Projeto Conte Sua História - Memórias Indígenas
Depoimento de Mapuani Huni Kuin Joelma Leitão
Entrevistada por Jonas Samaúma e Kerexu Mirim
São Paulo, 13 de dezembro de 2019
PCSH_HV781 _ rev.
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina Dias
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 - Então, Joelma, eu gostaria que você abrisse com um canto para a gente.
R - [canto em língua indígena]
P/1 – E agora eu gostaria que você dissesse o local e a data em que você nasceu, e o seu povo.
R - Eu nasci em... Começa pela data?
P/1 - Pode ser seu nome.
R - Meu nome? Português, Mapuani, eu me chamo Mapuani. Nasci na Aldeia do Caucho, em 01/09/1972.
P/1 - Você podia só... Em geral, a gente já entra na história da vida da pessoa, mas como você vem de um povo... Dar uma pincelada da história do seu povo, que você sabe.
R – Então... É uma história que eu nasci... Eu nasci no Caucho e... Para eu falar um pouco dessa história do meu povo?
P/1 - É, e da sua aldeia. Como ela se formou.
R - A Aldeia... Eu nasci na Aldeia do Caucho, fui embora muito cedo. Meu pai conheceu a minha mãe lá, na época em que ele foi para trabalhar no seringal. E o que eu posso falar do meu povo é que eu estou voltando... Assim... Estou voltando muitos anos depois para relembrar essa história, a tradição, o que eu posso realmente falar são memórias de... Até a idade de sete, oito anos, o que eu vivi na Aldeia. Eu lembro... Lembro que tinha muita harmonia no meio de tanto caos também, porque a gente estava lidando ali com o povo da borracha, que foi um momento muito difícil. Mas falando das mulheres, da tradição, para mim foi muito forte o que eu vivi. A minha avó, a minha bisavó, a Aldeia em si, ela mudou muito, não é? Porque eu estou voltando. Ela mudou muito, muito mesmo. E o que eu posso falar do meu povo? Que eu estou representando esse povo, tanto fora, fazendo essa ponte de levar os irmãos para lá e vir aqui relembrar um pouco dessa história. É que eu acho que a tradição, ela está muito mexida, ela está muito... Mudou muito. Eu tenho 48 anos e o que foi, o que eu lembro, não sei se eu posso comparar hoje, está muito mudado.
P/1 - Mas lá, naquela época... Você falou do seringal. Como era isso? A sua família, por exemplo, trabalhava no seringal? Como era?
R - O meu pai trabalhava no seringal. O meu pai. As mulheres, elas ficavam mais cuidando das crianças e foram momentos assim, muito, muito, muito delicados, muito, muito fortes, de mesmo assim, se eu quero entrar, realmente, numa história verdadeira, é que teve muita... Muitas coisas aconteceram, muito sofrimento, a gente vivia... Estava vendo ali um momento muito delicado, muito delicado no sentido de: ou trabalhava para eles, o povo da seringa, ou saía da Aldeia. Então, teve um balanço muito forte que até agora eu fiquei muito tempo, muito tempo fora, fui embora, e com a família, não é? Com a mãe, com o pai, e aconteceram muitas coisas que foram muito fortes, que ficaram, estão aqui ainda comigo, que foi a pessoa, o patrão da época, porque a gente viveu essa época do patrão, a gente tinha uma demanda que era de, ou ficava trabalhando ou saía. E como praticamente fomos expulsos na época, nessa época em que eu era muito criança, e eu tenho memórias assim muito, muito, muito, muito difíceis.
P/1 - Quais são as memórias que você tem dessa época?
R - As memórias que a gente tinha é que era muito simples. A memória mais... que me marcou muito é que a gente não podia falar da tradição, nem cantar os cantos sagrados, porque tinha muito essa interdição. E o que eu lembro que minha avó contava para mim é que os velhos - tanto os pajés, os mais anciãos - eles passavam, tinham que se esconder para falar da tradição. Então foram momentos assim... Quando queriam passar os conhecimentos, a gente tinha que se esconder para poder falar a língua. Eu estou falando mesmo assim da tradição, os cantos sagrados, evocar os espíritos da Natureza, então a gente era muito, muito limitado, não podia muito estar ali contando, porque não tinha essa permissão do povo. A gente era muito visto como demônios, não é? A gente falar um pouco dessa coisa da religião, não é? Que era... Tinha muita... Já tinha muitas igrejas, igrejas evangélicas, e eu acredito que esse povo da seringa, eles achavam que a gente era muito assim... A gente era visto um pouco como esses demônios, essa língua, que é o Hãtxa Kuin, e que a gente, realmente, era proibido de falar na nossa língua, de evocar os cantos sagrados. E eu acredito que o que balançou mais foi isso, da gente estar resgatando uma tradição, porque nós somos um povo que está ainda resgatando a sua tradição. E o que me marcou muito foi isso. Eu tenho uma memória muito forte, que é uma mulher que, no inverno, ela estava... Ela saiu do xubuã para cantar, para evocar os espíritos dos legumes e ela foi literalmente levada... E ela voltou tempos depois, ela foi abusada coletivamente por cantar. Coisas muito fortes. E que, para mim, isso foi assim um choque, porque a gente não podia... A minha mãe falava muito mal o Português e muitas vezes eu pensava assim... Como criança, eu dizia: “Gente, eu não estou conseguindo entender como ela consegue se comunicar com meu pai”. Porque era muito.... Era muito... Eu acredito... Eu sempre acreditei que foi muito amor ali naquela história dela com o meu pai para poder essa coisa da comunicação mesmo, e muito forte no sentido de resiliar, de uma resiliência. E, para mim, o que foi muito chocante foi: "Você não pode!". Você não pode falar a língua, você não pode cantar na língua, você não pode evocar os espíritos da Natureza. E isso até eu ir embora foi muito difícil para mim.
P/1 - E o que mais você se lembra assim, quando criança? Você, no dia a dia, o que você fazia?
R - Ah, no dia a dia, era muita alegria, muita harmonia. As mulheres iam buscar mandioca, iam trabalhar, cuidar das crianças, e parte de muitas coisas que eu aprendi, minha avó, minha mãe e as mulheres nas aldeias, porque minha mãe, também ela trabalhava com as medicinas e cuidava das crianças na parte mesmo assim de cura. E que ela também não era muito aceita como mulher naquela época, de estar no caminho, nesse caminho da pajelança também, porque como o balanço foi muito forte, tinha um pouco essa coisa muito forte de dizer assim: "Ah, mas você é mulher, você não pode, você não pode trabalhar assim". Não era nem tanto verbalizado, era sentido mesmo assim na energia que a mulher era muito reduzida... A mulher. A mulher pajé, a mulher curandeira, não sei se a gente pode falar isso, mas isso para mim me deixou muito assim balançada também. E a minha mãe foi muito forte de guardar, de trabalhar, quando tinha uma criança... Que as crianças ficavam doentes, ela cuidava da parte da cura das crianças.
P/1 - E você, mesmo sendo proibido, você tinha algum contato com esses cantos sagrados, com as histórias tradicionais também?
R - Tinha.
P/1 - Os pajés sempre faziam escondido? Como era passado assim, já que era proibido falar a língua e fazer os cantos? Como você pegava um pouco?
R - Ah, era muita vontade também de aprender, porque tem esse respeito, tinha esse respeito muito forte pelos antigos, porque a gente era criança mas a gente escutava, era um ensinamento ali, um ensinamento, era um puro ensinamento, as mulheres e os pajés, e as mulheres pajés, os homens também. E como que... Ali, para mim, eu tinha a alma muito aberta para estar ali, e a minha mãe falava sempre, minha avó falava sempre: "Fique perto da gente". Às vezes, tinha as reuniões à madrugada para pedir e para agradecer a mãe Natureza, pedindo assim para a floresta proteger. E os cantos, eles vinham, minha mãe também cantava muito para... Porque eu sou a mais velha e minha mãe teve oito filhos, filhas - o filho que morreu. Quatro morreram e quatro mulheres estão vivas. E era pura... Pura intuição ficar para escutar, para aprender.
P/1 - E você ia... Tinha escola?
R - Não. Não me lembro de escola.
P/1 - Você trabalhava no seringal?
R - É. Todos trabalhavam no seringal.
P/1 - Até as crianças.
R - As crianças também.
P/1 - E como foi tomada a decisão assim? Porque você falou que foi embora jovem, não é?
R - Fui embora jovem. Criança.
P/1 - Como é que foi? Por que decidiram sair?
R - Porque decidiram... Não todos decidiram sair, porque tinha assim um alerta geral que era: "Olha, se vocês não trabalham com a gente, vocês vão ter que desocupar a aldeia". E uma lembrança muito forte é que eles falavam assim: "Quem não quiser trabalhar, vai ter que ir embora". Então, um período que me marcou muito foi... Acho que foi no dia 25 - data exata assim, para mim, é difícil lembrar, porque eu era muito criança - que eles chegaram com... Os homens chegaram armados e foram batendo... Eram poucas pessoas, porque a Aldeia do Caucho, hoje, ela tem 900 pessoas. Tem o cacique Inácio, que é meu compadre, que pegou depois, que foi muito depois, quando eu já não estava mais lá, e eu lembro desse evento que foi muito forte na minha vida. Foi que eles chegaram armados e começaram a queimar as casinhas, e a gente teve que sair correndo. E mataram a minha avó. E aí foi assim, uma grande separação da família. Eu fui deixada para uma família, porque eu não podia seguir com a minha mãe e com o meu pai, com as minhas duas irmãs, e eu fiquei lá. Foi... E todo mundo saiu correndo, a aldeia praticamente toda saía correndo, e a lembrança foi que isso foi um caos.
P/1 - E aí vocês foram para onde? Entraram armados e mataram sua avó?
R - Entraram nas carreiras. Tem essa história das carreiras, do povo, que era mais essa... A gente viveu isso. E minha mãe e meu pai seguiram e eu fiquei nessa casa dessa família, que era para trabalhar. E os encontrei depois, muito depois.
P/1 - E não era Huni Kuin essa família?
R - Não.
P/1 - E aí você chegou e ficou nessa casa?
R - Fiquei trabalhando com eles.
P/1 - E você tinha quantos anos?
R - Ai... Sete. Sete anos.
P/1 - E o que você lembra desse período?
R - Esse período, para mim, foi muito difícil, porque... Difícil em todos os sentidos. Eu digo: "Como é que eu vou encontrar com eles depois?" Eu não sabia, não sabia mais de nada, onde eles tinham... Eu acreditava que meu pai... Eu, como criança, acreditava que meu pai tinha levado a minha mãe para o sertão.
P/1 - E você nem sabia para onde tinham ido seus pais?
R - Não.
P/1 - E aí como era o seu dia a dia?
R - Dia a dia ficava trabalhando na casa, cuidando das crianças, limpando, trabalhando.
P/1 - E você tinha contato ainda com o seu povo?
R - Não. Não tive mais contato.
P/1 - E você ficou lá quanto tempo?
R - Ai, quanto tempo? [pausa] Quatro ou cinco anos.
P/1 - E aí você foi para onde?
R - E aí eu tive que ir embora, porque o patrão... Eu dormia com as crianças dele e ele vinha... Ele começou a vir para me tocar. E aí eu digo: "Bom, vão acontecer duas coisas: ou eu vou ficar e isso vai terminar muito mal (risos) ou eu vou ter que ir embora". E tinha um casal que trabalhava na casa também - eles tinham muitas pessoas que trabalhavam para eles - e eles me falaram tipo assim: "Olha, a gente está percebendo que está muito difícil para você, eu posso lhe dar... A gente vai lhe dar uma pista, porque eu conheço muito o seu pai. Vai embora! E eles estão no sertão".
P/1 - E aí você foi para o sertão?
R - E aí eu fui embora. Já é uma longa história.
P/1 - Conta aí. Você foi embora como?
R - Eu fugi. Fugi. E fui pegando carona e vivendo um pouco até chegar lá, para encontrar com eles.
P/1 - Lá onde?
R - No sertão.
P/1 - Do Ceará?
R - Do Ceará.
P/1 - Nossa. Você foi pegando carona?
R - Pegando carona.
P/1 - E como foi que você os achou?
