A Face nos Espelhos
Distante do currículo, próximo das dúvidas e quem sabe das incertezas, começo a falar de uma trajetória, de um caminho feito de estudos e lições, feito de trabalho, feito de dedicação, feito de inseguranças mas, principalmente, como diz João Cabral, feito de talvezes ou todavias. Escolho, para o texto que vai deixar registradas minhas inconclusões, o nome de A Face nos Espelhos. Espero que esta metáfora do espelho, como o olhar que vê a si próprio, facilite a tarefa reflexiva que tenho pela frente.
Tratar de recordações e da memória tem sido uma tarefa dos últimos tempos de pesquisador, o que só traz dificuldades quando o sujeito da recordação e da memória é o próprio narrador. Isto, narrar a vida é ordená-la sob um ponto de vista particular, de hoje. Assim, de alguma maneira, o homem de hoje busca o menino de ontem, refletido neste. Talvez o menino me ajude a encontrar o fio da meada.
Nasci em Santos, São Paulo, em maio de 1949. Tempos de mar e tempos de bonde elétrico. A sorte estava lançada. Como o sertão acompanha o sertanejo, o mar acompanha o caiçara. E, o olhar o mar, a partir do balanço do carro reboque do bonde elétrico determina o ritmo e o tempo das tardes ensolaradas da ilha de São Vicente e do mundo. Era mais ou menos assim, uma fronteira era o mar a outra era a Via Anchieta. Os canais, construídos no início do século XX por Saturnino de Brito para resolver um problema sanitário, dão à cidade um contorno interessante e um charme todo especial. Eu nunca havia visto um rio, mas de alguma forma considero que estiveram presentes na minha infância, pois todos os canais corriam para o mar.
Lembro que na minha infância e juventude existiam poucos, muito poucos, carros em circulação. E, o solo da ilha, conquistado ao mar, era areia. Assim, nossas ruas eram calçadas com paralelepípedos ou eram de areia. Um eterno convite ao futebol. Chegava da escola...
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Distante do currículo, próximo das dúvidas e quem sabe das incertezas, começo a falar de uma trajetória, de um caminho feito de estudos e lições, feito de trabalho, feito de dedicação, feito de inseguranças mas, principalmente, como diz João Cabral, feito de talvezes ou todavias. Escolho, para o texto que vai deixar registradas minhas inconclusões, o nome de A Face nos Espelhos. Espero que esta metáfora do espelho, como o olhar que vê a si próprio, facilite a tarefa reflexiva que tenho pela frente.
Tratar de recordações e da memória tem sido uma tarefa dos últimos tempos de pesquisador, o que só traz dificuldades quando o sujeito da recordação e da memória é o próprio narrador. Isto, narrar a vida é ordená-la sob um ponto de vista particular, de hoje. Assim, de alguma maneira, o homem de hoje busca o menino de ontem, refletido neste. Talvez o menino me ajude a encontrar o fio da meada.
Nasci em Santos, São Paulo, em maio de 1949. Tempos de mar e tempos de bonde elétrico. A sorte estava lançada. Como o sertão acompanha o sertanejo, o mar acompanha o caiçara. E, o olhar o mar, a partir do balanço do carro reboque do bonde elétrico determina o ritmo e o tempo das tardes ensolaradas da ilha de São Vicente e do mundo. Era mais ou menos assim, uma fronteira era o mar a outra era a Via Anchieta. Os canais, construídos no início do século XX por Saturnino de Brito para resolver um problema sanitário, dão à cidade um contorno interessante e um charme todo especial. Eu nunca havia visto um rio, mas de alguma forma considero que estiveram presentes na minha infância, pois todos os canais corriam para o mar.
Lembro que na minha infância e juventude existiam poucos, muito poucos, carros em circulação. E, o solo da ilha, conquistado ao mar, era areia. Assim, nossas ruas eram calçadas com paralelepípedos ou eram de areia. Um eterno convite ao futebol. Chegava da escola primária, deixava os cadernos e livros, pegava a bola e ia para a rua. Nunca fui bom de bola, quase sempre goleiro, e jogava porque era o dono da bola. A praia era ali, do lado de casa.
