Projeto Vidas em Cordel - Museu da Língua Portuguesa.
Entrevista de Ivanice de Sousa Silva
Entrevistada por Cecília Farias (P/1) e Amanda Siqueira (P/2)
São Paulo 12 de março de 2025.
Entrevista número PCSH_HV1430
Revisão: Nataniel Torres
P/1 - Então, para começar, se apresenta pra a gente, contando o seu nome completo, onde você nasceu, quando você nasceu e sua data de nascimento?
R - Bom, eu sou Ivanice Souza, vulgo Nice. Bar da Nice. Todo mundo me conhece como a Nice. Sou de BH, Belo Horizonte. E eu nasci 2... Peraí, calma. 02/09/1975.
P/1 - E quanto tempo você ficou nessa cidade onde você nasceu?
R - Pouco tempo, eu vim para São Paulo com três meses.
P/1 - E te contaram como é que foi seu nascimento? E como é que foi sua infância? Alguma coisa assim… Dessas coisas que a gente nem lembra às vezes, mas que contam pra gente como a gente é…
R – Ah, meu nascimento, minha mãe separou do meu pai em BH com três meses, que eu sei a história. Fui criada numa família evangélica, hoje sou macumbeira, mas fui pra escolinha dominical, depois fiz primeira eucaristia. Tive uma infância que ela me deu a religião, primeiramente, eu que sou mundana, mas sempre com a religião que veio da minha infância. E minha mãe trabalhando muito como costureira, cuidando da gente. Minha avó maravilhosa, foi a minha vovó da minha vida. Mas a minha infância foi muito legal. Até eu fugir de casa com 15 anos e nunca mais voltei. Porque eu era muito presa e eu queria minha independência, e eu fui conhecer o mundão. Aí, minha avó virou pra mim e falou assim: “Você quer mesmo parar de estudar? Você quer mesmo…” E eu já não queria mais morar com a minha mãe, minha mãe era muito rígida, jogava tudo na cara, né? “Tô aqui nessa máquina e você"... E aquela adolescente rebelde, tinha padrasto. Foi quando a minha avó falou: “Então, você vai lá em Santo Amaro, vai ter aquelas"..., me deu o dinheiro da passagem, “vai ter aquelas...
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Entrevista de Ivanice de Sousa Silva
Entrevistada por Cecília Farias (P/1) e Amanda Siqueira (P/2)
São Paulo 12 de março de 2025.
Entrevista número PCSH_HV1430
Revisão: Nataniel Torres
P/1 - Então, para começar, se apresenta pra a gente, contando o seu nome completo, onde você nasceu, quando você nasceu e sua data de nascimento?
R - Bom, eu sou Ivanice Souza, vulgo Nice. Bar da Nice. Todo mundo me conhece como a Nice. Sou de BH, Belo Horizonte. E eu nasci 2... Peraí, calma. 02/09/1975.
P/1 - E quanto tempo você ficou nessa cidade onde você nasceu?
R - Pouco tempo, eu vim para São Paulo com três meses.
P/1 - E te contaram como é que foi seu nascimento? E como é que foi sua infância? Alguma coisa assim… Dessas coisas que a gente nem lembra às vezes, mas que contam pra gente como a gente é…
R – Ah, meu nascimento, minha mãe separou do meu pai em BH com três meses, que eu sei a história. Fui criada numa família evangélica, hoje sou macumbeira, mas fui pra escolinha dominical, depois fiz primeira eucaristia. Tive uma infância que ela me deu a religião, primeiramente, eu que sou mundana, mas sempre com a religião que veio da minha infância. E minha mãe trabalhando muito como costureira, cuidando da gente. Minha avó maravilhosa, foi a minha vovó da minha vida. Mas a minha infância foi muito legal. Até eu fugir de casa com 15 anos e nunca mais voltei. Porque eu era muito presa e eu queria minha independência, e eu fui conhecer o mundão. Aí, minha avó virou pra mim e falou assim: “Você quer mesmo parar de estudar? Você quer mesmo…” E eu já não queria mais morar com a minha mãe, minha mãe era muito rígida, jogava tudo na cara, né? “Tô aqui nessa máquina e você"... E aquela adolescente rebelde, tinha padrasto. Foi quando a minha avó falou: “Então, você vai lá em Santo Amaro, vai ter aquelas"..., me deu o dinheiro da passagem, “vai ter aquelas plaquinhas, faz RG…” Era muito fácil naquela época, fazer RG, CPF, tirar… Tudo na hora fazia. “Você vai lá e vai fazer isso e aí você já é documentada”. Então, eu fiz a RG sozinha, eu fiz CPF, eu fiz minha profissional e fui trabalhar. Aí, arrumei o primeiro emprego nas Lojas Brasileiras em Santo Amaro, na Adolfo Pinheiro. E das Lojas Brasileiras, eu entrei lá com empacotadeira, de empacotadeira… Era aqueles serviços temporários de Natal, né? Entrava em novembro, fevereiro todo mundo ia embora. Selecionava aquela equipe. Selecionava cinco pra ser efetivos na casa. E eu fui efetiva, então fiquei nas Brasileiras até eu virar caixa. E minha mãe foi embora com um homem pra Belo Horizonte. E eu fiquei nas Lojas Brasileiras, não quis acompanhar minha mãe, fiquei morando com vovó. Depois que eu peguei empoderamento nas Lojas Brasileiras, com meus 16, 17 aninhos, eu já... 16 anos! Eu já achei que eu já era a dona do mundo, porque eu já operava caixa nas Lojas Brasileiras. E aí, quando eu comecei a me empoderar, já começou a rebeldia, na loja, as más companhias. Aí, minha mãe tinha abandonado a casa na zona sul pra fugir com um homem, o ex-marido dela morreu de depressão, que era o meu padrasto. E aí, eu quis ir morar na casa, e minha avó ficou revoltada. E aí, minha mãe me chamou de volta, querendo que eu fosse embora pra Belo Horizonte. E aí, eu tive que pedir as contas nas Lojas Brasileiras. O meu gerente veio e falou assim: “Não, você é uma ótima funcionária, você vai trabalhar nas lojas brasileiras de BH”, me transferiu de São Paulo para as Lojas Brasileiras em BH. Fui ficar com mamãe, isso com 16 anos já. Mas o estilo da paulistinha com as menininhas do interior não deu certo. O meu jeito de trabalhar, o meu jeito de agir com os clientes, tudo, lá em Minas eu era muito sirigaita. E aí, eu fui demitida da loja. Mas eu sempre passava ali na rodoviária de BH, tinha a perua do Silvio Santos, carnê do baú. Já te contei?
P/1 - Conta de novo.
R - E aí, eu falei: “Então, já que não vou trabalhar na loja, a loja me acertou”. Fiquei uns dois meses na loja, em BH, como caixa. E aí, eu pra não ficar dentro de casa com a minha mãe, eu fui trabalhar no Carnê do Baú da Felicidade, ganhava horrores de dinheiro.
P/1 - Como é que era esse trabalho?
R - O Carnê do Baú, a perua do Baú da Felicidade, na época, ficava com a equipe do baú, os carnês, e a primeira mensalidade dos carnês era do vendedor. Depois o cliente pagava as mensalidades mensalmente na casa lotérica. É como esse Show do Milhão. Vocês não lembram do Baú da Felicidade? Carnê do baú? Então, a minha carreira começou todinha sendo treinada como conversar com o público no Baú da Felicidade. Então, o Silvio Santos tem grande parte da minha vida. Aí, depois começou a vidinha mundana, os relacionamentos, namoro, engravidei. Então, em relação à minha infância, eu acredito que até os 14, 15 anos, eu fui muito bem com a minha família. Só que fui de uma família rígida, né? Eu era a ovelha.
P/1 - Fala mais da sua mãe, da sua avó?
R - Ah, cara, aí fodeu, né? Porque... Já começando com 16 para 17, comecei a ficar rebelde, não dava mais entendimento com o marido da minha mãe. Aqueles vizinhos questionavam, eu menininha moça morando com um padrasto e minha mãe já começou a ter uma dúvida em relação a mim. E eu já fui começando aquela coisa esquisita. Aí, eu fui procurar o meu pai e eu consegui achar. E olha que a minha mãe separou do meu pai eu com três meses, até uns sete, oito anos, ela ainda levava a gente pra ver o meu pai, mas depois disso, ela nunca mais levou. Saía de São Paulo pra levar a gente. Mas aí, cara, eu consegui achar o endereço do meu pai, falei: “Eu vou procurar ele, porque eu vou morar com ele, não vou morar com a minha mãe”. E eu consegui no Horto Florestal, achar ele. Mas quando eu marquei encontro, fui na casa da minha avó, pedi a minha avó pra ligar pra ele, ele veio. E aí, ele me levou pra comer ali no centro de Belo Horizonte, terminamos de almoçar, tudo, eu expliquei pra ele que não estava mais lidando com a minha mãe bem, que minha mãe era assim, minha mãe era assado, que eu queria que ele me ajudasse, que eu queria morar com ele. Olha a inocência da mulher. E ele conversou comigo, achei meu pai encantador. Mas quando ele foi me levar pra rodoviária pra mim ir embora, ali na rodoviária tinha aqueles puterozinhos de abre e fecha, ele entrou comigo naquela porta, ele falou assim: “Bora, vamos aqui comer”. Aí, eu peguei… E quando a gente passou pelas portas de Bang Bang, eu falei: “Mas pai, o que é esse lugar?” “Aqui nesse lugar, tem uns quartos, e eu quero ficar junto com você”. Eu não lembro as palavras que ele me falou, mas eu lembro que ele falou: “Você parece muito com a tua mãe, e eu quero lembrar da tua mãe. Eu vou te ajudar”. Mano, isso foi um desespero na minha vida, eu tive uma diarreia até dentro do ônibus. Eu não acreditava naquilo que estava acontecendo. Eu não sabendo andar direito em Belo Horizonte, como eu chegava no metrô. E claro, que quando eu cheguei em casa e fui questionar a minha mãe: “A gente não se dá bem, você fica não sei o quê…” Porque eu sempre fui de muitos amiguinhos. Tá bom, não é porque você anda com más amizades que você vai ser má amizade. Mas ali, só de andar com quem fumava, só de andar com quem bebia, pichava, já era… Aqueles bailinhos de escola, fugir de casa, já era aquele negócio pra minha mãe, fui mexendo com a cabeça da minha mãe. E aí, aprendi a fumar até cigarro de... Não tinha dinheiro pra comprar cigarro, então lá fumava cigarro de fumo. E quando a minha mãe achou nas minhas coisas, fumo Sabiá. Já era droga, era maconha, que eu já estava “uma perdida”. Minha vida virou um inferno. Mas tinha aquela casinha lá… Aí, questionei minha mãe, o que o meu pai fez comigo, porque ela brigava comigo, tudo, não me entendi, eu queria morar com ele, e eu fui pedir ajuda pra ele, ele queria transar comigo. Minha mãe ficou louca. Que eu era mentirosa, que jamais meu pai ia fazer isso comigo, quem era safada era eu. Aí, a casa caiu, porque eu já fiquei desorientada, já dormia na casa de amigos, já não sei o que, não sei o que. Mas eu amava minha mãe, eu queria fazer as pazes com minha mãe. Aí, lá naquela casinha funda, lá do interior, tinha um terreiro de macumba, todo branco, tudo. Mas ali não podia ir, porque ali era só feiticeiro. Mas resolvia os problemas. Resolvia os problemas, você ir ali. Cara, quando eu entrei lá dentro. Escondida, né? Fui ver, procurei o dia que era sessão, tudo, descobri. Cara, quando eu entrei no terreiro, eu achei tão lindo, tudo branco, aquelas mulheres. Era simplesinho, mas elas eram tão lindas de vestido, que eu fiquei…
P/2 - E como você se sentiu em relação a sua mãe?