R – Eu os achei porque tinha essa família, me deram todas as informações e eu sabia ler e escrever, anotei tudo direitinho, fui pedindo às pessoas que estavam comigo, contando a minha história, pedindo por favor, que eu queria ir lá para Balseiro, que é o interior, até chegar.
[pausa]
P/1 - Mas aí, como foi que você conseguiu encontrar os seus pais?
R - Eu consegui depois de muito tempo, depois de muito tempo. Fui vivendo... Não foi assim, chegar aí... Ah, ir e chegar. Foram muitas etapas. De encontrar pessoas, de ficar, de trabalhar um pouco nas casas, nos lugares onde eu estava indo. E até que encontrei com eles. Só que quando eu encontrei com eles, para mim, já tinha uma coisa ali, já tinha acontecido muito forte, que eu não conseguia também mais ficar com eles.
P/1 - Demorou quanto tempo essa etapa até você encontrar com eles?
R - Essa etapa demorou, talvez, meses.
P/1 - E aí, como foi que você encontrou? Você os encontrou onde?
R - Encontrei porque onde a família do meu pai mora é um interior pequenininho que se chama Balseiro, é perto ali do Livramento, ali Sobral, aquelas bandas de lá. E fui chegando pouco a pouco. Quando podiam, as pessoas me levavam, me deixavam um pouco na casa, nas casas, e até assim essa ligação também com as pessoas que sabiam um pouco da minha história, não foi fácil. Meses, durou meses e meses.
P/1 - E aí, chegando lá, você... Eles lhe receberam e você não quis ficar com eles? Como foi?
R - Ah, eu cheguei e a minha mãe estava esperando. Ela falou que estava esperando, que nesse dia que aconteceu, que eu estava chegando... Ainda não tinha energia, era um interior pequeninho, e ela foi me receber chorando, dizendo que ela tinha sonhado comigo e que um beija-flor entrou pela porta da entrada e saiu pela cozinha, e ela sabia que eu estava chegando. E foi uma comunicação, foi outra luta, porque eu já não estava mais assim, me sentindo... Pertencer à família, porque tinha muitas coisas que aconteceram comigo também, em todos os sentidos. Eu acreditei, também, que fui abandonada; então, não foi tão assim. Tão simples, voltar. E aí, depois, foi outra separação.
P/1 - Mas você chegou a ficar alguns dias lá?
R - Sim, fiquei. Fiquei dias. Fiquei... Não fiquei só dias, eu fiquei meses também ali, com eles, convivendo e percebendo também que, para a minha mãe assim, foi um inferno. Um inferno porque ela estava num interior pequenininho, onde as pessoas eram muito... Iam para a igreja - tinha uma igrejinha - e que ela também foi muito recebida como uma bruxa. E que ela também estava muito infeliz. Estava viva, mas também estava infeliz, muito infeliz.
P/1 - E aí, você decidiu ir para onde?
R - Aí eu fui trabalhar numa cidade, depois fui embora de novo (risos).
P/1 - Foi para onde?
R - Fui para Fortaleza. Para a casa de uma amiga trabalhar com ela, cuidar das crianças dela, e voltava de vez em quando, quando podia.
P/1 - E essa foi... Você tinha uns 12 anos, 13 anos?
R - É, 13, 14. E aí, também, vivi muitas coisas que eu não sei assim - é tão difícil relembrar tudo isso e contar - porque foram muitas feridas, muitas coisas fortes que aconteceram. Mas, voltando para a aldeia...
P/1 - Mas se quiser compartilhar, esse é o momento?
R - É, porque voltando assim para a idade de criança, eu tenho uma memória muito linda também, que é estar na aldeia; essa beleza de estar com a família. De estar, realmente, no coletivo de uma aldeia. De se sentir muito integrada com eles. Eu acredito que essa passagem, quando eu era criança lá com eles, com todo mundo lá na aldeia, ela me fez o que eu sou. Porque foi muita beleza também. Voltando para essas partes que são muito difíceis, eu acho que deu uma segurada, não é?
P/1 - Essa memória da aldeia?
R - Essa memória, essa memória sagrada, não é? Porque eu sentia... Eu senti em toda essa transição, em todo esse período só, que eu tinha uma proteção muito grande. Eu era muito, muito... Fui muito ligada com a minha mãe, minha mãe morreu tem nove anos, e eu senti essa proteção muito forte dela e da minha avó. Cada porta que se fechava, abria uma janela, que é essa janela de acreditar que você merece o melhor, que existem muitos caminhos, mas que você está passando por um momento muito difícil, mas que sempre tem um portal que vai se abrir, que é esse portal dessa beleza que é estar vivo. É estar vivo... Como mulher, não foi fácil, muito difícil. Muito, muito, muito difícil. Muita exclusão também. Por ser mulher, por estar sozinha.
P/1 - E você tinha uma vontade de voltar para o seu povo também?
R - Não. Essa memória dessa separação, para mim ela foi muito violenta. Eu não tive mais vontade de voltar para o povo, aquilo ali foi como se fosse uma... Cortou alguma coisa ali, imediata, de: "Mas por que esta acontecendo tudo isso?". Porque assim... No íntimo, eu entendia o porquê, mas que eu não queria voltar porque foi muito difícil. E ai eu tirei assim um pouco, deixei um pouco isso de lado.
P/1 - E os próprios cantos, as coisas, você não continuava?
R - Não. Não continuei. Não continuei porque eu também estava só, não continuei porque eu lembro que era muito proibido. E quando você é criança, que você escuta que o que você está fazendo é completamente errado, dito pela... Simplesmente pelo povo civilizado, que é o povo da seringa, que ali tinha um poder muito grande... Por mais que você sinta assim que... Que é isso, que é esse sopro mesmo de vida a tradição, balança também. Então eu não cantei mais, eu não cantei mais os cantos, eu lembrava muito que a minha mãe cantava muito, as mulheres cantavam muito, eu lembro que tinha as reuniões... Que quando alguém fazia alguma coisa na aldeia, no povo ali, no meio do povo, que não estava muito certo, a reunião das mulheres, as mulheres eram muito ativas ali na aldeia, elas faziam uma fogueira e a gente ia contar uma história. Não dizer assim: "Você está errado". Mas, mais ou menos, é: "Vamos conversar aqui entre a gente". E bebia medicina e ficava, conversava, contava uma história para chegar até na pessoa para valorizar a pessoa. E isso para mim, essa memória, eu tenho comigo que foi muito bonita.
P/1 - E como é que continuou a sua vida? Por que caminhos você seguiu?
P/1 - Ai, por que caminhos eu segui? Eu vivi muitas coisas, não é? Porque aí eu fui embora também, pelos 14 anos, vivi muitas coisas com o masculino, com o homem, não é? O homem, esse macho alfa que olha uma mulher indígena, ou mesmo a mulher, a figura da mulher ali muito... Muito, assim, desvalorizada. Eu fui me matricular numa escola, quando eu falei, assim, que eu tive muito orgulho de dizer: "Ah, mas eu nasci no Acre, eu venho do povo kaxinawá", eu lembro que a diretora da escola falou assim: "Ah, você amanhã". E falou: "Eu não tenho vaga na escola". Eu vivi muito isso também. Ai eu digo: "Tá, então tá, porque...”. Será que é assim, por esse caminho da educação? O que é, realmente, educação, não é? No que eu tinha... Tudo o que eu tinha já passado deu vontade, sim, de aprender, de ir para a escola, de me integrar, mas aí eu fui muito assim... Muito cortada. Digo: "Então tá, tá tudo bem". Eu acredito que a gente possa também, por exemplo, ser o que a gente quer sem precisar pegar um livro da biblioteca, não é? (risos). Dos nauás(não índigenas), do homem branco, para poder comunicar. Eu acho que existe outra comunicação, eu já sentia que essa comunicação para mim era a que ia ficar, era aquela mesma ali da floresta, que era... Existiam muitos limites. Fui muito limitada também. E o homem, ele me apavorou, ele me deixou assim num lugar de muito medo. O olhar dos homens. É, porque você está falando de uma mulher, de uma menina que está crescendo, que é uma menina bonitinha, toda essa história que acho que é muito fácil de entender. No meio de tudo isso, sem papel também, porque não tinha identidade, falando de papel.
P/1 - E ai você tentava estudar e a escola falava que não tinha vaga?
R - Uhum.
P/1 - E aí você não chegou a entrar em nenhuma escola?
R - Eu entrei, fiquei dois meses, entendi que também aquilo ali para mim não dava, na escola que me aceitou. Quando eu entrei para estudar, eu disse: "Ai, gente, será que isso aqui é educação? Não estou preparada para esse mundo onde você é um número, você é uma nota, que você vale pelo que você…". É uma competição, era uma competição muito grande, eu vi aquilo ali como uma competição muito grande. Eu disse: "Está tudo bem então". Não é o meu mundo esse, mas eu posso transitar da minha maneira.
P/1 - E aí você foi para Fortaleza?
R - Fui.
P/1 - Trabalhar.
R - Trabalhar. Em casa de família. Aí vivi outra história forte também, com homem, como menina. Aí, vivi a rua (risos). Fui para a rua, vivi quase seis meses na rua, porque também não quis ser abusada sexualmente por um homem, não permiti também isso.
P/1 - Foi morar na rua?
R - Morar na rua.
P/1 - Nossa, e como foi esse período?
R - Esse período foi... Olhando para tudo, esse passado, ah, foi muito ensinamento. Porque eu acreditava também que a vida, ela sempre... Minha mãe sempre falava assim para mim... Quando eu era criança, pequenininha, ela falou uma coisa muito importante para mim, ela falou assim: "Minha filha, eu acho que você vai voar". E eu também sentia isso. Dentro da mata, com crianças, com as mulheres, eu olhava assim para o céu e via o gavião, eu pensava assim: "Gente, eu vou desdobrar, eu acho que eu vou para fora". E voltando para a minha mãe, que minha mãe é um puro ensinamento na minha vida, ela falava assim: "Você vai, você vai voar. E um mundo vai abrir muitos portais para você e é você quem vai ter que escolher". Então, esse momento da rua, ele foi também essa memória de criança, da mãe, da avó que já conversava, porque eu acredito que o povo da floresta é o povo visionário, que tem uma visão não só de passado, mas de futuro. Então, esse momento na rua foi muito isso, foi muito difícil porque você estava dormindo na rua, não é? Eu tive muita sorte porque eu conversava muito com o porteiro e ele me apresentou à mulher dele, e ele falou assim: "Vou conversar com ela, Joelma, mas assim... Para se você quiser". Mas eu estava muito ali com o orgulho muito ferido. Eu disse: "Não precisa, eu vou me virar". E como eu falo, como eu disse, muitas portas se fechavam, muitas se abriam, e eu vivi esse momento de transição na rua muito... Assim... Porque eu via muito, convivia. Com as prostitutas, com o povo da rua, com os drogados, e tinha muitos convites. "O que você quer?" Aí eu digo: "Ah, gente, eu quero comer. Eu só quero comer, eu só quero estar aqui, eu quero comer, não quero passar fome". E eu convivi com esse povo, que eu agradeço muito, viva o povo da rua. E muita proteção, porque eu vi muitas coisas acontecendo. De mortes, de coisas fortes. E aí foi uma passagem bem, bem delicada, porque existiam códigos. Mas, para mim, tinha um código, que era proteção mesmo assim da terra, da Natureza, dos espíritos da Natureza, que eu tinha muito forte comigo, e sempre... Nunca fui batida, nunca fui espancada na rua.
P/1 - Mas você pedia, você ficava pensando... Você tinha alguma coisa, falava assim: "Vou ficar aqui na rua, o que eu vou fazer?" Só pensava na comida do dia?
R - É, eu pensava no dia a dia. Como me alimentar, como comer, dormindo com o povo, com as mulheres. Encontrei muitas mulheres que me acolheram muito, muito, que me protegeram também dos homens.
P/1 - E aí você saiu da rua, como?
