Entrevista de Samara Vitória Borges dos Santos
Entrevistada por Jeane Cunha Ramos, Maria Fernanda Santiago de Lima e Pedro Henrique Vasconcelos Sarmento
Maceió, 8 de julho de 2025
Projeto Nosso chão, nossa história
NOS_HV017
0:30 P/1 - Primeiramente gostaria de agradecer por você ter concordado com a entrevista. Tá bom? Então, Samara, eu gostaria que você primeiro falasse o seu nome completo, local e a data de nascimento?
R - Samara Victória Borges dos Santos, nasci no dia 14/11/2005, no Pinheiro mesmo. Nasci e cresci no Pinheiro.
1:00 P/1 - Então, me fala do dos seus pais, os nomes deles e dos seus irmãos. Se você tem, né?
R - O meu pai se chama Moisés Borges da Silva, minha mãe Rejane dos Santos Lima. E sou filha única.
1:18 P/1 - Como você descreveria o seu pai e sua mãe?
R - Bom, o meu pai se divide em dois trabalhos, com conserto de câmera digital e também como porteiro. Então, acabava que eu não tinha muito tempo com ele, mas ao mesmo tempo ele foi a pessoa que mais ficou comigo, sabe? Acabava que eu não tinha muito tempo de qualidade com ele, mas eu tinha uma conexão maior com ele. Minha mãe também, minha mãe trabalha com serviços gerais. Então, era uma jornada de trabalho muito longa. Então, eu não tenho muito tempo de convívio com os dois. Eu me dividia entre a casa dos dois, mas eu passava mesmo tempo com os meus avós, e com as minhas tias.
2:15 P/1 - Como você falou que morava no Pinheiro, você morava com seus avós?
R - Isso.
P/1 - Então me fale justamente dessa fase da sua infância, morando com seus avós no Pinheiro?
R - Era uma fase magnífica. Eu vivia num apartamento, então eu não tinha muito tempo de convívio com outras crianças. Era um apartamento grande e com poucos apartamentos, e eu era a única criança do prédio, entendeu? Então, eu não tinha muito o que fazer. Eu não posso dizer que eu tive uma infância de brincar com outras crianças, de ter todo aquele convívio. E eu acho que as maiores crianças que eu brinquei eram os meus avós (risos), entendeu? Era… Como eu posso dizer? Eu acho que eu fazia eles voltarem um pouco a serem crianças, entendeu? A viverem esses momentos comigo. Porque eles eram… Eles são tudo para mim e com o tempo tudo foi se perdendo.
3:21 P/1 - E aonde você estudou?
R - Eu estudei por muito tempo… Eu me dividia entre escolinhas, no próprio Pinheiro, perto do Jardim Acácia, a escola Santa Júlia. Depois eu fui para o Russell, no próprio Pinheiro, e depois, mais tarde, fui para o José da Silveira Carmelino, no CEPA (Centro Educacional de Pesquisa Aplicada), onde eu completei o meu ensino médio.
3:47 P1 - E você teve algum momento marcante na época escolar?
R - Época escolar não, acho que foi uma coisa muito… Como posso dizer? Normal, entendeu? Acaba que eu era uma criança muito introvertida, acabava que eu não tinha muita coragem de me envolver com outras crianças, era vítima de bullying, essas coisas. Então, não foi uma época muito marcante para mim. Mas eu lembro que o que me marcava era a ida para a escola, entendeu? A ida que eu tinha, que passava pelas ruas do Pinheiro. E eu lembro que eu não tinha força o suficiente para fazer o caminho todo sem parar. Então, durante o caminho eu ia parando em algumas árvores. Acho que era, se não me falha a memória, eram amendoeiras, então eu ficava colocando o nome em cada árvore, em cada árvore, “não, aqui é a árvore do descanso, é meu ponto de parada”. Vou parar aqui, vou respirar um pouco e vou olhar ao redor.
5:04 P/1 - Então, no percurso do apartamento para a sua escola, você tinha esses cantinhos, essa vivência era a sua rotina. E os colegas da escola também moravam próximos? Você era uma criança introvertida, você falou, mas você tinha algum amigo na vizinhança, depois, já com a idade da adolescência?
