Projeto: Indígenas pela Terra e pela Vida
Entrevista de Anildo Lulu
Entrevistado por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba/Avaí), 18/01/2023
Entrevista n.º: ARMIND_HV035
Realizado por Museu da Pessoa
P/1 – Primeiramente, boa tarde, Anildo, gostaria de agradecer pela disponibilidade de dar essa entrevista para o Museu da Pessoa, nesse projeto Indígenas pela Terra e pela Vida, onde a sua entrevista irá compor esse acervo de trinta entrevistas com indígenas de todo Brasil, contando sua história de vida, de luta, pela vida e pela terra, dentro desse tema. Mas, nós vamos começar pelas suas origens. Já começo perguntando qual é o seu nome em português, qual é o seu nome indígena e se tem algum significado? Então esse é o momento de você se apresentar falando quem você é.
R – Então, boa tarde. Meu nome é Anildo em português, e em Nhandewa é Awá Rokadju, “o homem que cuida do local sagrado”, o significado, falando da origem, né. Eu sou… faço parte de duas etnias, que é Guarani, Nhandewa, e Terena, por minha mãe ser Guarani e meu pai Terena. Esse nome se deu quando houve a separação dos meus pais. Eu fui nascido lá em Mato Grosso, minha mãe deu à luz em Mato Grosso e depois de um mês retornando para Araribá de novo, já separada do meu pai, então não tive muito, assim, contato com os meus parentes Terena, e vivi sempre com meus parentes em Guarânia, Tupi-Guarani. Então a gente ali ia pra casa de reza, fizemos parte de muita… muita história, né, história não, de vida ali que eu vi Nhemongaraí. Eu e meu primo Claudinei, a gente fez parte dessa, desse momento importante que é até difícil para gente falar, né. E emociona bastante, traz muita lembrança do nosso parente rezador Murayamga, a gente fez parte disso, porque a gente era chamado para buscar cera de ________, então eu vivi sempre no meio do meu povo ali, Tupi-Guarani. Alimentação totalmente diferente naquela época. A gente foi criado...
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Entrevista de Anildo Lulu
Entrevistado por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba/Avaí), 18/01/2023
Entrevista n.º: ARMIND_HV035
Realizado por Museu da Pessoa
P/1 – Primeiramente, boa tarde, Anildo, gostaria de agradecer pela disponibilidade de dar essa entrevista para o Museu da Pessoa, nesse projeto Indígenas pela Terra e pela Vida, onde a sua entrevista irá compor esse acervo de trinta entrevistas com indígenas de todo Brasil, contando sua história de vida, de luta, pela vida e pela terra, dentro desse tema. Mas, nós vamos começar pelas suas origens. Já começo perguntando qual é o seu nome em português, qual é o seu nome indígena e se tem algum significado? Então esse é o momento de você se apresentar falando quem você é.
R – Então, boa tarde. Meu nome é Anildo em português, e em Nhandewa é Awá Rokadju, “o homem que cuida do local sagrado”, o significado, falando da origem, né. Eu sou… faço parte de duas etnias, que é Guarani, Nhandewa, e Terena, por minha mãe ser Guarani e meu pai Terena. Esse nome se deu quando houve a separação dos meus pais. Eu fui nascido lá em Mato Grosso, minha mãe deu à luz em Mato Grosso e depois de um mês retornando para Araribá de novo, já separada do meu pai, então não tive muito, assim, contato com os meus parentes Terena, e vivi sempre com meus parentes em Guarânia, Tupi-Guarani. Então a gente ali ia pra casa de reza, fizemos parte de muita… muita história, né, história não, de vida ali que eu vi Nhemongaraí. Eu e meu primo Claudinei, a gente fez parte dessa, desse momento importante que é até difícil para gente falar, né. E emociona bastante, traz muita lembrança do nosso parente rezador Murayamga, a gente fez parte disso, porque a gente era chamado para buscar cera de ________, então eu vivi sempre no meio do meu povo ali, Tupi-Guarani. Alimentação totalmente diferente naquela época. A gente foi criado com bastante peixe, saracura, pão, fubá, farinha, tatu, bastante… pouca alimentação, assim: arroz, feijão, carne, da cidade né, totalmente diferente. E a gente tinha um modo de vida totalmente diferente que não era esse hoje que nós estamos vivendo, outro modo de vida. Naquele tempo a gente gostava mesmo era de caçar, de ficar mais na beira do rio, tinham casas ali na beira do rio Batalha, em 1976, eu acho que era por aí que eu começo a perceber e conhecer as coisas. Porque eu nasci em 1971, então a gente tinha esse modo de vida mais tranquilo, sem correia, sempre na casa de reza… quando faltava alguma coisa a gente já corria para casa de reza _________ e quatro horas da manhã a gente escutava todos “_________ rezar, quando ia acontecer alguma coisa, então, já tinha todo um preparo para a comunidade, então já vinha aviso. Então, eu vi todo esse tipo de modo de vida que a gente tinha lá em 1976, poucos parentes, tinha cinco casas. Depois foram crescendo, foram se casando, e aí então, até os meus dezesseis anos, dezessete anos, eu tava no meio do meu povo Tupi-Guarani sempre ali. Mas aí a gente vai crescendo, vai tomando nosso rumo, então por isso que meu nome agora é Awá Rokadju, por eu ter vivido sempre com meus parentes em Nhandewa, então eu me identifico como Tupi Guarani por conta disso, vivi esses momentos fortes, vivi muita coisa, então me identifico por isso, mas assim, eu tenho meu lado Terena também, e hoje também já casado com uma parente Terena, meus filhos já são Teregua né, Guarani com Terena, como eu. Então é isso aí para início assim de apresentação.