P/1 - Eu saí da rua porque eu lembrei desse rapaz que trabalhava na portaria e eu voltei para mim mesmo e disse: "Ah, eu vou pedir ajuda, não é? Eu vou lá, porque eu não mereço, como mulher, ficar aqui, eu não quero ficar aqui. Tudo bem estar aqui, mas eu não vou continuar aqui, eu não quero continuar aqui". Aí voltei, conversei com ele, ele ficou super feliz, ele chorou muito quando eu apareci e me levou para a casa dele, a mulher com os três filhos, e eu fui aceita como mesmo, assim, da família, com eles. E aí eu fui trabalhar no supermercado.
P/1 - E foi morar com eles?
R – Não, eu estava morando com eles, e morei com eles um bom tempo.
P/1 - E aí?
R - E aí são outras etapas, não é? De histórias. Morei muito tempo com eles, trabalhando em supermercado, na cozinha, limpando, fazendo remarcação de preço, e aí eu conheci meu ex-marido. Fui, voltei para o interior para visitar minha mãe. Tirei um dinheirinho e voltei para o interior para visitar minha mãe, muita saudade da minha mãe, voltei. E aí conheci meu ex-marido - quatro horas do interior, numa festa de uma prima - que é um francês e foi meu primeiro marido. Ele estava terminando o serviço militar na Guiana Francesa e o sonho dele era viajar o Brasil, super apaixonado pelo Brasil. Viajar o Brasil inteiro com a bolsa, mochileiro. E aí a gente se conheceu, claro que a gente não ficou junto assim, porque eu estava bem traumatizada com os homens, não é? (risos). E aí ficamos conversando, ele na cidade, ele estava lá, um amigo o tinha levado para o interior para conhecer, porque ele queria mesmo era ficar dentro da cidade, era conhecer um Brasil de uma outra maneira, e a gente se encontrou três meses depois, e aí ficamos juntos, casamos.
P/1 - E ai você foi morar com ele?
R - Morar com ele. Ficamos juntos, morando dois anos ali na cidade, trabalhando, trabalhando em restaurante, ele trabalhando... Eu lembro de que ele tinha uma bicicleta (risos) e a gente ia atravessar a favela - a gente foi morar numa favela em Fortaleza - e pegava a bicicleta. Era uma hora e meia para ele ir para o trabalho dele, eu ir para o meu. E muito violenta a favela também, outra coisa mais violenta, no sentido onde eu já tinha vivido também a rua, eu não tinha medo dali, porque eu sabia que a gente que estava dentro era bem protegido.
P/1 - Que mais você lembra de memória desse período?
R - Desse período... Ah, era tão difícil porque... Você trabalha para comer. Eu não tinha nenhuma vontade também de ir para fora, eu não tinha esse sonho, como acho que tem muitas pessoas que eu conheço que... "Ah, a Europa, Europa"... A gente não sabe nem o que tem no nosso país; o país, ele é tão grande, é um continente, é tão maravilhoso. E eu não tinha esse sonho, mesmo com um francês, não tinha esse sonho assim de ir embora, não é? Embora para a Europa. Europa, não sabia nem o que era a Europa. Para mim, estava muito longe isso na minha vida: o que é ir para lá. Estava com uma pessoa que eu amava mesmo, que a gente se amava e que a gente teve uma história assim de almas. E tanto fazia para mim. Era difícil? Era difícil. E aí, voltando para o casamento, para a nossa história, quando a gente se casou, a mãe dele veio - o casamento aconteceu em Fortaleza e a mãe dele veio para o nosso casamento. Agora, quando ela viu o filho, ela falou: "Gente, o que vocês estão fazendo aqui? Vocês estão morando assim?" E para ela foi muito difícil vê-lo morando na favela, filho único. E eu lembro dessa coisa, dessa preocupação de uma mãe francesa, que chega, que tem um filho único, que o filho se apaixona por uma mulher que... Quem é essa mulher, não é? (risos). Quem é essa pessoa? Mas, mais uma vez, muita sorte. Porque tudo aquilo ali foi... Era muito profundo, era coisa de coração, de respeito, mas eu sentia que tinha um pouco ela, a mãe, meu filho. Eu lembro que ela, quando chegou em Fortaleza, olhou para ele e falou assim: "Mas o que você está fazendo? Meu filho, por que você está vivendo nessas condições?" Mas ela me abraçou. Ela falou assim: "Eu sou como uma mãe para você, viu? Se meu filho escolheu ficar com você, a gente vai conversando e a gente vai se conhecendo melhor, se sinta como minha filha". E aquilo ali, para mim, foi muito importante também nessa história, nessa relação que eu tinha com ele, que era de puro amor. E também porque tinha outros mundos, você como mulher poderia ter ido também para outros universos. Nos casamos, ela ficou com a gente, foi ela que deu a bicicleta para a gente ir trabalhar (risos), para o nosso trabalho, e aconteceu que ela ficou muito doente também, depressão, porque ele era filho único e o pai, ele tinha... O pai dele, ele não via há anos e ele tinha muita raiva também do pai, não é? Uma história muito forte também, e que ele não queria escutar nem falar do pai. Eu digo: “Gente, mas impossível você não querer escutar falar do seu pai, isso é um absurdo. Há quantos anos a sua mãe se separou do seu pai...”. Eu entrei... E eu sempre entrei em histórias (risos). Essa coisa do sem filtro, a pessoa chega ali, acho que deve ter algum espelho, e ela voltou. Voltou para Paris e ficou... Lembro que ela ficou muito doente, até então com a minha chegada até lá. E ele: "Mas eu não quero voltar, porque realmente eu nasci na França, mas o meu coração é daqui". Porque existem muitas dessas histórias, eu conheço muita gente lá que nasceu... Uma amiga que eu acabei de trazer agora para Humaitá – a Dominique - ela nasceu em Munique, na Alemanha, e nunca se sentiu em casa. Então, meu ex-marido também nunca se sentiu em casa. Ele nasceu na França, na Bretanha, mas nunca se sentiu acolhido na casa dele. Essa coisa... Eu acho que tem muito a ver com raiz, não é? Às vezes a gente nasce num país, quer ver um ou outro país que é mais atrativo e não se sente em casa, e para mim era todo um processo de dizer para ele que, por favor, não é? A grama, ela é sempre mais verde no quintal do outro. E que o trabalho, eu sempre acreditei, ainda bem, que esse trabalho era estar bem onde a gente estivesse, era essa a instrução de vida que eu tinha, do que eu ouvia quando era criança, que não tem fronteira, o mundo é muito grande, mas que a fronteira quem cria é o homem. Somos nós.
P/1 - E aí, você ficou quanto tempo nessa favela lá no Ceará?
R - Fiquei dois anos.
P/1 - E aí, vocês foram para onde?
R - Aconteceu esse período que ela ficou doente, ele não queria voltar, eu fiquei lutando com ele, eu digo: "Não, mas tem que voltar, porque a sua mãe... Você é filho único, vamos, vamos voltar, vamos para lá para cuidar dela, ela só tem você como filho, e vamos para lá para cuidar dela". E ele sempre falava assim para mim: "Mas você não entende. Lá é muito difícil, é muito frio, é outra cultura, eu tenho certeza de que você não vai conseguir ficar lá, porque com tudo que acontece aqui no pais, com tudo que a gente está vivendo, é melhor aqui" (risos).
P/1 - E aí você foi para lá?
R - E aí fui.
P/1 – Para a França?
R – Para a França. Mas ai foi muito... Foi uma história porque assim... Ele, como tinha terminado o serviço militar na Guiana Francesa, eu acho que o que aconteceu é que eles deviam uma passagem para ele para voltar para o país, falando do dinheiro, falando da condição financeira, que a gente não tinha esse dinheiro para voltar, e ele não queria, muito orgulhoso, não queria também, assim... Que a mãe ajudasse financeiramente. E aí, quase impossível, porque a gente trabalhava para comer. Tudo o que a gente ganhava era pouquinho, e a mãe dele falou: "Já que você não quer, eu vou... Pelo menos para a Joelma, aceita". Foi um trabalho para que eu aceitasse essa passagem para ir para lá, mas ele falou: "Tudo bem, você pode... Ela pode aceitar, e eu vou ver, a gente vai para a Guiana Francesa e a gente... Eu vou ver, porque eles me devem uma passagem para voltar para o país e eu vou pedir essa passagem de volta". Mas a gente tinha que ir até a Guiana Francesa, fomos até a Guiana Francesa, eu muito jovem, chegamos lá e aí ele não tinha pensado esse tempo, a gente chega lá e será que isso vai se resolver muito rápido? Não se resolveu (risos). Não se resolveu porque a gente teve que ficar uma semana dormindo no aeroporto. Até chegar na França, até chegar em Paris, que eu cheguei, fui primeiro, e ele veio assim, chegou um mês depois. Aí eu chego lá sem falar um “bom dia”, claro, não é? Porque eu não falava o que ele falava Português. E eu falava Português com ele, eu não falava Francês. E consegui, consegui, chegar lá. E ele chegou. Ela foi me buscar no aeroporto, a minha sogra, minha ex-sogra foi me buscar no aeroporto, que é uma mãe para mim até agora, uma segunda mãe. E foi muito louco, porque você está dentro de um carro e ela me mostrando a torre - Torre Eiffel - "essa aqui é a Torre Eiffel". Mostrando os pontos turísticos, eu entendia um pouquinho o que ela estava me mostrando, não falava, e fiquei um mês assim: "E aí, como é que eu falo com ela? E aí, como é que eu falo?" Aí vem aquela coisa da linguagem corporal, do corpo, como é que você fala com a pessoa, não é?
P/1 - E aí? Você cozinhava lá com ela?
R - É, ficava no dia a dia sozinha, porque ela trabalhava, era fiscal dos impostos, então ela saia de manhãzinha, chegava à noite em casa, eu ficava só em casa. Ficava cuidando da casa, ela mandava os amigos virem e ficar comigo um pouco, me buscar para sair, ficar com eles. E foi assim a nossa comunicação. Então ela falava assim... Ela falava para mim antes de ir: "Olha, tu liga a televisão, que eu tenho certeza que tu é inteligente, tu vai aprender bem rápido" (risos).
P/1 - E deu certo?
R - Mais ou menos. Porque eu tive que me virar como pude também. Foi difícil, claro, porque eu cheguei no inverno, cheguei no mês de novembro, no inverno, um frio horrível, e eu achei aquilo ali tão fechado - porque é, realmente, tão fechado - uma cultura tão fechada... Eu estava casada com uma pessoa que me amava, então, para mim, não tinha muito... Eu vivi outro destraçalhamento, porque eu digo: "Gente, mas o que é isso?" Até ele chegar foi... Aí se comunicava como podia.
[pausa]
P/1 - E aí, como foi…? O que mudou quando ele chegou?
