Entrevista de Andrea Carla Medeiros Barbosa Silva
Entrevistada por Pedro Vasconcelos e Epaminondas Pascásio da Rocha Júnior
Maceió, 27 de junho de 2025
Projeto Memórias que não afundam
NOS_HV008.
0:30 P/1 - Bom, Andrea, antes de tudo a gente gostaria de agradecer por você ter aceitado o convite para contar um pouco da sua história. E vamos lá. Eu queria primeiro que você falasse seu nome, a data de nascimento e o local que você nasceu?
R - Meu nome é Andrea Carla Medeiros Barbosa Silva, eu nasci em Maceió, nasci em 28 de maio de 1977.
0:58 - Andrea, você pode falar um pouco sobre seus pais, de onde é que eles vieram, como eles se conheceram?
R - Minha mãe é de uma cidade chamada Canhotinho, em Pernambuco. E o meu pai é de Arapiraca, aqui em Alagoas mesmo. E meus pais se conheceram em Bebedouro. Meu pai veio de Arapiraca para cá para estudar, trabalhar, formar a vida dele e minha mãe também. Só que a minha mãe, a família dela biológica, é de lá de Canhotinho, e ela veio através do meu avô. Se tornou meu avô porque criou ela. Ele era maquinista de trem e viajava muito para aqueles lados de Pernambuco. Então, ele trouxe a minha mãe e criou a minha mãe. Minha mãe foi criada por uma família de Bebedouro. Estudou a vida inteira no Colégio Bom Conselho, e logo conheceu meu pai. Eles casaram lá mesmo em Bebedouro, e tiveram três filhos, eu, Andrea, Aline, que hoje mora fora do país e o Abelardo Filho. O nome do meu pai é Abelardo, o nome da minha mãe é Cícera. Então, meu pai hoje é aposentado, a minha mãe também. E nós, os três, nascemos em Bebedouro. Depois do casamento deles, nós viemos.
2:37 P/1 - Como era o convívio nessa época que vocês ainda estavam todos juntos, convivendo na mesma casa, pode contar um pouco?
R - Sim. Então, meus pais, eles se separaram ainda quando nós morávamos em Bebedouro. Mas eles se separaram, porém, a convivência sempre foi muito tranquila. E a minha casa em Bebedouro, ela tinha uma função, uma missão de unir a família. Então, todas as festas, nós tínhamos uma garagem, onde em todas as festas, dia das mães, dia dos pais, aniversário dos sobrinhos, aniversário dos filhos, tudo era naquela garagem. Então, nós sempre tivemos uma convivência boa, uma convivência tranquila. Eles moraram muitos anos em Bebedouro, e apesar da separação, eles continuaram morando, a minha mãe continuou morando em Bebedouro, porque ela dava aula lá em Bebedouro. E a gente sempre se reunia para todos os momentos de alegria da família, sempre eram nessa garagem, nesse lugar que tem uma história afetiva muito grande na minha memória.
04:00 P/1 - Você consegue descrever como era a casa?
R - Sim! Essa casa, ela passou muitos anos para ser construída, meus pais lutaram muito para construir a casa. Minha mãe trabalhando como professora, meu pai tinha uma microempresa onde ele prestava serviço para construtoras, e com esse dinheiro, com essa luta do dia a dia, eles foram construindo essa casa. Era uma casa de primeiro andar, que depois foi que se tornou uma casa de primeiro andar, eles foram construindo aos poucos. Sofreram muito para para construir essa casa. E era uma casa grande, casa com cinco quartos, uma casa onde ela foi se tornando a casa que os meus pais sonharam. Logo que os meus pais se separaram, eu fiquei morando numa parte dessa casa, nós dividimos a casa, a minha mãe morava em cima, eu morava embaixo. Moramos muitos anos assim. A minha mãe morava em cima com a minha sobrinha, filha da minha irmã e o meu irmão, e eu morava em baixo, com o meu esposo e minha filha, que até então eu só tinha a Bia. Era uma casa grande, uma casa ampla, uma casa que tinha a cara mesmo da minha família. E a minha casa, assim, porque eu sempre fui uma pessoa muito alegre, muito animada, sempre gostei de receber todo mundo. E era o point dos amigos, a gente sempre estava reunido ali naquela garagem, final de semana, chegava um com uma cerveja, outro com… Que a gente chama de tira gosto, e a gente fazia aquela farra nos finais de semana, colocava um som ali para tocar. E tinha uma convivência muito gostosa com a vizinhança e com os amigos de infância, porque eu nasci e me criei naquele lugar. Então, era o point, onde todo mundo se reunia, os amigos estavam sempre ali.
6:09 P/1 - Você falou da infância, né? Tinha alguma coisa marcante que ficou para você nessa casa, nesse período da infância, a sua convivência com seus irmãos?
R - Além da construção da própria casa, que foi muito difícil, meus pais sofreram muito para construir a casa. Tem os momentos onde a gente se reunia, nos encontros de família, Natal, ano novo. A vizinhança era muito querida. Então, era aquela vizinhança que todo mundo comemorava tudo junto. Bebedouro tinha a característica de parecer um bairro do interior, uma cidade do interior. Então, os vizinhos sentavam na porta para tomar a fresca, e aí todo mundo se cumprimentava, todo mundo se conhecia. E isso marca muito a minha infância, assim. Foi um bairro que tinha muitos idosos, muitos idosos. Então, por conta disso, as pessoas todas se conheciam, foram pessoas que foram tendo seus filhos ali, seus netos ali, seus bisnetos ali. Isso é uma coisa que marca muito. Me marca muito também as festas na praça. Esse período agora de São João, era o período assim… A nossa matriz, eu sou católica, então, a nossa matriz, era a matriz de Santo Antônio de Pádua. E aí, havia a festa de Santo Antônio de Pádua, havia a procissão de Santo Antônio de Pádua. Tinha o parquinho, com aqueles barquinhos que a gente puxava numa corda, que hoje em dia não existe mais. Tinha o carrinho bate-bate, tinha o carrossel. Os jovens, quando acabava a missa, alguns se reuniam para tocar violão no coreto, e a gente ficava ali circulando, e conversando, e comendo a pipoca do Seu Antônio, o picolé do Seu Manoel. E era muito gostoso. Eu lembro disso com muita emoção e com muita alegria.