R - Cara, é muito foda falar, porque foi onde essa atitude da minha mãe, em saber que eu nunca convivi com o meu pai, não tinha o porque de eu querer transar com o meu pai. Então, foi uma atitude que eu fui ficando rebelde. Aí, eu fui para o terreiro de macumba, do terreiro de macumba, comecei na macumba, numa religião totalmente diferente da religião que eu fui criada. Aí, na macumba, me enfeiticei pelo ogã, que o ogã, quando ele estava tocando, ele virava no Exu Mirim, e ele vinha, não tinha um dente na frente, preto, que nem água entrava no cabelo. Mas ele tinha um gingado, o Jorge, que o cigano dele, o Exu Mirim dele... É uma coisa de louco, né? Mas eu me apaixonei pelo Jorge. E o Jorge começou a ser meu amigo. E ele me dava os conselhos da menina rebelde que eu era. E eu comecei a me encantar com o Jorge pela minha carência de um amigo, um amor. Aí, pegou pro meu lado, preto daquele jeito, macumbeiro. Jorge não trabalhava, ele vivia era de macumba. Fazia tudo que era trabalho para os outros, trabalhava com a macumba. Vai entender a minha mãe. E a minha mãe pegou no pé de Jorge, não sei o quê. Quando acaba eu que fiz Jorge me comer. E Jorge me comeu, e engravidei da Thalita, fugi de casa pra ir viver com ele. E engravidei, a Thalita, hoje vai fazer 31 anos, a minha filha que me deu iniciativa. Minha mãe levou Jorge pra delegacia, eu era cabaça na época, porque chegou uma carta anônima que se eu vivia com o Jorge, era porque ele tinha me estrupado. E a minha mãe pegou, um belo dia, a gente não conversava, era aquela coisa dentro de casa. Mas um dia ela acordou cedo e falou: “Toma um banho que eu comprei um jogo íntimo, de calcinha e sutiã pra você, que eu quero que você saia comigo”. E aí, eu: “Mas mãe, onde a gente vai?” “Na costureira, você vai me ajudar a escolher uns tecidos”. E eu toda contente que minha mãe estava voltando às pazes comigo, depois de anos que a gente ficava sem conversar. Mas, simplesmente, ela me levou para a delegacia das mulheres em Contagem. Por causa da carta anônima, tinha colocado que Jorge tinha me estuprado, que não sei o quê, não sei o quê. De um cara do terreiro que gostava de mim. E a minha mãe fez na Delegacia das Mulheres. Falei: “Mãe, o que a gente está fazendo aqui?” Ela falou: “Você é vagabunda. Você vive com esse homem”, Jorge nunca tinha me comido, ele era meu amigo. Eu sempre quis ficar com ele, eu achava ele charmoso. Ele era feio de cara, mas de corpo ele era todo durinho, negão, todo charmosinho, sabe? E eu na delegacia, chegando lá, a delegada me questionou, eu falei: “Mentira, não existe isso, ele é meu amigo” “Mas tem a carta, vamos pro exame” Pra ver se eu era moça ainda. E aí, Jorge foi chamado sem entender nada, nunca tinha entrado numa delegacia, foi uma coisa louca pra Jorge confessar na delegacia. Então, quando comprovou no exame, lá na hora, que eu era moça ainda, foi onde ele, na delegacia, falou: “Agora eu vou fazer um filho nela, não vou assumir, pra senhora ver que eu fui um homem”. Porque ele sabia todos os transtornos que eu passava com a minha mãe. E eu e o Jorge fizemos a Lita, que hoje tem 31 anos. A Lita é bem negra, charmosa, minha filha, cabeleireira. Por causa dela, eu fui pro corre. Entendeu? Eu não voltei buchuda pra dentro de casa. E tudo aconteceu na minha vida.
P/1 - Você lembra quando você conheceu o Jorge, a cena, o dia?
R - Claro, foi no terreiro!
P/1 – Como que foi?
R – No terreiro, eu vendo ele tocando, eu vendo ele zoelando no terreiro, respeito que ele tinha no terreiro. Eu era uma menina, né? Como você apaixona por um artista na televisão. Mas ele já era um homem de 48 anos, ele não me via como mulher. Então, o pai da Thalita hoje deve estar com seus setenta e poucos anos. Ele não tinha essa malícia comigo que foi feito na carta anônima com a minha mãe, e minha mãe abraçou. E foi isso, então, foi a minha vida. Então, eu sou uma espírita hoje, né? A minha espiritualidade já vai aí pra 35, 34 anos. Tenho a religião da infância todinha, a Bíblia, sei os mandamentos, e sou um temente a Deus por causa disso. Portanto, a minha vida se transformou sem eu querer o que eu sou hoje, na região Cracolândia, e terminei aqui. E pra pular toda a trajetória de uma mulher da vida, né? Minhas caronas na rua, na estrada, viajei muito de carreta, fiz carona na estrada, conheci todos os cabarés de estrada da vida. Ganhei muito dinheiro na vida. Fui uma mulher que eu tive muitos homens, muito dinheiro. Fui amada, pelos pais dos meus filhos, principalmente. Amei também, que é maravilhoso você ser amada e amar. Puta amada e final de carreira, puta apaixonada, misericórdia. Eu, quando me apaixonei, então, toda a minha carreira de vida, de mulher, hoje, com 50 anos, eu tive três homens, três amores que eu me apaixonei. E hoje a solitude para mim, dos meus três amores que foram terrivelmente pesados, o único que não soube a minha vida, foi o pai do meu filho agora, de 12 anos. Eu fiz um curso de enfermagem, na época, que eu ainda estava na vida, eu fiz... Quando eu comecei a vida, na Conselheiro Carrão, isso daí já era com meus... Tinha acabado de ter Talita, né? Quase 19 anos, era aquela menininha safadinha, de cafetãozinho ali, cafetãozinho aqui. Mas quando eu comecei a vida em boates, com executivos, uma carreira de uma verdadeira prostituta, eu comecei na Conselheiro Carrão, na Avenida João XXIII. E aí, o dono da boate, ele colocava a gente até às duas, três horas da manhã no paredão, depois entrava para dentro da boate, até às sete da manhã. E nessas do paredão, foi onde eu fazia drive, todas as prostitutas faziam drive. Então, era aquela Avenida João XXIII, na época do real, eu ganhava muito dinheiro, porque eu usei muita bota. Hoje eu tenho fibromialgia, um tanto de problemas, por causa dos meus saltos. E nessa do começo de carreira, eu fui estuprada num drive. Lilita devia estar com um ano e pouco. E eu, na época, ganhei muito dinheiro, porque eu falava com a minha amiga, o que eu vou fazer da minha vida, que é aquela vidinha agora, que eu tinha engravidado de Talita, não ia dar certo. E ela confessou pra mim que trabalhava na boate, assim e assim, em São Paulo, que não sei o quê, não sei o quê. E eu falei: “Mas vender o corpo, Sara?” “E aí, você não vê a minha casa, não vê como eu sustento os meus pais. E pensa na tua filha. É só isso que você... Por que pra onde você vai? Vai pra casa da tua mãe, da tua família? Não vai! Vai ficar com o Jorge? Não vai!” Porque o Jorge fez o filho, e aí acabou mesmo, a gente... Eu e o Jorge temos amizade até hoje. Nunca registrou Talita. Talita também não fez questão. E com o pai, é muito tranquilo, com os meus relacionamentos. Pai do Tayran, pai dos meus filhos. Então, a Sara me mandou pra boate, João XXIII, eu era aquela caipirazinha. Sara conversou comigo, você vai, você vai ser... O chauffeur vai te pegar, vão tomar conta de você. Resumindo, me deu a foto de uma mulher que eu poderia conversar com ela, ninguém mais. Porque você vai entrar num galinheiro, uma menina nova, nesse lugar, que nunca fez nada, sempre as mais velhas iam acabar, né? E quando acaba… Nesse estupro, cara, eu engravidei, não sabia que estava grávida. A sopa da tia, na madrugada, começou a embrulhar meu estômago. Foi quando eu fiz o teste e estava grávida do estupro.
P/1 - Mas aí você já tinha falado com essa mulher, por exemplo?
