foi bem bacana, porque isso foi um pacto antes da gente casar. A gente casou sabendo disso. Como a gente está falando desses ciclos, quando eu cheguei aos 35 anos, eu casei com 31, quando eu cheguei aos 35 anos, eu falei: “eu acho que é a minha vez de gestar, de sentir o que é isso, de gerar”. Mas eu queria gestar mesmo, eu queria ficar grande, eu queria ficar barriguda, entendeu, queria sentir o bebê mexendo, e queria muito amamentar. Eu acho que assim, a gente pensa muito na gestação – tem que se pensar – pensa e super mega valoriza o parto – tem que se valorizar – mas a gestação são mais ou menos 40 semanas, o parto - eu fiz um recentemente de 30 horas – mas são algumas horas, o amamentar ele vai o prolongar. E daí aconteceu a gravidez, depois, eu fiquei grávida com 36 anos. Engravidei com 36 anos. Nessa época eu tava muito sozinha em São Paulo, meu marido trabalhava também no Rio. Quando eu tava lá mais ou menos que pelo sexto mês de gestação, eu falei: “não dá pra ficar sozinha”, que até então eu achava eu um pouco super-herói, hoje eu tenho consciência, uma workaholic, uma super-heroi, um lobo solitário, entendeu, eu tenho bastante consciência disso. Quando a barriga foi crescendo, vai tendo uma limitação física, eu falei: “não dá mais pra ficar longe assim não, bebê vai nascer, eu quero muito amamentar”, daí a gente pegou uma folha de papel, pôs quanto era a hora trabalhada de cada um, a minha hora trabalhada naquele momento era maior. A gente fez também um segundo pacto, que foi: “você me ajuda, você fica comigo” – a gente sempre quis ter um filho só – “a gente quer criar esse filhos os dois, a gente não quer delegar, né, você me ajuda, você fica comigo, enquanto eu tiver amamentando você me ajuda a amamentar?” E foi assim que a gente fez, entendeu, eu tinha que trabalhar logo, eu tinha que parir, eu trabalhei até às nove horas da noite, minha bolsa estourou às 4h30, meu filho nasceu às 6h30. E com dez dias de parto eu fiz um parto, entendeu? E como eu tinha que fazer esse processo, eu precisava fazer isso em conjunto, eu precisava fazer isso com ele, então a gente aprendeu a dar banho juntos, ele aprendeu a dar banho também, e ele dava banho. E como eu amamentava muito à noite, eu amamentava e ele cuidava do bebê, né, então assim, a gente foi pai e mãe juntos bastante tempo do Rodrigo. E a sensação que eu tenho de mulher, de pensar na saúde da mulher, da amamentação, é muito grande. Porque amamentação, além daquele vínculo mãe e filho, tem uma questão muito grande hipoalergênica, que é importante pra mim por ser asmática, isso diminui pro meu filho. Então não amamentei sozinha, literalmente não, que eu dava o peito e entregava ele pro pai. Tanto que quando eu voltei pro consultório, bem pouquinho tempo pós-parto, eu atendia uma paciente, ele levava o Rodrigo, eu amamentava e entregava ele pro pai. E assim a gente foi indo, trilhando o caminho de cuidar do filho sozinho, porque a gente não tinha família aqui, então, como a família do interior dele também é de Rio Claro, era nós dois e o nosso filho, e a minha medicina, porque eu sou bem sincera, ela tomou um espaço muito grande. Eu comecei a repensar esse espaço depois de dificuldades muito grandes familiares, problemas familiares muito grandes, e o meu filho crescendo e a gente vendo que a vida é muito curta mesmo, literalmente curta, e que ela é feita de escolha, e a escolha é totalmente sua. Exatamente 12 anos atrás – eu sou extremamente grudada nesses quatro irmãos, eu sou assim... não faço nenhum negócio sem falar com eles, a gente é muito grudado, os quatro são muito juntos. Eles se encontram dando selinho na boca, entendeu? E eu sou muito, muito, muito – 12 anos atrás, em 48 horas o meu irmão, o quarto, o Breno, em 48 horas ele parou de andar, falar e respirar, ele teve uma doença gravíssima, chamada Síndrome de Aden, que é uma síndrome desmielinizante, é como se os neurônios não fizessem mais sinapse, ele perdeu a mielina que reveste os neurônios, um neurônio não conversava com outro, e ele muito jovem, muito jovem, e aonde que ele foi internar? No hospital que eu trabalhava. Aonde que ele ficou? Dentro do hospital que eu ficava o tempo todo. E ele parou de respirar, sorte que ele parou de respirar dentro da UTI, então ele foi entubado muito rapidamente, mas ele ficou em estado catatônico, estado grave muito tempo, com muita hipótese diagnóstica, diagnóstico muito difícil de ser feito, e ficou naquele leito da UTI... UTI de hospital é assim: o paciente que ficar mais próximo daquela bancada do médico é o paciente mais grave, e o Breno ficou assim muitos dias. E como irmã, e