R - Sendo sincera, não! Assim, de conviver, de estar no mesmo lugar, na mesma rua, não. Acho que os meus melhores amigos, a minha melhor convivência, eram com os meus primos, que infelizmente não moravam perto de mim. Então, eu tinha que esperar chegar o dia de eu ir para outro lugar para poder brincar com eles, para depois voltar para apartamento e assim ficar. Entendeu? Eu me dividia entre duas casas, mas o meu maior tempo era no apartamento, então era eu e a minha mente, assim.
6:14 P/2 - Você comentou com a gente que convivia muito com os seus avós. Você gostaria de compartilhar alguma memória marcante que você teve com eles?
R - Eu acho que as minhas melhores memórias eram com a minha avó, que, assim, eu nunca tinha muita criatividade, eu nunca fui uma criança muito de usar o imaginário, e ela sempre me puxava para esse lado. Então, minhas melhores lembranças é de quando a gente sentava no sofá, pegava todos os lençóis que tinham da casa, juntava, fazia uma cabaninha, pegava uma colher, e: “Vamos fingir que estamos no meio do oceano, tudo aqui é mar, e vamos ficar juntas aqui, tentando sobreviver.” Acho que isso daí é a minha melhor lembrança assim, das brincadeiras que tínhamos juntas, de sabe, ser criança, brincar de boneca. E por um momento eu nem lembrava que ela era mais velha que eu, sabe? Então, era uma convivência maravilhosa.
7:25 P/2 - Você lembra da casa, da rua que os seus avós moravam? Você poderia descrever para a gente como era o ambiente?
R - Eu lembro. O apartamento ficava numa parte central, perto de um postinho de saúde. Uma vizinhança bem vizinhança mesmo, tinha bastante contato com os meus vizinhos, entendeu? Era a única criança do prédio, então era meio que o xodó de todo mundo. Todo mundo passava, todo mundo falava, de ficar na janela dando tchau para os meus vizinhos. O apartamento ficava de esquina e em frente, tinha outra casa. E a minha vida era ficar lá tentando falar com a galera do outro lado, assim de longe, ficar apontando, dando tchau. E galera do posto de saúde também, que foram pessoas que eu nunca parei assim, para conversar, de tentar ter uma amizade, só que quando eu perdi, quando eu saí daquele lugar, daquela vizinhança, eu percebi o quanto que eles faziam falta na minha vida. Entendeu? Que eram pessoas que mesmo eu não conversando, mesmo não tendo bastante contato, intimidade, eram pessoas que me agregavam e me faziam feliz. Sabe? De olhar todos os dias para aqueles mesmos rostos, aquelas mesmas pessoas que eu não sabia o que se passavam com elas, mas que pareciam pessoas tão felizes de estarem naquele lugar. Sabe? E é isso.
09:05 P/1 - E para você existia alguns pontos, alguns lugares assim, que quando você ia estudar, que você passava, tinha algum outro lugar que você também gostava, se sentia bem? R - O bairro era muito religioso, então a gente tinha muitas igrejas. Tinha Assembleia de Deus, que era a que eu frequentava, junto com a minha avó. E eu ia lá todo domingo, toda quarta, era um momento de comunhão mesmo, entendeu? De vamos todos juntos para a igreja de mãos dadas, vamos lá adorar, sentar e conviver com as outras pessoas, era um momento assim, muito fenomenal. Fora os restaurantes, as lanchonetes, as sorveterias que tinham. Então, era muito especial, era um momento de desafogo mesmo.
10:13 P/1 - Então, você passou a sua juventude toda no Pinheiro? Cresceu? E como foi para você depois do colégio? O que você começou a fazer depois que terminou o colégio?
R - Bom, quando eu terminei o colégio, eu já tinha saído do Pinheiro, no momento da evacuação. E eu ainda não tinha muita noção do peso que era sair do Pinheiro, de perder aquelas pessoas. Acho que foi algo que foi sendo construído dentro de mim. E quando eu saí do colégio, eu decidi, e agora? Passei no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) o que eu vou fazer? O que eu faço? Eu pensei: Ah, vou juntar o útil ao agradável. O Pinheiro foi algo que me motivou a fazer história, é algo que eu estou fazendo no momento. E me motivou a continuar a fazer.