Na escolinha de D. Ivete fui alfabetizado por D. Yara. É interessante falar assim, porque meu pai sempre me fez ler jornais e fazer contas antes de entrar para a escola. Mas entre livros e jornais dona Yara me conduziu os primeiros passos escolares nas letras e números. Lembro que ela gostava mais das letras. Quem gostava mais dos números era D. Ivete. A escolinha era de “fundo de quintal” só existiam duas salas de aula. A primeira série estudava sozinha porque era mais numerosa. A segunda, terceira e quarta séries, na realidade eram fileiras de uma mesma sala, que D. Ivete atribuía lições diferentes. Passar de ano era mudar de fileira.
Quando terminei a quarta série, a professora vaticinou para meus pais: “O português dele é muito fraco, mas ele é bom em contas”. Talvez tenha sido este meu primeiro encontro com a Matemática e talvez um desencontro com o mundo das letras. Eu não gostei muito desta profecia, pois lembrava muito bem dos “castigos” de D. Ivete. Um deles era escrever cem vezes o que era uma geratriz de dízima periódica simples ou composta. Havia uma regra de dividir por noves ou noves e zeros, um determinado número. Para nós, alunos, esta regra era totalmente incompreensível. Logo, copiar cem vezes era a solução didática adotada pela professora. Voltando a profecia, lembro que não fiquei feliz, mas as pessoas em minha volta ficaram. Eu gostava de ler, desenhar, imaginar histórias dentro da História, fazer experiências com água e fogo, copiar mapas e imaginar lugares. Mas isto não ficava junto com os números. Fui triste para o Ginásio.
Comecei o ginásio no ano seguinte 1961. Fiquei maravilhado com o Ginásio Tarquínio Silva. Era num prédio gigantesco, tinha que pegar o bonde na praia e ir para o centro da cidade. Meu pai me levava e buscava, de bonde. O mais complicado era entender a aula de Latim, de Matemática e de Música. Mas a escola tinha biblioteca, som ambiente, existiam algumas experiências com filmes — muito parecidas com as de vídeo do final dos anos setenta — feiras de Ciências e aulas maravilhosas de História. Fazíamos julgamentos de personagens da história, havia júri, um em particular sobre Hitler me fez pensar em ser advogado. Fui o promotor.
As feiras de Ciências eram particularmente sensacionais, fazíamos maquetes para viajar, com o trenzinho elétrico e a fala, em países que conhecíamos através dos navios que chegavam ao porto. Construíamos “cérebros eletrônicos” que respondiam a perguntas a partir de contatos elétricos. Em Matemática fazíamos cartazes reproduzindo teoremas e, eu, sem dúvida achava que isto era muito pouco para competir com as maquetes e os “cérebros eletrônicos”. Ficava na escola quase o tempo todo, de manhã aulas e de tarde atividades extracurriculares. Na realidade duas coisas já me encantavam. Uma a possibilidade de falar, explicar, polemizar e a outra lidar com a cultura, a história e as ciências.
Os espelhos refletem a efervescência do início dos anos sessenta. No período em que estudei no Tarquínio aprendi que a profecia de dona Ivete poderia não ser verdadeira. Era entre razoável e bom em Matemática e nas outras atividades era considerado muito bom, pelos professores e colegas do ginásio. Mais do que esta avaliação aprendi no curso ginasial, que não havia só contas e letras, estas, na realidade, falavam de outras coisas. E isto era o interessante. Mas terminei o ginásio com muita tristeza. A praia, as ruas, os bondes de Santos estavam coalhados de militares com armas pesadas. Era 1964. Nunca vou esquecer da metralhadora no final bonde, apontada para os passageiros, e do motorneiro que dirigia o bonde com a arma apontada para ele. Tempos doloridos estavam chegando.
Em 1965, comecei o curso técnico em química industrial. Foi decisão familiar. Havia um desejo de que eu tivesse logo uma profissão e fosse trabalhar, sendo Santos vizinha do pólo petroquímico de Cubatão, Química era uma ótima solução. Fui estudar no Colégio do Carmo, da ordem carmelita. Aquele mundo que eu sonhava de experiências estava, agora, disponível.
