Meu nome é Márcia Ramos, tenho 65 anos e sou paulistana, embora atualmente more no litoral. Desde pequena, meus pais nos incentivavam à leitura e ao conhecimento do mundo, embora eles mesmos tivessem pouca educação formal. Meu pai, no entanto, era autodidata, músico e inventor e tanto ele como minha mãe adoravam contar histórias para nós, principalmente as histórias de nossa família. Gostaria de contar uma história que aconteceu comigo em 1972. Pela primeira vez fui visitar um museu de arte, pois o do Ipiranga era um velho conhecido, porém já tinha visto muita pintura e escultura clássicas nos livros dos meus irmãos e nas enciclopédias que tínhamos em casa. Quando eu tinha 14 anos, eu e minhas colegas de uma escola pública, fomos fazer um trabalho sobre os 50 anos da Semana de Arte Moderna de 22 no Museu de Arte de São Paulo e logo na entrada eu me deparei e me apaixonei pela tela O Abaporu de Tarsila do Amaral, com todas aquelas cores e formas totalmente inusitadas para mim. Foi assim que me tornei uma grande fã, ainda mais ardente, das artes plásticas, pois da literatura eu já era desde que aprendi a ler. Décadas mais tarde, ao ler a biografia da pintora, descobri que muitas coisas a ligavam a minha própria história. Minha família, vinda de Minas, foi trabalhar em Capivari, onde ficava a fazenda na qual Tarsila nasceu e foi criada. Minha mãe foi trabalhar como boia-fria, cortando cana e meu pai conseguiu trabalho na usina, onde ajudou também a formar a banda de músicos de Rafard. Dois de meus irmãos nasceram na Fazenda São Bernardo, que acredito pertencia à família da artista, o que nos torna um pouquinho mais íntimas. Mas jamais vou esquecer o meu espanto ao descobrir que o conto EU CAIO que meu pai contava para nós quando éramos pequenos, fazendo gestos e vozes fúnebres, também está mencionado na biografia da Tarsila. A história é sobre um homem que se esconde numa casa abandonada e encontra um fantasma, que vai...
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Meu nome é Márcia Ramos, tenho 65 anos e sou paulistana, embora atualmente more no litoral. Desde pequena, meus pais nos incentivavam à leitura e ao conhecimento do mundo, embora eles mesmos tivessem pouca educação formal. Meu pai, no entanto, era autodidata, músico e inventor e tanto ele como minha mãe adoravam contar histórias para nós, principalmente as histórias de nossa família. Gostaria de contar uma história que aconteceu comigo em 1972. Pela primeira vez fui visitar um museu de arte, pois o do Ipiranga era um velho conhecido, porém já tinha visto muita pintura e escultura clássicas nos livros dos meus irmãos e nas enciclopédias que tínhamos em casa. Quando eu tinha 14 anos, eu e minhas colegas de uma escola pública, fomos fazer um trabalho sobre os 50 anos da Semana de Arte Moderna de 22 no Museu de Arte de São Paulo e logo na entrada eu me deparei e me apaixonei pela tela O Abaporu de Tarsila do Amaral, com todas aquelas cores e formas totalmente inusitadas para mim. Foi assim que me tornei uma grande fã, ainda mais ardente, das artes plásticas, pois da literatura eu já era desde que aprendi a ler. Décadas mais tarde, ao ler a biografia da pintora, descobri que muitas coisas a ligavam a minha própria história. Minha família, vinda de Minas, foi trabalhar em Capivari, onde ficava a fazenda na qual Tarsila nasceu e foi criada. Minha mãe foi trabalhar como boia-fria, cortando cana e meu pai conseguiu trabalho na usina, onde ajudou também a formar a banda de músicos de Rafard. Dois de meus irmãos nasceram na Fazenda São Bernardo, que acredito pertencia à família da artista, o que nos torna um pouquinho mais íntimas. Mas jamais vou esquecer o meu espanto ao descobrir que o conto EU CAIO que meu pai contava para nós quando éramos pequenos, fazendo gestos e vozes fúnebres, também está mencionado na biografia da Tarsila. A história é sobre um homem que se esconde numa casa abandonada e encontra um fantasma, que vai deixando seu esqueleto cair ao lado dele, impassível, enquanto diz eu caio, eu caio. Coincidência ou não, foi aquela mesmo história, contada pela ama negra da pintora, quando ela era criança, a inspiração para pintar a tela que mudou minha vida. Tudo neste mundo está interligado, mesmo que a gente demore muito tempo para descobrir. Não sei se é a arte que retrata a vida, ou a vida que imita a arte, mas com certeza é a arte que alimenta nossa história de vida e nossa alma.
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