R - Ah, mudou muita coisa, porque a gente se comunicava em Português e para mim foi assim, o pilar que chegou. Aí, ficar foi outra história. Porque aí eu comecei a me interessar pela língua, porque também eu ficava muito apavorada sem entender o que as pessoas falavam, e muitas vezes eu pensava assim: "Nossa, estão falando super mal de mim". E, na verdade, não era, eles queriam só me ajudar. E aí, quando ele chegou, eu fui estudar, ele foi me ensinar, ela também foi me ensinar. E eu lembro que eu tinha vontade assim muito grande de ser independente, de não querer viver assim, por exemplo: "Ah, mas eu estou na casa da minha sogra, o que é que eu vou ficar fazendo aqui na casa da minha sogra?" Que já tinha desdobrado tudo isso, ai eu digo: "Ah, não, isso aqui é pura dependência. Não, eu tenho que fazer alguma coisa". Então, esse salto na língua francesa foi de vontade de querer também ficar... Dependência, ter nosso lugarzinho, nossa casinha, e eu lembro que uma vez a gente estava na rua dela e eu vi um restaurante que estava se construindo, aí eu pedi para ele assim... Eu falei assim: "Olha"... Eu digo: Loano - o nome do meu ex-marido - falei para ele: "Vamos parar aqui nesse restaurante que eu quero trabalhar, eu não quero ficar sem fazer nada". Já estava entendendo, não é? Seis meses depois, já estava entendendo bem o Francês, tudo. Eu digo: "Eu quero trabalhar, não quero ficar aqui dependendo da minha sogra". Aí eu lembro de que ele bateu na porta do restaurante, a dona do restaurante saiu e ele perguntou: "Vocês estão precisando de alguém?" Ela falou: "É, o restaurante vai abrir daqui a uma semana. Estou precisando sim". Aí ele me apresentou, ela falou assim: "Você pode vir, a gente vai ter a entrevista com você, você quer trabalhar?" Eu digo: "Quero". E aí... Mas eu não falava Francês, não é? Eu não entendia, estava entendendo, algumas palavras eu falava. Aí eu lembro que o dia dessa entrevista chegou, fui, me apresentei e ela falou para mim assim: "Você fala Francês?" "Falo Francês". "Então a gente pode continuar amanhã". "Tá bom" (risos). Mas eu não falava e era para trabalhar como assistente de cozinha. E aí comecei a trabalhar. Aí, quando ela me pedia para buscar uma cenoura, eu trazia uma batata, e ela percebeu. Nisso, ela percebeu muito que eu não falava, mas aí ela olhou assim para mim e falou assim: "Olha, você tem muita vontade e você vai ficar, eu vou lhe ensinar o Francês". E aí fiquei trabalhando com ela. Aí não tive muito tempo também para ir fazer um curso, porque já tinha começado a trabalhar e eu tinha muita vontade de ter meu lugarzinho com ele. Até então ele não estava trabalhando, ele muito novo, 22 anos, ele não estava trabalhando, nunca tinha trabalhado, assim, trabalhar, não é? Aí eu digo... Então fiquei trabalhando com ela e ela me ensinou. Ela me ensinou e eu fui aprendendo, no dia a dia, a língua. Éramos três pessoas no restaurante: ela e uma menina - uma garçonete - e eu trabalhava com ela na cozinha. E fui aprendendo, aprendendo, aprendendo e fiquei muito feliz porque o primeiro salário, eu lembro da minha ficha de pagamento. Eu disse: "Oba, a gente vai alugar um apartamentinho pequenininho, a gente vai morar". Porque estava tudo bem, mas a gente... E eu fiquei muito feliz porque foi esse trabalho que levou a gente a ter nosso primeiro lugarzinho, nosso primeiro apartamentinho.
P/1 - Você tinha quantos anos?
R - Vinte e quatro... Vinte e três, vinte e quatro.
P/1 - E ai você achou muito diferente a cozinha lá em relação à daqui?
R - Não. Eu acho que eu não estava nesse momento assim para comparar... Não, não achei tão diferente, era cozinha tradicional francesa e bem tradicional. Então, para mim, foi tão maravilhoso ter esse trabalho que, Nossa, desdobrou muito... Muitas coisas aconteceram e foi muito bom para mim. E eu aprendi muito rápido também, com muita vontade. E eu sempre trabalhei com a cozinha, em todo lugar em que estivesse - aqui no Brasil também cozinhava – então, para mim, foi ótimo, foi muito bom. Também não era tão complicado assim, a cozinha.
P/1 - E aí vocês ficaram nessa assim quanto tempo? Que você ficou lá trabalhando?
R - Três anos.
P/1 - Três anos?
R - Arram.
P/1 - E aí? (risos)
R - E aí, nesses três anos foi assim: estava tudo muito bem, mas estava também essa coisa, sabe? Quando você chega num país que você sai de um lugar assim tão pequeno, tão... Que você não viu nada, e eu comecei a achar aquilo ali muito estranho, cultura (risos). Eu digo: "Nossa, que povo fechado". A gente sentia assim o chakra do coração muito fechado, era muito na mente as pessoas, sentia que essa comunicação com o coração, ela não era tão assim como aqui, mesmo com tantos problemas no país e tudo que eu tinha vivido, tinha esse chakra do coração muito aberto, da gente falar a língua e entender o que está acontecendo. E eu sentia o povo muito fechado e comecei... Passei por um período também muito difícil, que era essa explosão cultural para mim, que era muito forte e muito violenta, porque toda a violência que eu tinha, entre aspas, até então, e para mim era outra... Era dar um salto ali onde eu não estava entendendo nada. E porque eu não sentia também esse... Essa: "Ah, está tudo bem". Aí você chega, dá um sorriso para as pessoas assim, dentro do Metrô, na rua, e as pessoas, elas estão muito apressadas, principalmente na França que tem uma cultura muito fechada, então eu comecei a odiar, digo: "Gente, eu quero ir embora, não quero ficar aqui não". Ai eu digo: "Não, quero ir embora. Nossa, está muito difícil, não consigo". Porque o meu mundo era ele e a minha sogra, como uma mãe. Mesmo com todo esse amor que sempre foi ali disponível, que estava sendo disponível para mim, eu digo: "Ai, não estou aguentando ficar aqui". Que processo, não é? Foi outro processo. E aí, quando terminou... Aí, no terceiro ano, eu digo: "Vamos embora (risos), eu quero voltar. Quero voltar porque eu não aguento ficar aqui". E eu sonhava muito à noite, tinha muitos sonhos, e também acreditando que era o meu processo de vida que estava passando: "Ah, você tem vinte, vinte e dois anos". Já é outra fase, a adolescência nem fala porque eu não vivi esses períodos que são tão acentuados na vida de praticamente todo mundo, eu tenho muita sorte hoje, porque eu conheço muita gente maravilhosa. Mas aí as pessoas me falavam de adolescência, me falavam disso e eu vivendo um processo interno muito profundo ali, recusando essa cultura que era tão fechada para mim, e eu digo: "Eu quero ir embora". E eu lembro de que a gente voltou. Ele: “Está bom, se você não quer ficar, eu também não quero ficar". Ah, ele adorou, não é? Não quero, não é? Está ótimo. Isso é muito bom porque a gente volta (risos). E voltamos. Voltamos, do nada. Chegamos novamente em Fortaleza, na cidade grande, a gente já tinha um pouquinho de dinheiro, aí a gente pôde navegar um pouquinho melhor, lembro que fui visitar a minha mãe. Ele alugou um carro e a gente foi visitar minha mãe. E eu cheguei... Cheguei, imagina, cheguei com ele, casada, não é? (risos). "Aí, eu apresento... Vou apresentar para a senhora o meu marido". E ela, com todo amor, abraçou, meu pai também, ele... Acho que era o primeiro estrangeiro naquele interior, naquele sertaozão do Ceará, um homem de um metro e noventa chegando assim no interior. Eu lembro de que as pessoas vinham olhar assim na janelinha, naquela casinha de... Aquela casinha taipa, vindo olhar assim para ele e tudo, e minha mãe começou a conversar comigo, falar: "Minha filha, eu estou sentindo que você está tão magoada, está tão... Está tão sofrida. O que é que está acontecendo?". Eu conversei com ela, falei para ela: "Mamãe, eu estou morando lá e não estou aguentando esse lugar, eu não consigo ficar, eu odeio as pessoas, eu não gosto das pessoas, o povo não comunica, o povo é muito infeliz". Aí foi outro processo, porque a minha mãe olhou para mim, falou assim: "Mas, Joelma, você não está entendendo, não é? Que não tem fronteira. É você quem está criando isso, minha filha. Se você decidiu estar lá, você foi... Por que você foi? Você tem que ver tudo isso, com você. Por que você foi? Você não pode sair de um país odiando as pessoas. Sair de um lugar odiando? O que é isso, minha filha? A gente não ensinou isso para você". E eu lembro que eu chorei muito. Eu digo: "Nossa, mas o que está acontecendo comigo? Por que esse ódio de uma coisa que eu não entendo, de uma coisa que eu não conheço? Como é que você pode criticar e julgar uma coisa que você não conhece?". E eu lembro que a gente ficou seis meses só e aí voltei... Voltamos para Paris de novo. Aí foi todo um processo. Eu digo: "É, eu vou ter que entender o que está acontecendo, porque eu não quero ficar aqui odiando". Aí me deu vontade assim de entender mais um pouco a cultura, e voltando para lá, para Paris, eu fui trabalhar em casa de repouso com os anciãos e eu fiz... Descobri que durante esse período, como eu era muito curiosa, comecei a estudar, ler muito, lia muitos livros, eu entrei naquela coisa de ler sobre a Revolução Francesa, de ler um pouco a primeira e a segunda Guerras Mundiais, olhar as histórias, não é? Porque digo: “Por que eu estou lendo coisa tão pesada assim?” Mas eu via todos os filmes e queria entender, e lia muito, e lia muito, muito, e uma amiga falou assim para mim: "Para você está sendo difícil, não é? O restaurante é muito trampo, eu posso lhe apresentar uma amiga que tem uma casa de repouso, você pode fazer uma formação para ser auxiliar, tipo auxiliar de enfermagem". Descobri que... Fui, fui nessa entrevista para poder trabalhar nessa... Você tinha que passar, não é? Tinha que fazer... Tinha que fazer um exame, então uma prova oral e escrita, descobri que eu sabia... Eu sabia escrever em Francês (risos). E tinha que... "Ah, mas você fez que série?" Eu digo: "Ah, eu posso ser verdadeira com você? Não fiz nenhuma série". E aí ela olhou para mim e falou assim: "Faz a prova". Aí eu fiz e passei, fui trabalhar com os anciãos, em casa de repouso. A minha formação era trabalhar com os anciãos, porque tinha doença de especialização - doenças de Alzheimer e Parkinson - aí eu fui trabalhar. Para mim foi um processo muito bonito. Então eu disse: "Gente, é aqui que eu vou entender um pouquinho mais a cultura, não é?" E foi muito bom porque, trabalhando com os anciãos, eu entrava mesmo naquele lugar, já falava, já falava bem Francês e entrei, fui entender, querer entender um pouco a cultura. E fui entendendo pouco a pouco que não tinha motivos para você odiar um país, uma cultura que você não conhece. Aí fui ficando, fui ficando... Claro que não foi assim, tão assim, tão... Ai, estou ficando, não é? Muitas coisas aconteceram em nove anos, porque eu sou muito cigana, não é? Eu sou nômade do mundo. Então eu digo: "Então tá!". Sempre me organizei para poder sair do trabalho, vir para cá, ir para outros países e teve uma virada aqui: meu ex-marido queria conhecer o mundo inteiro, como mochileiro. Eu digo: "Olha aí, colega, não vai dar porque mochileira eu já sou, não é? Olha de onde eu estou saindo. O que você quer fazer, realmente, da sua vida?". Ele trabalhava aqui e ali, aí voltando para o restaurante conheci uma menina que trabalhava comigo, que era garçonete, que o marido dela trabalhava na Air France, ele era comissário de bordo. Aí eu lembro que eu cheguei em casa e falei para o meu ex-marido, falei assim... Eu digo: "Você quer conhecer o mundo todo? Você não está feliz aqui, mas e se você fizesse a formação para ser comissário de bordo?" Ele falou: "Mas eu não vou ser aceito porque eu tenho um metro e noventa, eu sou muito grande". Eu digo: "Mas você não sabe. Faz." Ele fez. Ajudei muito trabalhando também, porque essa formação era cara na época, metade foi paga pela Cruz Vermelha e metade era do nosso almoço. E aí ele conseguiu. A gente começou... Então esses nove anos foram assim: ele viajava muito. Quando eu podia viajar, deixar alguém no meu lugar, também viajava com ele. E não foi muito quieto assim: “Ah, está nove anos trabalhando todo dia, sai, chega em casa". Não foi muito assim a minha vida.
P/1 - E você, nesse período todo, você tinha assim alguma curiosidade a respeito dos povos indígenas? Da luta mesmo?
R - Tinha.
P/1 - Você se reconhecia Huni Kuin?
R - Sempre me reconheci. Sempre. Mesmo tendo tido essa... Essa... Como é que eu posso dizer? Mesmo que tivesse essa coisa que foi muito assim… Traumática. De: "Não, você não pode, você não pode". Mas dentro tinha, e eu acredito que durante todo esse período, essas histórias, essas passagens, essas mudanças, eu sempre acreditei que eu tive uma proteção muito grande dos espíritos da floresta. Como eu falei antes, isso me acompanhava sempre. Tinha, sim, esse reconhecimento. Ai a pergunta é: "Mas você pensa... Pensava em voltar?" Não, eu não pensava em voltar. Porque eu acredito... Eu acreditava também que não era o momento, eu estava vivendo outras coisas. Mas, sim, sempre estava muito... Pisar num chão fora, fazer todo... Atravessar toda essa história dessa maneira. Para mim, o que estava muito certo comigo assim, o foco, essa... Esse bastão do guardião, da guardiã, eu tinha. Que era a tradição, que era a cultura, que era a terra, que era o sagrado mesmo. E era essa tradição que sempre me(Assopra)... Nesse sopro de vida, que era assim: "Olha, você não vai ficar tanto tempo aqui, vai, assopra". Porque você deve conhecer os sopros. Não está bom? Assopra.