como médica daquela instituição, que foi o São Camilo da Pompéia, eu tinha acesso, então eu podia entrar e sair a qualquer hora. Só que eu entrava, não era meu irmão, ele respirava por aparelho, tudo era aparelho, nutria por sonda, ele ficou em estado vegetativo mesmo. Esse período, foi o período de maior dor pra mim, e eu só fui ter consciência da maior dor quando ela foi passando, ou seja, quando ele foi melhorando, porque eu fiquei semanas ali dentro ouvindo: “é catastrófico, ele não sai mais desses aparelhos, ele nunca mais vai sair daqui”. Eu tinha uma médica, que é uma amiga, que é neurologista, que falou: “já é tão grave assim? Eu vou tomar uma conduta ousada, você assina comigo essa conduta ousada?” Eu falei: “assino”. E ela tomou uma conduta ousada, e ele não tem lesão, ele não tem sequela. E hoje ele tem uma filha que tem o nome dela, chama Maristela. Mas naquele período já tinha celular. Tinha um toque do celular – quando chama, né, tem um toque – esse som do celular, eu percebia que quando eu escutava esse som tocando, me deixava taquicárdica, aumentava a minha frequência cardíaca. Então, o meu irmão ficou na UTI muito tempo, muito tempo, e eu era primeira a receber as notícias, mais de 80% das vezes eram notícias muito difíceis, e os colegas ligavam direto pra mim, então o celular tocava, aquele barulhinho do celular eu fui percebendo que, independente se a ligação fosse do hospital ou de algum colega, fosse paciente – paciente liga muito, né – quando eu escutava aquele barulhinho, aquele barulhinho me punha num estado diferente, aumentava minha frequência cardíaca, era eu escutar aquele barulho, minha frequência cardíaca aumentava, e a minha respiração também ficava um pouco diferente, além disso, eu sentia que eu ia prum outro estado, de tipo assim “vem bomba, né”. Era sempre assim, e muitas vezes a ligação era da família, ou dos amigos, ou dos pacientes, mas aquele barulho foi me transformando algumas reações em mim, daí eu fui percebendo que naquele momento eu tava muito adrenérgica, era um mecanismo de defesa, de luta, então estava numa fase da minha vida – isso que eu já tinha 40 anos – até os 40 anos, eu tive uma luta, uma ansiedade adaptativa, de situações que me levou muito pra frente, mas ali naquele momento, aquela sensação de que você tem que lutar, era uma sensação de que eu estava no meu eixo, e eu percebi muito isso com o barulho do celular. Depois eu fui percebendo distúrbio do sono, alteração de apetite, eu não chegava a ter uma alteração de humor porque a tristeza era muito grande, então eu não via muito alteração de humor, mas eu percebia ataque-apneia, que é aquela respiração muito rápida, daí eu falava “Ana Paula, obviamente, você tá passando por uma dificuldade enorme”, eu não sabia se eu ia chegar lá e encontrar meu irmão vivo ou não, era sempre assim, nunca você tinha essa certeza, mas eu fui subestimando o que meu corpo estava contando pra mim, eu fui subestimado, eu fui passando todo aquele sintoma, tudo aquilo que eu tava sentindo, pruma história, eu não fui lendo o meu corpo, eu não fui enxergando os sinais que ele estava dando. Nesse período da minha vida eu praticamente trabalhava, ficava o tempo todo na UTI, voltava pra casa, comia e dormia, dormia super mal e comia super mal, então não dava valor pra isso. Isso foram semanas. Depois ele se recuperou, quando ele tava se recuperando, ele pegou todas as infecções hospitalares por ser um paciente de muito tempo de UTI, de ter traqueostomia, chegou um ponto que os colegas falaram assim: “se ele ficar aqui ele vai morrer de outros problemas, o neurológico dele já melhorou”. Daí eu tinha que montar um homecare na minha casa, eu morava num apartamento de dois quartos, então eu tirei meu filho do quarto dele e pus no meu quarto e montei pro Breno um homecare ali, então tudo que ele tava fazendo no hospital ele tava fazendo ali. Então eu transferi também a minha vida do hospital pra dentro de casa até ele poder ter condições de voltar pra Cruzeiro, que é a cidade que ele mora até hoje. E eu achei que estava tudo ok, que aquilo era normal, que era tranquilo. Passou, o Breno graças a Deus se recuperou, ficou pleno, voltou pra cidade dele. Não deu um ano, o meu pai foi diagnosticado com demência, e uma demência muito aguda. Só que eu assisti uma cena: quando o Breno foi para a UTI, meu pai e minha mãe estavam viajando, então meu pai e minha mãe saíram de casa pra viajar, deixaram o filho extremamente saudável, e receberam um telefonema: “vem pra UTI que seu filho está muito grave”, e eu estava dentro da UTI, do lado do Breno, quando meu pai entrou, meus pais