11:11 P/1 - Então, me conta melhor sobre esse impacto, esse momento que você descobriu que estava acontecendo, tinha algum problema com o solo da região? Como foi para você?
R - Bom, quando veio o primeiro abalo, que eu lembro muito bem o que eu estava fazendo. Eu não estava em casa no dia, eu estava… Que na igreja eu participava de algumas peças, e pô, a gente sentiu. A gente sentiu o abalo e todo mundo olhou uma para a outra. “O que aconteceu? O que estão fazendo aqui? Vai tudo desmoronar?” Beleza, tudo seguiu normalmente. A gente sentou, conversou e voltamos para casa. Voltamos para o apartamento. E tudo não voltou mais a ser o normal. Começou a ser um momento de preocupação, começou a ser um fardo, entendeu? “Meu Deus, o que vai acontecer com a gente aqui nesse apartamento? E se tudo desmoronar, o que a gente vai fazer? Para onde é que a gente vai?” Porque não se pensava mais em outra vida longe do Pinheiro, não se pensava em deixar. Mas foi quando deu uma chuva muito forte no Pinheiro, e eu lembro que foi um momento de desespero. Entendeu? Que eu olhei para a janela, estava trovejando, tudo caindo. E eu olhava para a janela, a janela dava para outro prédio grande, e na minha cabeça eu sentia tudo tremer, o prédio desmoronar. Veio na minha mente vários desastres que poderiam acontecer. E a partir dali minha vida já não foi mais normal, entendeu? Porque na minha cabeça, a qualquer momento tudo poderia desmoronar. Comecei a ter crises de ansiedade, por causa do abalo. Eu comecei a ver gente indo embora, ver gente se mudando, pensando em se mudar. Todo mundo falava a mesma coisa, todo mundo pensava a mesma coisa. Era: “O que a gente vai fazer, para onde é que a gente vai?” Começou a ver outras coisas, sabe? Todo mundo preocupado pensando em casas para alugar. Eu só lembro que o que mais a galera conversava era: “E aí, vai se mudar quando? Já viu casa não sei aonde, pensou o que vai fazer? E agora, como é que a gente vai pagar aluguel em outro lugar?” E tudo se acabou, a gente decidiu dar um basta, quando finalmente chegou no nosso prédio, que a gente viu um caminhão de mudança chegando e todo mundo dizendo “tchau”, entendeu? Vendo todo mundo sair. Aí, foi aí que a gente decidiu sair também. Ainda ficaram pessoas nos bairros, nos apartamentos, mas foi ali que a gente decidiu sair porque não estava mais fazendo bem para ninguém. A nossa saúde mental acabou junto com os bairros.
14:34 P/1 - E para você e sua família, como foi essa parte da mudança?
R - Foi uma parte de separação mesmo, porque eu praticamente morava com eles, e eu não pude mais estar. Não… Por questões de logística mesmo. Porque eu estudava… Cara, o Pinheiro era um bairro de tudo, era um bairro de comércio, o bairro de escola. Então, tudo era muito perto, tudo era muito compacto. Então, quando a gente se mudou, já não existia mais tempo nem espaço para continuar, entendeu? Tudo ficou muito longe. Escola ficou longe, igreja ficou longe. Então, não pude mais estar presente todos os dias, junto com os meus avós e as minhas tias, por conta disso. Então, eu senti que tudo acabou.
15:36 P/1 - Então, você foi morar em um bairro e os seus avós ficaram, ou eles também saíram?
R - Eu voltei a viver integralmente com os meus pais em outro bairro. E meus avós se mudaram. Então, por conta disso, da distância, eu não conseguia estar junto com eles.
15:56 P/1 - E o processo que eles viveram, essa fase de mudança, você foi testemunha, você viu isso?