Porém, apesar de ter obtido uma ótima formação em exatas, o que os espelhos trazem são as aulas de literatura, peças de teatro, Guimarães Rosa, João Cabral, Graciliano Ramos. Tínhamos uma professora de Português, D. Regina, que desequilibrava. Eu tinha dezesseis anos e Grandes Sertões para conhecer. Encenamos Vida e Morte Severina, discutíamos cinema, fazíamos jornal. Fui me tornando um leitor voraz. Estes talvezes ou circunstâncias determinam o futuro.
O professor de Matemática, (Seu) Vitor, era muito bom em contas e outras coisas como Geometria, Álgebra e Cálculo. Ele não era um grande professor, mas gostava muito de Matemática. Isto incentivou a criação de grupos de estudo de Matemática entre os alunos e isto nos fez avançar bastante. Eu sempre contei aos meus alunos de Prática de Ensino que, em 1967, no terceiro ano do curso técnico em química, aprendi funções, derivadas e integrais. Quem não conheceu o “Bezerra” — o livro de capa laranja, para o curso médio — nossa turma estudou inteirinho no colégio. Olhando para trás o (Seu) Vitor só desafiou, o resto nós fizemos.
Do serviço militar fui dispensado por excesso de contingente e porque havia passado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Santos. A decisão de fazer o vestibular para o recém criado curso de Ciências, pois não havia curso de Matemática, em Santos, foi a primeira tentativa de fugir do destino traçado que me levava ao pólo industrial de Cubatão. Afinal, gostava de trabalhar em laboratório, fazer experiências e Matemática e, assim, o curso parecia ideal. Mas os espelhos revelam que de novo, ao procurar uma coisa encontrei outra. Encontrei a Filosofia, a Lógica e a Matemática. E mais, uma profissão que permitia polemizar, falar, lidar com a cultura, a história e as ciências. Era um curso novo, e mudanças curriculares eram discutidas, greves eram feitas, passeatas, campanhas eleitorais para o diretório acadêmico, peças de teatro, festivais de música; as micro-relações de contra-poder refletiam o desafio, de outra ordem de poder, ao macro-político do país. Nas telas, Goddard e “a chinesa”. Nos palcos, Brecht e seu Galileu. Na música, Chico Buarque e a construção.
Mas, no jogo dos espelhos, vejo que havia um outro cenário dentro desta paisagem. As aulas ministradas nos ginásios e colégios. Tenho, até hoje, um hábito deste início profissional: apontar lápis. Explico. Em março de 1968, comecei a dar aulas de Desenho Geométrico e ao entrar em sala de aula imediatamente me remeti ao meu mestre do ginásio, de Desenho Geométrico, Prof. Honório Yamaguchi. Ele nos ensinava desde o trato com o material de desenho — régua, compasso, esquadro e o lápis preto HB, até princípios de estilo de cuidá-los desde a lâmina afiada de uma “gillette” para apontar (os apontadores eram horríveis) até a lixa de unha para manter a ponta fina. Hoje, acredito que o quê mais me impressionava nele era a atitude “zen” do mestre de arco e flecha zen-budista, que li mais tarde em Gusdorf.
Mas logo comecei a ministrar aulas de Matemática. E a influência da necessidade de estilo na relação com o conhecimento, ensinada pelo Prof. Honório, se fez presente. As minhas preocupações com o ensino de Matemática datavam de muito tempo. Por que eu era “bom” em contas? Por que os professores de Matemática do ginásio não sabiam fazer maquetes ou mapas? Por que eu via relações entre Ciências e Matemática e o professor mandava decorar a geratriz da dízima periódica? Por que quem era “bom” em contas não era “bom” em outras áreas? Por que eu gostava mais de ministrar aulas de Matemática do que de Química? Qual estilo de aula de Matemática ficaria próxima ao estilo de Yamaguchi?
Era 1968, eu tinha dezoito anos e ministrava aulas de Matemática na I.E.E. “Martim Afonso”, em São Vicente, para pessoas muitas vezes mais velhas do que eu. Não havia tido aula de Didática, Psicologia ou Prática de Ensino, eram matérias do terceiro ano da faculdade. Percebia muitas vezes a angústia avolumar dentro do “professor” iniciante. Talvez este seja o momento em que decidi ser professor de Matemática. Tinha perguntas e não sabia as respostas; queria trabalhar em sala de aula, com Matemática, e suava frio ao adentrá-la; sabia que não poderia existir um só caminho e não encontrava pelo menos um outro. Eu tinha muito medo de errar. E, confesso, errei bastante. Mas uma questão foi resolvida: minha relação com a Educação Matemática começava ali. Era namoro firme, noivado certo e casamento difícil. Eram dúvidas de um jovem professor de Matemática. Na escuridão, optei pela atitude “Zen” do meu professor de Desenho Geométrico.