R - Qual mulher? Sim, a minha amiga… Um mês, dois meses, na boate. “Sara eu quero ir embora, eu não quero ficar aqui, aconteceu isso". Ela falou: “Você vai acostumar. Não vai ser a primeira, a segunda vez, isso é um exemplo, isso é uma aula” E nunca mais aconteceu, em trinta e dois anos de carreira. Mas eu superei aquilo, por causa do dinheiro, por causa... É um dom, né? Mas nisso, nessa gravidez desse estupro, que eu fui descobrir, eu já estava de três meses, foi onde veio... As meninas me ajudaram no cytotec, foi onde eu abortei com três meses. Pela religião, eu jamais... “Vamos jogar fora?” Eu: “Não!” Eu tinha um motorista particular. Era lei a gente ter um motorista particular naquela época. Puta não andava na rua, tinha um ônibus. Aí, na boate mesmo, eu pedi para as meninas pra colocar numa caixinha, que eu queria enterrar. Aí, chamei o motorista, aí eu peguei a enxada, cavei, coloquei lá no buraco, na cova, com um pano branco, ajoelhei, orei, pedi perdão, e vamos embora. Só que na trairagem do corre, as próprias que me ajudaram, porque eu já não queria dar mais dinheiro, e eu ganhava dinheiro, era novata. Elas me denunciaram. Então, um belo dia, depois de uns seis, sete meses, desse aborto. Um belo dia, eu estava descendo a João XXIII, para fazer o depósito do dinheiro, não podia ficar com o dinheiro. Eu ganhava o dinheiro, o banco abria, depósito de dinheiro. E aí, gata, eu descendo a João XXIII, já parou o camburão: “Sua vagabunda, já fez isso, você matou, você fez um aborto, não sei o quê". Eu já nem lembrava mais. Já me levaram pro local de reconstituição do crime, não tinha, só tinha a toalhinha, não tinha mais nada. Aí fui pra delegacia, me levaram pra delegacia, já cheguei com o delegado, o delegado já olhava pra minha cara, já me deu uma tapada, e falou: “Por que você confessou isso? Você acabou de completar 20 anos. Por que você confessou isso? Você não sabe que uma mulher quando aborto não tem mais... Agora você confessou, vou fazer o que pra te ajudar?” Aí eu tive que planilhar dedo, papapá, papapá. Na boate, o dono da boate falou: “Agora, Marta…” Que eu era Marta Rocha, né, Marta, Rocha veio depois". A Sara mudou meu nome quando eu fui pra vida do corre, que não pode ter o nome. E aí, o Nelson, um ótimo cafetão, um amigo, falou: “Vai embora, vai embora, você não pode ficar aqui”. Eu voltei para BH. Foi onde eu já tinha casa, que eu construí casa muito rápido, com o pouco que eu fiquei na zona lá, na boate. Já tinha casa com a minha filha, a minha filha sempre ficou com babá, Talita. Eu ia de 15 em 15 dias para BH, duas, três vezes por mês, São Paulo-BH, BH-São Paulo ou São Paulo, outros lugares. E aí, foi quando eu conheci o pai do Taylor e da Taynara. Eu comecei a trabalhar em BH, quando eu voltei pra BH pra sair de São Paulo. Aí, eu dava fundo à casa do pai dos meus filhos, que eu fiz casa na favela e na rua de cima era os ricos, que era fundo. Aí, cara, o meu nome era feito na favela, porque eu ajudava a favela toda, né? Tinha muito dinheiro, então… Era eu sozinha com a Talita, Talita foi muito bem cuidada na favela, as babás dela. E aí, eu, no fundo dessa casa, quando eu estava construindo a casa, conheci o pai dos meus filhos, que ele trabalhava na Nelson Hungria, presídio de Belo Horizonte, de Contagem. E eu comecei a me envolver com o pai dos meus filhos. Que eu ia pra zona, eu vinha da zona, ele fazia um curso de computação em BH, e foi onde eu vi aquele homem granfino, tudo, e eu fui foder a minha vida. Ele se apaixonou, eu me apaixonei. Já fodi com a casa, que eu construí a minha primeira casa pra fugir com ele, já construí no terreiro da minha mãe. E aí, ele já me batia demais, já era aquele negócio todo. Fugi de BH há 18 anos atrás… Há 21 anos atrás. O Taylor estava com 4 meses, quando ele foi para o presídio e eu fugi, vim embora para São Paulo, com as crianças. Então, tem 21 anos que eu voltei de Belo Horizonte pra cá, foi onde eu comecei nesse território, que eu fui trabalhar no cabaré 69.
P/1 - Você veio pra morar onde aqui, nessa vez?
R - Fui pra Zona Sul, onde eu era criada, aqui em São Paulo, quando minha mãe... Jardim Apurá, Pedreira. Minha filha até mora... Minhas duas filhas moram lá até hoje. A mãe da netinha é a Talita. O Taylor mora aqui no centro. Os três já têm a vida deles independente. Só o Taylor que mora comigo. Então, a Lita vem uma vez por mês, de dois em dois meses. Muita conversa por chamada de vídeo. Taynara também, cuida da netinha, trabalha, mexe com coisa de unha, design, paga seu aluguelzinho, tem auxílio. De vez em quando vem com a netinha pra cá, deixa a netinha uma semana, não sei o quê, eu já tenho atrito com ela, que eu quero pegar a neta, que ela tá uma menina muito rebelde, a Taynara. O Taylor, completou 21 anos, convidei ele a se retirar da minha casa, porque ele já trabalhava, falei: “Sinto muito, não dá mais! Não aceito mais como que é, eu falo, você chega em casa duas horas da manhã, pá pá pá, tchau”. Então, o Taylor, desde dezembro, que ele completou de 21 anos, dia 15 de dezembro, eu mandei ele embora de casa. Ontem ele esteve aí, falando que estava com saudade, que o óculos tinha quebrado, abraçou, tudo, tchau. Só o WhatsApp também… E um rapazão lindo. Meus filhos são muito lindos.
P/1 - Nice, você lembra de histórias… Conta alguma história deles criança? Alguma coisa que marcou, assim?
R - Cara, o que acontece, véi, os meus filhos, eu paguei, eu tive dinheiro pra pagar babás únicas, eles não eram aqueles filhos que ficavam com um e com o outro. As amigas da minha mãe da infância, que me viram criança, que cuidaram, criaram os meus filhos pra mim enquanto eu era mundana. Então, a Talita tem 30 anos. Por isso que eles fazem a vida deles longe de mim, porque eles foram treinados a isso. Eles vêm quando tem uma necessidade, fora isso, é só telefone. E não, nada do bar. Eles não gostam de ficar dentro do bar. Nem estar comigo me auxiliando. “Não, não, não, mãe, a sua vida é a sua vida”. Então, ficou muito chato depois, que eles nunca presenciaram a minha vida particular, sempre viajando, sempre longe, eu nunca dei liberdade, depois que eu mudei a minha vida, muitas coisas eles vêem na rede social, muitas coisas eles ficam questionando, não me perguntam. Porque sempre a mamãe trabalhou de enfermeira em asilos. Então, não tinha porque questionar a mamãe, se a mamãe vinha de 15 em 15 dias, ficava 10 dias, ficava uma semana, ia no médico, ia na escola. A gente sempre almoçou fora pra estar junto, sempre, sempre, até hoje. Natal, quando reúne todo mundo, tem que deitar na cama junto comigo, porque era o tempo que eu poderia estar. Então, deitava o cachorro e os três, que o Tayran veio agora, 12 anos atrás. Então, a minha infância, meus filhos, eu acho que teve... Tá bom, que eu comprei muito eles com presentes, com isso, aquilo outro, né? Por causa da minha ausência, mas eu não lembro nem como eu criei esses meninos, não, cara. E o Tayran também, totalmente independente, agora que saímos aqui de dentro do bar, eu fiquei tão com cordão umbilical dentro desse bar, que eu tinha medo quando eu aluguei o apartamento aqui, porque querendo ou não, o “apepê” só foi alugado porque Carmen Lopes me colocou no pote. Então, sempre eu trabalho em algumas coisas que Lopes precisar de mim por causa do pote, porque o pote ainda não dá, o bar não dá ainda pra tirar, pagar aluguel aqui, pagar aluguel... Eu pago um pau e meio, aí coloca condomínio, dá R$1.800,00, esse apartamento. O pote R$1.400,00, e eu intero o resto. Então, se não fosse minha amiga, minha irmã, minha madrinha, e tudo que eu me transformei hoje, Carmen Lopes, minha vida ainda estaria aqui dentro desse bar. Então, foi meus filhos, para mim… Tem hora que eu vejo eles na rede social, tem hora que eu vejo a menina, Talita, “ó mãe…” Que eu falo: “Ó, quando eu morrer não vem no meu enterro". “Mãe, para de drama, que não sei o quê". Mas, cara, só deu ver que não se transformaram e não tiveram a minha infância. Nunca condenei os meus filhos, nunca… Eu sempre deixei esses meninos, eu mostrar pra eles o certo e o errado.
P/2 – Nice, o que a maternidade representou na sua vida?