entraram, mas tinha que entrar um por vez. Quando meu pai entrou, que ele viu o filho ali, ele chegou perto do leito do Breno, ele ajoelhou no chão da UTI – que não poderia muito fazer isso, mas ele ajoelhou – levantou as duas mãozinhas assim e conversou com Deus, foi uma coisa assim. Ele conversou, ele falou que ele era um homem muito feliz, que ele já tinha tido tudo na vida, os filhos, mulher, tudo isso, e que era pra trocar: “troca, dá meu filho de volta e eu fico no lugar dele”. Eu assisti essa cena. Eu fui saber que essa cena me marcou muito depois, ali no momento foi uma cena até bonita de assistir, né, de um pai. Aí, o Breno se recuperou, não deu um ano meu pai ficou demente, e a demência dele foi muito rápida, não deu dois anos ele foi parar na mesma UTI, do hospital que eu trabalhava, no estado neurológico gravíssimo, no mesmo leito que o Breno tava. Quando eu vi aquela cena – e eu que podia entrar o tempo todo – voltou tudo aquilo do barulho do celular, eu não precisava mais escutar o barulho do celular, eu escutava aquele barulhinho de UTI, o barulhinho dos aparelhinhos – daí tudo aquilo, que eu saía totalmente do meu eixo. Daí eu percebi: “Ana Paula, você ficou doente, você teve um transtorno de ansiedade, esse transtorno você foi empurrando com a barriga, mas agora não dá mais”, mas era uma frequência cardíaca tão alta, e eu também fazia isso dormindo, respiratória tão alta, boca seca, parecia que eu ia ser abduzida, não cheguei a ter aqueles sintomas de pânico, mas eu vi que eu estava tendo sintomas de um estresse pós traumático mais de uma crise de ansiedade, que eu havia desenvolvido algo - que a gente tá falando da diferença de dois anos – dois anos atrás, e foi empurrando com a barriga, não fui no médico, pra ser sincera. Eu fui uma médica que eu não fui ao médico. Quando eu vi meu pai ali, e passei mais mal ainda, eu falei “eu preciso de ajuda”. Daí eu fui atrás de um psiquiatra, daí eu fui atrás de um terapeuta, que foi a melhor coisa que eu fiz na vida foi ter ido no médico, entendeu, porque acho que o médico tem muita resistência, pedi literalmente ajuda e tive a noção do quanto eu tava tendo um transtorno de ansiedade e o quanto é importante você tratar isso. Mulher tem mais transtorno de ansiedade do que homem, e o quanto é importante eu tratar isso, e nesse momento eu não estava no climatério ainda, então eu tinha uma certa consciência que se eu não cuidasse daquilo naquele momento, depois seria pior. E meu pai faleceu, nessa internação meu pai faleceu. Daí começou choro, choro, choro, distúrbio do sono, choro, e em nenhum momento eu parei de trabalhar, nenhum momento, porque no trabalho era o melhor momento, era a situação que eu sentia melhor. Eu só já não comecei a conseguir escutar aquele barulho do celular, e entrar naquele hospital que eu tinha trabalhado 20 anos e que ali eu tinha vivido dores profundas – com paciente também eu tinha vivido, mas com as minhas pacientes graças a Deus os resultados eram sempre positivos, e ali com a família não tanto – era muito difícil, a hora que entrava na garagem do hospital já começava a frequência cardíaca a aumentar. E quando meu pai já tinha falecido começou os choros. O choro me aliviava. Se eu chorasse, chorasse, chorasse, eu conseguia dormir, se eu não chorasse eu tinha distúrbio do sono. Imagina você não dormir e ir trabalhar no dia seguinte. Daí um dia meu filho falou pra mim assim: “mãe, por que você está chorando tanto?” Eu falei “Rodrigo, eu tô de luto – ele tinha sete aninhos - a mamãe está de luto e eu vou te explicar um pouco do que é o luto. O luto é um processo que essa fase é mais difícil, o primeiro ano é mais difícil, dura mais ou menos uns dois anos, mas vai passar”. Ele arregalou o olho desse tamanho pra mim e falou “mãe, você vai chorar até meus nove anos?” Daí que eu vi que pra mim, dois anos tinha um sentido. Pra ele, dois anos era totalmente diferente. Quando eu escutei meu filho falar assim “você vai chorar até os meus nove anos?” Eu falei “chega, agora...” – que eu fui no psiquiatra, psicólogo, mas não queria remédio né, essa é a verdade verdadeira – falei “não, agora eu vou voltar no psiquiatra e o que ele falar pra mim, eu vou fazer”, entendeu, foi, e foi assim. Foi assim que eu comecei a me cuidar, então eu não tenho dúvida de que eu vivi um estresse pós traumático extremamente mascarado por ser workaholic, e que se eu fosse uma pessoa que vivesse sozinha, dormisse sozinha, acordasse sozinha, talvez eu sofresse mais tempo. Esse tratamento, não só psicoterapia, como “amigoterapia”, “famíliaterapia”, esse conjunto todo, filho importantíssimo, marido