Em 1971, a mesma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Santos abriu o curso de Matemática. Resolvi fazer vestibular e buscar aquilo que o curso de Ciências não havia proporcionado. Estudava e continuava ministrando aulas. Foi um período de muitas contradições entre o professor e o aluno de Matemática. No curso não havia lugar para assuntos fundamentais como: Filosofia, Educação e as possíveis relações da Matemática com outras ciências. Algumas inquietações aumentavam como, por exemplo, onde encontrar pontos de contato entre a Biologia e a Matemática. Porém, por influência de alguns professores comecei a fazer experiências com materiais didáticos para o ensino de Matemática. A tentativa era de “melhorar” a aprendizagem dos alunos. Foi a época de estudar Piaget, Bruner e Dienes. Alguns poucos resultados interessantes foram obtidos a partir de materiais como blocos lógicos, multibase, dourado Montessori, Cuisenaire e faixas de Napier. Foi a época, em Santos, que foi percebida fortemente a influência do movimento de renovação do ensino de Matemática que acompanhou a Matemática Moderna.
Até 1975 ministrei aulas de Matemática em colégios de elite e colégios públicos. Briguei com a elite. Em 1976, optei pelo trabalho de formação de professores na mesma Faculdade de Filosofia e no mesmo curso de Matemática. Nesta época comecei a “ministrar aulas” de Prática de Ensino nos cursos de Matemática e Ciências. Na Matemática, as classes, no geral, eram muito numerosas e coalhadas de pessoas que não pretendiam exercer a profissão de professor de Matemática. No curso de Ciências, uma outra característica era interessante: as discussões nas aulas reacendiam muitos de meus questionamentos sobre interdisciplinaridade. Descobri que os caminhos se fazem de talvezes.
Durante os anos setenta, ministrei aulas em vários municípios da Baixada Santista, entre eles Guarujá, em uma escola inicialmente chamada Ginásio Estadual do Guarujá e, posteriormente, EEPG Vicente de Carvalho. Foi a escola que forneceu a régua e o compasso para o resolver minhas dúvidas. Fizemos muitas experiências, com material didático, livros didáticos, propostas de integração curricular, grupos de discussão de professores. Após dez anos do início da profissão, em 1978, efetivei-me no Estado (o título diz: Professor III – Titular de cargo efetivo em Matemática).
Em 1979, fui convidado pela equipe de Matemática da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas do Estado de São Paulo (CENP), para ser monitor do Projeto de Geometria Experimental. Este projeto havia sido desenvolvido na UNICAMP, no início dos anos 70, pelo IMECC/PREMEM. A proposta implicava afastamento da sala de aula do ensino Fundamental e Médio. Porém, proporcionaria acompanhar alguns procedimentos de pesquisa e contato com inúmeros professores do estado de São Paulo, inclusive com o grupo que havia produzido o material. Entendi que existia uma boa chance de respostas a algumas das dúvidas que me acompanhavam. Monitorei e ministrei cursos de Geometria para professores da rede Estadual, DRE do Litoral, (cursos que tinham o mau gosto de serem chamados de “treinamento docente”), até 1981.
Em 1981, assumi a coordenação geral de um projeto pedagógico na DRE do Litoral. Foram tempos de correria, canseiras e reuniões, mas eu acreditava na possibilidade de se implementar um programa curricular único nas escolas estaduais (em todas as disciplinas). Foi época de briga com a CENP, com as Delegacias de Ensino e com as Editoras. Este projeto foi marcante no meu desenvolvimento profissional. Pois, se de um lado havia um mar de certezas didáticas, epistemológicas, burocráticas e ideológicas nos projetos sobre materiais de ensino, como o de Geometria Experimental, este novo projeto da DRE do Litoral tratava com a incerteza do trabalho docente. Ou seja, e rapidamente descrevendo este projeto, a partir do acompanhamento, da esmagadora maioria das escolas estaduais da DRE do Litoral, foi concebido um projeto que envolvia: assessoria às escolas e aos professores, compra de material didático (a partir dos escolhidos pelos professores), elaboração de um conteúdo programático e metodológico comum, produção de material didático pelos professores, cursos de capacitação docente (a partir de temas escolhidos pelos professores que estavam em sala de aula), entre outras ações. Só que, diferentemente do projeto de Geometria Experimental, este projeto envolvia professores de todas as áreas e graus de ensino. O fato de ter sido coordenador geral do projeto fez com que o fenômeno da educação me enfeitiçasse, definitivamente. Tinha obtido algumas respostas, porém outras e mais difíceis perguntas surgiram.