8:14 P/1 - Aonde é que você estudava?
R - Então, eu estudei a vida inteira no Colégio Nossa Senhora de Bom Conselho. É um colégio histórico, porque na verdade ele foi criado, se ele existisse… Ele ainda existe, o prédio físico está lá. Mas se ele ainda estivesse em atividade, nós teríamos ele hoje em 148 anos de história. No ano em que eu nasci, ele completava 100 anos. Ele foi criado como asilo, para receber as órfãs da Guerra do Paraguai. Quando a gente mora num lugar histórico, a gente, eu, como professora, acabo me interessando pela história do local. Então, isso é tudo muito forte para mim. Eu nasci e me criei em Bebedouro e estudei a vida inteira no Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho, que a princípio foi criado para amparar as órfãs da Guerra do Paraguai, a alta sociedade da época, construiu um asilo para amparar essas órfãos. E à medida que o tempo foi passando, ele foi mudando de conotação. As irmãs Sacramento foram cuidando, e transformou-se numa escola que atendia a comunidade. E eu estudei lá a vida inteira, inclusive terminei o magistério lá. Hoje eu sou professora. Havia o curso técnico na época, que hoje quase não existe, o que existe hoje é o pedagógico. Mas eu fiz o magistério, o curso técnico lá. Era uma turma só de meninas, só havia um garoto chamado Fernando, que é meu amigo até hoje, que fez curso com a gente. E boa parte das professoras da rede pública hoje, que são professoras muito competentes, a gente deve ao Colégio Bom Conselho, que é o Colégio que marcou a minha vida e é o meu colégio de formação.
10:18 P/1 - Você, enquanto professora, tinha algum professor, ou professora, que chamava mais atenção, você tinha vínculo, tinha uma história, alguma coisa?
R - Aí, eu vou lembrar de inúmeros professores ali. Eu vou lembrar do professor Radjalma, que ele era professor de Educação Física, e sofreu junto comigo toda, toda nossa quebra de história através da Braskem. Eu vou lembrar da tia Fátima, eu vou lembrar da Perolinda, eu vou lembrar da Tia Toinha. Nós tínhamos uma professora na quarta série, chamada Tia Toinha. Ela era maravilhosa. Ela se foi há pouco tempo, eu inclusive, estive no velório dela. E vou lembrar das irmãs Sacramentinas, que é a irmã Cristina, a irmã Luzinete, eram irmãs que nos conduziram ali dentro, que fizeram parte da nossa formação enquanto ser humano. Eu não falo nem da formação profissional, eu falo da formação enquanto pessoa, mesmo.
11:24 P/1 - Durante esse período já da juventude, adolescência, você tinha paquera na região? Você já estudava, ou já vivia ali? Ou você caso cedo? Me diz como é que foi esse momento da adolescência?
R - Nós nos reuníamos ali na Praça do Bebedouro, quando acabava a missa, e ali havia umas paquerinhas, havia as pessoas com quem a gente tinha aquela relação de amizade, os jovens se reuniam para isso mesmo, para para paquerar, para observar um ao outro, e tudo. Eu casei. Eu já tinha 20 anos quando eu casei, mas a maioria das jovens lá se casavam muito mais cedo que eu. Eu casei com 20 anos, mas eu acabei casando com uma pessoa da Jatiúca. Eu não me casei com ninguém do bairro não, não foi do bairro. Mas eu tinha um carinho muito grande pelas amizades. Tinha muitos amigos ali, e tudo, eu era uma pessoa muito mais voltada, assim, eu fui líder estudantil. Então, eu tinha toda uma missão dentro da escola. Eu fui presidente do conselho estudantil, depois eu fui presidente de turma. Então, a gente tinha a semana da criança, que havia os desfiles, tinha a banda de fanfarra da escola. Então, as minhas lembranças em Bebedouro, elas são muito voltadas para isso, para o Colégio Bom Conselho e para as coisas que eu me envolvia lá dentro. O esporte, a semana da Cultura, as feiras de ciência. Que antigamente havia as feiras de ciência, depois passaram para a feira de cultura. Fazíamos uns festivais de picolé, final de semana, na época muitas bandas afro faziam sucesso, em Maceió, nessa época. E a gente colocava as bandas afros para tocar dentro da escola, para arrecadar dinheiro, para pintar uma parede, para consertar um banheiro da escola, porque a gente não ficava só esperando pelo serviço público. A gente lá dentro tinha um apego mesmo, a gente tinha um zelo pela escola, nós éramos preparados para isso, para valorizar aquilo que nós tínhamos. Então, as minhas lembranças, elas são muito mais voltadas para isso, para as missões e para os compromissos que eu tinha com com o bairro e com a história da escola mesmo.
13:54 P/1 - E como foi o período pós casamento, após você ter conhecido o seu esposo, com vinda de família, essas coisas, como é que foi esse período?