R - Cara, a Lita foi muito especial, quando ela veio. Fiquei muito perdida com a Talita, sozinha, mãe a primeira vez. Minha avó quase teve um infarto, aí ela teve que fazer cateterismo, quando foi me deixar no hospital. Que eu fui pra casa da minha avó quando engravidei, minha avó cuidou de mim, eu estava muito cheia de infecções, inflamações. Eu pesava 38 quilos, com uma nenê de seis meses na barriga. Minha avó, minhas tias, cuidaram de mim. Só que quando a Talita completou também 30 dias de vida, minha tia me botou pra trabalhar de empregada do lado do apartamento dela, porque quem tem o primeiro vai ter 10, um atrás do outro, né? E aí, que a pressão familiar ficou foda, com uma filha nos braços. Então, eu saía de casa às 5h, a Talita com 30 dias. Eu saía de casa, colocava ela no carrinho, bebê toda no carrinho, coberta. Eu saía de casa às 5h da manhã, com essa bebê de 30 dias. 40 dias que eu comecei a trabalhar com a Thalita. Pra atravessar uma caminhada como daqui no museu, que a minha tia morava longe da minha avó. Quando a Talita completou um ano, eu falei… Quando eu voltei pra BH e comecei a vida do corre. Aí, Talita foi para as babás e eu fui pro mundão. E aí, toda essa vida, os amores, os maridos… Terminei na Luz. Na Luz, terminei de criar o Taylor. Tayran ficou, criei na Luz até os 5 anos, até os 7 anos, porque tem 5 anos de comércio. Um dos cafetões aí da Luz fez esse bar aqui na Júlio Prestes. Ele não deu conta do bar na Júlio Prestes e do bar dele na Luz, ele falou: “Toma conta pra mim”. E eu, pra começar uma nova vida, vim tomar conta do bar pra ele. Dia 27 de outubro de 2019, minha netinha nasceu no dia 28 de outubro, um dia depois. Foi o nascimento da minha vida. Novembro, dezembro, janeiro, março, veio o Covid, o cafetão tirou o bar de mim. Mas quando eu engravidei do Tayran, no 69, as meninas tudo me fez pagar o INSS, e eu tive direito ao auxílio emergencial. Quando o auxílio emergencial saiu, o Tayran já tinha quatro meses. Eu voltei para o Cabaré com um mês que o Tayran nasceu. Então, com o dinheiro que saiu tudo de uma vez só, comprei um Ford KA pra minha filha, que estaria completando… É de maio,Tayran 30 de setembro. Então, em junho, maio, julho, agosto, saiu o auxílio emergencial todinho, auxílio maternidade. Lilita ia completar 18 anos no dia 19 de setembro. Eu peguei o auxílio maternidade, dei entrada no Ford KA, para dar de presente, fazer a festa de 18 anos da minha primeira filha. Ela é picareta, nunca se dedicou ao carro, o carro ficou guardado nove anos, pagando garagem, comprando motor novo, recauchutei o carro todinho, com trava elétrica, vidro automático. E ela não quis pegar o carro. E quando o cafetão me tirou do bar dele, que eu entrei com nada e saí sem nada, por causa da Covid. Eu peguei o Ford Ka ali, comprei esse ponto aqui na troca do carro. E aí, tudo acontece até hoje, porque aí quando eu estava lá, conheci os Redutor de Danos, Pagode na Lata, que eles estavam indo pra Cracolândia, fazer o projeto lá. Gritei eles, eu estava fazendo os tira gostos da cozinha, porque era 15 dias, mais ou menos, que eu estava tomando conta do ponto. Aí, eu muito perturbada, sem entender como ter as coisas, como fazer. E o Brown falando: “Você tem que acordar cedo pra pegar as pessoas” Ele começou a mandar na minha vida, porque ele queria me treinar da maneira como botequeira. E eu não sabia o que era ser comerciante. Mas eu fui fumar um cigarro, tal, deixei… Os usuários pegavam, traziam manjubinha do mercado, que eles limpavam, eu comprava mais barato e colocava na vitrine, manjubinha, pastelzinho que eu fazia, pra fazer o aluguel dali, né? Os bolivianos, eu vendia três skin por vinte. Os bolivianos, sentava dez, cada um pra tomar um litrão de skin. E aí, que foi acontecendo. Os meninos foram para a Cracolândia, eles passaram por mim, eu fumando na porta, veio alguma coisa e falou: “Chama eles”. Eu gritava com eles, eles falavam: “Eu vou ali, na volta a gente passa”. Quando chegou na Cracolândia, teve uma explosão da polícia lá, uma operação lá, muita bomba eles pegaram e gás. Eles se refugiaram no bar, viram o bar: “Que legal, que não sei o quê. Ó, a gente faz evento aqui de 15 em 15 dias, mas a gente termina ali no Amarelinho. Então, pra te dar uma força, a gente vai vir pra cá”. “Tudo bem”. Aí, vieram uma vez, na terceira vez eu contei pra eles quem eu era de verdade, a minha origem, o que eu estava ali. “Então, a gente vai passar a ficar aqui com você". Aí, veio a Covid, o Pagode na Lata foi todo embora, porque só foi 5, 6 meses que eu fiquei ali. Todo mundo sumiu. Eu indo embora, que o Brown pediu. Foi onde um cliente me indicou o bar, eu vim aqui, negociei, negociei, aí peguei o bar com o Ford KA. Quando a Covid foi passando, as pessoas podiam sair um pouco na rua, o Paulestino, o Átila, me achou aqui. Eu falei: “Átila, papapá”. O bar era um balcão aqui, muita sujeira, rato, barata, que não sei o quê. Aí, eu falei pro Átila: “Átila, a gente vai precisar limpar essas paredes, faz uma cor pra me ajudar”. Ele falou: “Não, tira esse balcão, vamos tirar o balcão, vamos isso, aquilo outro, e a gente vai fechando os lugares com o lambe”. Falei: “Ah, tudo bem!” E foi onde começou esse artista visual, o bar. Tem navios com lambe, tem bules, tudo. Agora, se vocês passarem ali no muro de lá, tem esse muro todinho do Ayrton Senna. O meu nome aqui e o que eu me tornei, foi a tradutora dos lambes em debates. E as pessoas veem. O recanto, um ex-amigo da zona, me ajudou muito, no começo da minha carreira. Ele falou: “Nice, por que você não coloca Recanto?” Como esse cara me ajudou muito na intenção de me ter para ele. E ele investiu muito dinheiro, porque ele falou: “Ah, saiu da zona, agora ele é minha mulher”. Mas, infelizmente, eu não pedi pra ele me comprar. Eu fui deixando acontecer, enquanto eu não acabei com o dinheiro dele, e falei: “Você não vai me ter porque você me investiu”. Aí, começou aquele lelê. Mas graças a Deus a gente resolveu, o Ricardo sumiu. Mas em honra dele, quando ele falou: “Coloque Recanto, Nice”. Aí, eu coloquei. Sempre tinha o Recanto Rocha, porque eu sou uma pomba gíria e meu nome era Marta Rocha. Então, foi 32 anos honrando o meu vulgo Marta Rocha. Porque depois do começo de carreira, Cabaré 69, que eu passei a sair das granfinagem, parar de acompanhar executivos e passei a frequentar cabarés, que é uma grande diferença. De cabarés, ir pra rua. Então, as mulheres muito questionavam, porque eu sempre trabalhei sentada. Eu sempre fui magrinha, jeitosinha, mas não tinha bundão. O cabelo é que chamava atenção, né? Sempre fui muito cabeluda, o cabelo aqui, cacheadão. E a minha maquiagem, que eu aprendi a maquiar com drag, então… Eu fui formada por verdadeiros drags e travestis. Eu sento, eu falo, eu me maqueio, tudo como um drag: “Mona!”, eles entravam no camarim pra ensinar prostituta, porque viam como as outras prostitutas tratavam mal. Então, foi isso. E a minha vida começou assim. Eu comecei a trabalhar com os usuários, nunca tive condições de pagar funcionário, o que me restava? Me colocar com uma empatia com os usuários. “Porra, vocês precisam do meu banheiro, que eu sei a dor que é mijar, sei a dor que é cagar, tomar um banho Sou da rua”. Oh, eu sofri muita vontade de ir pro banheiro. Os nãos.
P/1 - Conta de quando você chega nesse território aqui da luz? Você foi para o parque?
R - O território da Luz é um território que quem é de fora não entende, né? Tem que ter uma certa… E provar lá dentro do parque, para ficar lá dentro, tem que ter uma certa bagagem. Porque só prostitutas velhas ficam lá dentro do parque. Vocês já perceberam. Novinha não pode ficar. E os clientes já sabem que são prostitutas antigas dentro do parque. Entrou novinha dentro do parque, não vai ficar. Tem uma lei lá dentro. Então, eu tenho de 69, 12 anos, 13 anos, trancada dentro do prédio. Foi a minha faculdade maior, onde minha cafetina me ensinou a lidar com homem. Então, quando eu… Tayran engravidei dentro do Cabaré 69, mas quando o Tayran nasceu, eu já com mais uma criança, já não dava mais conta de pagar a diária do prédio, que era 150, 120 reais, na época. Era um dinheiro desperdiçado eu dar pra uma cafetina, porque primeiro eu tenho que fazer o da cafetina, depois o meu. Então, já não me vi mais nesse patamar de ter que ser guardada por cafetões. Foi onde eu decidi pegar a encruza de frente ao 69. Não tinha o Poupatempo? Aí, eu desci do 69 com o Tayran. No prédio 69, eles auxiliaram o Tayran até os seis meses. Eu fiquei pra comprar fralda. As prostitutas do 69, em peso, fez o meu enxoval com o Tayran e colocou o nome dele de Tayran também. E aí, minha cafetina pegou e bateu de frente comigo, porque as outras meninas falaram: “A Rocha pode ficar lá e não vai mais pagar diária, a gente também pode”. Foi uma crise muito louca, mas eu consegui vencer as cafetinas e fiquei durante um ano, um ano e pouco, na encruza do 69. Minha filha Taynara, que hoje tem 25 anos, começou naquele negocinho de 15, 16 anos, a se envolver, e ela ficou muito presa com babá, tudo, então quando eu soltei os meus filhos, foi foda! Porque eles quiseram ganhar o mundo. E aí, o que eu fiz? Eu peguei a minha família todinha, pus no carro. Porque eu também tinha medo de carro, né? Eu sou habilitada, eu fiz 10 aulas, sabendo dirigir, mas como eu bebo muito e fumo muito, eu nunca peguei o carro. E o carro também tinha o resumo de ser isso aqui. Não era para mim, era outro objetivo. Eu acho que agora, se eu for pegar um carro, eu pego. Só não podia ser aquele. Então…
P/1 - A Luz, o território.
R - Então, a Taynara, começou a ficar na Zona Sul, uma menina muito ardilosa, na oitava série, sétima série. E o que eu fiz pra tirar minha filha daquele meiozinho de más companhias que ela tava vivendo? Eu peguei essa família todinha, levei… Tayran deveria estar com um aninho. Há 11 anos atrás, todo mundo, guardei num condomínio fechado em Campinas, sem televisão, sem celular, sem nada. Para que não tivesse mais… Então, ali, durante uns seis meses, as meninas começaram a conhecer o território, as coisas, aí eu já fui liberando telefone, já fui liberando televisão. Mas fiquei trabalhando uns três anos em Campinas para tirar a Taynara da vida mundana aqui. Mas depois ela fez um acordo com a madrinha e voltou. Aí, ela voltou, Talyta quis voltar, o Taylor também já ficava chato. Aí, eu voltei de Campinas pra São Paulo, foi onde eu entrei no parque. Aí, já eram as meninas velhas do 69, todo mundo já estava dentro do parque também, então onde eu marquei meu território dentro do parque. Vinha todo mundo do Museu da Língua Portuguesa trabalhar, eu ia lá, pegava uma água, pegava umas camisinhas quando dava, pegava um livrinho pra ficar no banco. Hoje, de vez em quando eu dou palestra lá, vejo lá, faço saraus ali no museu, me traz lembranças muito de quantas vezes eu fui lá pegar uma água, uma fruta pra eu comer. Então, eu acho que lembrança da infância, lembrança da minha vida louca com os meus filhos, a única coisa que eu pude fazer foi guardá-los, nada mais me interessava. No dia da reunião de pais, como eu fiz enfermagem: “Filho meu não entra em hospital, não precisa ir pro hospital. Antes de estar falando que vai levar pro hospital, fala pra mim que eu vou saber, os seus olhos e os meus olhos”. Então o babá não levava filho meu para o hospital. Tayran tem 13 anos, vai fazer, e deve ter ido para o hospital umas 6 vezes. Agora, que nasceu uma verruguinha, vai tirar. Então, eu sempre consegui cuidar da família e dos filhos. E eu acho… Eles sabem que a mãe foi muito rígida, a escola não podia reprovar, portanto ninguém é reprovado, todo mundo é formado. Então, fui uma mãe que o mundo criou eles. Bati? Também. Claro! Bater pra machucar a mão, nunca gostei de machucar a mão, eu já dava uns bicudo mesmo, porque eu já usava aqueles botão, então quando eu falava é desse jeito mesmo. Então, tudo acalmava, ninguém aprendeu a roubar, ninguém aprendeu a matar, ninguém aprendeu a traficar. E eu acredito, porque é muito difícil eu conversar com as pessoas, então preciso ler. Eu leio muito. E em uma das minhas leituras, explica que a mãe, quando não vê necessidade dos filhos, os filhos não veem necessidade dela, é missão cumprida. Então, por enquanto, eu tenho missão cumprida com eles, eles não me pedem nada, não reclamam de nada, vivem o mundo deles na sua frente. Eu sei que eles pagam veneno, pra não vir até mim e baixar a guarda. Mas eu fiz a mesma coisa com a minha mãe.