Em 1983, desisti. Era necessário resolver as dúvidas e as incertezas que durante a “euforia pedagógica” não só tinham proliferado como também aumentado de tamanho. Não era pedagogo. Anton Makarenko compreenderia minhas dúvidas, mas eu não conhecia Makarenko. Voltei a minha escola sede de exercício, com uma idéia na cabeça. Era hora do professor de Prática de Ensino buscar teorias que explicassem os sucessos e os fracassos dos projetos por onde o professor de matemática havia circulado.
Em 1984 resolvi parar — parada geral para balanço — com o emaranhado de talvezes a tiracolo. Foi a época do ingresso na UNICAMP. Tinha resolvido: Pós Graduação em Educação. Ia fazer pós-graduação em Metodologia de Ensino, pretendia resolver dúvidas. Parei tudo o que fazia e corri, viajei, li, estudei, refleti, fiz trabalhos, monografias, projetos (alguns de impossível implementação). Hoje, sentado à escrivaninha, reflito sobre o tempo da UNICAMP. Tempo de busca a respostas. As interrogações estavam cristalizadas.
Vários momentos se inter-relacionaram para fornecer respostas. Quatro questões sintetizam de forma capital, o núcleo destes momentos: a especificidade do ato educacional; a proposta metodológica; a Matemática como produção social e as organizações burocráticas.
A questão nuclear que permeia a especificidade do ato educacional era o alvo que — envolto em dúvidas, teorias e teses — fica claro quando analisamos o “quê fazer” interrogativo dos professores, isto é, “ensinar ou não ensinar, eis a questão”. O que está subjacente às dúvidas é o antagonismo entre a existência ou não do saber objetivo e a necessidade ou não de conteúdos significativos e historicizados.
A outra questão sempre presente nas discussões e projetos de pesquisa no período da pós-graduação era a questão metodológica. Ou seja, uma pergunta sempre esta presente nos debates: é possível elaborar uma proposta metodológica para evitar o fracasso no ensino de Matemática? Uma das respostas mais freqüentes era a de que um dos pontos, em Educação Matemática, em que é possível uma rápida (mas não ligeira ...) mudança no comportamento dos agentes sociais da educação está no curso de graduação em Matemática. Estes cursos deveriam preocupar-se com um certo equilíbrio entre a “formação pedagógica”, propriamente dita, e a “formação humana”, aqui utilizada no sentido de M. Foucault.
Uma outra questão emergiu das anteriores “a da Matemática, e seu ensino, como um produto social”. Aqui o fio condutor foi a história do desenvolvimento do pensamento matemático e a relações com a realidade, bem como a sistematização e descrição das operações mentais envolvidas e a conseqüente análise de seus pressupostos e fundamentos. A escolha recaiu no ponto crucial da história da ciência, na medida em que a Matemática — conforme é vista nos dias de hoje — surge em contexto em que não se privilegia a experimentação mas, sim, a atitude teórica, ou seja, a abstração.
Dentro das minhas inquietações esteve sempre presente — de forma até certo ponto, prática — a estrutura das organizações burocráticas. Com o Prof. Dr. Maurício Tratemberg, discutimos a burocracia estatal, suas influências no aparelho escolar e implicações ideológicas. À época de minhas brigas com a CENP e a DRE do Litoral foi analisada e, no lugar da dúvida apareceu o porquê das orientações hierarquizadas.
Em 1986, defendi a Dissertação de Mestrado com o título: “Matemática e Sociedade: Um Estudo das Categorias do Conhecimento Matemático”. Era dezembro, fiz a seleção para o doutorado e fui aprovado. Em 1987 começaria a pesquisa sugerida pela Dissertação de Mestrado.