R - Eu casei com o Wilson em 1998. E quando eu casei com o Wilson, eu morei um período na Jatiúca, cerca de um ano, um ano e meio. Mas logo depois eu voltei a morar em Bebedouro, fui morar no meu bairro. Logo em seguida eu passei no concurso público. E a escola que me colocaram, era lá no meu bairro. Eu queria muito dar aula no meu bairro. Eu tinha uma história lá, então… Talvez pelas experiências que eu vivi dentro do Colégio Bom Conselho, eu fui preparada para trabalhar pelo meu próprio bairro. Assim, eu sempre fui uma pessoa muito idealista, muito voltada para essas coisas. Então, eu achava legal essa coisa de eu poder retribuir ao meu bairro aquilo que tanto me deram. E hoje eu sou o que sou, por causa do Colégio Bom Conselho. Eu hoje sou o que sou, por causa da história que eu vivi em Bebedouro. É uma história muito voltada para a cultura, nós lá sempre tínhamos essa coisa de valorizar o próximo, de ter esse cuidado com o idoso, com criança. Então, eu tinha assim, meio que uma coisa já certa na minha cabeça de que eu ia trabalhar no meu bairro, e eu fui trabalhar no meu bairro, dava aula numa escola pública lá mesmo dentro do bairro, logo depois que eu casei, eu passei nesse concurso e fui dar aula lá. Eu tive a Bia. A Bia, ela é uma menina incrível, faz faculdade de direito, hoje ela é casada, e mãe, mora no Rio Grande do Sul. E também nasceu e se criou no bairro. Ela se batizou lá, ela fez a primeira comunhão lá, assim como eu, assim como a minha mãe, é uma coisa de tradição, que vai passando de geração para geração. E a Bia ficou lá durante muitos anos. Inclusive, no período em que aconteceu todo o nosso processo, em relação à Braskem, a Bia, ela foi uma das meninas que ela sofreu muito. Ela desenvolveu algumas questões, como síndrome do pânico, ansiedade, porque era um terror viver aquilo que nós vivemos. Era o carro de som passando ali na porta e, avisando: “Vamos fazer hoje uma simulação de tragédia. Vamos…” Então, assim, foi bem difícil.
17:00 - P/2 - Andrea, esse período, que você nasceu em Bebedouro, viveu em Bebedouro. Bebedouro é cercado de lagoas e matas por todos os lados, né? Como foi a sua convivência com toda essa natureza do lugar?
R - Bebedouro sempre foi um bairro banhado pela Lagoa. Então, quando eu era muito pequena, o sururu era muito forte em Bebedouro. O sururu, ele era um alimento assim, muito vivo. Então, quando eu era pequena, eu lembro muito dos meus avós, e lembro muito que a gente descia até a ponte, ali próximo à estação de trem de Bebedouro, e nós íamos comprar sururu. Bebedouro também sempre foi um bairro muito comercial. Então, ali perto do sururu, vendia de tudo, vendia o peixe, vendia a verdura, vendia o coentro, vendia a cebola, vendia o inhame. E ali a gente tinha tudo. E o sururu era muito forte, porque vinha da Lagoa, era uma coisa de fácil acesso, e o preço também era bom. Depois, contudo, e eu ainda meio que de alguma forma culpo a Braskem por isso. Isso foi se perdendo, porque passou a surgir uma escassez do sururu, a gente já não encontrava mais os peixes como a gente encontrava antes. A gente sentia que a Lagoa estava diferente. É um bairro também que eu tenho ali, o Parque Municipal, que era muito vivo, assim, a gente fazia todos os trabalhos de escola, a gente tinha ali, fácil, tudo o que a gente precisava de pesquisa, a gente tinha a prática, porque a gente ia para o Parque Municipal, fazia aquelas pesquisas sobre as plantas, sobre os animais que ali viviam, sobre os pássaros que ali viviam e, a minha relação com o Bebedouro, hoje, o respeito que eu tenho a natureza, hoje, essa questão mesmo de me preocupar, não só com a individualidade, mas com o coletivo, está voltado para isso, para as experiências que eu vivi ali, porque era um bairro banhado por lagoa, era um bairro que tinha uma mata muito viva e tinha muita coisa ali que a gente podia ver. Eu fui criada diferente das crianças de hoje. Eu fui criada vendo tudo isso, vivenciando tudo isso. E logo depois eu fui dar aula numa escola, que inclusive, leva o nome de um dos fundadores do bairro, Major Bonifácio da Silveira. Que essa escola, ela era a poucos metros da Lagoa, e eu dava aula nessa escola e convivia ali. Ao meu redor eu tinha pescadores, marisqueiras, pessoas que foram meus alunos e filhos de alunos que moravam todos ali. E viviam da Lagoa, e viviam da natureza. E viviam daquilo que a Lagoa fornecia. E haviam as matas também, onde as pessoas… As pessoas de Bebedouro, elas praticavam também muito a questão de usar as folhas, as folhas da natureza, um chá de eucalipto, um chá de sabugueiro, para curar uma gripe. E tudo nós tínhamos ali. A gente não precisava sair para buscar nada. Nós tínhamos tudo, tudo o que a gente precisava no bairro. Fora que era um bairro que, em relação ao transporte, a gente tinha o benefício que poucos bairros em Maceió têm, que era o trem, que a passagem de trem era muito barata. Então, se eu quisesse ir no centro comprar alguma coisa, pegava o trem, voltava. Tinha a questão da mobilidade urbana também, porque os ônibus eles se locomoviam ali, eles vinham da Chã de Bebedouro, da Chã de Jaqueira, da Colina, da Santa Amélia, eram os bairros do entorno. E todos passavam naquela via que ligava Bebedouro, Mutange, Bom Parto, Cambona. A nossa movimentação era toda ali. Era tudo muito fácil, a locomoção ali era muito fácil. E hoje a gente… Infelizmente, é difícil até falar, mas a gente perdeu tudo isso. Essa é uma coisa que a gente sente. Talvez os moradores dos outros bairros não percebam como isso afetou a cidade, o fechamento daquela via, como isso afetou a mobilidade, porque as pessoas que desciam por ali, que ainda descem. Mas muita gente parou de descer com medo. E outras pessoas também foram obrigadas, como se mudaram de bairro, a fazer outros percursos. É difícil.
22:06 P/1 - Você teve algum contato com algum folguedo? Teve alguma dessas brincadeiras mais antigas que o pessoal fazia?