R - Fui testemunha. Acho que a coisa mais difícil foi a gente começar a empacotar as coisas, entendeu? Porque aí começou a cair a ficha, estamos indo embora e não vamos mais voltar, entendeu? Foi isso que passou. Começar tudo, que estava tão bonitinho, tão organizado. Pegar tudo, desmontar, colocar numa caixa, colocar uma fita e colocar no caminhão e dizer tchau pro apartamento. Sabe? Foi ver todas as memórias, pintura na parede, desenho na parede, desenho de altura mesmo, de ir marcando minha altura. E deixar pra trás. Deixar para trás, começar em outro lugar, em um lugar novo, com pessoas novas, sem mais aquele carinho da vizinhança, sem mais olhar para dizer bom dia para os mesmos vizinhos. Não está mais com as mesmas pessoas, entendeu? Não que seja ruim se socializar, mas perder o convívio é cruel. Pessoas verem a minha avó 20 anos no mesmo lugar, dizer tchau para as suas amigas de idade, dizer tchau para os meus vizinhos que sempre me apoiaram, cresceram comigo também. Então, foi muito difícil.
17:39 P1 - A fase que você realmente se mudou, nova casa, como você falou. Como foi para você esse processo?
R - Foi doloroso, assim. Doloroso demais, porque eu sentia muita falta dos meus avós. Aquela convivência, de você acordar de manhã e você já não está mais junto com eles. Voltar a ser aquela menina presa, só que em outro lugar agora, que o que eu fazia? Nada! Não tinha! Saí de… Como eu posso falar? O que não era mais uma prisão, o que tinha deixado de ser uma prisão, e parece que eu retornei para o mesmo lugar. Voltei à estaca zero, de ter que voltar a construir laços com outras pessoas. Foi muito difícil. E voltar aquele vazio, porque a casa ficou vazia, eu tinha que ficar mais tempo sozinha. Ficou a sensação de vazio. E aí? Eu só? Ficou eu e a solidão, só isso.
19:08 P1 - E essa fase que você passou, você já estava na faculdade? O estudo te ajudou? Você disse que fez o curso de história, isso te ajudou também?
R - Quando a gente saiu do Pinheiro eu ainda estava na escola. E foi… Como posso dizer? Meio que me pressionou a tentar florescer. Entendeu? Tentar sair da minha zona de conforto, porque eu vi que eu estava sozinha, eu tinha que tentar me agarrar alguma coisa, entendeu? Tentar criar laços com outras pessoas, tentar conviver com elas. O que pra mim foi bastante difícil, entendeu? Só posso dizer que eu consegui realmente criar laços com elas, quando tudo já estava acabando também, entendeu? Então, eu saí, pulando assim, nessa questão de criar laços, de conviver, entendeu?
20:26 P/1 - E assim, hoje, o que você sente pra você? Já que você já passou, já está na faculdade. Para você, qual é a sua memória referente ao passado?
R - Minha memória é de felicidade, por ter vivido tudo o que eu vivi, mesmo com todos os problemas, eu sinto felicidade. Eu sinto angústia também, por ter deixado tudo pra trás. Eu acho que fica aquela sensação, eu poderia ter feito mais, poderia ter resistido mais. Mas sabemos que no fim tudo teria um fim mesmo. E a sensação de pertencimento àquele bairro, sabe? Eu percebi que aquilo ali realmente me fez falta, me faz falta até hoje, entendeu? E é isso.
21:31 P/2 - Você chegou a retornar ao bairro, a passar perto de onde você mudou depois que aconteceu? E como você se sente em relação a essa cidade?
R - Bom, eu costumava passar, porque a gente tinha um gato, e o gato acabou que não queria se mudar com a gente. Então, a gente tinha que sempre estar indo levar comida pra ele, água e tudo mais. Então, a gente tinha que ficar voltando, toda vez aquela mesma dor, de voltar lá, olhar pro apartamento sem porta, sem nada, sem flores. Que lá vivia com flores. Ver tudo destruído com pichação. Então, foi bastante doloroso.
22:25 P/1 - E tem contato com a vizinhança?