P/1 - O curso de enfermagem, quando que você fez?
R - A enfermagem, o macho que me tirou da cadeia, doutor Gabeira, desse tamanho, pesava 180 quilos, esse homem, o olho dele era tão verde. E o 69 mandou advogado pra mim, Gabeira chegou, porque com 4 dias na cadeia, eu vegetava, não comia, não bebia, porque eu fui tirar meu documento… Eu estava no 69 trabalhando, o Taylor, esse de 21 anos, tinha seus 7, 8 meses, engatinhando. Ele pegou a carteira e jogou na janela do vizinho, que caiu por trás da cama do vizinho. E eu caçando minha carteira com meus documentos pra vir para o 69, caçando, caçando, porque eu não podia entrar no cabaré sem documento, e não achei. Eu falei: “Quer saber, tem o Poupatempo, eu vou trabalhar, mas pego a minha identidade no Poupatempo, e com o protocolo eu fico dentro do cabaré”. Ok! Me arrumei, era um tempo de frio pra caralho, peguei jaqueta de couro. E vim! Falei com a tia que tomava conta das prostitutas: “Tia, eu vou tirar o RG aqui embaixo, e se eu for ficar presa, me tirem” Ela: “Ai, Marta, cala a boca, para de falar isso". E parece que eu estava adivinhando, porque antigamente o Poupatempo era aquelas cadeironas. Mano, eu sentei ali, eu falei: “Carai, véi! Peguei a senha. Puta que pariu, eu podia ter trago a conta de luz”. Porque eu tinha conta de luz pra pagar, telefone. Eu sempre tive telefone fixo em casa, por causa das crianças. Na época não tinha celular, assim. “Caralho, não peguei meu cigarro”. Tudo fazia eu levantar daquele banco e sair dali. Mas por causa das precatórias que eu fui embora, né? Então, eu fui presa porque eu não respondia às precatórias que chegavam na boate. E aí, cara, quando eu fui tirar o documento, que ela olhou pra mim, tudo, que eu dei a xerox da identidade, ela virou pra mim e falou assim… Eu tinha a xerox, né? Eu andava com aquela xerox. Ela falou: “Olha, você espera um momentinho, que eu só vou dar uma detalhada nessa xerox e eu já volto”. Mano, não deu cinco minutos, essa mulher voltou com duas mulheres desse tamanho, um homem: “A senhora nos acompanhe, por favor?" Eu: “Tudo bem!”. É uma salinha tão pequena, onde só fica o delegado, um policial atrás da porta, e a cadeira pra você sentar. O delegado na mesa. Quando eu entrei, a porta fechou, eles algemaram a minha mão: “A senhora está presa em nome da lei". Eu falei: “Mas o que aconteceu? O que eu fiz?” No ano de 1900, não sei o quê… Então, já tinha passado 10 anos do meu aborto. “A senhora cometeu um infanticídio, bababá, bababá, bababá”. Aí, já saí algemada, fui pra onde faz o que as delegacias daqui, de lá já fiquei no Corró, do Corró já fui pro Pinheiros de Daká, Daká de Pinheiros. E no quinto dia, quando eu entrei no seguro, claro, você tem que bater continência e explicar por que você tá preso. Eu falei: “Olha, gente, o negocio é o seguinte, há 10 anos atrás, eu fiz um aborto assim, assim, assim”. As presas ficaram loucas no seguro. “Você não pode ficar aqui, senão as mulheres lá em cima vão te matar”. Aí, foi conversado com a direção para eu ficar no seguro, então eu fiquei sete dias no seguro de Dakar, que foi a época do PCC. Lembra quando o PCC acabou? Então, eu sofri pelo aborto. Eu não sou a favor do aborto. Eu sofri tirar uma vida, porque uma mãe que vai abortar, você pode ter certeza, ou por um estupro, ou por qualquer coisa que for. A não ser um estrupo, porque eu poderia ter esse direito. Mas transar por transar, e depois você não saber as suas consequências. Um aborto traz consequências, nenhuma mulher que aborta é feliz na vida, ela sempre tem perrecos. Enquanto essa criança não reencarnar, a vida dessa mulher, portanto, aos 40 anos, Tayran veio. Eu tive 40 cytotecs pra tirar Tayran, eu tomei cytotec, eu jogava cytotec, eu colocava na perereca, eu tirava, eu jogava. Até que eu tirei tudo dentro do vaso e falei: “Não, eu vou ter esse bebê”. E esse bebê me trouxe o bar. Tudo que é a minha vida é o Tayran. Então, no quarto dia de cadeia, como eu já estava muito fraca, não comia, eu precisava simplesmente falar com as minhas babás. Porque eu sempre fui pra casa, eu nunca levei ninguém dentro de casa. A minha babá já estava louca, a Aline. Aí, o policial foi entregar a comida, presa, mulher, não se fala com policial homem. E aí, eu consegui falar com o policial, pra que deixasse pelo menos eu ligar pra minha babá. Ele falou: “Vou dar um jeito de tirar”. Ele deu um jeito lá, ele me tirou da cela algemada, como se fosse pra falar com um advogado pra mudar. Eu digitei o número do celular, a Aline atendeu, eu expliquei pra Aline em segundos, somente falei: “Aline, eu estou presa e cuida das crianças. Faça o que for, quando eu sair, eu vou te ajudar”. A Aline automaticamente já parou de se preocupar e sabia que ali era a minha casa, era ela com as crianças, eu já estava despreocupada com as crianças e esperando o advogado do 69, que eu sabia que as meninas iam fazer o correr de mandar advogado pra mim. Mas até então, no quinto dia, eu pedi ajuda pra uma policial. Ela falou: “Mas por que você está presa?” “Não, porque há 10 anos atrás eu fiz um aborto de 3 meses” “Você está presa por isso?” “Você tem dinheiro?” “Tenho!” Eu guardava dinheiro pra comprar um terreno na praia. Aí, ela falou: “Vou mandar um amigo meu pra você”. Gabeira chegou… Aí, tá bom. Quando foi cedo, o advogado do cabaré chegou. Aí, eu conversei com ele, isso, aquilo outro, assinei uns papéis lá, mas aí o Gabeira chegou depois. Mas uma vez eu fui conversar com advogado. Aí, o Gabeira perguntou assim: “Mas você assinou, você fez o quê? Por que você está presa?” Esse outro grandão. Aí eu falei, por causa disso, disso, disso. Ele falou: “Não, eu vou assumir esse caso". Falei: “Mas eu já assinei”. Gabeira não sei como fez, tirou a procuração do outro advogado. Ele falou: “Você me cobrou 3 mil na época pra me tirar da cadeia”, tinha que dar uma entrada de 1.500. Eu expliquei pra ele como chegasse na minha babá, que minha babá ia saber onde estava o dinheiro. E que ele fosse na minha casa. Aí, Gabeira foi na minha casa, conheceu minha babá, tudo, viu meus documentos, que eu falei pra ele, tudo onde tava documentos meu. Advogado besta, né? Só sei que quando eu entrei pra cela e expliquei pras presas, as presas. “Bom, é uma otária do caralho, né?” “Como você vai dar dinheiro pra advogado de porta de cadeia? Foi polícia que te arrumou esse advogado, você tá fudida aqui, não sei o quê”. Mano, eu entrei em pânico, larguei o advogado do Cabaré, pra pegar o advogado. Ele me deu mais segurança do que o advogado do 69. Só sei, cara, que ele falou: “Vou na tua casa e amanhã eu volto aqui pra você assinar os documentos e eu vou ver esse processo. Cara, se você realmente tiver presa por causa de 10 anos atrás que você fez um aborto, você não vai ficar aqui dentro”. Falei para as presas, tudo direitinho, as presas começaram a tirar a onda da minha cara e realmente, o advogado, ele voltou. Quando me algemaram tudo, tiraram a algema. Ele fica, a cela aqui, a presa aqui, ele do outro lado. Aí, ele conversando comigo: “Porra, véi, vi o seu processo, é aquilo mesmo, a gente vai dar um jeito”. Mano, eu não vi tamanho, pela cela, eu peguei aquele advogado e puxei, eu falei: “Véi, as meninas aqui estão falando que você é advogado de porta de cadeia, que você vai pegar o meu dinheiro e sumir”. Eu entrei em desespero com esse advogado. Ele pegou e falou: “Calma”. Isso foi na quinta, na sexta, ele conseguiu a minha saída da cadeia, só que ele conseguiu chegar às 17h40, até toda a papelada sair, para tirar a presa da cela, depois das 18h, a presa não sai mais. Aí, eu tive que passar a rebelião sexta, sábado e domingo, com a polícia, com a GOE, com os cachorros, com as metralhadoras, tudo dentro do seguro da cadeia. Eu nunca vou esquecer tudo que eu passei. Quando foi… Porque eu tinha muito medo, porque eles vão dentro da cela, né? E solta os cachorros. Os xingos, então, só Deus pra operar. Cara, mas não, na madrugada de domingo, eu acho que nós ficamos juntos… Eu fiquei com as presas mais perigosas, né? Presas que mata a mãe, presa que esquarteja, presa que… O seguro é uma coisa muito louca viver dentro de um seguro, de uma cadeia feminina, mas tem o respeito. Quando me tiraram da minha cela… Aí tá! Mas na madrugada de domingo pra segunda, eram umas quatro horas da manhã, eu ressonando alguma coisa, falava: “Levanta, você vai sair daqui agora. Você vai embora”. Gente, eu chorava tanto. Tinha uma presa, ela pegou um salmo, uma bíblia: “Enquanto você estiver aqui dentro…” Era pirata, ela levou um tiro no olho, ela não tinha um olho. Ela: “Rocha, enquanto você estiver aqui dentro, você vai orar esse salmo, que você vai sair”. O salmo 71 é maravilhoso na minha vida, eu só rezo esse salmo quando eu me vejo em perigo. O salmo 71 é muito louco. E aí, quando foi umas 5 horas da manhã, eles vieram: “Levanta todo mundo! E aí, aquela que eu não chamar, é a que vai ficar desse lado. Então, todo mundo desse lado, ok?” Quem ele ia chamando, ia pra lá. Quem ela ia chamando, ia pra lá. Cara, de umas 100 presas, sei lá quantas presas tinha na cela, eu fui a última a ele chamar. Chamou tudo. Quando restou eu, ele falou: “Some da minha frente, vai embora daqui, filha de uma puta”. Eu comecei a chorar, achei que ia pro seguro, né? Achei que ia pro convívio, porque eu não podia ir pro convívio. Aí, as presas começaram a falar: Bonde, você… Bonde é quem pega cadeia a primeira vez. “Bonde você vai embora, você vai embora!” Meu cabelo era muito grande, cacheado, elas foram fazendo aquelas trancinhas por causa das baratas e dos percevejos no cabelo. E no seguro se dorme no chão, não tem cama. Come no chão, dorme no chão, recebe pelo