R - Sim. Na minha infância, o Pastoril de Bebedouro, ele era muito vivo. Então, nesse período junino, esse período que remete a Santo Antônio, havia as festas na Praça de Bebedouro, Praça Lucena Maranhão, mais conhecida como Praça da Igreja. E ali havia a apresentação do Pastoril, do Guerreiro, do Reisado. Tudo ali. Nós tínhamos também, no entorno, nós tínhamos algumas celebridades, que eu considero celebridade. Nós tínhamos o Coco de Roda, que era muito vivo ali o Coco de Roda do Betinho, que as pessoas ensaiavam ali perto da linha do trem. Eles sempre estavam buscando lugares para ensaiar. Dona Rosa, que era mãe do Betinho, ela era costureira das roupas do Coco, eu tinha a maior vontade de participar do Coco, mas meu pai não deixava. Chega embarga, porque é uma memória muito forte, muito viva, o Coco de Roda de Bebedouro, que ainda existe, participou agora, até recente, das festividades. O Coco foi uma das coisas que marcou a minha vida. E nós tínhamos ali também algumas celebridades, que eu Mestre ____, que morava ali no nosso entorno, e que era uma pessoa que eu sempre encontrava ali. Nós tínhamos um poeta no bairro, que era João de Lima, que hoje eu encontro nas ruas também, sempre com aquela maletinha dele, um grande poeta. A filha dele foi minha professora de catecismo, professora do Sacramento, uma ótima professora. Então, são memórias assim, da cultura mesmo. Bebedouro era um berço. Bebedouro era… É o segundo bairro de Maceió. Primeiro o Jaraguá, onde tinha o porto, e os navios atracavam ali, mas o comércio mesmo, ele se formou entre o centro e o Bebedouro. Não é à toa que se chamava Bebedouro, porque os desbravadores colocavam os cavalos pra beber água ali, no Né Fragoso, que a gente chamava de Né Fragoso, onde passava o riacho Né Fragoso. E eles iam ali colocar os cavalos pra beber água, e assim surgiu o nome do bairro. A nossa história foi construída em cima disso. É um bairro que tem muita história. E nós perdemos muito, muito, muito com isso. Maceió perdeu muito com isso, porque quando eu falo em Bebedouro, eu falo três palavras, eu falo lembranças, eu falo cultura, e revolta. Lembrança, cultura e revolta. Quem viveu vai lembrar sempre de tudo o que a gente viveu ali, que foi lindo viver tudo o que eu vivi. Eu sou uma pessoa privilegiada de ter vivido a cultura de Bebedouro. E tem a questão da revolta, porque uma das coisas que me dói muito assim, é que na minha concepção, enquanto professora, enquanto assistente social, enquanto moradora do bairro, deveria ter sido criado, já que não havia jeito, um museu. Um museu onde fosse colocado tudo que… objetos, imagens, fotografias, dali, de onde eu vivi. Para que a gente pudesse ter algo como referência. Que é a minha referência hoje, ela está muito individualizada, são as lembranças que eu tenho, são as lembranças que a Jaqueline, do ponto de ônibus, tem. A Jaqueline do ponto de ônibus era a filha da dona Nem, uma das costureiras mais antigas do bairro. Vamos ter aí o fogueteiro, que era aquela pessoa que soltava os fogos no bairro, sempre nessa época do ano, ele vai ter as lembranças dele. A gente vai ter as lembranças do Abrigo Luíza de Marilac, que foi fundamental ali dentro do bairro, que acolheu muitas idosas, idosas da cidade, idosas do bairro, idosas do interior, durante muitos anos. Ele ainda existe, ele se mudou para outro local. Mas, assim, a história mesmo, a gente não tem referência, a gente não tem um local onde eu possa ir e contar para os meus filhos e para os meus netos. “Olha, foi aqui que eu… Era nessa escola que eu estudava, foi aqui que eu vivi, esse aqui foi meu professor, isso aqui era uma pessoa envolvida na cultura do bairro.” Eu não tenho. Isso tudo está muito individualizado. Isso me dói muito.
27:37 P/1 - Você pode falar o nome da rua que você morava?
R - Rua Carteiro João Firmino, número 114, Bebedouro, CEP 57017-815. Esse foi meu endereço durante 43 anos da minha vida [choro]. E eu sempre vou lembrar. Eu lembro do endereço, eu lembro da casa, eu lembro dos vizinhos, eu lembro de tudo que eu vivi ali. E eu tenho essa tristeza em mim, de que os meus filhos não terão a referência do local onde a mãe deles viveu a vida toda. Por mais que eu fale eles… Porque qualquer pessoa que tenha seus filhos, seus netos, podem retornar ao local, dizer: “Olha, foi nessa casa que eu vivi a minha vida toda, e eu não tenho isso, eu não vou ter isso, eu não vou… Inclusive, a minha casa já foi até demolida. Então, eu não tenho essa referência para mostrar para os meus filhos e para meus netos.
29:02 P/1 - Tinha algum local mais marcante para você, dentro do bairro? Algum local que mais marcou?