R - Foi algo que se perdeu, o contato. O que era diário, começou a ser cada vez mais escasso. Uma conversa a cada uma semana, a cada um mês, até tudo se acabar. Hoje em dia eu ainda falo com alguns, mas é algo realmente muito raro. Entendeu?
22:51 P/1 - E hoje, para você, você acha que teve justiça? Qual é o seu sentimento em relação a isso? A todo o processo que você vivenciou no Pinheiro?
R - Eu acho que se realmente tivesse justiça, a gente não teria que estar aqui falando, entendeu? Se realmente tivesse justiça, a gente talvez ainda estivesse lá. Entendeu? Não houve justiça, não houve. Nada vai voltar, nada vai ser reparado. Por mais que eles tentem pagar por isso, pagar pelo nosso silêncio, pagar pela nossa dor, ela vai permanecer. Não importa quanto de dinheiro eles paguem. Não importa, a gente vai permanecer com essa dor para sempre. A gente vai continuar passando em frente aqueles locais, a gente vai continuar lembrando, a gente vai continuar lembrando das nossas perdas, das nossas dores. Então, não há, e nunca vai haver justiça.
23:59 P/1 - Não existe para você reparo?
R - Não existe!
24:03 P/1 - E Samara, você falou que seus avós, você separou. Como eles estão hoje?
R - Hoje, como posso dizer? Começou a mais… A ter aquele acalento, sabe? De ter a certeza que realmente acabou. Não vamos voltar. Já posso dizer que aceitaram aquela situação, entendeu? Por muito tempo eu vi meus avós, como eu posso falar? Ficarem tristes, solitários. E hoje eu vejo que eles estão tentando escalar um pouco mais, sabe? A voltar… A tentar voltar a sua normalidade, entendeu? Hoje eles estão muito mais saudáveis, mas é muito triste você por muito tempo ver seus avós ficarem sozinhos, tentarem conversar com os outros e não terem resposta.
25:28 P/2 - E como você sente que ficou a sua saúde mental e a dos seus avós, após passar por todo esse processo?
R - Bom, a minha… Porque continua convivendo com a dor, entendeu? Então, você continua vivendo com a dor. Você continua sonhando com os mesmos lugares. Você continua pensando no que poderia ter sido feito, no que você poderia ter feito. Você continua pensando no que poderia ter falado com mais pessoas, você poderia ter aproveitado mais, você poderia ter, sei lá, brincado mais, ter aproveitado mais aquelas praças, aquelas visitas, aqueles lugares. Então, assim, não ficou bem, entendeu? Mas a gente segue tentando permanecer firme, continuando a conviver. Já os meus avós, eu acho que como eu. A gente ainda sente a dor, mas a gente está tentando viver, entendeu? Porque realmente é algo que não vai voltar. Então, não adianta parar de viver. Continuar, entendeu? Olhar para frente.
26:51 P/1 - Qual sentimento que você carrega ao lembrar da sua casa, na sua vida antiga, nessa mudança que tem?
R - A minha vida antiga? Eu carrego felicidade. Felicidade porque foi lá onde eu vivi os meus melhores momentos, meus aniversários, as festas. Então, felicidade.
27:19 P/3 - Samara, tem um detalhe que eu queria ver com você, se você quiser falar, e que você que morava com seus avós, não é isso? Por que você não morava com os seus pais?
R - Bom, era principalmente porque eles trabalhavam muito, então era uma jornada de trabalho que… Para evitar que eu ficasse sozinho em casa mesmo. Então, como a minha avó trabalhava, mas o meu avô ficava praticamente o dia em casa, então eu conseguia ficar com ele, para não ficar sem monitoramento, entende?
27:56 P/3 - Agora, os seus pais eram separados?
R - Não, juntos.
P/3 - Eles moravam perto do Pinheiro ou não?
R - Morava num bairro em frente ao Pinheiro, que era Pitanguinha. É ainda hoje a Pitanguinha.
28:11 P/3 - E qual era o endereço do apartamento que você morava, só para deixar registrado?