chão. Gata, quando elas falaram: “Bonde você tá indo embora. Você tá indo embora, você ganhou a rua". “É mentira!” “Bonde, vai embora, vai embora!” Devolveram minha jaqueta que pegaram quando eu entrei, que era de couro, as minhas roupas tudo veio. Eu não tive visita, eu não tive nada. E a cela abriu, eu virei, e eu olhava, porque é uma porrada de cela, é um corredor, até você sair de dentro da cadeia. Eu não sabia se eu queria sair, eu não sabia se eu queria ficar, porque você vai ter uma força ali dentro, do erro que você fez, do que você fez, como você tá ali. A cadeia é uma desgraça, gente. Só fala de cadeia, quem já pegou uma cadeia. E aí, quando eu consegui sair, para o portão de saída, tem que assinar muitos papéis. Para sair da cadeia, demora mais do que para entrar. Mas quando eu realmente cheguei no portão de saída, que eu assinei, que os portões abriram, tava lá, o doutorzão com Corolla. “Vem”. Ele não conseguiu entrar, ele entrou em desespero que ele não conseguiu, que ele queria me tirar antes da rebelião, que ele sabia o que eu ia passar lá dentro. E ele foi na minha casa, ele viu que não era qualquer mulherzinha que ele tava tirando da cadeia. Minha babá, minha casa, não foi nenhuma favelinha. E aí, cara, infelizmente me apaixonei por essa desgraça. Ele casado, ficamos cinco anos juntos, ele ia no cabaré. Tirou muito dinheiro meu. Gabeira safado, tirou dinheiro meu, hein? Mas um dia ele falou: “Véi, por que você não muda de vida?”. Ele já queria me colocar no escritório dele pra tomar conta da minha vida. Falou: “Meu, você tem que ter um sonho. O que você gosta de fazer?” “Ai, cara, eu acho tão bonito enfermagem". “Então, você vai fazer enfermagem". Aí, eu, por amor, fui fazer enfermagem. Mas aí, o Kassab, fechou o Cabaré 69. Quando ele fechou o Cabaré 69, com a minha avó e a merreca que eu tinha, eu abri uma cozinha mineira na Avenida Cupecê, com uma sócia, empolgada que eu ia largar o cabaré. O primeiro cliente que entrou no restaurante… Que eu pintei tudo, mandei grafiteiro pintar tudo, paguei não sei quantos meses pra imobiliária, acho que era seis meses, não tinha fiador, não tinha nada. Então, paguei seis meses pra imobiliária, do aluguel. E, cara, o primeiro cliente desse bar, foi o pai do Tayran, pra pedir um cigarro. A minha visão daquele espaço que eu aluguei, que eu peguei o ônibus, e saí de dentro da minha casa, e falei, onde for que eu descer, vai ser o meu bar. Vou procurar onde vai ser a loja que eu vou alugar. Eu não ia ficar na rua com as putas, já que o Kassab fechou o cabaré. Aí, cara, desci ali na Cupecê, porque eu vi um tanto de oficinas, eu vi as oficinas, mas eu não prestei atenção no território que já bancava as oficinas de carro ali, em que eu era um pau no cu pra começar ali. Aluguei do lado de uma oficina, arrumei a loja toda, pintei, decorei, a sócia tinha os bang, que ela fazia a comida na Barra Funda, que era a amiga de um amigo e queria uma sociedade para isso. Ela viu que eu era besta demais e eu entrei com o financeiro. O pai do Tayran, ela não estava trabalhando no dia, então eu abri o bar sozinha com a cozinheira, que estava lá embaixo, que o primeiro dia de comida eu fiz uma galinha caipira. E esse pai do Tayran entrou na loja para acender um cigarro, e nesse cigarro ele falou pra mim que estava só esperando arrumar o carro, mas aí ia demorar, então ele ia almoçar. Ele foi o primeiro homem que comeu a comida e fodeu a minha vida. Larguei o curso de enfermagem, quando eu já estava perto de me formar, já estava fazendo estágio. Fui morar com ele com dois meses. Foi uma paixão assim, cara. E aí, veio o Tayran, ele picou o pé na minha bunda, voltei pra rua de novo. E aí, terminou aqui. Então, a enfermagem foi isso, eu não tive o Coren, faltando 15 dias pro Coren, eu tranquei a matrícula porque eu comecei o bar, então eu queria pelo menos ficar uns dois, três meses, depois voltar pra fazer o último estágio. Então, a enfermagem só serviu mesmo pra mim criar meus filhos e eu salvo muita gente com a enfermagem.
P/1 - Nice, conta pra gente, eu quero saber de duas pessoas que você conheceu. Primeiro, conta como foi que você conheceu a Carmen Lopes?
R - A Lopes, é assim… Cara, uma que ela é virginiana igual eu. Outra que ela vem de um lugar onde ela sempre teve que ser a migalha para estar onde ela está hoje. Então, até… A Nice chegou, há cinco anos atrás aqui, a Carmen Lopes já estava há 30, né? Então, ela já tinha todo um respeito e um conhecimento aqui nesse território, que não era assim: “Ah, eu vou dar ibope pra essa putinha que saiu ali da Luz e abriu o bar aqui”. Então, a Lopes, ela vinha no bar quando os meninos faziam evento, que era caminho dela ir pra casa dela. Ela bebia, não pagava. Entendeu? Sempre pagava de louca, ia bêbada. Eu ficava invocada. “Porra, cara, essa mulher vem pra cá, bebe tudo, não paga”. Depois que eu fui investigar a vida dela, que ela era não sei o quê do contêiner. E nunca entendi também, também ela nunca se interessou. Ela conversava muito pouco, ela mais tirava onda da minha cara, porque ela sabia que eu era uma mané aqui. E querendo ou não, a lei dos mais velhos é deixar um pouco apanhar pra entender. Não é assim, chegando e… Não é assim eu estar aqui esse tempo todo com vocês aqui porque eu acho vocês bonitinhos. Entendeu? Mas aí, veio o doutor Giordano (Magri). Amanda Amparo veio comemorar o aniversário dela aqui e trouxe o doutor Giordano pra cá. E o Giordano… Vocês conhecem o Giordano? É aquele ali ó, no quadro comigo. Acho que vocês já viram, o ex-chefe do gabinete do Suplicy. E esse menino, cara, ele veio com a Amanda aqui, fazer… Ele teve que ir pra Holanda fazer um doutorado lá, e ele tinha que ter uma tese aqui desse território de seis meses concluída, e ele veio pra cá. Na segunda vez que ele veio, ele veio com a Amanda comemorar o aniversário, eu achei ele muito esquisitinho, sentado com a Amanda Amparo aqui, mas atendi eles, tudo. Aí, ofereci um baseado pra ele fumar, ele falou: “Ah, tá bom, eu aceito”. “Ah, pelo menos não é tão chatinho, fumou maconha comigo, né?”. Mas aí no outro dia ele voltou já sem a Amanda. E aí, conversou comigo sentado ali um pouquinho, os planos dele aqui, querendo entender a Nice, que não tinha intimidade nenhuma comigo, a Amanda que deveria ter falado alguma coisa. Só que ele mexeu no meu ponto fraco. Ele, no segundo dia que ele me viu, sozinho comigo, até a Amanda chegar: “Como você se vira aqui? Como você faz para viver aqui?”. E pequenas coisas eu conversei com o Giordano, sobre a minha caminhada de estar aqui, sobre não entender ainda a língua do povo como eu entendo hoje. Poucas horas que a gente ficou aqui dentro, ele me escutou, como qualquer outra pessoa nunca tinha me escutado. E ele virou pra mim e falou assim: “Ó, vamos fazer o seguinte: eu vou ficar seis meses nesse território porque eu preciso de um doutorado na Holanda e esses seis meses eu vou tentar mudar a tua vida”. Vixi, eu tinha agiota de tudo que era jeito. Gente, era uma loucura sem eu saber como eu lidava aqui dentro. E agiota, agiota, agiota. E vida do corre, vida do corre, vida do corre, né? E aí, o primeiro passo que ele deu, foi aniversário do Escobar, que eu sempre comprava… Todo mundo ia embora sem pagar, eu bebia junto com o povo. Uns abusavam da minha ingenuidade, riam nas minhas costas, iam embora. Olha, cara, tantas cobras me abraçaram aqui dentro desse bar, que eu vou te falar, metade da minha vida, nesses cinco anos, foi dada para agiota aqui dentro. Mas hoje eu sou… Tudo bem que eu vivo no limite do banco, como se fosse um agiota, mas eu não sou tão pressionada como quando eu vivi com os agiotas. E ele chegou, foi… E a Carmen Lopes, o que acontece? Ela tinha uma grande amizade com ele. Quando ela ganhou que Giordano tava sendo meu amiguinho… Por quê? Giordano teve muitos passos aqui comigo, seis meses comigo em atalho, que ele ia sofrer muito pra conseguir a tese dele. E aqui comigo, esses seis meses, ele saiu daqui um “lobo”. Ele é treinado por mim, o Giordano. Em retribuição ao que ele fez por mim, pra manter isso aqui. Ele foi uma pessoa que nunca foi do meu convívio, e ele, como um gestor, ele mudou a minha vida, a minha história, durante um ano e oito meses na Holanda, eu invadi o prédio do Paulo Faria, ele nunca me deixou nem um dia, sem estar informada quanto seria o meu despejo. Quando foi o meu despejo, ele fez eu negociar com o dono do prédio, cinco mil reais pra sair, ele me deu esse dinheiro, porque o Giordano já tinha visto que ia estar aqui Conselho Tutelar, uma frescura que ele falou que é quando é despejo. E ele não queria que eu passasse por isso. E aí foi onde ele, essa distância, ele só falou: “Só preciso que você segure o ponto, o resto você não se preocupe com nada, segura o ponto até eu chegar da Holanda”. Então, depois agora que ele chegou da Holanda, janeiro agora desse ano, ele já transformou e está transformando aqui nesse centro cultural que vai ser. E aí, a Carmen Lopes, há três anos atrás, que o Giordano está na minha vida, então eu tô dois anos aqui, cinco anos, um ano aqui nesse território. Fiquei um ano aqui sem ter contato com a Carmen, ela vinha, um “bom dia”, “boa tarde”, tudo. Aí o Giordano veio pra cá, ela pra ter mais proximidade nos negócios que ela fazia com o Giordano, e conversar com o Giordano dentro do boteco. Ela foi passando a me observar mais, não era só aquilo que ela vinha com pagode, ou que ela vinha, passava, “oi, bom dia”, “boa tarde”. Ela foi tendo um pouco mais de empatia por mim. E aí, ela não tirava pra vir aqui quando alguém estava, ela já vinha sozinha. E aí, ela me sentava e me fazia chorar. Ela me fez aprender o que é