Após cumprir os créditos obrigatórios, em 1989, dei início ao desenvolvimento do meu projeto de pesquisa de doutorado. Neste mesmo ano, em agosto de 1989, comecei meu trabalho junto a UNESP. Havia sido contratado para a disciplina Prática de Ensino de Matemática junto ao Departamento de Educação do Instituto de Biociências de Rio Claro. A expectativa que fez com que mudasse minha vida de professor da UNISANTOS para professor da UNESP estava centrada na possibilidade da pesquisa em Educação Matemática. Pois, já haviam transcorrido 22 anos de magistério atuando em todos os graus de ensino, mas a oportunidade da pesquisa sistemática nunca havia sido oferecida. A posição de professor de Prática de Ensino de Matemática em Rio Claro, na UNESP, me colocaria em contato com os pesquisadores do grupo do Mestrado em Educação Matemática, do Departamento de Matemática da UNESP/RC. Assim, esta posição abria um leque de oportunidades com as quais não contava até então.
Começou a época dos EPEMs e ENEMs. Pude, então, divulgar a pesquisa efetuada no mestrado e o trabalho inicial do doutorado. Participei ativamente dos Seminários de Educação Matemática do Departamento de Matemática, às terças-feiras. Conheci muita gente e troquei idéias com pessoas.
Neste período de 1990 a 1997, algumas boas recordações do ENEMs e dos EPEMs são guardadas com carinho. No I EPEM fui eleito para a diretoria da Sociedade Brasileira de Educação Matemática – SBEM/SP. No II EPEM fui eleito membro do Conselho Editorial da SBEM/SP. No III EPEM fui eleito secretário geral da SBEM/SP. No IV ENEM fui eleito para a Comissão Editorial da SBEM (nacional). O professor de Matemática encontrou outros com as mesmas dúvidas e incertezas.
Destas participações alguns momentos são especiais. O principal foi a “invenção” do Boletim da Regional São Paulo. Na época exercia as funções de 2o. secretário da SBEM/SP. Havia uma necessidade de comunicação com os associados e não havia dinheiro. As reuniões eram na FE-UNICAMP. Gasolina de cada um e a responsabilidade de quem tinha em São Paulo trezentos associados. Vingou o Boletim. Os financiamentos das edições vieram da UNESP, UNICAMP e USP.
Desde o início do Boletim — e depois criamos a Revista de Educação Matemática — até hoje muitos problemas permanecem, porém em 1997 tínhamos aproximadamente mil e duzentos associados em São Paulo. Crescemos quatro vezes, em número de associados, em cinco anos. Parece pouco, mas não é. Respondíamos por vinte por cento dos filiados da SBEM Brasil. Desta luta estava sendo criada uma sociedade de professores de Matemática de Ensino Fundamental, Médio e Superior.
Recomecei a pesquisa do doutorado (após trocar duas vezes de tema) no final de 1990. Foi a hora de introduzir Vigotsky e Piaget nos meus trabalhos. Na realidade a pesquisa do doutorado é uma soma da minha experiência acadêmica e profissional. Tese defendida em outubro de 1992. O título dizia: “Os Sensos Matemáticos: Uma Abordagem Externalista da Matemática”. Vários colegas dizem que este título e o resumo da Tese não fazem jus a esta. Acreditam que deveria ficar mais explicito o trabalho de investigação e o instrumento de pesquisa criado. Acreditam também que deveria ser destacado o trabalho com crianças escolarizadas e com os adultos analfabetos e não-escolarizados. Continuo achando uma Tese interessante, mas com psicologia da aprendizagem demais. Achei que era hora de avançar no item pesquisa.
Comecei com um projeto de materiais didáticos para o Ensino de Matemática em conjunto com o Prof. Dr. Geraldo Perez. Fizemos um curso de especialização para professores de Matemática do Ensino Fundamental e Médio. O projeto foi aprovado pelo PADCT/SPEC II. A influência da Psicologia da aprendizagem era e é muito forte na educação brasileira. Esta influência traz como subproduto uma crença muito forte nos ditos materiais de ensino e nas teorias gerais de aprendizagem. Acredito que eu e Geraldo fomos reféns destas influências por um bom tempo. Geraldo foi mais a fundo neste projeto eu, porém via começar a nascer um arrebatamento ao discutir a questão ambiental.