importante, mas aceitar que você tem um problema psiquiátrico e que você precisa cuidar, né, e que você precisa aceitar. Porque se eu tivesse hipertensa eu aceitaria um hipertensivo, qual é a dificuldade que eu estava de aceitar esse tratamento? Então eu relutei bastante e até hoje eu faço supervisão, até hoje. Isso meu filho tinha sete. Eu melhorei muito graças a Deus, e ele com dez anos, aí foi eu olhar pra ele, eu olhei pra ele e falei assim: “a infância dele vai acabar”. Eu trabalhava na época 14, 16 horas por dia, fácil. Falei: “a infância dele vai acabar, eu vou fazer uma virada na minha vida profissional”. Aquele ambiente do hospital também não era confortável. Eu lembro que a garagem do hospital é um caracol que vai até lá embaixo, então quando eu entrava ali não era extremamente confortável, quando eu entrava na minha sala pra atender minha paciente era extremamente confortável, mas eu tinha o momento ali de um sinal orgânico, tipo: “Ana Paula, você está perdendo equilíbrio, né”. Aí quando eu vi meu filho com dez anos, eu falei: “quer saber de uma coisa? Eu vou ter coragem. Eu não vou me atirar no vazio, fazer loucura, mas eu vou ter uma coragem. Eu vou fazer um coaching e eu não vou mais trabalhar para hospital, sou muito grata ao hospital, muito grata, mas eu não quero mais trabalhar para uma instituição, eu quero trabalhar pras minhas pacientes e quero ter tempo pro meu filho”. Eu falei: “todas as férias dele, eu podendo fechar agenda, eu vou viajar com ele – ele adora viajar, coisa que o Rodrigo mais gosta é viajar, comer e viajar – quero conhecer os restaurantes com ele, quero viajar com ele”. E aí eu comecei a fazer acompanhamento com o coaching, que era linha da psicoterapia que eu já estava usando, mas com coaching, pra me ensinar a trabalhar menos, pra me ensinar que não era minha agenda que tinha que tomar conta da minha vida, eu poderia fazer minha agenda. Mas foi um trabalho, também, olha, de mais de um ano. Porque o Rodrigo tem 16 hoje, e eu to no consultório carreira solo há cinco anos, então ele tinha 11 anos quando eu tive muita coragem, porque tem que ter coragem, porque você não tem estabilidade nenhuma, você é 100% autônoma, mas eu tive a coragem e tenho esse propósito de vida que eu quero trabalhar dez meses no ano pra viver 12. Então, como eu sou 100% autônoma, o que eu ganho em dez meses eu tenho que viver doze. Então, o Rodrigo entra de férias, eu não posso parar de trabalhar porque eu sou obstetra, essa semana passada eu tava de férias mas eu vim pra fazer parto, mas não pra atender paciente com horário marcado, então, eu tento dar... eu comando minha agenda, não é minha agenda que me comanda, e é muito inspirado na agenda do Rodrigo. Até a pandemia, né? Isso deu super certo, até a pandemia, porque a pandemia veio outro desafio, né, a gente não tem mais agenda nenhuma, a gente não sabe mais nada. Agora, eu aprendi muito com essas dores, com essas perdas, e principalmente com a perda da saúde, né, quando você sente que você não tem a sua saúde mental, que você não consegue nem agarrar seu travesseiro naquelas poucas horas que você pode dormir, porque você não consegue dormir, é difícil, é bastante difícil. E isso foi me levando também a essa medicina integrativa. Em 2018 eu fui convidada pelo pessoal da Unifesp, um grande colega também que é obstetra, pra fazer um curso de facilitação de meditação, pra estudar a Neurociência da meditação. Eu fiquei super encantada. A meditação não medicamentosa, mas eficaz para controle de estresse, de ansiedade, depressão. Eu já sabia das minhas limitações, só que eu não era uma mediadora, então comecei a estudar meditação e aprender a meditar. Quando eu comecei a meditar, porque existe uma técnica, tem uma técnica de meditação. quando comecei a meditar, voltou essa frequência cardíaca alta. Então, os primeiros minutos da meditação aumentaram essa frequência cardíaca. Gente, daí eu tive a autopercepção do quanto eu sou uma mulher ansiosa. Daí eu falei: “você tem que assumir isso, não vincular isso àquele estresse pós-traumático, não vincular às histórias, é você, não ficar perguntando porque você é ansiosa, você é. Como que eu posso viver, sendo uma mulher ansiosa, com bem estar?” Porque o que me confundia muito é que eu não sou nervosa, então assim, eu sou mais pro estilo calma, então mascarava muito, então não é uma ansiedade explosiva, é uma ansiedade solitária, só eu sinto, tá dentro de mim uma coisa que eu sinto. E a meditação foi muito importante pra mim, é... desenvolver a autopercepção do quanto você é ansiosa, do quanto você tem que se empoderar, se apropriar