o racismo, ela me fez… Porque eu não sabia o que era o racismo. Até então, esses anos todos… Como que eu vou me entender como racismo se eu vendi o meu corpo, eu era uma prostituta, eu competia com branca, preta, azul, amarela, africana, boliviana, japonesa? A gente não teve, a prostituta, ela não entende muito o racismo, porque ela não dá audiência pra isso. Ela não tem o poder de dar audiência pra isso. Ela precisa da cor dela branca, preta, azul ou amarela pra ganhar o dinheiro dela. Então, o mínimo que ela quer saber é do racismo, ela quer saber da postura, o charme, onde ela vai buscar o dinheiro dela. Quando eu virei comerciante, que a Carmen foi me instruir em racismo, que a Carmen foi instruir um pouco os trans, as lésbicas, os psicólogos que vêm aqui, os curiosos que vêm aqui, o que ela passou aqui. Cada coisinha que ela viu, uma gafe minha, ela só me xingava de otária. E eu chorava horrores dentro de casa. Então, a Lopes, com a dor da agressividade dela, porque a gente pode ter esse escudo de pessoa bruta, mas somos Deus e o diabo ao mesmo tempo. Se você me tratar bem, eu vou te tratar bem. Se você me tratar mal, eu vou te tratar mal. Então, você não vai querer ver o meu segundo lado, de uma mulher que veio da rua. Porque eu não vou ser aquela brava, nhem, nhem, nhem. Vai cair pra mim, vai cair pra você também. Então, as pessoas que convivem comigo, eu sempre dei a querer entender que sempre alguns metros de distância é bom para mim e para essa pessoa. É por isso que eu consigo viver o comércio, com a multidão. É por isso que eu consigo conversar com as pessoas. Tem os atritos aqui? Tem, mas a gente dá um jeito de contornar. É projeto pra caralho, é discussão pra caralho. Hoje eu aprendi tudo isso, a minha redução de danos, hoje ser redutora de danos Cracolândia, foi o que eu me tornei, nesse território, é simplesmente o meu olhar. Simplesmente, o meu nome, e simplesmente uma empatia, uma colocação no lugar. Não é porque você está na rua que você não sabe trabalhar, não sabe limpar. Eu não tenho como contratar, mas eu tenho como te dar chuveiro, comida, uma merrequinha, a cachaça, sair daqui escutando uma musiquinha. O que você quer ver na televisão? “Ah, quero ver…” “Que música você quer escutar?” Só bota… Vamos me ajudar a limpar. E sai mais perfeito. Porque eu ver um usuário ir pro fogão… “Ô madrinha, pode fritar um ovo?” “Pode”. Porque eles só são servidos, né? Bandeco, bandeco. Eles não sabem o que é cozinhar, o que é… Então está nessa cozinha e ele está fazendo, a lembrança da infância, aquele mexidão de ovo com tomate, não sei o quê… É cada gororoba que eles fazem nesse fogão, com prazer, que foi eles que fizeram. Que isso se torna um alimento pra mim. Porque por mais que eles saibam que eu sou rígida, que eu sou uma madrinha mesmo e que eu xingo das atitudes de estar na rua e não ter aceitação a eles, porque eles sabem que eu não tenho aceitação a eles. Porque as pessoas têm aceitação ao usuário. “Ele é usuário de droga”. Mas não sabe que ele é um ser, ele tá vivo, ele tem mente, ele pensa, ele come, ele caga, ele goza, ele tem os desejos da carne, por isso que ele usa pedra. Ele tem a plena consciência que ele não quer saber… Se ele é desacreditado, o que acontece? Ele é desacreditado, ele não quer saber de pagar água, não quer saber de pagar luz, ele vive o animal que o ser humano é nesse mundo. Ele se deixa entrar no clima do mundo, chuva, sol, maus tratos, choro, lágrimas, estupro, crianças. Então, hoje, reduzir danos, simplesmente vem aqui, que eu sou tão sozinha, porque eu sou rodeada de pessoas todos os dias. A Nice viveu 32 anos, ela criou os filhos dela, ela saia a hora que quer, ela tinha os machos que tinha. Eu fui na minha vida o que eu quis, hoje não mais. O meu cigarro é contado, a minha comida é contada, a minha luz, a minha água, eu tenho que pagar. De qualquer maneira, não é quando eu posso. Entendeu? Eu jamais, jamais, se não fosse uma grande equipe que eu tenho de amigos e amigas sinceras, que acreditam em mim, eu sozinha não estaria aqui. Eu tenho uma grande empatia e amizade pela Evelyn. A Evelyn nunca veio até mim como curiosa e eu vou ganhar um dinheiro para o museu nas costas dessa mulher da resistência dela na Cracolândia. Ela passou a trazer pessoas para me dar dinheiro. Qualquer coisa que vem aqui sempre tem uma retribuição que ela faz ou vai acontecer no museu, “você vai ganhar tanto. Ou tem sarau, inclui a Nice para ganhar no sarau também”. Todos aqui, mas todos tem aqueles que realmente são determinadamente dependentes e eles precisam de socorro. Tem dependentes que ele ainda não acordou, não tá no passinho de falar: “Puta, eu quero sair, eu quero parar, eu quero ser diferente”. Porque o que se dá a chance de querer pelo menos um pouquinho de libertação, ele entra aqui dentro, fica comigo das 11 horas da manhã às 11 horas da noite, assistindo televisão, comendo pra caramba, limpando, escutando música. Mas ele está se dando o direito de falar não. Aí, eu coloco aqui comigo. [intervenção] Agora tem outros, que fazem questão de realmente entrar na tua mente pra que você tenha a aceitação que eles querem. E ponto! E aí, você fazer a diferença dos que são totalmente dominados pelo vício da droga, dependentes, e fazer a diferença daqueles que querem que você tenha aceitação de que ele é desse jeito, é muito foda. Então, não existe pra mim aqui projeto ou instituições ou até mesmo muitos psicólogos que tem aqui, que consigam entender o que é o querer desses usuários. E eu me dou bem com eles, por quê? Porque eu não quero entender nem o querer, nem o poder, porque eu já fui assim. Então, quantas oportunidades eu já tive? Eu só casei com homem bom. Eu não tive tranqueira de macho, não, que eu fui uma dama. Caralho, eu vou ter homem vagabundo pra ser o pai dos meus filhos, véi! Meus machos, também namorados, tudo doutores. Eu tenho o dedo pobre para advogado e para polícia, não tem saída, foi todos os meus relacionamentos. Então, é isso, cara, o que eu me tornei na Cracolândia, esse comércio aqui, ele foi simplesmente a minha rejeição, que eu fui da rua, que eu fui uma prostituta. Ele é usuário, ele tem o livre arbítrio. Agora, uma mulher que todo dia vende o corpo dela, é muito foda, né? Então, é totalmente… Cada rejeição é uma rejeição. Lembra aquela época daqueles frios que teve, que todo mundo tinha que guardar as pessoas, porque estavam morrendo de frio, moradores de rua, estavam aquelas tempestades, lembra? Eu conversei com o Paulo Faria, o falecido. Falei: “Paulo, eu vou pedir um apoio moral pro Contêiner, vou pegar cobertas, vou fazer pipoca, um sopão, um filme na televisão e essa noite de frio a gente vai pegar pelo menos uns 15 usuários e colocar dentro do bar, mulher". Paulo Faria: “Você é uma louca! Você sabe o que você tá fazendo da tua vida?”. Eu falei: “Paulo, eu sei o que eu tô fazendo. E tá muito frio, elas vão passar a noite aqui dentro do bar, e eu passo a noite tranquilo, conversando, brincando aqui dentro do bar com 15 mulheres”. Olha o grau de pensamento. Pois você acredita, cara, que sopa, pipoca, tinha coberta. Porque o usuário, ele usa duas cobertas, ele não deita só no chão, pode perceber, ele sempre tem um papelão, tem uma coisa. Para estar no chão mesmo é quando realmente a droga jogou no chão e já apagou, deu um apagão e já era. Mas ele em si, pra deitar, ele sempre forra o chão. Então, eu consegui cobertas pra forrar o chão, aqueles cobertores, e cobertas para se cobrir. Quem disse que uma ou um quis ficar aqui dentro? Ninguém. Ninguém quis se abrigar nos temporais e nas geadas, porque tinha que ficar trancados aqui dentro. Aí, comecei, eu tinha que levantar um movimento aqui pra trabalhar, pra fazer alguma coisa. Você lembra que eu comecei a vender aquelas comidas, prato feito. Tudo pra tentar fazer eu me empolgar, pra ir adiante. Sobrava comida pra caralho. O que eu fazia? Aquele sopão que mamãe fazia com aqueles restos de comida, tudo que sobrava na geladeira. Mamãe jogava caldo knorr, cebolinha, salsinha, ficava uns pedaços de carne, ficava muito bom a sopa de frio de mamãe. Eu passei a fazer isso aqui, eu e outros usuários só, porque eu não ia jogar comida fora. Isso gerou uma polêmica, que a Nice era caridosa, que a Nice isso, que a Nice aquilo outro. Tiraram foto. Aí, já começou uma porrada de doação aqui. Eu já fazia por empatia, esses usuários já cobravam todo dia se não ia ter a sopa deles. Aí, eu já fazia a sopa, eu já não tinha coragem de dar mais, eu já colocava a mesa aqui, os pratinhos, a concha, sentava aí fumando uma maconha, trocando uma ideia com eles. “Põe aí no copo”, “ó! Civilização!” Vinham, rapava a panela. E, “mãe, obrigada!” Tudo. E foi fazendo essa grande amizade da Nice com os usuários. Não tem como eu negar água. E graças a Deus, ao mundo, ao universo, essa água vem totalmente às condições de pagar. Parece que é milagre. A luz, a mesma coisa. Então, é saber. Hoje eu tenho a certeza do que eu vim fazer aqui, o porquê que era aqui. Já que eu me aposentei da vida do corre, não poderia ser em outro lugar, ser comerciante? Não. Tinha que ser justo nesse coração aqui, onde a minha vida hoje, as pessoas que tem que cuidá-las, porque hoje eu já não consigo mais ter o comando de mim mesma. Hoje a minha vida é saber que o que importa é eu abrir essas duas portas. Ponto. E vai acontecendo as coisas. Então, eu entreguei totalmente agora cinco anos de comércio, 50 anos de idade, uma vida toda minha pela frente, que eu não sei onde vai ser a parada, então não tem mais como eu ficar emocionada aqui dentro. Eu não já me dou o direito de ser uma mulher emocionada. Não tenho mais essa paciência.