P/1 - Mas ai, por exemplo, essa pulseira que você está usando?
R - Arram.
P/1 - Tradicional do seu povo. Qual foi o momento em que você voltou a ter alguma prática e a buscar assim as raízes de novo?
R - Essa pulseira quem fez foi uma irmã. Durante todo esse tempo, eu não fui buscar nenhuma... Como tecer, como... Como fazer, não é? Mas tinha nos cantos, que eu lembrava – quando eu era criança, a minha mãe cantava muito, e na aldeia as mulheres sempre cantaram - e que a cultura, que a tradição dos Kenes(desenhos geométricos Huni Kuins), elas estão muito assim... Fechava o olho eu via, mas eu não tive esse contato: "Ai, você vai tecer?". Não, porque eu estava vivendo outras coisas, eu estava vivendo outras histórias. E a pergunta é se eu fazia alguma coisa com essa tradição?
P/1 – É. Qual foi o momento em que você foi mais para frente assim, que você começou a fazer algum resgate.
R – Então... Esse resgate a gente vai chegar lá (risos).
P/1 - A gente vai chegar lá. Pode continuar.
R - A gente vai chegar lá. O resgate, não é?
P/1 - Mas pode contar desse período aí.
R - Desse período...
P/1 - Aí ele foi trabalhar lá na... Como comissário.
R - Foi, ele foi comissário. Aí, a vida já começou a ter outro sentido, já foi modulando. Porque uma coisa é você trabalhar num restaurante ou trabalhar com anciãos e ter aquela vida do europeu, entre aspas: você trabalha, volta para casa, trabalha, volta para casa, e é a mesma vida, e a mesma coisa. E, para mim, eu não via muito bem assim, eu dizia: "Ah, não, se a gente...". Eu falava muito para o meu ex-marido assim... Dizia: "Olha, gente, você foi à escola e você fez dois anos de Geografia. Como você não pode ter... Se você teve todas essas oportunidades na sua vida, como você não faz mais?". Eu sempre acreditava assim, porque não é que eu odiasse esse mundo da Educação, entre aspas, que para mim eu não entrei, mas que eu achava que era muito importante também. Então, esse momento da nossa vida foi muito importante também porque a gente já começou a melhorar um pouco, sabe? Ter mais liberdade de viajar - porque eu não pagava também, como mulher dele eu não pagava as passagens, então a gente viajava quando eu podia. Não viajava sempre porque eu tinha o trabalho que era ficar ali. Mas quando tinha as minhas férias, viajava. E aí, abriu outro leque de beleza, de tranquilidade, de... Até financeiramente também foi mais tranquila a vida, então poder também, por exemplo, estar numa cidade como Paris... Porque eu sempre morei em Paris e também comecei a me interessar um pouco: "Ah, gente, aqui está cheio de Arte, tem muita cultura". Comecei a me interessar mais um pouco também, a gente começou a viver outras coisas, outras maneiras de se relacionar com as pessoas também. Também com a cultura, viajar dentro da França, que a França é um país lindo. E as coisas foram ficando mais... Mais tranquilas (risos).
P/1 - Qual é uma memória forte assim, que você tem, desse período de tranquilidade?
R - Desse período de tranquilidade era... Porque tudo isso aconteceu comigo, dessa maneira que me tirou tanto lá da floresta, eu me senti... Eu tinha muito medo, era um medo profundo assim de me sentir desraizada, me sentia muito assim, por isso que eu não queria ficar tanto lá, porque a minha raiz estava fincada, e era na floresta. Então, tira esse medo de que essa cultura, que esse país, ele me arrancasse dessa tradição, que é a mãe Natureza mesmo. A memória é o medo, acho. De me sentir um pouco estraçalhada nesses mundos, assim de estar lá e aí: "Gente, você não vai se perder aqui dentro também, não é minha filha? Porque... Você vem de onde?". Teve esses questionamentos. Então, quando isso começava muito a aparecer... Muito a aparecer... Porque quando você está lá, tem um eco muito profundo, que você não está lidando com a vida do outro, que é muito assim, com muito brilho você está lidando com você. Com você, tudo bem, você pode estar trabalhando, mas tem uma coisa que é muito individualista na Europa, falando da França, mas eu acho que em todos os países da Europa a gente vive uma cultura de individualismo. Então, para mim, aquilo ali balançou também, foi outro balanço, no sentido onde: "Nossa! E aí? Como é que você vai segurar?". Porque até então, a igreja, a religião para mim, o que foi, não é? Então, tinha que segurar. Aí, eu me via fazendo práticas como a sofologia, que a minha... A ex-sogra, que é uma mamãe para mim, que eu insisto em dizer porque foi uma mãe e continua sendo, mesmo depois da separação ela... Contei toda a minha história para ela e ela tinha um cuidado muito especial comigo, então o que é você estar num país... Um grãozinho de areia, que eu sou também, lá eu digo: "Mas esse grãozinho de areia tem que lembrar, porque é outro mundo também". É outro mundo, é outra cultura, é outro tudo também.
P/1- E como seguiu a sua vida?
R - A minha vida, ela seguiu... Porque... Engraçado, não é? "Tranquila". Porque tranquilo não é a palavra, porque nunca foi tranquilo. Mas ela seguiu normal, se a gente pode falar de normal, normalidade, foi normal. Conheci muitas pessoas, muitos amigos, tinha uma... As pessoas, elas se interessavam em conversar comigo, saber, aí abre aquele leque assim um pouco da curiosidade: "De onde é que você vem?”. Mesmo assim nas amizades: “De onde é que você vem?” Você conta a história, as pessoas ficam super interessadas... Ficavam super interessadas. "Nossa, floresta?". "Floresta Amazônica". "Amazônia?". Muitas vezes eu me sentia assim como um pássaro exótico no meio de todo mundo (risos). É, porque eu via muito: "Mas, Rio de Janeiro. O Brasil é o Rio de Janeiro". Eu digo: "Ai, colega, você não foi ao Brasil. Se você fala que o Brasil é só Rio de Janeiro, mulher de fio-dental, acho que você tem que parar de olhar televisão, porque não é muito... Não é só isso, tem outras coisas". Então me segurava muito nessa humildade mesmo assim, nessa memória que tinha que me segurar na simplicidade, de quando você é criança você não tem energia, você não tem a geladeira, tudo isso. Então, para mim, era beirar mundos que têm tudo isso. Eu me segurava um pouco nessa imagem, sabe assim? Da criança, do mato, das pinturas, dos cantos, e isso me trazia, me trazia, ia me trazendo. Mas até então, tinha que trabalhar e eu estava contente, sempre agradeci muito por ter tido essa oportunidade também lá fora. Nunca me senti excluída, excluída nesse país. Mesmo me sentindo, muitas vezes, um pássaro exótico, porque era muito isso também, mas nunca me senti assim... As portas nunca se fecharam, tanto para trabalho, tanto para amizade, tanto... E eu sempre acreditando que é uma proteção mesmo, é uma proteção da vida, é uma proteção da Natureza mesmo, que a gente fala que a Natureza se manifesta quando ela tem que se manifestar.
[pausa]
P/1 – Aí, qual foi a primeira vez que você tomou a ayahuasca?
R - A primeira vez que eu tomei a ayahuasca eu acho que a minha mãe estava grávida já. E tinha uns trabalhos, a bebida era feita... A idade, você quer saber a idade? É isso?
P/1 - Não, a história.
R - Primeira vez... Criança, não é? Pequenininho, quatro anos, cinco, a gente tomava, faziam... Eles faziam um chazinho e a gente tomava, tomava, ficava, se reunia, tomava.
P/1 - Depois que você ficou grande, continuou tomando?
R - Arram.
P/1 - Lá na França mesmo?
R – Ah, não, é uma outra história, porque quando eu cheguei na França... Eu sempre fui um pouco assim, sabe, com essa coisa da medicina... Da medicina... Não queria fazer parte de grupo só para tomar medicina por tomar medicina, então demorou tempo, eu fiquei quase nove, dez anos, uma coisa assim, sem tomar medicina lá. Mas sempre que eu vinha para cá, tomava. Mas lá, conheci muitos grupos, muitas pessoas que falavam da ayahuasca, mas eu não sentia confiança de tomar medicina assim, em qualquer pessoa, em qualquer lugar, a história da medicina para mim sempre foi muito sagrada e de muito respeito, para mim não estava muito a fim de: "Ah, porque eu tenho que tomar a ayahuasca, porque eu vim dessa tradição do Nix Pãe, das medicinas". Tranquilo, não confiava muito, não tinha confiança.
P/1 - E ai, que histórias mais você viveu?
R - Ai, eu estava falando do... Eu estava falando da minha história do meu ex-marido, não é? E que eu casei de novo (risos). Me separei, eu me separei dez anos depois, me separei. Até porque também foi um período muito, assim, muito difícil, eu acho que os meus... Quase os meus 30 anos chegaram assim arrebentando com essa bagagem que eu tinha muito assim, muito forte, e eu comecei a viver ali um período onde eu lembrava muito de tudo o que aconteceu, e eu tive um período de difícil entendimento, de... Nossa, foi muito difícil. E tem as fases, não é? Existem as fases da vida, da idade, que eu estava lá já, então já estava em outro... O tempo era outro, era um tempo mais assim, mais orgânico da Europa, mais tranquilo, então isso vinha muito... Vinham muito as minhas histórias, vinham muito as minhas histórias de vida, vieram umas com uma certa dose de incompreensão e eu comecei a passar um processo muito difícil comigo mesmo, de não entender mesmo, de... Digo: "Nossa, mas por que tudo isso aconteceu?" E tive... Com os meus 29, 30 anos, eu tive uma queda bem profunda, no sentido onde digo: "Está muito difícil". Porque a gente fala também muito assim: "Ah, mas você vai ver um terapeuta". Porque conta uma história de vida dessas que tem tantas forças, que tem tantas coisas, as pessoas... E também eu estava num mundo onde as pessoas lidavam com terapias, histórias muito traumáticas, de muito trauma, e tudo isso. E eu digo... E isso mexia muito comigo também, mexeu muito também esse período em que eu estava trabalhando com os anciãos, nas casas de repouso, as histórias deles me chocavam muito, que eu digo: "Gente, não acredito que a gente vive num país onde a gente fala: "Liberdade... 'Liberté, egalité, fraternité', e os nossos velhos... Estão todos aí nessas casas de repouso, muitos estavam ali também - voltando para isso - muitos estavam ali porque os próprios filhos tinham colocado, porque você chega até uma certa idade, 60 anos, você já tem uma coisa com envelhecer, que eu acredito que seja um traço da nossa sociedade hoje de, assim... A mulher, ela com 30, 40... Porque também nas aldeias, acho que você conhece um pouquinho a história, que a gente tem filho muito cedo e tem aquela coisa da juventude, do corpo, a gente está falando de corpo, de aparência, então, essa coisa de envelhecer era muito difícil. Para mim foi muito difícil na França, na Europa mesmo assim, porque os velhos, eles... E também essa cultura onde se coloca as pessoas numa casa de repouso, os filhos colocavam as mães em casa de repouso, e aquilo para mim foi muito difícil, trabalhar também nessa área. Eu trabalhava com Parkinson, com essa especialidade, Parkinson e... Era a outra especialidade, Alzheimer. Então, lidar com isso, para mim, foi assim um período muito delicado também, porque como... Era muito desumano. Eu via a casa de repouso muito desumana. É tudo muito certinho, tudo muito bonitinho, todo mundo drogado, todo mundo com medicamento, tinha hora para o seu copinho, e aquilo ali para mim... Não é que eu estivesse vendo aquilo ali como se fosse uma coisa normal, e aquilo ali foi muito violento, porque eu digo: "Nossa, como é que você está... O que eles estão fazendo com os velhos?". E isso, para mim, mexeu muito comigo. Então eu me senti muito mal, porque eu digo... Não é nem a ideia, não posso falar da ideia de como você vê os anciãos, dizendo vamos falar do velho e da velha, dos velhos. Então, aquilo ali para mim era muito violento, também esse período, não é? Que eu trabalhei nesse lugar, muito, muito, de muita violência, e aquilo ali foi ficando, foi ficando... Então fui pensando... Foram... As coisas foram somando, foram pesando, sabe? Ficando pesadas. E aí, eu separei do meu ex-marido. Não aguentei. Explodiu. Porque eu disse: “Vai chegar um momento em que eu vou precisar ficar só para fazer esse trabalho e eu não vou querer também ficar jogando uma carga no outro, mesmo que esse outro seja, talvez, a minha alma gêmea. Ele não merece, eu tenho que estar sozinha aqui para colocar uma linha no chão e refazer um pouco essa minha história, porque essa é a minha mala. Então, tem aquela coisa assim que é muito simbólica, que diz assim: "Nossa, você tem muitas... Você tem ombros para levar". Tenho, mas chega um momento em que você tem que jogar ali, e aí eu... Aí, falando da minha separação, eu preferi ficar sozinha.