R - Se eu não me engano, Rua Pacheco Ramalho. Pode ser que eu esteja enganada, mas era perto do posto de Saúde do Pinheiro. Acho que todo mundo conhecia. Então, era um ponto de referência. E o salão da Sil. Então, ficava na rua do Posto, ao lado da Sil. Um apartamento de esquina, pequenininho, só de 4 apartamentos mesmo, dois em cada andar, então acho que era… Posso dizer. Um ponto de referência, entendeu?
28:58 P/3 - E você falou daquelas árvores, você lembra os nomes que você deu para cada uma?
R - Ai, acho que eu só lembro de uma mesmo, que era a última, a derradeira, para voltar pra casa, era a Árvore de Descanso mesmo. Era a Árvore do Descanso. Que era uma árvore bem velha mesmo, cheia de ramos e raízes. E eu gostava muito dela porque ela dava sombra para praticamente a rua toda, entendeu? Então, lembro de ficar embaixo dela, e tentar ficar escapando, porque quando era tempo de fruta, ela era uma amendoeira, então ficava caindo amêndoa. Então, a minha vida era tentar não ser atingida, entendeu? Era isso.
29:53 P/4 - Samara, acho que você falou em algum momento que você tinha um convívio dentro de igrejas, uma coisa desse tipo, assim. Esse espaço fora familiar assim, igreja, ou tinha algum evento de alguma festa. Um convívio social a nível de bairro, assim? Vamos supor, carnaval, bloquinho de carnaval, alguma coisa que você observava, ou que você participava também?
R - Tinham três coisas, três eventos que tinham dentro do Pinheiro, que ou eu participava, ou eu só observava. O primeiro, que era as vigílias e encruzilhadas, que a igreja fazia, ou então ia participar. Então, era algo que eu sempre estava, que a gente fechava a rua, montava palco. Eu achava aquilo o máximo. Era a coisa mais top, mais fenomenal que eu via, entendeu? Ficar lá sentada, vendo as coisas de baixo para cima, pra mim era fenomenal. Tinha também a feira camponesa, que tinha, acho que era um símbolo do Pinheiro, entendeu? De fruta. Eu lembro que tinha uma bancada de tapioca, uma tapioca gigantesca. E era a coisa que eu mais gostava também, porque nossa, sair de casa, ir numa feira, no meio da cidade, um monte de barraquinhas, gente vendendo galinha, fruta. Eu me sentia muito criança. Sabe? Aquela coisa fenomenal, comer uma tapioca. E também tinha as procissões, as procissões de santos e tal. Eu não participava, por ser evangélica e tals. Mas eu assistia de cima, do apartamento. E para mim era fenomenal ver a galera passando com vela, tudo bonitinho, juntinho. Para mim era assim, era o meu ponto da noite. Entendeu? Eu ia dormir feliz de ver a galera passando. Então, era muito bom. Acho que a vista que eu tinha do apartamento me proporcionava muita coisa.
32:26 P/3 - Você se lembra de alguma coisa que te marcou? Assim? Alguma cena que você viu?
R - Assim, posso dizer assim, meio trágico. Trágico, né? Porque o apartamento ficava na esquina, e era uma curva assim muito fechada, a galera tinha que realmente passar nas últimas. Então, sempre tinha algum acidente, no prédio, na esquina do prédio. Então, eu lembro de eu estar na janela, e só escutar o barulho do freio, e o carro sobrando na curva. Assim, eu não vi o momento da batida, mas eu me lembro de estar na janela, de escutar claramente o barulho de freio e o estouro, era frequentemente ficar vendo carro batido, ou carro virado. Então…
33:33 P/3 - Você achava um bairro perigoso, violento a noite, a tarde, de dia? Ou era bem tranquilo, assim, você se sentia à vontade para andar em qualquer horário?
R - Vou te falar, o Pinheiro era um bairro muito familiar, entendeu? Então, na minha visão era um bairro muito seguro. Todo mundo se conhecia e tal, quando surgia alguma coisa nova, Meu Deus! Acontecia alguma coisa, Meu Deus, todo mundo se juntava para saber o que aconteceu. Então, eu não lembro assim, de muitos episódios de violência, de alguma coisa assim. Era realmente… Todo mundo ou ficava na rua a noite, sentava, conversava. Tinham suas casas, faziam as suas festas e tals. Tudo na rua e nunca acontecia nada. Se acontecia era algo muito pontual. Era um bairro muito familiar, coisa que é muito difícil hoje em dia, né? Então, é uma coisa que a gente sente falta.