R - Eu vou ter vários. Eu vou ter a praça de Bebedouro, que era onde a gente se reunia nos finais de semana, e durante a semana também. Vou ter o colégio que eu vivi a vida inteira nele, estudei nele, pratiquei esporte nele. Me tornei a pessoa que eu sou por esse colégio. Vou ter a estação de trem, onde guardo muitas memórias, porque havia… Ainda existe, o Trem do Forró, mas o Trem do Forró, ele passava em Bebedouro, e era uma festa quando ele passava no Bebedouro, as pessoas esperavam o trem, porque nessa época do ano, eles pintavam o trem, ele ficava muito colorido, muito lindo. Então, quando o trem passava, era aquela festa. Todo mundo ia para a porta olhar o trem, e ver como o trem ficou bonito. Eu vou ter vários lugares, vou ter o Parque Municipal, que é um lugar, que até hoje, quem quiser pode ir até lá, se conectar com a natureza é muito bom, muito gostoso, a sensação maravilhosa, é uma energia diferente. E na verdade, os lugares, eles vão ficar na memória. Mas as pessoas também, as pessoas do meu bairro, as pessoas, sabe? O seu Antônio da padaria... Porque Bebedouro era um bairro, tinham as pessoas do comércio como referência. Então, se eu quisesse comprar um pão, eu já sabia onde ir. Tinha uma moça maravilhosa, chamada Godoy, ela era responsável por verduras, ela vendia legumes e verduras na feira do Bebedouro. Então, é uma pessoa que eu lembro muito. E tudo, tudo em Bebedouro me remete muita lembrança. A feira, o posto de saúde, as escolas, foi uma perda tremenda. Nós fechamos nove escolas, salvo engano. Nove escolas, entre escolas particulares, que a minha filha até estudou em uma delas, que era referência, Escola Madre Blanche. A família de professoras da escola, todas professoras, era uma escola de referência do bairro. Muita gente estudou nessa escola e depois foi estudar na Escola Santa Amélia, muita gente passou para a Escola Santa Amélia, que também era uma escola do bairro, que pertencia ao Falone, que foi estudante do Colégio Bom Conselho, e viveu a vida toda lá. Então, é muita gente. Muito lugar e muita gente que a gente lembra com muito carinho.
32:11 P/1 - Andreia, você lembra onde é que você estava no período que teve o tremor, o abalo que o pessoal sentiu?
R - Então, no dia do primeiro tremor, o mais forte, o que foi sentido real, eu estava na Barra de Santo Antônio. E a minha mãe me ligou, ela ligou, ela chorava muito no telefone, ela estava muito nervosa. E ela falava, e eu não entendia direito. E dizia: “você está em casa?” Porque aí ela já tinha se mudado para uma outra casa próxima e a gente já não morava mais juntas, ela já morava numa casa próxima. E ela ligava: “você está em casa, você está sentindo? Houve um tremor aqui, está todo mundo desesperado, tá todo mundo na rua”. E eu fiquei muito nervosa, na hora. Como assim, um tremor? A gente ouve falar de tremores fora do país, tremor não é uma coisa sentida aqui, principalmente no meu bairro. Foi uma coisa assim, bem… E quando eu retornei da Barra de Santo Antônio, eu tinha ido passar um final de semana lá. Quando eu retornei, eu lembro que os vizinhos estavam todos em pânico, todos em pânico. E não havia outro assunto no bairro, a não ser o tremor. E aí, como a gente não tinha conhecimento daquilo, nós éramos leigos, começamos a imaginar milhões de coisas. E jamais imaginávamos que seria isso, que haviam tantas minas, ao nosso redor, e que… Apesar que a gente sabia que havia extração de sal ali, mas eu, pelo menos como professora, e o meu pai, lá atrás, bem lá atrás, o meu pai foi funcionário da Braskem, que na época tinha um outro nome, se chamava Montec. E o meu pai trabalhou nessa empresa. Então, meu pai falava sobre essa extração de sal, que era perigoso para o bairro e tal. Meu pai já comentava em casa sobre isso. Mas nós não imaginávamos que anos depois nós iríamos viver essa experiência terrível, terrível, terrível, que marcou profundamente, assim, as nossas vidas. Eu, como jovem, me considero jovem. Eu como jovem, eu ainda pude, numa determinada data, que eu tenho ela tatuada, eu tenho essa data tatuada no meu corpo, porque foi a data que eu decidi que eu precisava olhar para frente, porque eu tinha adoecido muito. Eu adoeci muito. Eu adoeci, eu não dormia mais. Eu passei a sofrer com insônia, crises de ansiedade. Eu não podia ouvir um barulho que eu já achava que era tudo desabando. Eu passei a ter medo de sair de casa para ir trabalhar, porque eu deixava meus dois filhos. Eu tive a Bia muito jovem e logo depois, perto dos 40 anos, eu tive o Ian. Então, eu saía para trabalhar e deixava minha filha cuidando do meu filho e eu não conseguia trabalhar. Eu precisava dar aula, em muitos momentos da minha, eu parava para respirar, porque eu estava dando aula, mas com o pensamento em casa. A minha casa era muito próxima de uma das minas, e eu ficava imaginando mil coisas. E assim, o nível de tortura psicológica, o nível de loucura, foi tão grande, naquela época, que eu lembro que eu deixava duas sacolas na porta de casa, deixava duas sacolinhas na porta de casa, e eu falava assim para a minha filha: “Olha, eu vou dar aula no Flexal.” Era no mesmo bairro, só que um pouco mais distante da minha casa. Eu dizia: “Eu vou dar aula no Flexal, se você sentir um tremor…” E a minha casa já estava cheia de rachadura, e ela estava recém reformada. Porque