disso, comprar pra você mesmo e o quanto você precisa se cuidar, né, o quanto é importante qualidade vida, estilo de vida e bem-estar. Então estou nessa busca. O climatério... daí veio também a menopausa, né, tá vindo, 53 veio e a menopausa também. A menopausa te deixa mais ansiosa, a menopausa te deixa com mais distúrbio do sono, a menopausa diminui a libido. Daí eu falo “meu, tudo aquilo que eu estudei, tudo aquilo que eu compartilho com minhas pacientes, eu to vivendo dentro da minha vida conjugal, da minha vida sexual”. Eu tenho um casamento de 22 anos, um relacionamento de mais de 25 anos, e a mulher, além dela ser mais propícia à ansiedade, isso é bem característico da saúde da mulher, ela também tem uma resposta sexual que se modifica conforme o tempo de relacionamento. O homem tem desejo espontâneo, independente se o relacionamento é novo, independente se é numa fantasia, independente do tempo. A mulher não. A mulher nos relacionamentos de longo prazo ela vai diminuindo o desejo espontâneo, a gente tem que se tornar receptiva a ficar excitada pra excitação gerar um desejo. E eu fui vivenciando isso, isso eu fui vivenciando muito no climatério, então não é fácil pruma vida conjugal, pruma vida íntima, durante o climatério, porque além de tudo tem o ressecamento vaginal. Não tem muito desejo, daí sei que vai ser tudo ardido aqui. Como que eu faço? Então a saúde... daí que eu falo, a saúde sexual ganha uma força muito grande: você tem que pensar na sua saúde genital, você tem que pensar na sua saúde conjugal, mas você tem que pensar como que é, como seu corpo funcionava quando você era uma fábrica produtora de hormônios e quando você entra numa falência hormonal. Então isso é o momento que eu estou vivendo, um momento de aceitação de uma falência hormonal, e aquele momento de outra decisão muito grande na saúde da mulher, que é: “faço a terapia hormonal ou não faço a terapia hormonal?” Porque neurologicamente também, diminui concentração, diminui memória, você faz mais isolamento social. E daí vem a pandemia, eu falei “bem, é um desafio enorme agora”, mas a meditação também ajuda muito. A meditação ajuda uma coisa bem interessante: como eu percebo que eu sou cuidadora desde pequena, minha profissão é cuidar, ter compaixão não é difícil e é quase natural, mas a autocompaixão não. A autocompaixão, não necessariamente a pessoa que tem compaixão tem autocompaixão. Eu fui percebendo que a meditação ajudou muito que a gente tem que desenvolver autocompaixão, e o climatério me mostra mais ainda isso. É um momento que é um divisor também, é um ciclo, tô encerrando um ciclo que é o ciclo reprodutivo, mas eu quero continuar num ciclo produtivo, sem me reproduzir, sem ser essa Ana Paula jovenzinha, eu quero entrar no ciclo produtivo sem me reproduzir, mas eu quero saúde, eu quero saúde, né, então é a essa a busca do momento. E daí vem o efeito pandêmico que mostra mesmo que o mais importante chama-se saúde. E pra mulher no climatério, o maior investimento na saúde chama-se músculo. A gente tem que, com pandemia ou sem pandemia, ganhar músculo, ganhar força, porque é através da força, ... ainda mais eu, tenho um filho adolescente, eu fui mãe tarde, eu fui mãe “velha”, então quando eu me deparo com meu filho adolescente, eu olho pra ele e falo assim: “a pipa dele tem que voar, mas eu tenho que estar aqui embaixo segurando essa linha”, né, porque não adianta você ter uma pipa “poderosésima”, ganhar voo, se a linha romper, e você pode cair num lugar bacana, como você pode cair num lugar muito ruim, né? Então eu falo: “eu tenho que ficar aqui embaixo ainda segurando essa linha, e pra isso eu preciso de força”. Força, músculo mesmo, que é muito difícil no climatério, porque a gente vai perdendo massa muscular e ganhando massa gorda, então a natureza feminina é desafiadora, desafiadora. Te coloca em desafio constante, constante. O que, eu vou falar uma coisa, não acho de tudo ruim, porque muitas vezes o homem também vai ter andropausa, também vai ter o envelhecimento, mas ele não tem um marco tão grande como a gente, a gente tem esse divisor. Então eu acho que a gente tem que olhar, tô tentando olhar como privilégio, tipo assim: “isso aqui ficou no passado, o importante é daqui pra frente, então daqui pra frente o que é mais importante? O menos é mais, literalmente”. Menos tempo desperdiçado, menos consumo, menos ambições. Mas o “mais” existe, e o que a gente mais precisa é músculo. Mas é difícil viu, é difícil você conseguir músculo no climatério.
P1 – E o que você faz assim, e de que forma você acha que a meditação atua, qual a sua percepção pessoal disso?