34:22 P/4 - Então, assim, você estudava no bairro. Tinha posto de saúde o bairro?
R - Sim! Na esquina do meu apartamento.
P/3 - Agora, para quem não conhece o Pinheiro. Quais lugares a pessoa tinha que ir, ou tinha quer ver? Na sua a sua experiência.
R - Dois pontos que eu acho que todo mundo aqui tinha que ir no Pinheiro, tinha que frequentar. Acho que era o Passaporte do Paulinho, que era, nossa! Todo mundo ia, no domingo ninguém conseguia nem sentar no lanche, para pedir, a pessoa pedia sete horas da noite, ia chegar o passaporte, nove horas da noite, entendeu? Se estava com fome, ia ficar com fome mesmo. Tinha a sorveteria do Gil, que ficava perto da Assembleia, então acho que por mais de 30 anos… Minha tia ia nova. Foi passando de geração em geração, e indo para os mesmos lugares, entendeu? Eu acho que esses dois me marcaram bastante. Acho que as padarias também eram algo assim, sem igual.
P/3 - Por que te marcaram tanto assim? Por que você acha?
R - Porque era algo que eu ia em família. Eram sempre os mesmos atendentes, sempre as mesmas pessoas. Se tornava até algo meio que repetitivo, parecia assim, que a gente vivia num looping, a gente chegava era a mesma pessoa, o mesmo atendente, pedia a mesma coisa, toda vez. Então, acabava que a pessoa criava um carinho, por aquela pessoa, sabe? Um carinho por aquele lugar. Um lugar que você vai passar em frente, você vai ter lembranças, você vai passar em frente, você vai até sentir os mesmos cheiros, sentir as mesmas coisas. Sabe? Aquela sensação de nostalgia, de convivência, de ver sempre aquelas mesmas pessoas. Era algo sem igual.
36:31 P/3 - Finalizar só essa parte. Pergunta sobre os seus avós. Voltar um pouquinho, então. Você pode me descrever como que era a figura da sua avó, a figura do seu avô também?
R - Minha vó, posso lhe falar assim, sempre foi uma pessoa muito… Ela era dura com as pessoas, mas um doce comigo, entendeu? Eu sempre fui a única neta. Fui a única neta por muito tempo. Então, a minha infância toda, então eu era a princesinha da casa. Lembro que era ela que brincava comigo, era ela que inventava as brincadeiras. Meu avô, sempre foi muito festeiro, sair para dançar, sair para clube. Ele nunca me levou assim, mas eu lembro de ver ele dançando, ver ele chegar dançando, ele curtindo. Ter que ligar para ele, às vezes, à noite. A minha avó dizia: “não, ligue não, vamos passar um trote para ele, vamos passar um trote, pegar uma boneca, apertar a boneca e deixar o boneco falando com ele”. Ele sem entender nada. Assim, lembranças que vão durar a vida toda, entendeu? Vão ficar para sempre lá.
38:02 P/3 - E como é essa coisa deles voltarem a ser criança junto com você?
R - Era fenomenal. Acho que era um momento assim, de respiro deles, entendeu? Meu avô não muito, porque ele não costumava brincar muito, mas sempre com aquelas brincadeira, sabe? Passar trote, inventar alguma mentirinha pra gente fazer, dar um susto em um, um susto em outro. Então, era muito importante, eu acho. Trazer de volta aquela lembrança deles, algo que por muito tempo eles tinham deixado para trás. Deixado de viver.
38:54 P/1 - Samara, você falou do seu gato, que ficou e que você sempre estava voltando pra alimentar. Então, você tinha uma visão de como ficou o meio ambiente em relação a isso, com os animais? Você tem ideia de como ficou, além do seu gato e dos outros animais que moravam lá no Pinheiro?