[pausa]
R - E aí foi isso, e eu decidi separar. Até separar também, porque para mim era muito importante eu encontrar a minha própria força, minha própria luz. Porque esse homem, esse ex-marido, ele era tão maravilhoso... Eu tive muita sorte, porque é uma pessoa muito, muito, muito, muito especial e que eu o tinha como referência em todos os sentidos: como pai, como mãe, como tudo. Aí, chegou um momento em que eu disse: "Não vai dar para ficar tendo essa referência, eu não vou andar na sombra de uma pessoa que eu amo, acho que amor não é isso". Então, estava tudo certinho, tinha casa, tinha tudo, tinha viagem, tinha tudo, e aí veio assim uma coisa, eu disse: "Ah, minha filha, é cíclico, a sua vida é isso mesmo. Vamos". E separei. Para poder encontrar o meu espaço.
P/1 - E para ele? Ele aceitou tranquilo?
R - Não, não aceitou tranquilo não (risos). Não aceitou tranquilo não, demorou muito tempo para ele aceitar e foi muito difícil também para ele, e foi difícil para os dois. Mas foi necessário para o crescimento de cada um, porque até então ele queria ter filhos e eu não queria. Porque eu já tinha visto tanta coisa, essa coisa de... Porque a gente tem isso nas aldeias e eu acho que... Não estou falando só da aldeia, não estou falando só de uma tradição indígena não, acho que essa coisa da mulher... A mulher... É como se ela... Ela nasceu para ter filhos. Ah, se ela não tem filho, não está bom, ela vai morrer sozinha, é como se fosse uma coisa para mim que aquilo ali me pesava muito. E eu digo: Por quê? Por que eu não quero ter filhos? Por exemplo, eu falava para ele: "Eu não quero, não estou preparada para essa maternidade, eu não estou preparada". Porque eu já tinha visto tanta coisa... Digo: “Como é que você tem filho e joga filho no mundo, assim”? "Ah, não, mas... É, mas tem a tradição”. É verdade que, na aldeia, as pessoas falam assim: “Aí tem quatro, tem cinco, tem oito'". Como a minha mãe teve oito. E eu, para mim, aquilo ali eu sempre questionei muito, sempre questionei muito. Eu dizia: “Não, não sei, eu não quero”. Agora, tinha outra parte que dizia assim: "Ah, minha filha, mas você vai ter que ter um filho, aí quem vai olhar para você?" Não, mas quem vai olhar para mim sou eu mesma. E aí, nesse período em que a gente esteve casado, eu engravidei quatro vezes e abortei. E aí, chega nesse período onde a gente está chegando naquele lugar, onde eu tive realmente que dar... Me dar liberdade e dar liberdade para esse ex-marido, para voar. Porque eu sabia que ele queria muito ter filhos e eu não estava preparada, não era uma questão de confiança, de desconfiança dele não, é que para mim a maternidade era em outro lugar. E aí decidi separar.
P/1 - Só posso fazer um pequeno parêntese? Você falou agora que sua mãe teve oito filhos, esses irmãos você tinha contato com eles ainda?
R - Não.
P/1 - Não.
R - Ela teve oito filhos... Ela teve sete filhas e um menino, e eu tive contato com o menino, que morreu, e as outras eu não tive contato. Assim... Contato... Não cresci com isso.
P/1 - Desde aquela separação lá?
R - Desde aquela separação.
P/1 - Nunca mais?
R - Assim... Nunca mais tive. Crescer, não cresci com eles.
[pausa]
R - Fiquei lá.
P/1 - Lá na França.
R - Arram.
P/1 - E ele outra casa?
R - Outra casa. A gente tinha... Ele estava... A gente tinha se programado de morar na Espanha, porque Paris é muito frio. E isso, aquilo, e no meio disso, falei: "Olha, a gente vai se separar". E ele foi embora, ele foi para a Espanha, foi embora para a Espanha. E ele vinha sempre, porque a gente tinha um apartamento juntos, tinha um apartamento de função da Air France e pagava pouco, e eu trabalhando sempre, e aí separei. Nos separamos. Mas foi a melhor coisa que eu fiz. Porque dois anos depois ele conheceu uma menina e se apaixonou, e agora tem três filhas. E foi muito bom. E entendi - e estava sempre entendendo - que foi a melhor coisa mesmo, assim, porque você vive dez anos com uma pessoa, você diz assim: Nossa, tem... Às vezes, a gente fala de amor, mas eu não sei o que é realmente, muito delicado, é um fio muito... É muito fina essa história, porque vendo como essa relação... Porque eu digo... É, sei lá, amor não é estar acomodado e criar aquela dependência do outro, difícil, então foi a melhor coisa que eu fiz. Tanto para mim como para ele.
P/1 - E você se separando, o que aconteceu nesse novo ciclo da vida só você?
R - Nesse novo ciclo da vida aconteceram muitas coisas, porque também eu estava separando porque ele estava muito ali num lugar onde estava... Eram os amigos do casal, então eram praticamente as mesmas pessoas, a gente se encontrava, fazia sempre a mesma festinha, todo mundo tomava vinho, fumava maconha e eu olhava para aquilo ali e dizia: “Gente, eu quero ver outras pessoas, eu estou de saco cheio de ver sempre o mesmo povo. Não é possível, eu quero ver outras tribos, não dá para ficar só aqui, não é possível”. E ele muito... Pessoa muito boa, mas era um pouco mais fechado. E eu tinha vontade de conhecer outras coisas. E aí saí. Deixei meu trabalho também, em casa de repouso. E conheci uma amiga que trabalhava lá na Favela Chic. Em Paris tinha um restaurante que se chamava Favela Chic e eu fui trabalhar na cozinha. E aí conheci essa amiga, que é de São Paulo, Milena, que é uma judia por parte de pai e mãe, a gente se conheceu, ela lá fazendo uma escola de moda e trabalhando comigo também, no vestiário... Uma trabalhava na cozinha e a outra no vestiário, ai ela me chamou para sair com ela: "Ah, vamos para a festa?" Ela já vinha com todo um histórico daqui, de balada, de não sei o quê, eu totalmente... Não sabia nem o que era balada. Eu digo: “Meu Deus, o que é isso?” E nesse período, só. E aí conheci essa menina, fui para a festa com ela e tudo (risos). Ah, fui me divertir um pouco, não é? Mas um pouco traumatizada com homem, essa coisa do homem, que eu digo: "Meu Deus, que saco". Mas estou saindo para me divertir, não para procurar ninguém, está tudo bem onde eu estou. E ai me diverti, conheci outros mundos, outras pessoas também, e conheci muitos... E ai até... Dois anos depois, conheci o meu futuro... O meu marido agora. Aí me casei de novo.
P/1 - É brasileiro ele?
R - Não, ele é francês. Agora, foi muito incrível... E muito louco também. Porque o meu marido trabalhava na noite, com os djs. O nome dele é Jean François e eles o chamavam de "Jeff, o facilitador". E ai, eu conheci essa pessoa pela qual me apaixonei também, porque... Ah, você está sozinha... Eu digo: "Gente, é o momento de abrir o coração novamente". E conheci essa pessoa, que é o pai da minha filha - porque eu tenho uma filha de 11 anos, nós temos uma filha de 11 anos, se chama Juma - e foi muito bom porque foi outra virada. Ai eu entendi um pouco o que é também... Não sei se é pretensão dizer, que eu conheci o que é esse amor, amor, a liberdade de você estar com uma pessoa e ir traçando caminhos juntos. E o que é esse sentimento que a gente sente de amor, a gente fala do amor, que é liberdade, depende até onde vai a liberdade, é um pouco assim, mas eu, nessa relação, eu tive, realmente, esse presente de estar com uma pessoa que está cocriando comigo, a gente trabalha junto, a gente faz tudo junto. E foi ele quem me empurrou para contar um pouco a minha história. Se eu estou aqui contando, é graças a ele.
P/1 - Como é que ele fez isso?
R - Ah, nós nos conhecemos e ficamos juntos. Quatro meses depois, eu estava grávida. Eu estava na Índia, e quando eu o conheci, ele já tinha planejado ir embora da França, de Paris, e morar no México. E aí, estou lá na Índia, estou lá em Goa, com uma amiga, e ele ia para o México. E aí estava lá na praia, numa festa. Aí eu digo: "Nossa, que vontade de vomitar". Aí descobri que estava grávida, ele colocou um teste nas minhas coisas e a gente... Eu lembro que eu liguei para a minha amiga, apavorada. Digo: "Meu Deus do céu, o que está…". O mundo caiu, não é? Ela falou: "Mas para com isso". Ela começou a me falar: "Jô, vocês se amam". E a gente se encontrou no México. E aí, a minha gravidez, durante um ano fiquei viajando. Viajando com ele. Casa. Deixei a casa, apartamento alugado, a gente se encontrou, e agora a gente tem uma linda filha que se chama Juma. E aí ele muito assim, sempre me aconselhou falar, de não ter medo, porque até então era muito... Mesmo assim, ficava quietinha ali, não tão quietinha, mas de contar, falar da sua vida, falar da sua história. Isso para mim era muito difícil, eu nunca tive essa coisa de chegar e falar para as colegas, para as amigas: "Aí, vivi isso, vivi aquilo". Não tinha muito essa... E nem tinha vontade, até pelo medo do julgamento também. Então levava muito aquilo ali comigo. E a gente se encontrou, tive a minha filha na França e aí tivemos uma sociedade com quatro amigos, de abrir um projeto que se chama sol semilla, que é de onde vem essa minha história da cozinha, com a cozinha intuitiva, Superfood. E ai, a gente... Entrei no mundo que é o mundo de que eu gosto, que é esse mundo da alimentação ligado com o que eu vivi. Então, quando eu conheci essas pessoas, entendi que eu podia também ficar em Paris de uma maneira mais diferente que a gente...Dessa empresa, a gente ia buscar, por exemplo, no Peru, a maca. Aqui, o açaí. Valorizando pequenos produtores. E eu criei uma cozinha que é puramente intuitiva para comunicar com esses alimentos, porque a cozinha vegana, não é? Porque o produtor de cacau, ele é do Equador, ali do Peru, e as variedades são variedades muito, muito, muito, muito, muito boas. Então eu digo: “Gente, estou entrando num projeto que é, realmente, um sonho para mim, porque eu posso ficar aqui fazendo o que eu gosto. Claro que não estava pegando a acerolinha do pé, mas... Aí, criei esse projeto de cozinha intuitiva para comunicar sobre esses alimentos, já viajamos para visitar os pequenos produtores e ficamos lá oito anos com esse projeto; saí há pouco tempo.
P/1 - Como foi que você elaborou esse projeto Cozinha Intuitiva? O que é esse projeto? Como foi que ele nasceu?