R – Olha, a meditação, falando da parte neuro mesmo, ela atua muito nesse lobo pré-frontal. Você faz um exercício meditativo que você vai ativando esse lobo até ele fazer uma disfunção, é como se você tivesse – a gente viveu períodos de acabar a luz, tudo isso – é como se você tivesse desligado o disjuntor, então quando você chega nesse patamar, você tem um repouso cerebral, você ter um ganho cerebral nesse sentido. E nesse sentido neuro fisiológico, a meditação ajuda você o controle de pressão, controle da ansiedade, controle do estresse, isso pensando na parte física, existe até trabalhos mostrando que ela é imunomoduladora, ou seja, melhora até sua resposta imunológica. Parte física. Na parte emocional, além de diminuir essa resposta de estresse, que é uma resposta muito de uma região do cérebro que chama amígdala. Então, além de diminuir essa resposta de luta e fuga o tempo todo, da parte emocional, você também ganha o sono, então pensando na parte de qualidade de vida você ganha muito em sono, e você ganha muito em autopercepção. Pra mim, eu sou uma meditadora muito recente. Pra mim, autopercepção foi o primeiro ganho, porque a meditação para ter um efeito você tem que ter disciplina, tem que meditar diariamente, meditar pelo menos por um pouco mais de dez minutos, 15, talvez 20, mas tem que passar do décimo minuto. É uma disciplina diária, mas com três semanas de meditação você já consegue perceber melhoras na qualidade de vida, no dia a dia. Então assim, a autopercepção, autoconhecimento, autocompaixão, empatia, a resiliência, que é muito pedida nesse momento. E qual é a grande vantagem da meditação: ela é barata, ela não custa nada! Ela custa você entender que você precisa ter disciplina e ficar dez, 15, talvez 20 minutos das suas 24 horas pra você. Ninguém faz por você, tem até meditação guiada, coletiva, mas assim, ninguém faz pra você, você não paga, o segredo é saber como meditar, porque muitas vezes você tá achando que você tá meditando e você não tá meditando, né? Tem um trabalho que mostra: as mulheres ansiosas envelhecem mais rápido. O que é que é isso: sabe um cromossomo? Todo mundo tem um cromossominho ali, né, a parte final do cromossomo chamada Telômero, a gente já nasce com um cromossomo com essa partinha final. Essa partinha final do cromossomo que chama telômero, ela é um marcador biológico de vida, então marca a sua biologia. A gente nasce mais ou menos com 11 quilobases desse telômero, e quando a gente envelhece ele deve ter uns quatro, então você vai perdendo esse tamanho, isso é um marcador biológico. As mulheres ansiosas envelhecem mais rápido, esse telômero diminui mais rapidamente. Quando a gente fala de envelhecer, não é só uma questão estética, talvez a estética é o que menos importa, é que você traz doenças do envelhecimento pra você mais cedo. Um exemplo dela, que é muito comum e a gente está no Outubro Rosa, né, é o câncer. Câncer teoricamente é uma doença do envelhecimento, e você vê cada vez mulheres mais jovens com esse tipo de patologia, doenças neurodegenerativas, então você traz isso pra você. Então, pra mim, Ana Paula, a meditação me mostrou que eu sou ansiosa mesmo, e que eu tenho que me apropriar disso, então essa autopercepção de como você modula neuroquimicamente foi bem importante. E grandes meditadores – não tenho de jeito nenhum a ilusão de ser uma grande meditadora – mas grandes meditadores eles têm sete, sete anos e meio mais jovens os telômeros. Então, a meditação, pensando no meu transtorno de ansiedade, ela pode ser protetora pra mim na longevidade, e não me custa, eu não preciso ficar gastando quilos de medicamentos, não me custa. Custa disciplina, não é fácil também não, é bem difícil.
P1– E você vai na médica, no médico, no ginecologista? Qual a frequência? Como você se previne?
R – Deveria ser mais disciplinada nisso também, né, porque muitas vezes você consegue pedir seus exames preventivos, né, então deveria ser mais disciplinada. O período que eu fui mais disciplinada na vida foi na gestação, sem dúvida nenhuma. Na gestação fui uma paciente excelente, no pós-parto uma paciente excelente, e eu acho que talvez agora no climatério, eu vou numa ginecologista. Eu tenho ginecologista muito próximo de mim, né, mas eu tenho uma ginecologista que eu chamo de minha. Eu vou numa ginecologista que é excelente, é uma pesquisadora de hormônio, porque eu estou encantada com hormônio, né, eu acredito muito na reposição hormonal, sei bem do seus benefícios, do seus malefícios, então a minha ginecologista é uma estudiosa de hormonioterapia, de implantes hormonais, então eu vou na ginecologista. Faço meus exames. Engraçado que na pandemia, e agora você falando, a gente dá uma "embromation'', né, a gente dá uma relaxada, a gente acha que isso não é essencial, a gente só tá fazendo o essencial, e prevenção é essencial. Então, assim, a gente tem percebido que na pandemia as prevenções caíram muito, e a minha também, confesso pra você.
P1 – Como que tá o teu dia a dia, você já tá atendendo, atende online, como que a pandemia entrou aí na sua vida?