quando eu fui ter o Ian, eu fiz uma reforma nela. E eu deixava as sacolinhas lá, e eu dizia: se começar um tremor aqui, você saia correndo para a rua com seu irmão, saia com seu irmão para a rua, porque se a casa desabar, pelo menos não cai em cima de você. E era mais ou menos isso. E durante a noite eu não dormia, porque eu ficava sempre nervosa, e eu não sabia se aquilo ia acontecer mesmo ou não. E se acontecesse? Logo depois começaram a surgir placas com o nome, Rota de Fuga, uma placa que dizia assim: “Local de junção das pessoas”. Era mais ou menos isso. “Local de junção das pessoas, caso comece a desabar.” Começou a passar uns carros de som na porta, e os carros de som convidavam a gente para a simulação de tragédia. Convidavam a população para participar de uma simulação de tragédia. E na hora da simulação, parecia um circo de horrores. Parecia um circo. Um helicóptero sobrevoando a localidade, pessoas ali simulando que estavam, que tinham sido vítimas de desabamento. E eles nos orientavam de como a gente deveria fazer, o que é que a gente deveria, como é que a gente deveria agir. E no final das contas, aquilo foi filmado e levado para muita gente nas audiências públicas, como se: “Não, nós nos comprometemos, olha aqui, nós fizemos uma simulação para que eles soubessem como agir e tal.” E na verdade, foi um grande circo. Na verdade, aquilo dali foi filmado para dar uma satisfação e causou foi mais pânico, em quem morava ali. Porque a gente percebeu que eles não estavam preparados, não estavam preparados. As Secretarias de Segurança Pública, as Secretarias de Saúde, na época não estavam preparadas para uma tragédia, caso aquilo realmente acontecesse, pela simulação, a gente já percebeu que não havia preparação. E que aquilo se instaurou um caos, que se as pessoas já estavam com medo, a partir de algumas situações, por exemplo, você vê pessoas com com fardamentos passando, visitando o bairro, pessoas com aparelhos que a gente não entendia direito, entrando nas casas, medindo o tamanho das rachaduras. Tudo aquilo, cada detalhe ali, causava um novo temor, um novo temor, um novo temor. Que chegou uma hora que o que a gente via eram pessoas adoecidas, inclusive eu. Pessoas que adoeceram, pessoas que passaram a desenvolver síndrome do pânico, crises de ansiedade, pessoas que eram saudáveis começaram a ter infartos, começaram a ter AVCs [Acidente Vascular Cerebral] e pessoas que se locomoviam normalmente, passaram a andar com dificuldade. A gente encontrava as pessoas no bairro, e um verdadeiro horror, foi o que nós vivemos ali, nesse período e no pós período também. Porque hoje a gente tem os vizinhos que moram cada um em bairros diferentes, mas de vez em quando a gente encontra com esses vizinhos. E quando a gente pergunta cadê sua mãe? “Minha mãe faleceu, minha mãe começou a definhar, começou a ter muita crise, muito estresse, minha mãe começou a ter depressão.” Eu tenho, por exemplo, a mãe de uma amiga minha que ela desenvolveu uma demência, ela foi ficando na cama, na cama, ela não tinha vontade de sair, ela não reconhecia mais as pessoas e ali ela faleceu. E a gente perdeu muita gente assim. A gente perdeu muitas pessoas assim. E isso é uma coisa que não se fala. Eles falam muito pouco sobre isso, como também falam muito pouco sobre a quantidade de suicídios que passaram a ocorrer desde que foi descoberto que essas minas nos causavam esse grande risco para a cidade toda. E muita gente se foi e tirou a própria vida. E é muito triste isso. É até difícil de falar.
41:35 P/1 - Andréa, qual foi o momento que você percebeu, ou que alguém chegou a você, que você teria que sair da casa que você estava?
R - Devido ao pânico que eu estava vivendo, eu já queria sair. Eu comecei a pensar, meu Deus, eu tenho que sair daqui, senão eu estou colocando a vida dos meus filhos em risco. Eu pensava, eu preciso sair, eu preciso sair. Mais ali, eu tinha toda a minha família, eu tinha três tias, quatro tias, que moravam ali, todas com os seus filhos, com os netos. Eu tinha a minha mãe que morava ali. Eu tinha toda a minha história ali. Então, para sair, era complicado. Eu estava saindo do meu bairro, da minha história, da minha vida, para ir para outro lugar onde eu não conhecia ninguém, onde eu ia ter que recomeçar. E o recomeço, na vida de qualquer pessoa, ele é assustador, a gente fica com medo, a gente tem medo de recomeçar. É do ser humano ter medo de recomeçar. Mas, a Braskem, ela veio, começou a adesivar todas as casas. Eles colocavam adesivo em todas as casas, muitas vezes eles colocavam os adesivos sem explicar o que significava aquilo. Então, isso era terrível, porque a própria pessoa que estava adesivando, ela dava uma explicação superficial, e a gente não entendia direito para que servia aquele adesivo. E a partir dali a gente começou a receber visitas de mobilizadores, pessoas que pertenciam a Braskem, e que afirmavam que a gente tinha que sair, que ali era área de risco, que haveria um prazo para isso. E foi assim, então que nós saímos. Saímos porque fomos obrigados a sair mesmo. Apesar do medo que já existia, dava aquela vontade de sair, mas a gente permaneceu ali para ver o que ia acontecer.
43:56 P/1 - E como foi o processo da nova moradia? Como é que você buscou? Como é que você chegou até a nova residência?