R - Ele nasceu assim de uma... De confiança mesmo com os sócios. Quando eu cheguei nesse projeto, ele já existia um pouquinho, ele estava ali, tinha vários produtos, vários superalimentos, que a gente chama de superalimento. Já tinha, mas não tinha cozinha. Quando eu cheguei que eu me associei ao projeto, era um projeto que não era piramidal, era um projeto mais assim, onde a gente está conversando e a gente vai vendo como é que a gente pode fazer para trabalhar com alimentação saudável, com essa coisa que é muito importante também que eu vejo em relação à alimentação, que é a ética de você, pelo menos, saber de onde estão vindo os alimentos que você está pondo na sua mesa, no seu prato. E apareceu essa ideia, porque não existia a cozinha no lugar, existiam os produtos, tinha maca, a gente produzia... Fazia tudo, colocava no saquinho, escrevia as etiquetas e tudo, então quando eu cheguei lá, eu vi que... Nossa, tem um mundo aqui que vai se abrir, porque... No universo da cozinha intuitiva, porque eu tenho aqui o açaí, eu tenho acerola, eu tenho a maca, eu tenho as algas, o que eu posso fazer com tudo isso? Eles faziam ainda, eles estavam fazendo bebidinhas para a degustação. Eu digo: "Ah, gente, vou cozinhar, vou aqui criar um conceito". Para mim, a palavra conceito é muito... Mas aí, criei uma história com a cozinha para valorizar esses alimentos, que são puros tesouros botânicos, que a gente na nossa... A gente percebe muito que, nessa volta para a floresta, que tem seis anos que eu estou voltando, só seis anos que eu estou voltando, depois de tudo isso, que eu estou percebendo, que eu digo: “Gente, como é que a pessoa está se alimentando mal. Como o índio está morrendo de doença, não é? Que a primeira é o diabetes, a segunda é a obesidade. Eu digo "Nossa... Como... O que é isso?" Para mim foi também muito difícil voltar. Voltei. E essa volta foi assim muito louca, porque estou eu lá e recebo quem? Porque nesse mundo da alimentação saudável, vem o povo do yoga, vem tudo, e eu estava... Banhei lá dentro desse mundo. Então, estou em casa tranquila, um amigo me liga, já estava tomando daime lá na igreja, e um amigo me liga e fala assim: "Joelma, pode falar para o Jeff buscar que eu não vou poder ir? Tu lembra que eu te falei que o Pue está chegando?" Falei: "Ah, lembro". Lembrava nada. Aí eu digo: "Jeff, olha, tem que ir buscar o Pue". Que é do povo Puianawas, ali de Mâncio Lima, e a gente foi buscar o Pue. Lembro que o Pue chegou, a gente levou ele lá para casa e tudo. Nossa, quando eu vi aquela força chegando assim, eu digo... Fizemos um trabalho, eu fui para o trabalho e ele pediu para eu ficar sentada perto dele, o Pue Puyanawa. E aí, dentro do trabalho, ele me fez um rapé e eu vi que nesse sopro... Até então, falando de medicina, a medicina do rapé era uma medicina que eu sempre tive comigo. Em todas essas passagens, eu tinha a medicina, sempre ia buscar com quem tinha, nessa ligação dessas comunidades. Tomava a ayahuasca não, eu peguei o rapé, porque eu tinha uma instrução muito linda da minha avó e da minha mãe com a medicina do rapé. E aí, eu lembro que ele me fez um rapé, fez um rapé e falou assim: "Que que tu está fazendo aqui? Tu não está fazendo o que tu deveria fazer, não é? Tu tem que voltar. Tu tem que voltar para lá. Tu é a mulher da Floresta. Tu estava dormindo?". Eu me lembro dessas palavras, a medicina forte. Eu digo: “Ui”. E foi forte. Eu lembro que esse rapé que ele me aplicou, quem faz é Vari, é a irmã... Não, é a mulher dele, ela que está resgatando a tradição. E aí, esse ensino dessa medicina dela, uma mulher super forte, que resgata a tradição, resgatando, tomando medicina, foi ela a primeira a tomar medicina com os homens lá do Puianawa, porque o cacique da aldeia viveu 30 anos de igreja evangélica e aí eu lembro que, nesse rapé, antes ele me falou... Antes de começar o trabalho, o Pue falou assim: "Olha, eu estou aqui com o rapé, que a gente fala da ativação da metamorfose, a gente está falando da borboleta". Não tinha muita noção disso. Quando ele aplicou rapé, abriu um leque de borboleta assim. Que me levou lá para o Igarapé. Aí, isso foi muito... E foi ele que... Quando ele foi embora, aquilo ali tudo para mim... Eu digo: “Tá!”. Aí... Claro, ajudando esse amigo da (Innista?), que estava trazendo os meninos, aí fui buscar... Lembro de que fui buscar o Luini e o Nauá, de onde? Do Caucho. Aí foi lá que eu fui voltando, fui voltar.
P/1 - E aí você voltou mesmo?
R - Voltei mesmo. Acho que eu estou conversando aqui, mas eu estou lá no Humaitá.
P/1 - E como foi a volta?
R - A volta foi dolorida também, não é? Porque você vai retraçando o lugar onde você... Da sua memória de criança, tudo o que aconteceu, foi bem difícil. Aí, disso, nasceu esse documentário que viram ontem, que eu contei essa história porque eu conheci... Tem um amigo que estuda Jornalismo e veio comigo, foi, voltando para a vivência do Caucho, a primeira vivência, e chegando, a volta foi forte assim. Quando eu falo difícil é quando você está saindo, que você está dentro de um carro, está naquela estrada, você está vendo que antes era... Tinha muitas árvores, na sua lembrança de criança. Para mim, tinha muitas árvores e aí tudo desmatado, com vaca em todo canto, eu digo: “Gente, mas isso aqui é um caos, não é?” Virou, realmente... A gente está acabando com a nossa mata. Digo: “Nossa, o que é isso, gente? Difícil”. Mas aí eu fui muito bem recebida na aldeia e fui recebida como se eu nunca tivesse saído, o que é outra coisa, que são outras pessoas, não estou falando da minha família que estava lá, porque eu não estou procurando. Mas como tem aquela história que, para mim, a minha família e as pessoas que eu encontro também na minha estrada, então estou procurando um pouco saber se ainda... Onde estão as tias, estou voltando um pouco, fazendo esse trabalho também.
P/1 - E ai você voltou a morar lá ou você foi visitar?
R - Não, visitando. Fazendo essas pontes, uma vez por ano. Eu estou levando essa bandeira, de levar os irmãos para fazer trabalho, valorizar mesmo o trabalho da tradição, levando mesmo os trabalhos para lá para a Europa, porque não é só a França, não é? A gente, quando está lá, a gente vai para os outros países e estou resgatando dessa maneira. Mas que é a melhor maneira para mim. É a melhor maneira, está acontecendo que a gente está montando uma ONG - eu, meu marido e outras pessoas lá na França - para comprar as terras, para ajudar, para dar para os índios, porque tem o povo, o povo... Tem o Benki, acho que você conhece um pouco da história do Benki, que eu tive muita sorte assim de trabalhar com o Benki na aldeia Puyanawa, porque o Pue é muito próximo do Benki.
P/1 - Ah, você estava nesse período?
R - Estava.
P/1 - Conte um pouco disso.
R - Ah, o Benki. Eu recebi o Benki lá no sol semilla porque eu cozinhava... Como eu cozinho, eles estavam chegando lá na França e me pediram para cozinhar - uma amiga que toma medicina, com um Shipibo. Aí, eu fiz uns trabalhos de Shipibo lá na França também, lá em Paris, com os amigos, e o Benki chegou, que eu conheci assim, o Benki... Já tinha ouvido muito falar do Benki e acabou que conheci porque eu estava cozinhando para eles, para o Pue e o Benki. Aí, com esse grande líder, porque... Nossa, que líder, que homem forte, e tive muita sorte assim de ter estado na primeira abertura do Festival Puyanawa, dos Puyanawas, e aí comecei, realmente, a conversar com ele, porque os trabalhos na Europa nunca coincidiam de estar... Porque ele vai sempre para lá e nunca tinha coincidido estar no dia para ir no trabalho dele. Sempre me disseram assim: "O trabalho do Benki é forte, hein? Cuidado aí, porque você tomou uma tampinha, você vai para o astral, vai para o beija-flor". Eu digo: “Nossa, então se é assim, eu vou ficar quietinha, um dia vai acontecer. Aí eu vou buscar, está tudo bem, vai chegar”. E vim para a abertura do Festival Puyanawa, a primeira, do primeiro, da primeira vivência, com o Solon, Augusta, terceira geração do Santo Daime que eu já conheço. E aí, quem estava lá? Claro, o Benki, não é? Aí, a gente, na vivência, na programação, a gente ia andar na mata com o “seu” Joel, que é o cacique da aldeia, o Pue, um pouco como um estudo da pajelança. Aí, fomos tomar medicina com o Benki. Dentro da mata. Muito, muito, muito especial, muito especial. E é uma pessoa que eu tenho, um líder pelo qual eu tenho muita admiração. Acredito que nós, o povo Huni Kuin, que posso dizer que a ele pertenço porque tenho no meu sangue... A gente... Não é uma crítica assim negativa, mas eu acho que a gente tem que levantar um pouco mais assim uma liderança forte para não ser tão parasitado o povo Huni Kuin que a gente... Nossa, é muita... Acredito que se a gente não levantar um pouquinho mais isso, para dizer ‘não’ para várias coisas, o povo vai perder a tradição. Isso é o que eu acho. Que, se não tiver esse pulso, isso vai chegar, vai chegar em algum lugar que não vai ser muito positivo.
P/1 - E aí, como... Mas aquele processo assim de recuperação dos Puyanawa, que aconteceu...
R - Que está acontecendo ainda, não é?
P/1 - Que está acontecendo. Mas você viu acontecer isso?
R - Olha, eu ver acontecendo isso, conhecendo o Pue, Pue já me falava disso lá na França, quando ele vinha. Que mesmo se não desse para participar dos trabalhos, ele sempre falava, ele sempre falava comigo e conversava também com o meu marido, e aí eu vi, realmente, acontecer. A gente estava indo para fazer uma trilha dentro da mata para parar na Samaúma, onde tem um pé de jagube, com o Joel, o Benki, a mulher dele e mais... Acho que mais 15 pessoas. E o cacique Joel decidiu sentar ali na Samaúma e contar a história, a história dele que foi contando na força da medicina, contando 30 anos que ficou, foi tipo assim uma maldição que ele recebeu da floresta, que as meninas, as duas filhas deles começaram a ficar doentes, foi um processo para ele muito, muito, muito, muito difícil. E isso tem pouco tempo - acho que deve ter nove, dez anos - que eles estão ainda resgatando com ajuda do Benki, porque o Benki é uma pessoa muito importante ali para o Puyanawa. E ele contou, ele... Nós sentamos e ele começou a contar a história, o porquê de ter voltado para a tradição. Uma história muito forte, uma história muito linda, mas muito forte também, de... O que você fez durante esses 30 anos, não é? Como o cacique evangelista... Começaram as filhas a adoecer e ele a gastar o que não tinha para poder salvar as filhas, salvar ali as duas filhas, que eu conheço. E abriu esse leque de verdade assim para a gente, contando com muito amor no coração, que chorou, aquilo ali foi muito forte para mim, eu estava pertinho dele, também com a minha filha - a Juminha estava comigo. E que é um resgate que eles estão fazendo. E o Benki, ele é uma figura muito importante ali, muito principal nesse resgate da tradição. Aí, tive essa oportunidade, que para mim foi muito, muito especial, de ver essa figura levantando, porque, às vezes, as pessoas falam: "Ah, mas o Benki isso, o Benki aquilo". Os líderes são sempre muito criticados, não é? E escutei a história do Joel, que me... Que, quando eu vi o ‘seu’ Joel...
P/1 - Você quer contar a história?
