Não foi bem um sonho. Mas pode ter sido. Eu gostaria que tivesse sido. Pensar que alguns acontecimentos poderiam não ter se realizado no campo do concreto, do palpável - ainda mais quando se trata daqueles que atravessam o próprio lar - traz um misto de melancolia e alívio. Ou talvez novas e estranhas sensações que ainda não sei nomear. Toda aquela história - envolvendo desespero, cupins e um apartamento no ipiranga -, aconteceu há pelo menos 15 anos e voltou à minha mente de forma vívida. Talvez a culpa tenha sido dele, sim, do meu analista - a culpa é sempre deles, não? - por me indicar a leitura do conto ""A Casa Tomada"", do Julio Cortázar. E acho que vou começar falando um pouco dele. Eu li apenas uma vez. E não gostei. Não foi um daqueles contos que me atravessou - e eu talvez seja daquelas pessoas que precise que a história, o livro, o conto, a crônica me atravessem. Talvez eu tenha necessidade de sentir algo em tudo o que leio e escrevo e de fazer isso com as pessoas também em tudo o que produzo. Por isso talvez eu trave tanto na hora de escrever - esse texto, inclusive, está sendo escrito em um momento total de bloqueio criativo em que a minha mente só consegue pensar o quão incompetente eu sou depois de não conseguir entregar nenhum texto prometido ao meu chefe durante a semana - e levar um pito. Não espero que ele entenda que voltei a ficar instável. Quer dizer, espero. Mas penso que talvez ele não tenha obrigação de entender o que acontece comigo - porque eu travo, paraliso de tanta ansiedade a ponto de o mundo à minha volta me engolir. Enfim. Voltando ao Cortázar. No conto, um casal de irmãos vive ao mesmo tempo refugiado e prisioneiro dentro de uma casa que está tomada por algo que eles não sabem nomear - mas que vai se alastrando pela casa toda e age como uma sombra que vai crescendo com o passar do tempo. É tão potente esse domínio desconhecido (mas ao mesmo tempo compreendido) que em determinado momento eles...
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Não foi bem um sonho. Mas pode ter sido. Eu gostaria que tivesse sido. Pensar que alguns acontecimentos poderiam não ter se realizado no campo do concreto, do palpável - ainda mais quando se trata daqueles que atravessam o próprio lar - traz um misto de melancolia e alívio. Ou talvez novas e estranhas sensações que ainda não sei nomear. Toda aquela história - envolvendo desespero, cupins e um apartamento no ipiranga -, aconteceu há pelo menos 15 anos e voltou à minha mente de forma vívida. Talvez a culpa tenha sido dele, sim, do meu analista - a culpa é sempre deles, não? - por me indicar a leitura do conto ""A Casa Tomada"", do Julio Cortázar. E acho que vou começar falando um pouco dele. Eu li apenas uma vez. E não gostei. Não foi um daqueles contos que me atravessou - e eu talvez seja daquelas pessoas que precise que a história, o livro, o conto, a crônica me atravessem. Talvez eu tenha necessidade de sentir algo em tudo o que leio e escrevo e de fazer isso com as pessoas também em tudo o que produzo. Por isso talvez eu trave tanto na hora de escrever - esse texto, inclusive, está sendo escrito em um momento total de bloqueio criativo em que a minha mente só consegue pensar o quão incompetente eu sou depois de não conseguir entregar nenhum texto prometido ao meu chefe durante a semana - e levar um pito. Não espero que ele entenda que voltei a ficar instável. Quer dizer, espero. Mas penso que talvez ele não tenha obrigação de entender o que acontece comigo - porque eu travo, paraliso de tanta ansiedade a ponto de o mundo à minha volta me engolir. Enfim. Voltando ao Cortázar. No conto, um casal de irmãos vive ao mesmo tempo refugiado e prisioneiro dentro de uma casa que está tomada por algo que eles não sabem nomear - mas que vai se alastrando pela casa toda e age como uma sombra que vai crescendo com o passar do tempo. É tão potente esse domínio desconhecido (mas ao mesmo tempo compreendido) que em determinado momento eles precisam sair da própria casa para não serem engolidos junto com ela. Mas e o mundo lá fora? Ele é outro que, naquele contexto, certamente os devoraria - liberdades, sonhos, autonomia eram palavras digna de susto. O contexto é ditadura. Repressão na Argentina. E a sensação de que não há segurança. Há pelo menos dois meses e três dias estou trabalhando de casa. E convivendo intensamente com essa casa que moro há 31 anos no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Ela é um apartamento localizado no primeiro andar de um condomínio de três prédios compostos por sua maioria, sim, velhinhos, o maior grupo de risco do coronavírus - mas até agora parece que nenhum caso chegou até aqui. Ao menos é o que parece. Moro com a minha mãe. E foi ela que, há 15 anos, descobriu uma espécie de banquete de cupins dentro do próprio armário - eles tinham detonado a base e começado a comer