R - O processo da nova moradia, para muita gente, não só para mim, ele foi muito complicado, porque a princípio a Braskem pagava R$1.000,00 de aluguel, que não dava para cobrir os aluguéis. Porque aconteceu uma coisa em Maceió, que foi o aumento absurdo dos valores de aluguéis, o aumento absurdo das casas mesmo, que estavam para serem vendidas. As pessoas começaram a colocar as casas à venda, mas em valores absurdos e começaram também a alugar suas casas em valores muito altos. Então, aquilo que a Braskem pagava, não era o suficiente para você alugar um lugar. Você tinha que completar. Você tinha que tirar do seu salário, você tinha que tirar do seu bolso para poder pagar aquele aluguel. E dali, até que o dinheiro da Braskem fosse pago, o dinheiro da indenização da casa, você tinha que morar um período naquele lugar e depois procurar outro lugar para comprar. E isso era terrível, porque você andava Maceió inteiro, procurava um lugar para alugar, um lugar para comprar e você não… Houve dois períodos, o período de aluguel, que você vivia de aluguel, e depois o período que você comprava essa casa, caso você tivesse recebido a indenização. Muitas indenizações foram injustas. Então, a gente passou a não morar como a gente morava. Eu morava numa casa muito boa, construída pelos meus pais, meus pais lutaram muito para construir e fizeram a casa do jeito deles, da maneira como eles sonharam, da maneira como eles pensaram. E depois para encontrar uma casa que substituísse essa casa. A gente não encontrava nunca. Eu acredito que muita gente hoje mora em casas que podem até ser confortáveis, podem até ser casas muito boas, porém não são a sua casa, não é o seu lugar, não é o lugar onde você se reconhece, que reconhece a sua história. E foi um período muito difícil, porque a indenização por danos morais não faz sentido até hoje, para mim, essa indenização por danos morais, ela não faz sentido até hoje, para mim. Porque cada pessoa sofreu de um jeito diferente, cada pessoa sentiu de um jeito diferente. Eles simplesmente estabeleceram um valor por família. Então, se você tivesse uma família de uma pessoa, você receberia aquele valor. E se você tivesse uma família de 15 pessoas, o valor era o mesmo. E isso até hoje não faz muito sentido, porque os danos morais nunca pagaram a medicação controlada que a gente precisou tomar, nunca pagaram as idas aos psicólogos, as idas aos psiquiatras, que as pessoas todas, inclusive eu, precisei buscar. Nunca pagaram. E eu acho que a gente se perdeu. Eu acho que o morador de Bebedouro, o morador do Pinheiro, o morador do Mutange, o morador do Bom Parto, ele se perdeu dele. Eu já estou morando aqui nessa nova moradia há cinco anos, e eu não reconheço, eu não reconheço a padaria que eu fui a vida inteira, não reconheço o mercadinho, a venda do Cláudio, que era em frente a minha casa. Não reconheço a proximidade que eu tinha de tudo ali, da feira de Bebedouro, o cemitério de Bebedouro, que inclusive foi uma coisa assim, que a minha família toda era enterrada ali. Minha família toda, à medida que iam falecendo, todos eram enterrados ali. E hoje a gente está proibido de enterrar os nossos entes queridos ali. Não existe cemitério em Maceió suficiente para receber as pessoas, novos cemitérios estão sendo construídos, mas todos particulares. Os cemitérios públicos, essa é uma outra questão. Fora a mobilidade urbana, fora as indenizações que não foram adequadas, fora o adoecimento da população, fora tudo isso. Não se fala no cemitério, não se fala no que isso significa. Porque no Dia de Finados, era uma tradição de Bebedouro, aquela senhora que vendia a vela ali na porta do cemitério, aquela senhora que vendia as flores ali, aquela pessoa que era marisqueira, mas naquele período, para ganhar um dinheiro extra, ela vendia algo ali, uma água mineral ali na porta do cemitério. E as pessoas todas se locomoviam para visitar seus entes queridos ali. E hoje, até isso, a gente não consegue fazer, né? Eu tenho o meu avô enterrado lá, minha avó, que criaram a minha mãe. Eu tenho um tio, enterrado lá, eu tenho padrinho, eu tenho amigos, vizinhos, que foram enterrados ali. E hoje nem isso a gente pode fazer. A gente visita mais com medo, porque como se instaurou essa coisa de vai desabar, vai cair, vai morrer todo mundo. Hoje a gente tem até medo de ir no bairro. E fora que está abandonado, está cheio de mato, está maltratado. Não existe aquele cuidado que deveria acontecer, porque foi uma coisa que está dentro do acordo. Está dentro do acordo que foi firmado entre a Braskem e os órgãos públicos. Então, era algo que deveria ser efetivado.
50:28 P/1 - Como é que está agora, você e sua família no local que vocês estão vivendo? Você conseguiu já se enturmar com a vizinhança, com o local, como é que está sendo esse processo?
R - Eu, por ser professora, eu vim dar aula… Eu dava aula lá no meu bairro, e quando eu vim morar aqui no alto da Cruz das Almas, eu passei a dar aula aqui também, na comunidade. Então, aqui próximo nós tínhamos a comunidade da Vila Emater, nós temos outras comunidades aqui, nós temos as grotas no entorno, Grota do Sossego, Grota do Arroz, Grota do Rafael. E eu tenho muitos alunos que fazem parte da minha rotina e que moram no bairro. Assim como era no Bebedouro. Em Bebedouro eu dava aula lá, e tinha muitos alunos que moravam lá no bairro, então eu tive a sorte, eu, Andrea, tive a sorte de ser muito acolhida nos lugares onde eu chego, por ser professora do bairro. Mas eu já não posso falar o mesmo de outras pessoas. As minhas tias, elas iam todas para a missa juntas, a procissão de Santo Antônio, elas iam todas juntas ali, a minha mãe ia junto com elas. E hoje elas moram cada uma num bairro diferente. Então, quando eu encontro as minhas tias, e os meus primos, os meus familiares, eu percebo que eles não se reconhecem ali naquele local. Principalmente os idosos, principalmente os idosos, que viveram ali por anos, por décadas. Então, eles não se reconhecem, eles não… Você pode estar no melhor lugar do mundo, mas você não está no seu lugar. Então, você se perde naquilo. Então, hoje eu moro aqui, né? Nesta data eu aprendi a olhar para a frente, a reconhecer o meu local, a saber onde fica o mercadinho, onde fica uma padaria, onde fica… Aonde mora Dona Antônia, onde mora seu José, onde mora seu Pedro. Então, eu fui ali reconhecendo aos poucos, mas eu ainda assim, não sinto o meu local. Não sinto que eu estou no meu lugar. E é difícil. Eu acho que só o tempo é quem vai me trazer isso. Eu acho que nem o tempo vai me trazer isso, nem o tempo vai me trazer isso, porque nada vai apagar os 40 anos que eu vivi em Bebedouro. Que por coincidência são os 40 anos de extração. Quando a Braskem chegou em Bebedouro, o bairro já existia, o Colégio Bom Conselho já existia, a praça já existia. Seu Jacinto Nunes, Major Bonifácio da Silveira, que ajudaram a construir a história do bairro… Às vezes, eu me pergunto, e essa história que eu conheço? Onde é que ela vai parar? Ela não vai parar só na minha memória, que aqui no local onde eu moro hoje, eu não reconheço como o meu local. Eu moro aqui. Eu aprendi a ser feliz aqui, porque eu tenho a minha família do meu lado, me apoiando ali no meu dia a dia. Mas não é o meu local.