R - Não, eu cheguei lá no Puyanawa e quando eu vi o Joel cacique, eu disse: “Meu Deus, quero sair daqui. O que é isso? Esse homem... Que força é essa aí nessa pessoa?”. As pessoas tomando rapé com ele e tudo, eu estava com um colega que queria porque queria tomar um rapé forte, chegando assim muito: "Eu quero tomar um rapé, eu quero tomar um rapé". E ele passa assim e eu ali com eles. No segundo dia, eu falei para o meu colega, eu falei assim: "Ah, chega devagarinho, chega devagarinho, porque acho que ele está sentindo que você quer tomar um rapé". Aí, opa, nesse momento ele passa com colar de osso assim no pescoço, eu digo: “Opa”. Eu pensei comigo mesma: "Eu não quero não, eu não quero tomar rapé do ‘seu’ Joel não". Aí ele veio e falou assim: "aí, está tudo bem aí txai. Eu digo: "Está, está tudo bem". Aí ele parou, olhou assim para o meu colega e falou: "Está tudo bem?" "Eu quero um rapé do senhor, eu quero um rapé. O sopro". Sopro forte. Nossa, foi um balanço, porque ele fez o sopro nesse colega e o colega ficou três horas sem voltar. E quem estava cuidando? Eu e as meninas da aldeia. Fomos lá lavar as coisas e ele no chão. Eu digo: “Meu Deus, o cara está no chão e ninguém fez nada, não é? E ‘seu’Joel foi embora. E aí, as meninas: "Vamos levar para Igarapé, vamos cuidar dele lá no Igarapé". A gente pegou, levantou devagarinho, ele foi assim praticamente rastejando e ficou. A gente o banhou no Igarapé... Nossa, foram assim duas horas ele... Ele na força da medicina. Ai ele... Até que conseguiu levantar, ficar ali tranquilo, e aí falou assim: "Eu vou para casa, vou para a minha casinha ali, eu vou dormir, não vou para o trabalho hoje não". Eu o vi quatro dias depois. Eu disse: "E aí? Por que você não apareceu nos trabalhos?" Ele falou: "Nossa, cheguei muito rápido aqui, não é? Entendi o sopro". Eu disse: “Oh”. Porque é o ensinamento, a gente, às vezes, volta e a gente chega muito rápido, e essa história... Essa relação com as medicinas, elas são muito de ensinamento, como você está indo, como... O que... Está pisando num chão muito forte. E vamos chegar devagarinho, e essa foi minha história ali no Puyanawa, devagarinho, tranquilo.
P/1 - E aí você voltando lá da França, de todo esse período que você viveu, qual foi a grande mudança que aconteceu, voltar lá para o seu povo, que você tinha saído criança ainda?
R - Qual foi a grande mudança?
P/1 - É, o que você sentiu assim, voltando?
R - A mudança, não é?
P/1 - É.
R - A mudança, para mim, ela não... O que eu posso dizer dessa mudança? Que mesmo que foi tão difícil aquela... Beirar tudo aquilo ali, que foi toda aquela, atravessar todo aquele processo lá de escravidão ali, eu ainda... Acho que eu ainda toquei uma coisa na tradição que foi muito... Muito ingênua, muito bonita, sabe? De estar ali com as mulheres, porque eu era muito apegada ali com a avó, com a minha mãe, com as mulheres da aldeia, e a mudança para mim ela é positiva em vários sentidos, porque a gente não pode excluir a globalização, o que a gente chama essa uniformização aí, que é tudo isso que está acontecendo, mas eu senti que a tradição está muito... Está muito balançada, sabe? Tem muitos valores que mudaram e que talvez seja normal isso, mas para mim eu tenho assim como uma coisa comigo que é essa saudade de antes, sabe, de ver aquilo ali mais... Um pouco mais forte, mesmo tendo muita dor, mas era um pouco mais forte. Então, a mudança foi assim muito... Muito esclarecedora do que é vivida essa coisa da colonização, essa coisa da igreja evangélica e tudo isso que está acontecendo, que eu acho que... Antes de vir agora para essa viagem, eu vi uma reportagem na ART que fala que o povo... Falando do povo indígena, falando desse genocídio que a gente... Muitas vezes, o povo fala das Primeira e Segunda Guerras Mundiais e fala de tudo isso que está acontecendo, de todas... Das revoluções, dessas guerras e tudo, mas é muito louco porque o que eu sinto é que é uma coisa na colonização que é muito enraizada no pensamento coletivo, que está ali, que está ali com eles ainda, a maneira como você, às vezes, evoca os espíritos, Igreja de Santo Daime, Igreja Evangélica, é como se não tivesse assim... Sei lá, eu acho um pouco injusto, sabe? Será que realmente mudou ou é a mesma coisa? Essa é a pergunta, essa pergunta que eu me faço mesmo, porque 600 anos de história e é um genocídio que é calado, que a gente não... Ah, mas a gente ouve falar porque tem um antropólogo, tem um não sei quem, bla bla bla, mas será que a gente está fazendo muita coisa em relação a isso? Eu sinto que essa mudança, eu não sei se ela é muito... Eu sinto um pouco de revolta, um pouco de... Sabe, de sede que mude um pouco, porque essas pontes também que eu estou tecendo, essa ponte que eu me sinto um jacaré mesmo fazendo ponte, eu fico às vezes assim num lugar onde eu digo: "Será que isso aqui é justo?". Porque vejo muita gente indo, e as mesmas pessoas que eu levo, indo também lá para as aldeias e... Por exemplo, aprendendo, pegando, levando para fora, aprendendo canto, querendo falar o hãtxa kuin, e tem muito essa coisa do abuso ainda, que... Não sei se eu estou respondendo essa pergunta, porque talvez eu esteja entrando em outro lugar, mas essa mudança, ela... Se eu falo mesmo assim, o que eu estou sentindo, humanamente, nesse lado humano, é uma mudança que eu acho que a gente não olhou muito para ela, o povo civilizado, de que estão... Os irmãos, eles estão lá; eles, bem ou mal, estão lá; eles conseguiram estar de pé, e a gente está falando... Quando eu estou falando de levar a irmandade lá, falando da colonização, o povo lá está em pé, com todos os seus defeitos, com todas as suas qualidades, que isso não chega muito ao caso, mas estão lá. Vamos fazer um trabalho de cura aqui e a cura é a cura do pensamento, a cura, essa cura coletiva. Então, é muito sensível tudo isso, porque eu estou saindo lá dessa vivência, vi muitas coisas que eu achei muito difícil nessa ponte tecida com a Europa, com o Brasil, que é tudo. Então...
P/1 - Tem algo mais da sua história de vida que você gostaria de compartilhar?
R - Ai, tem. Acho que eu estou vivendo um período na minha vida de muita... Período de mudanças, sempre estou me sentindo assim uma... Uma cobra, uma jiboia assim saindo, deixando a pele e voando para outros lugares, para outras dimensões assim, que é muito bonita, que é a velha, a velha pessoa, a velha mulher, que está abraçando tudo isso. E paz. Eu acho que nós somos guerreiros da paz mesmo, dessa família arco-íris que está, mal ou bem, tendo essa consciência e, para mim, é um novo período (risos).
P/1 - E algo mais do que você viveu, de tudo que você viveu, você quer deixar registrado?
R - A criança, não é? Que a gente possa, todas nós mulheres ou a humanidade, que a gente possa lembrar dessa criança interna que a gente tem, levar assim no dia a dia a gente a entrar em contato com essa criança interior e não esquecer de rir dos defeitos das coisas, que, às vezes, não são tão fáceis, da vida. Que a gente possa estar sempre com essa criança aflorada na nossa vida, no nosso cotidiano, porque é muito mais leve quando a gente tem essa alma de criança. Porque eu estou falando de criança porque quando eu lembro da minha história, que muitas coisas não foram contadas em detalhes, em detalhes, mas eu lembro dessa criança que pisava no chão, que tomava banho, que subia nas árvores, que ia para Samaúma com as outras crianças, e essa leveza da criança.
P/1 - Ia te falar então - para a gente já caminhar para fechar - dessa criança mesmo, buscar uma memória específica que lhe acompanhe. Você falou que todo o período em que você esteve na Europa, era essa criança que a alimentava. Qual o momentinho dessa criança que você carrega até hoje?
R - É a jiboia. A jiboia sagrada. Eu escutei uma história da minha avó, um fogo falando dessa cobra, dessa medicina que é muito especial, que traz muita luz para a gente, que está aqui vibrando com a gente. Mas a lembrança é de ter visto essa cobra, linda, branca, essa jiboia branca, e que muito criancinha, com as outras crianças ali, fazendo fogo na Samaúma, ela estava passando. E é essa benção mesmo, dessa medicina, que a gente chama jibóia, que é o nosso siri siri, e também uma coisa que eu queria falar que quando eu era pequenininha lá, às vezes, a gente estava brincando ali dentro, mata fechada, e a gente escutava esse ser. Quer dizer, a gente silencia um pouco o nosso... Toda essa nossa... Esses nossos ruídos interiores para escutar a Natureza, ela chega. E eu lembro, quando era pequenininha, ali, com as crianças, uma dessas meninas, que se chama Parã, ela fala que eu encontrei, que eu tive a sorte de encontrar agora, cinco anos, ela falava assim: “Jô, fecha o olho e escuta. Elas estão aqui pertinho". Essas jiboinhas mesmo que faziam "siri siri siri siri siri siri", esse canto, esses cantos mesmo, canto da cobra, da jiboia.
P/1 - Nossa. E de todas as noites que você dormiu, qual o sonho forte que você já teve dormindo?
R - Olha, eu tive muito sonho forte, mas quando era criança sonhava muito com o Tete Pawã, o Gavião Real. Com os seres da Samaúma, sonhava. Eu sonhava... Eu sonhei, eu tive um sonho que parece que foi esse que me levou para tudo que está acontecendo aqui. É que estava na Samaúma, a gente estava brincando, as crianças estavam todas, todas as crianças estavam ali reunidas e chegava uma águia gigante - mas ela era muito gigante - e começava assim a olhar. Eu dizia: "Nossa, mas ela é muito grande, ela vai comer a gente, não é possível". E aí, ela pegava todas as crianças e voava. Voava lá para a Samaúma, voava para cima e a gente ficava na copa da Samaúma. E ela parava, colocava todas as crianças num ninho, naquele ninhozinho dela, do Tete Pawã. E eu lembro que esse sonho foi um dos sonhos mais... Mais lindos que eu lembro até hoje, porque também eu anoto, eu escrevo o meu sonho (risos).
P/1 - E qual é o seu grande sonho de vida hoje?
R - O meu grande sonho de vida... É que a gente possa deixar essa floresta em pé. Que a gente possa ter consciência de deixar realmente. É uma... É o meu sonho, meu sonho de vida é que a gente possa ajudar esse povo, ajudar os povos que estão lá e que a gente possa deixar a floresta em pé, tanto essa como as outras. Esse é meu sonho de vida.
P/1 - E o que é a memória para você?
R - A memória... Eu acho que a memória, ela é muito nas células - ela é celular. Ela está nas águas do nosso corpo, ela está no ar, ela está no fogo, ela está na terra, está nas células.
P/1 - E como foi para você contar a história aqui hoje?
R - Desafiador. Muito desafiador. Mas eu estou muito feliz de ter contado porque eu tenho na minha frente um txai que entende o que foi lá, e que é um pesquisador. E eu estou muito feliz de ter... De estar contando aqui com vocês.
P/1 - E para fechar, eu queria saber se você quer fazer algum canto? Alguma coisa, alguma última mensagem?
R - Fazer um cantinho rápido.
"Vou preparar iorumã pela manhã, pois o rei sol abençoou com seu cocar. Recebo a cura nas asas de um beija-flor, o pai tabaco sagrado a ensinar. A sua luz vem do coração das plantas, a sua força que levanta o precisado, a sabedoria que esmorece o acostumado, todos os elementos se apresentam pra compor. A dança do equilíbrio entre o espírito e a matéria, o sopro do amor trazendo o céu na terra. A dança do equilíbrio entre o espírito e a matéria, o sopro do amor trazendo o céu na terra. Vou preparar iorumã para curar, pois o rei Sol abençoou com seu cocar. Recebo a cura nas asas de um beija-flor, o sopro do tabaco sagrado a ensinar. A sua luz vem do coração das plantas, a sua força que levanta o precisado, a sabedoria que esmorece o acostumado, todos os elementos se apresentam pra compor. A dança do equilíbrio entre o espírito e a matéria, o sopro do amor trazendo o céu na terra. A dança do equilíbrio entre o espírito e a matéria, o sopro do amor trazendo o céu na terra."
P/1 – Haux!
R – Haux, haux!
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