R - Acho que depois de tudo, voltando pra dar comida a ele, a gente percebeu um grande aumento dos animais de rua. Claro, que existiam, no bairro, mas começou a ser um número alarmante, entendeu? Por mais que no posto não tenham ficado tantos gatos, acho que eram dois a três, mas a pessoa passava pelas ruas, sempre tinha um gato escondido em algum lugar. Um gato, um cachorro, entendeu, a gente sentia um abandono. Eram realmente abandonos, sabe, não era normal você ver um um gato extremamente desnutrido numa semana, e na outra semana aparecendo outro e mais outro, mais outro. Chegava a ser até preocupante, sabe? É um risco para os outros, para as pessoas que ainda ficaram lá, e um risco até para os próprios animais. E assim, um descaso total. Por mais que tenham ONGs e pessoas que vão alimentar, Mas nunca é a mesma coisa, sabe? E eu vejo até a minha tia e eu como um exemplo de pessoas que não desistiram, pessoas que amaram ao ponto de conseguir levá-los, conseguir levá-lo, aliás.
41:04 P/1 - Como você vê o futuro do meio ambiente nessas regiões afetadas?
R - Eu vejo só tudo aumentando, entendeu? Tudo crescendo. Quem nos garante que não continuam explorando mais e mais? Quem nos garante que aquilo dali não vai chegar um dia a colapsar? Entendeu? Eu vejo tudo aumentando, porque lá virou um deserto. Deserto. Por mais que digam que tem segurança, tem tudo. Continuam deixando gato, cachorro, tudo, entulho, lá, entendeu? Eu só vejo tudo piorando. Não sei o que eles vão conseguir fazer para tentar amenizar os prejuízos, mas só vejo tudo indo por água abaixo.
42:05 P/2 - Voltando um pouquinho. E em relação a sua tia, que você ia com ela levar comida pro seu gato. Você tem alguma outra memória, alguma história com ela para compartilhar com a gente?
R - Ah, eu só lembro que quando aconteciam de me esquecer na escola, que eu acho que sempre acontece com alguma criança, em algum momento. Era sempre ela que lembrava de mim. Ela trabalhava os dois horários, então não tinha assim, muito tempo com ela. Geralmente era sempre no horário de almoço quando ela chegava, e quando ela ia me buscar na escola. Só lembro de um dia ter ficado na escola, vendo todo mundo indo embora. Beleza, sempre acontece ser um dos últimos. Mas assim, ser o último foi algo que me marcou. Eu lembro de ter ficado na frente da escola, olhava para um lado, olhava para o outro, olhava para a minha tia na escolinha, olhava para a diretora da escolinha. Assim, né? Acho que elas torcendo para eu ir embora, e do nada, na esquina, vê um rosto conhecido, sabe? Eu senti como se fosse a salvadora da pátria, assim. Então, uma lembrança com ela.
43:23 P/1 - E para você, o que você gostaria que as pessoas soubessem de toda experiência que você passou?
R - Eu queria que as pessoas soubessem que no Pinheiro tinha muita história, muita história para ser contada, muita história para a galera lembrar, muita história para as pessoas lutarem, entendeu? Para as pessoas lutarem por tudo que aconteceu, lutarem por justiça. E lembrarem do Pinheiro, dos bairros, como algo que realmente aconteceu. Algo que não vai ser simplesmente apagado e destruído como eles tentam.
44:10 P/1 - Gostaria de acrescentar algo mais, falar alguma coisa, uma história que que sei que você não contou e gostaria de compartilhar?
R - Acho que não. Acho que tudo que eu tinha para contar eu consegui expressar e trazer.
44:32 P/2 - E como foi para você participar? Contar um pouco da sua história?
R - Chega até ser um alívio, sabe? Eu acho que a gente que fomos moradores dos bairros, fica um pouco entalado na garganta, que a gente tem muito para contar, muita história para relembrar e ser vista. E até coisas que a gente acaba apagando da memória, sabe? Que fica faltando só aquele gatilho, aquele estalar para a gente contar.
45:06 P/1 - Certo! Samara, muito obrigado pela sua participação.
R - O prazer foi meu.
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