Ao mesmo tempo, no Departamento de Educação, começava a firmar-se o grupo de pesquisa em “Temática Ambiental e o Processo Educativo”composto por vários professores, inclusive eu. Retornei ao tempo em que ministrava aulas de Matemática aos alunos do curso de Biologia na UNISANTOS. Quais as relações entre a Temática Ambiental e a Educação Matemática? Existe a possibilidade de produção de material didático interdisciplinar?
Eram perguntas que até hoje buscamos respostas. Reunimos um grupo de professores da rede estadual e alunos da graduação em Matemática, Biologia e Geografia. Fizemos outro projeto de pesquisa para o PADCT/SPEC, na chamada de 1992. O projeto foi aprovado. Direitinho como pensamos: com muitas bolsas de estudo para os professores da rede estadual e alunos da graduação; pouco material de consumo e R$ 100,00 de equipamentos. Deste projeto o importante era a formação do professor pesquisador. Foram quatro anos sistemáticos de reuniões, debates e estudos. Realizamos um seminário sobre Matemática e Ecologia com o Prof. Dr. João Frederico Meyer que foi considerado fundamental pelo grupo. Um aluno do nosso grupo foi estudar Biomatemática, na pós-graduação da UNICAMP, para que propostas fossem discutidas. É interessante, começamos com Batschelet e acrescentamos vários educadores de Lev S. Vigotsky a Paulo Freire.
Outra questão respondida pelas pesquisas desse grupo foi a que envolve a “atividade de ensino”. Inicialmente lemos Leontiev sobre o conceito de atividade de ensino, que foi central em nossos avanços. Na realidade objetiva o grande debate estava centrado no item “motivação”, em Leontiev. Uma proposta que foi aceita pelo grupo a partir deste seminário é que o tema a ser trabalhado na “atividade de ensino” deve ser escolhido pelos alunos, da sala de aula que for desenvolvida — independente do grau de ensino, isto é, da Educação Infantil ao Ensino Superior. Esta conceituação foi fundamental para todos os trabalhos de pesquisa realizados a partir deste momento.
Em 1993, foi ano de criação do Grupo de Pesquisa-Ação em Educação Matemática — GPA — em conjunto com o Prof. Dr. Roberto Ribeiro Baldino. Começaram as reuniões com os professores de Matemática do Ensino Fundamental e Médio, aos sábados. O início foi complicado. O grupo patinava. Gente vinha e gente ia embora. Persistimos. E crescemos.
Tenho um carinho especial pelo GPA — embora na atualidade este não mais exista em Rio Claro. Participei ativamente do grupo, com o Prof. Dr. Roberto R. Baldino, durante sete anos. Aprendi, estudei e trabalhei muito. Na minha memória a algo que interlaça o GPA com a Pós-Graduação em Educação Matemática, de Rio Claro — PGEM/RC. Isto porque o início da minha atividade profissional tanto no GPA quanto na PGEM/RC é praticamente simultâneo. Outra justificativa é de que todos os alunos sob minha orientação, até hoje, defenderam Dissertações de Mestrado somente Sarah Tanus, a primeira, não elaborou, discutiu e gestou sua pesquisa no âmbito do GPA, todos os outros o fizeram.
Alguns grupos de pesquisa do GPA sugeriram ou elaboraram propostas que posteriormente foram implementadas na PGEM/RC. Aqui destaco o subgrupo, nascido em 1996, “Educação Matemática e Cotidiano”. Várias das leituras, discussões e temas discutidos no interior deste grupo foram posteriormente incorporados no curso oferecido no ano de 2000, na PGEM/RC, “Cotidiano, Memória e Práticas Educativas”. É interessante pensar que a existência deste subgrupo oxigenou a discussão sobre a História Oral, no âmbito da Educação Matemática. É fácil notar que ao iniciarmos os trabalhos deste subgrupo, em 1996, a questão da Memória e da História Oral passava longe das pesquisas em Educação Matemática sendo que, hoje em dia, está presente em trabalhos já finalizados e outros em andamento, tanto em Rio Claro como em outros programas.