R - Eu tive um primeiro momento da pandemia, que foi no mês de março, que ela me paralisou um pouco, não só de não entender e saber da gravidade, mas não entender nada sobre literalmente o novo corona. Então eu tive um momento que eu paralisei, que eu fechei o consultório, deixei o consultório aberto presencial só pra gestantes, emergências e pós-operatórios, e entrei na telemedicina. Logo o CRM [Conselho Regional de Medicina] me liberou a telemedicina e eu entrei de cabeça ali na telemedicina, mas nesse momento que eu me paralisei e fui pra dentro de casa, eu falei assim: “eu estou me resguardando, e minhas pacientes?” Aí na primeira vez na vida eu tive um Instagram, com a ajuda do meu filho também, que ele falou, e ajuda de paciente também, que eu falei: “eu tenho que me comunicar de alguma maneira com as minhas pacientes”. Então, nesse primeiro momento que a gente foi recluso pra casa, eu vi que eu não poderia não estar em contato com elas, então contato como a gente tá tendo aqui, contato on-line, eu me adaptei absurdamente à telemedicina, eu amo a telemedicina. O que a gente está fazendo aqui é totalmente possível. Essa troca é, eu consigo olhar no teu olho, você consegue olhar no meu olho, a telemedicina veio muito, muito forte nesse sentido, eu resgatei várias pacientes de outros estados, mas nesse primeiro momento – quando eu falo primeiro momento, março à maio talvez – o maior resgate pra mim foi conviver com a minha família, porque ficou nós três: eu, meu marido, meu filho; e eu nunca tive tantas horas, dias, semanas convivendo com meu filho. Então eu tive nesse primeiro momento um presente, que é a presença. Só que, obviamente, financeiramente tudo muito difícil. Meu marido sempre trabalhou, trabalho pouco trabalho, né, o meu filho um desafio enorme de uma escola nova, educação a distância, então não é que ficou na zona de conforto, não. Tive um presente que foi a presença, mas tivemos vários desafios. Mas vou ser muito sincera: o mais feliz pra mim foi quando eu pude estar no meu consultório com minha agendinha marcada. Então, eu já fazia um atendimento de hora em hora, eu tenho que ter um pouquinho mais porque tem todo aquele protocolo de higienização, mas eu sou muito feliz atendendo presencial. Então, agora a agenda está no presencial e mantenho on-line, pretendo manter on-line, de terça eu to aqui porque é agenda on-line, agenda on-line é um pouquinho mais fácil, então de terça eu fico na telemedicina, e os demais dias presencial. E os hospitais que eu trabalho, que eu interno as minhas pacientes, as pacientes têm que fazer o PCR, têm que fazer o controle pra ser internadas, internações eletivas, né, então isso dá mais segurança pra gente, então estou sempre sendo checada também. E sinto que esse novo normal que todo mundo fala, ele vai ficar 2020, vai ficar 2021, se a gente não chegar em 2022 assim, então, é ser feliz, é tentar ser feliz, a resiliência. Teve a primeira fase: “como eu vou sobreviver à pandemia?”. Agora é: “como eu vou viver numa pandemia?” Então nesse momento, vou por como o segundo semestre, eu estou vivendo numa pandemia, mas eu estou vivendo. Aquele primeiro momento eu estava sobrevivendo.
P1 – E, Ana, tem alguma história, ou da sua infância, ou da sua adolescência, enfim, alguma história ou mais de uma história que você não contou mas que você chegou a pensar “ah, isso aqui é legal contar”? Alguma história importante, de amigo, de família…
R – Olha, teve uma coisa que você me lembrou aqui. Pensando na minha família de origem, nos relacionamentos... Como eu te falei, nesse período da faculdade eu tive um namoro longo também, e eu lembro de uma história, assim, um dia que marca, né, aquele dia que marca. Era férias, a gente passava férias na minha casa, então eu, minha família e o namorado, e minha família, assim, se esborracha no sofá, fica conversando, aquela situação. Nesse dia dessa situação assim, ele me pediu um copo d'água “ah, me dá um copo d’água?” Eu naturalmente levantei e fui buscar o copo d'água. Quando eu cheguei na cozinha, eu tava com o copo assim no filtro, meu pai chegou e falou assim: “você não vai servir, é ele que tem que te servir, não é você que tem que servir”. Foi assim, eu vi um choque de gerações ali, entendeu, assim, mas ele veio, tipo assim, pra cima de mim, no sentido – meu pai não era agressivo, não – mas no sentido de proteção, ele era pequenininho, e ele cresceu ali, disse “você não vai servir homem nenhum, você vai ser servida”. Aquilo me marcou muito, e eu não vi como aquela situação... eu vi tipo assim “eu tô na casa dela, vou pedir um copo de água pra ela”, então isso é uma situação que eu recordo bastante, de você levar pra dentro da sua casa relacionamentos que têm um significado pra você. Isso foi uma história marcante mesmo.