P/1 - O que é ser uma mulher emocionada pra você?
R - Ai cara, eu levantar 5 horas da manhã, querer botar pãozinho de queijo aqui, que vai fazer isso, que eu vou ganhar milhões. Não, não, eu já pensei tudo isso e nada deu certo. Porque não era pra ser. Eu já botei comida, não era pra ser. Eu já botei feijoada, não era pra ser. Eu já botei não sei o quê. Nada era pra ser. Então, se nada do que eu penso era pra ser, e o que as pessoas que estão entrando aqui, porque são pequenas pessoas, vem um, vem outro, faz isso, faz aquilo. Aí, tem o Paulestino que veio, foi uma grande confiança que dei pra esse menino, na arte visual dele. Agora, tem o ateliê dele, que vai ser daqui, onde vai sair muitas coisas em relação à cultura, depois da reforma desse bar. É uma confiança, é um amor que eu tenho pelo Átila Fragozo, de ele entender como um dos integrantes Pagode na Lata, porque ele foi escolhido para ser o meu braço direito aqui. Porque onde está Nice, está Paulestino, onde está Paulestino, está Nice. Então, eu também não entendo o porquê disso. Então hoje a minha vida… Eu não vivo mais para mim, para os meus filhos. Cinco anos atrás eu vivia para mim e para os meus filhos. Quantas loucuras eu já fiz para proteger os meus filhos e guardá-los. Então, hoje eu vivo para os outros. E eu vou fazer o quê? O que eu vou fazer? Não tem como eu transformar esse boteco mais em qualquer outra coisa. Não tem!
P/1 - Quais são as outras coisas que acontecem aqui? Hoje, por exemplo, tem o “Falas e Escutas”. Quer contar o que é isso e também o que vocês têm feito aqui?
R - O “Falas e Escutas” é simplesmente isso, o momento que cada mulher sai daquele compromisso e fala: “Espera aí um pouquinho, que eu já volto”. E aqui é uma coisa que não se fala o que se acontece em Falas e Escutas, tem que morrer aqui dentro. As conversas é aqui dentro, o chorar, o falar. Então, o Falas e Escutas é um processo agora de conhecimento. Quem tá na Cracolândia como curioso, quem tá na Cracolândia porque quer entender, a se entender. Porque tem o Falas e Escutas, você quer simplesmente não entender os outros, mas se entender, por isso que eu inventei o Falas e Escutas, né? Porque com elas eu me entendo também, que não é só eu a louca, tem mais também. É sempre bom você saber que tem outras piores que você. Você não está sozinha na situação. A Rita Lee é maravilhosa, quando ela falou ovelha negra, ela mostrou que não foi só ela que foi ovelha negra. Então, é isso, cara, viver a Cracolândia pra mim é viver as pessoas, eu não tenho mais saída disso.
P/1 - O que você pensa pro futuro?
R - Minha relação com a Carmen, é isso que você perguntou? A minha relação com a Carmen veio depois do Doutor Giordano, que ela passou a me observar mais e passou a me ajudar. Essa foi a primeira pessoa, e a segunda pessoa?
P/1 - Eu ia te perguntar do Murilo? Como você conheceu?
R - Murilo, então, há quatro anos atrás, eu aqui… Murilo é um compositor de Zeca, de Martinho Da Vila, Ivete Sangalo, e tem mais de 40 anos nessa rua, quando era a rua do samba aqui. E logo que eu comprei… Então, dia de sábado, agora que acabou muito, mas essa rua também há quatro anos atrás samba estourava. E eu comprei esse boteco aqui e tinha o Mixuruca, de um baiano que tocava aqui, fazia um samba velho aqui, com o resto dos clientes que vinham de lá quando acabava o samba, dia de sábado. Então, um pouquinho de gente, que eles acabam sete horas, aí tinha uns batuqueiros aqui que ficava até umas onze, então sempre pegava os restos de lá. E aí, os artistas de lá, os músicos de lá, falavam: “E aí, Murilão, vai lá dar um salve na Loura”. Eu fui apelidada muito aqui, né, meu? A única botequeira, querendo o quê aqui nessa rua? Barraqueira, com os nóias, fuma maconha na frente do bar. Eu vim pra cá muito chucra pra essa rua. Eu apanhei muito aqui, eu fui muito apelidada aqui. Essas lojas de música, aqui no Amarelinho, cara, se tivesse uma fila, o Marquinhos: “Vem cá!” Só pra mim não ficar dentro do bar, porque eu era maloqueira, minhas roupas, meu jeito. E aí, o Murilo, um dia, pra “bizoiá”, ele, no meio do evento lá, estavam os batuqueiros aqui, ele saiu e ele entrou, eu dentro do balcão, tudo, o pessoalzinho aí, aí a roda de samba começou, parou todo mundo, porque ele sentou na roda, e eu lá de dentro esperando. O que é que está acontecendo? Aí, ele pegou e cantou essa música, assim: “Você só me olha pra ver meus defeitos, você só me olha pra me criticar, me aponte aquele que não tem defeito, esse é meu jeito, eu não posso mudar, por acaso você já se olhou no espelho? Telhado de vida é tão fácil quebrar, não venha você me dizer os seus conselhos, pois conselho dos bons eu também posso dar. Deixa eu viver, que eu mereço…” E a música vai… E ele, quando terminou a música, porque ele canta a música e depois as pessoas vem com a… E aí, quando ele terminou de falar o refrão, todo mundo começou… Pu, pu, pu, nesse samba. E ele gravou esse samba, o CD, comigo, por causa que ele cantou aqui no bar essa música. E eu não conhecia que era música, que era nada. Eu saí de lá de dentro, deu um abraço nele. E falei: “Muito obrigado, muito obrigado por essa música, que não sei o quê”. E ele ficou tão espantado. “Para, meu!” Com a minha atitude de carinho, que ele começou a vir no bar, durante… Isso foi no sábado, durante a semana ele passou no bar, que agora já se passaram cinco anos, Murilo há cinco anos atrás, ainda tava mais troncudão. Ele falou: “Ô nega, aqui nessa rua, você é isso, é isso, é isso. E você tem futuro aqui, nega. Você é uma filha de Ogum com Iansã”. Eu sei! “Eu vou comprar, fazer o gongá pra você, e o seu anjo da guarda não se deve apagar mais”. E aí, o Murilo foi debochado lá no bar, que tocou na roda de batuqueiros aqui, os músicos tiraram onda. E tiraram onda, mas ele trouxe todo mundo de lá pra cá. Então, aí teve a época que ele meteu foi uísque, campari, cachaças. Ele fez essa adega… Ele falou assim: “Vai, vai, vai, vai”. Então, o Murilo passou, aí fiz a casa de veludo, ele estava aqui e consagrou. Tem o altar de Oyá com Ogum, foi ele que fez, pro santo não ficar apagado, mas deve tá, que a vela acabou. Então, pelo menos uma vez na semana, ele passa, só pra entrar pra ver se o santo está aceso. É um verdadeiro malandro, 88 anos. Fuma muita maconha comigo. Toma uma cachacinha. E traz… Já gravamos dois filmes juntos, eu e ele. Então, é um processo, ele na minha vida. É meu “Exuzão” mesmo. Ele soube me entender. E, né… Não é qualquer homem, esse homem com a idade que tem e sendo um compositor, um músico, as quebradas dele, o mundo dele, pra não entender uma mulher como eu. E o respeito que ele tem por mim, né? Então é isso. Murilo é um amigo, é um irmão, é um parceiro. Ele tem um olhar pra mim como uma mulher que quer lutar, tentar. Então, é isso.
P/1 - E o que você pensa do futuro? Se você tem planos, ou o que você acha que vai acontecer?
R - É isso que eu te falo. Primeiramente você tem que ter a certeza que vai acontecer. E eu tenho a certeza que vai acontecer. Como vocês também têm uma certeza que isso aqui já está sendo, não vai ser, já está sendo transformado no centro cultural. Está sendo só… É que a chave desse banco está mandando vir por jegue, mas está chegando, vai abrir esses cofres. E aí, vamos ver o que o toldo que é desse bar, que está comigo. Todo mundo vai fazer acontecer aqui. Então, o que eu posso saber que é o futuro disso aqui, minha filha? Se é vocês que vão saber, não eu. Eu não tenho controle disso.
P/1 - Tem alguma história que você gostaria de contar ainda?
R - De quê?
P/1 - Alguma coisa que a gente não perguntou que você gostaria de contar?
R - Eu não.
P/1 - E o que você achou de gravar com a gente?
R - Eu tenho que ver o que vocês acham, né? Que eu esqueço pra caramba, e a gente viaja pra caramba. Tem que ver o que vocês acham de estar o dia inteiro aqui. Com chuva, com sol, com usuário. Ah, gente, eu acho que tudo isso é uma semente plantada, né, véi? Tudo isso é uma semente plantada. Então, o que nós vamos achar depois disso? É isso que a gente tem que entender. Nem vocês também sabem.
P/1 - Gostaria de deixar alguma mensagem, assim, pra finalizar?
R - Leiam o Salmo 71 pra vocês verem como ele é muito louco, cara. Ah, eu lembro, pô, ele é grande, né?
P/1 - Mas uma mensagem, assim?
R - A mensagem que eu queria, cara, que todas as mulheres do mundo entendessem o poder que elas têm na mente de não ter aceitação. Como seria maravilhoso. Não só a mulher, mas todo ser humano ter o poder do não. Não quero do seu jeito. Por mais que eu quero, por mais que eu sofra, eu vou sofrer calado, mas eu não vou ter aceitação. Porque nada é para sempre, né? Então, uma mensagem muito louca para mim em relação a viver muito com mulher hoje, é o como elas deveriam cada vez se empoderar mais, se unir mais, se entender mais. Porque mulher é chata, mas elas unidas jamais serão vencidas. Não existiria tantas mortes, isso dessa menina aí, essa tragédia dessa menina aí, 17 anos. Eu como mãe de duas filhas. É coisas que mexem com a gente, você hoje já não tem paz, por causa do ser humano. Essas tragédias vindo de mulheres. Tem que falar o não, as mulheres têm que aprender muito a falar não pra qualquer atitude brusca que já começa. Não! Pra parar isso depende de nós. De nós. Essa maldita carência que a gente tem, de achar que vamos achar aquela alma gêmea pra nos entender. Af! Não. Aí, consegue, não para problema, não para tudo. Tá bom, não? Tá bom.
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