Atualmente dois projetos de pesquisa são, particularmente, importantes. Um é o Grupo de Formação de Professores de Matemática. Estamos fazendo uma pesquisa panorâmica do que foi discutido a respeito de formação de professores de Matemática na década de noventa, no Brasil. A fonte de dados é o conjunto de “Anais” de congressos de Educação e Educação Matemática, utilizando quatro variáveis: formação pré-serviço, formação continuada, capacitação docente e desenvolvimento profissional. No atual formato, este grupo tem pouco menos que um ano de funcionamento. Já apresentamos um estudo prévio no último EPEM. Pretendo que, com a evolução deste grupo, possamos pesquisar memória de professores, práticas educativas, cotidiano escolar e paisagens educacionais.
Um outro projeto, pessoal, pretende analisar a estrutura de poder e a formação de redes de poder, a partir da escola. Este é um projeto associado ao projeto de memória de professores. Aqui a linha teórica que, inicialmente, pensamos em adotar é a foucaultiana. Dois passos já foram dados em relação a este projeto. O primeiro é curso que ministro este ano na PGEM/RC “ Dimensões Psicoemocionais, Sociais e Culturais em Educação Matemática ” e tem como orientação discutir a importância do “inquérito” na formação das ciências sociais e, em particular, na Educação Matemática. O segundo passo é o projeto individual de pesquisa “Educação Matemática e Memória: Paisagens e Ambientes do Cotidiano no Ensino de Matemática nas Décadas de 1950-1970”. Este projeto está em fase adiantada de elaboração faltando apenas realizar e transcrever algumas fitas. A metodologia de pesquisa é a História Oral e a fundamentação teórica é constituída pelo universo da Antropologia, Sociologia, Filosofia e História (Nova). Entre margens e fronteiras estudamos Agnes Heller, Hannah Arendt, Nietzsche, Marc Block, Le Goff, Carlo Ginzgurg, Michel Foucault, Giles Deleuze e Félix Guatari. Temos recebido muitas críticas do mundo acadêmico pela opção da História Oral. Para mim, nenhuma pertinente ou consistente. Percebo que o que arrebata nosso grupo de pesquisa — Grupo de História Oral e Educação Matemática (www. ghoem.com) — é a descoberta que existe uma “história marginal” a “história oficial”. Que a verdade é relativa ao observador. Não ao observável.
É muito estranho fazer uma textualização da memória própria. Acredito que se estivesse a escrever de um outro professor, isto seria mais fácil. Usei a metáfora dos espelhos para começar este texto com o desejo de que eles de fato mostrassem imagens minhas em diferentes momentos ou épocas. Mas não foi isso que aconteceu. Tenho que admitir que a partir de um espelho fui adentrando uma sala de espelhos. Aquelas de parques de diversão. Os retratos que apareciam no espelho iam criando forma e aumentando de tamanho. Na realidade constituíam portas que ao se abrirem apontavam outras imagens que, por sua vez, transformavam-se em novas portas. “Links” cibernéticos de mim. Fui descobrindo circunstâncias que me formaram. Algumas portas mantiveram-se intocadas porque outras chamavam mais a minha atenção. Em vários momentos tive a sensação de escolher qual das minhas vidas eu queria ou iria relatar. Caminhos que não segui estavam lá quase que perguntando: por que? Exercício de reencontro de mim mesmo e, ao mesmo tempo, estranhamento. Talvez o espelho tenha me ensinado que eu me constituo na minha dúvida, incerteza, escolhas e parcerias. Nietzsche diria que sou, também, as minhas maldades, ódios, raivas e mesquinharias. Porém, concluiria Nietzsche, estas os homens, em sua infinita bondade, tentam eliminar de suas imagens. Talvez o espelho tenha me ensinado que é necessário rever por que portas estão abertas e trilhadas enquanto outras permanecem cerradas.
Os cenários escolhidos, nos espelhos, tentam constituir uma paisagem, a mais fiel possível ao que me propus, isto é, da minha caminhada e, mais ainda, uma leitura parcial e escolhida de meus atos. As minhas incertezas e dúvidas bem como os meus talvezes e todavias continuam ao meu lado, só que hoje, positivamente, sabem-se inconclusos. Como eu.
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