P1 – E o que é que você acha desse projeto de chamar as mulheres pra falarem das suas memórias, da saúde da mulher, que que você acha de fazer parte, também disso?
R – Olha, você tem memórias afetivas, né, todos temos, mas as memórias de situações de estresse, né, ou de situações difíceis, elas ficam bem mais guardadas. Muitas vezes você guarda e engaveta muito bem isso, mas elas estão ali. E situações que você vai vivendo ao longo da sua vida, você vai reativando essas memórias. Então muitas vezes, a nossa situação racional, como eu vou reagir a uma situação, vem muito do que tá lá, e muitas vezes você é reacional à uma situação, por uma memória que está lá, e não necessariamente porque aquela situação te pede aquele tipo de reação. Então eu acho que trabalhar, pensar na saúde da mulher e pensar memória, é um pensamento de sabedoria. Não só de você recordar histórias, mas principalmente como eu vou trilhar daqui pra frente, porque independente se eu sou criança, se eu estou na adolescência e juventude, ou no climatério ou no envelhecimento, eu quero andar, eu quero viver capítulos mais. E se você entende o que são essas memórias, guardadinhas, e que tá ali no sistema nervoso inconsciente, muitas vezes, você não tem um comando, se você entende essas memórias, você pode ser protagonista da sua história, você pode atuar, ser a protagonista. Porque se você não trabalha suas memórias e você deixa engavetado ali, você muitas vezes entra num espaço de coadjuvante, “deixa a vida me levar, vida leva eu”, você vai nem sempre tomando a rédea mesmo, o rumo da sua saúde e da sua vida mesmo. Porque quando a gente fala em saúde, se a gente for pensar quando a gente fala em saúde, a gente está falando sobrevida, né, porque a pessoa que tem saúde, ela tem maior sobrevida. Então assim, falar em saúde é falar em andar pra frente, é falar em longevidade, é falar em vida longa. Então eu acho fantástico essa questão de você trabalhar as suas memórias, e o quanto suas memórias te pertence, elas são suas e nunca é igual à do outro.
P1– E quais são seus sonhos?
R - Sonhos pandêmicos, posso te confessar. Nesse momento meu sonho é voltar pro meu lar, que nesse momento estou temporariamente com uma casa aí passando por um processo de reforma, mas é voltar pro meu lar, poder manter esse tempo com meu filho, com minha família, mas é com meu filho, porque eu percebo que ele também está numa fase de que ele quer andar pra frente, né? E, nesse exato momento, não posso dizer que um sonho seja a vacina, todo mundo sonha com essa vacina, mas o meu sonho vai além um pouquinho talvez, da erradicação mesmo, de você erradicar. Erradicar esse vírus que está ainda pouco conhecido, mas você ter forças pra erradicações mesmo. Vão ter situações como essa, desafios grandes como esse, então meu sonho é a gente conseguir coletivamente, e um sonho coletivo mesmo, porque já percebi, eu já percebo há muito tempo, há muito tempo eu trabalho em equipe, não acredito no trabalho solitário, não acredito, lógico que existe trabalhos que você tem que estar solitário, mas é o efeito coletivo que vai ser o resultado do seu trabalho. Então é que a gente consiga nesse trabalho coletivo, quando eu falo coletivo é globalizado mesmo, uma erradicação mesmo. Porque vão vir outros, e aí fica mais fácil pra você lidar e assim a gente vai indo. Mas, poder viajar. Quando eu falo em poder viajar, a viagem dos meus sonhos agora é pra casa minha mãe, entendeu, não mais cruzar fronteiras, o continente, não é mais cruzar o oceano, não. Nossa, quando eu fiz minha malinha e fui passar uns dias na minha mãe com toda dificuldade, com todo protocolo, parecia que eu tava indo pra uma viagem dos sonhos. Então acho que viajar é um sonho, pode ser pra esquina, mas é um sonho.
P1 – E como foi contar sua história aqui hoje?
R - Engraçado que eu cheguei aqui, fui super bem acolhida, fui muito bem acolhida, pelos dois (o corintiano e o palmeirense que tavam aqui), fui muito bem acolhida por eles, então já cheguei muito bem, já fui bem acolhida em casa, já fui bem acolhida aqui, então já cheguei muito bem. E tinha um lencinho aqui, né. Eu falei assim: “será que eu vou me emocionar?”, não. Não que não seja emocionante contar história, mas eu fiquei satisfeita, entendeu, então o que eu tenho hoje é dizer assim: “que prazer, muito obrigada”. Que foi satisfatório, foi muito gostoso poder contar um pouco e compartilhar um pouco da minha vida e porque eu me senti muito bem acolhida. Obrigada, Lila! Obrigado pelo convite. Além de ser acolhida, amei o espaço, acho que é um trabalho lindo, e que tá fazendo parte aqui, né, tá no pedacinho aqui talvez seja momento de maior honra pra mim, maior honra pra mim como mulher, como mulher, mas como pessoa, no Museu da Pessoa [risos]!
---FIM DA ENTREVISTA---
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