fotografias, algumas roupas e documentos, papéis que estavam guardados há anos no mesmo lugar. E é aí que o ""sonho"" começa. Vou tentar ser breve. A história, quer dizer, o sonho, é longo. Eu lembro de chegar em casa e ela me mostrar o que achou - e falar sobre a ojeriza que sentiu ao ver as larvinhas pequenas e branquinhas dentro do guarda-roupa (e me dá arrepios só de lembrar da cena). Na minha mente vem à memória o álbum de fotografias todo comido, talvez, de uma das bodas de casamento dos meus avós - não me lembro bem. Mas lembro que os dois estavam nas imagens. Arrumados, bonitos, e sérios. Muito sérios. Mas isso é detalhe afetuoso que a mente busca. O que aconteceu em seguida é que parece ter saído direto de um filme de terror ou, quem sabe, de uma edição do beetlejuice. Mas ninguém tinha falado o nome dele três vezes em voz alta. Eu garanto. Nos dias que se seguiram, o armário embutido teve que ser removido. Os pertences, guardados em caixas. Um cheiro de mofo e de destruição pairava no ar. E eu, adolescente, acompanhando de longe, ainda sem entender na totalidade. Meu quarto? Ainda um refúgio que não tinha sido tomado. Isso porque além do armário, os batentes das portas do banheiro - que faz frente ao meu quarto - e da lavanderia tiveram que ser arrancados também. Os ninhos dos cupins estavam tão bem feitos - e alimentados - que em determinado momento nem os próprios cupins conseguiram ficar lá dentro. Superlotação, eu penso. E eles voavam livremente pela casa. Era como se saíssem das paredes - que estavam tomadas - e dominassem a casa em busca de alimento para a grande-mãe. Eu era estudante. Mas já trabalhava. E eu morria de medo de chegar em casa. Isso porque eles estariam lá. E eu teria que conviver com os ""bichinhos do calor"" ou apagar todas as luzes para que eles, ao menos, não viessem na minha direção. Naqueles tempos era comum chegar em casa e o namorado da minha mãe estar com o aspirador ligado, chupando os bichos em revoada. Enquanto minha mãe pisoteava os que conseguia no chão. E eu? Ah, o truque do professor de biologia: ""coloque uma tigela de água embaixo da luz e você conseguirá matar qualquer mosquito. Eles são burros, acham que é espelho"". E o mais curioso disso tudo é que nenhum cupim sequer entrou no meu quarto. Nenhum. A luz ficava acesa. A porta, aberta. A janela, escancarada. E nenhum deles entrava. Nenhum. Não sei explicar até hoje o porquê. Eu atribuo a, não sei, Deus? Anjo da Guarda? Alguma energia invisível que dava seta para eles e dizia: ""ó, é por ali, no quarto da menina, não!"". Tanto que até hoje eu tenho o mesmo guarda-roupa de 30 anos atrás. Ele está velhinho, vira e mexe aparece uma traça, mas a gente resolve com removedor e querosene na limpeza pesada. Mas o ponto é que: tudo isso só parou quando os matadores de cupins chegaram. E disseram: ""olha, acho que a gente vai ter que furar o chão. A grande-mãe está, certamente, no caixão perdido do prédio"". Caixão perdido é coisa de apartamento antigo como esse em que eu moro - os novos, talvez, não tenham mais. E pronto. Quando o veneno foi injetado no chão de madeira, os cupins começaram a sair pelas tomadas da casa. Em especial, aquela atrás da geladeira. ""Então achamos, mesmo. Eles não têm para onde correr e a tomada é o único lugar possível"", disse o matador. Dias depois, uma nova dedetização. E a percepção de que eles estavam na estrutura. Tinham tomado a casa. Do chão, aos batentes, ao teto, os armários, tudo. O nojo, a coceira, o arrepio. A casa inteira tomada, e o meu quarto intacto. E a morte - deles - veio. Dias depois da segunda aplicação de veneno no chão - talvez - pela teoria deles, a grande-mãe morreu e, logo, seus guerreirinhos não tinham mais que sair de casa para tomar outra, e assim, alimentá-la.
Que associações você faz entre seu sonho e o momento de pandemia?
Acho complexo dizer. Mas me fez pensar em tudo o que já vivi nessa casa em que moro - há 31 anos. E em como, desde que esse episódio dos cupins aconteceu, minha mãe não conseguiu reunir talvez, forças, para fazer um novo armário para ela e ter onde guardar suas roupas. Ou um armário para a sala e para a cozinha. Porque ali tudo se foi. E não há onde guardar as coisas, que não de um jeito improvisado que ela criou. E me incomoda muito. Principalmente porque eu sou a possível responsável pelas novas aquisições - algo que ela não conseguiu executar e se martiriza até hoje. A casa foi, literalmente, tomada por cupins. E até hoje vive entre vazamentos e infiltrações - o apartamento, de fato, é antigo. Mas é estranho pensar no quando o meu quarto foi blindado, qual o meu papel na vivência desta casa - e o quanto o isolamento e a convivência com tudo isso faz a gente lembrar de quem somos, de histórias que vivemos no lugar em que vivemos e o que fazemos dele.
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