54:09 P/2 - E o que você acha do futuro de toda essa região? O que vai acontecer com toda essa região?
R - A gente ouve falar de muita coisa. Então, a gente ouve falar de que vai ser tudo reflorestada, que eles vão criar como se fosse uma extensão do Parque Municipal, né? A gente ouve falar que será construído um condomínio de luxo, para que seja vendido, para que outras pessoas venham morar e tudo. Mas eu, particularmente, não moraria num lugar que foi condenado. Eu poderia ter a melhor casa, a casa mais luxuosa do mundo, mas eu não iria morar no lugar que por muito tempo foi condenado. Foi dito que aquele lugar iria desabar, que crateras iriam afundar, que casas iriam ser engolidas. Isso causa pânico, terror nas pessoas. Então, a gente ouve falar muitas coisas. E é algo que, na minha concepção, o poder público deveria deixar mais claro, né? A Prefeitura de Maceió, o Governo do Estado, o Ministério Público, a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], todos os órgãos responsáveis. A Defesa Civil deveria ir a público e deixar claro que será feito como o bairro, o que vai ser construído ali. Como é que eles vão fazer? Existe um outro grupo que luta para que os moradores possam voltar para o bairro, e ter suas casas de volta. Mas eu, particularmente, como é que eu vou ter minha casa de volta? A casa que foi dos meus pais, se ela já foi demolida. Eu não tenho mais isso, isso não vai voltar. A casa foi demolida, como muitos prédios ali no Jardim Acácia. O antigo Jardim Acácia foi demolido, como outras casas da rua Carteiro João Firmino, onde eu vivi a vida inteira, foi demolida. Então, como seria feita essa devolução? Na minha concepção, é tudo muito vago, e eu não tenho nem como saber o que vai ser feito ali, porque eles não falam, eles não são claros conosco. E eu acho que nós merecemos uma satisfação. E a nossa história, e a nossa vida, foi o que nós vivemos ali, foi o que nós construímos ali. Então, o poder público deveria ser mais claro. A Braskem poderia ser mais clara e dizer o que ela vai fazer com o terreno, onde a minha história foi vivida. Eu não sei, de verdade, o que vai ser feito lá.
56:53 P/1 - Andréa, a gente vai agora caminhando para o final. E aí, eu queria deixar um momento para você falar, expressar de alguma forma o que você está sentindo, o que você passou. Um tempo para você falar o que você achar melhor.
R - Sempre que me convidam para falar de Bebedouro, eu coloco o meu uniforme da guerra. Esse é o meu uniforme da guerra. Porque sempre será uma guerra para mim, uma guerra de emoções, uma guerra social, onde as pessoas não puderam se defender, onde as pessoas não puderam…. Na verdade, tem gente que até hoje nem entende o que aconteceu direito. E o que mais me causa dano, é saber que ninguém vai responder por isso. Ninguém! Até hoje ninguém responde por isso. Não existe nem sequer um convite para que alguém responda judicialmente por isso, pelos danos que causaram nas famílias. A gente se perde nas emoções, no sofrimento, na saudade. A saudade eu acho que é uma das coisas que mais pesa, a saudade do que foi vivido ali. Então, isso me causa indignação, me causa revolta. Saber que tantas famílias foram dissipadas ali, tantas famílias se perderam ali, e nada foi feito. Nenhuma providência vai ser tomada. Não existe previsão de que alguém responda judicialmente por isso. Eu digo quero meu uniforme da guerra, porque eu costumo falar que Bebedouro vive, e ele vai viver para sempre. Ele vai viver para sempre, na minha memória, nas minhas lembranças, nas minhas emoções. Bebedouro é a história. Bebedouro é a história, não é a minha história. Bebedouro é a história de Maceió. E Maceió perdeu muito, Maceió perdeu muito com isso. Perdeu na cultura, perdeu na economia, porque muitos comerciantes hoje não tem mais seus negócios. Perdeu na mobilidade urbana, perdeu no ser humano mesmo, porque muitas pessoas se foram. Só são perdas. E eu sinto muito, porque é o maior crime ambiental em curso da história do país. E ninguém faz nada. Ninguém toma nenhuma providência. Ninguém vai responder criminalmente por isso. A política alagoana se cala. E o pior, e o mais absurdo, muitos políticos se utilizaram do sofrimento alheio para fazer suas campanhas. E hoje, é um ou outro que ainda se importa com o bairro. Mas a maioria é como se nós não existíssemos. É como se a nossa dor não existisse. A revolta é grande, é um sofrimento, mas a gente precisa respirar, olhar para frente e entender que a nossa história está em nós. Então, a Braskem é criminosa, mas o Bebedouro vive. Ele vive. E ele vai viver sempre. No que depender de mim, até os meus últimos dias, enquanto eu for lúcida, eu vou contar a minha história, a história do meu bairro, a história de pessoas incríveis que eu conheci ali [choro]. E que hoje, as próximas gerações que vierem, não vão poder vivenciar. Mas se depender de mim, vão escutar. Eu não me calo. Eu não quero me calar. E pelas pessoas que se foram, eu nem posso, eu nem posso me calar. Porque a gente tem a saudade, a lembrança, mas a gente tem a revolta. A revolta. E acima de tudo isso, a gente tem a dor das pessoas que a gente perdeu. Porque muita gente tá vivo, mas não tem vida. E estar vivo, é não ter vida, é se perder de si. Bebedouro vive.
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