P/1 – Você citou tua mãe de origem Tupi-Guarani e teu pai de origem Terena, eu gostaria que você contasse um pouco sobre sua mãe, quem é ela? Esse lado da família.
R – Então, minha mãe é filha da Dona Maria Laura da Silva e pelo FTI teve um… Meu avô trabalhava ali, que não é indígena, é um pernambucano, então ele ali casou com a minha avó Maria Laura da Silva e a gente… aí nasceu a minha mãe Maria Rocha, nasceu Roberto Lima Rocha e Dona Adelaide Rocha, foram esses três aí, irmãos do avô que era o trabalhador da época do STI [Serviço de Proteção aos Índios]. Então daí nasceu ela mestiça, pernambucana com Guarani, e minha avó tem uma história bastante, a gente fala assim, porque é uma história longa, você vai vivendo e você vai descobrindo. Então ela veio lá de Iguatemi, veio a pé pra cá, ela com a mãe do José Lima a Dona Aparecida, e o Antonio Paraguaio que fala o “chirai”, o seu Antônio, então era ali primos, e também eu acho assim que minha avó seria ligada aos parentes Kaiwa que veio essa origem de lá. E aí veio, casou com o meu finado avô e aí ele veio a falecer quando a minha avó casou com um kala, Chiquinho, Francisco, que era um dos rezadores, Pajé aqui da região. Aí nasce também a Francisca, Valdina, Valquíria e também Ronaldo. E aí por outro lado também, a minha avó também em uma deslizada, teve a tia Da, tia Dulce também faz parte ali do Terena, tinha esquecido aí no momento, mas também veio de outro relacionamento. Então aí quando eles crescem, então, a minha mãe casou com o seu Antônio Lulu, que é meu pai Terena que veio de Mato Grosso do Sul, na época quando vieram os parentes Terena, veio cinco, depois veio os demais, e no meio desse vem e vai aí veio o meu pai e acabou ficando com a minha mãe, se “ajuntando” com a minha mãe. Aquele tempo não fazia casamento, se “ajuntava”, e aí deu para ir pro Mato Grosso e voltamos de novo, e eu fiquei no meio dos parentes. Então minha mãe tem essa miscigenação de não indígena com indígena, é isso.
P/1 – Novamente você trouxe o seu pai, de origem Terena, então também gostaria que você falasse um pouco da origem dele, desse lado da família, quem é ele? Se você pudesse contar também quem é ele.
R- Então, meu pai, como eu disse, eu tive pouco contato com meus parentes Terena. Eu sei que ele veio lá de Aquidauana, da Aldeia Limão Verde, morava ali na região de Aquidauana, Anastácio. Então, quando minha mãe foi pra lá, ela ficou ali entre Anastácio, Aquidauana, que são as duas cidades juntas. E a minha avó e meu finado avô moravam ali no Limão Verde, inclusive ainda tem o local que eles me mostram, então… e os meus parentes tem ali também, do lado do meu pai, ali no Limão Verde. Então, pouco eu sei assim, mas a trajetória dele quando a gente descobre, acaba cometendo também aí um certo homicídio com uma pessoa não indígena, uma esposa. Eu conheci ela, na verdade, na prisão aqui em Bauru, já com quase vinte anos, acho que 21 anos, 22 anos. Ai que eu vim conhecer, porque desde então eu não conhecia, não tinha contato, nem sabia como era o meu pai, eu vim conhecer realmente aqui em Bauru no IPA [Instituto Penal Agrícola]. Onde faz a, como fala? A prisão agrícola, então é ali que eu acabei conhecendo. E dali a gente buscou a procura da FUNAI. Ele procurou auxílio, então a gente chegou através da FUNAI, Doutor Humberto, a gente acabou… ele saindo ali do semi-aberto e veio pra aldeia, cumpriu o restante com a aldeia e acabou ficando por aqui. Aí com o passar do tempo ele acabou, ficou um tempo aqui no Nimuendaju, depois ele foi para o Kopenoti, arranjou outra esposa lá, acabou se tornando uma liderança lá, e logo em seguida também tornou-se Cacique da Aldeia Kopenoti. Então já se torna liderança e acaba depois ali, saindo também, houve problema de doença, amputação, e hoje está encostado ali, em cadeira de rodas, mas firme ainda, está lá na casa dele no Kopenoti e está ali.
P/1 – É, muito bem. Para a gente fechar essa parte das origens, que você contou sobre seu pai, sobre sua mãe, seus avós, da onde eles vieram, e gostaria que você também pudesse falar dos teus irmãos, das suas irmãs, quem são eles? [Se você] pudesse contar um pouco sobre a história dos teus irmãos.
R – Então, tivemos vários problemas, nós, irmãos. As minhas irmãs também não conheci, agora meus irmãos, tem outros irmãos também, de outro casamento da minha mãe, que estão hoje na cidade, que é o Nivaldo, e o outro irmão que é o, não vou conseguir lembrar, Joã, esses dois. Um está em Avaí e o outro está lá em Bauru, morando. Então a gente, desde muito cedo, fomos separados, que era outro relacionamento, depois do meu pai. E as minhas irmãs, a Marli, Celina e a Mara, elas são de outro relacionamento do meu pai com a Dona Aparecida, que tá ali hoje também, junto com ele ali, mas são separadas. Ai a minha irmã cuida dos dois. Então a gente teve um modo de vida muito difícil. Eu, por exemplo, eu fui criado de tio, de primo, na casa de um, na casa de outro, muito dificultoso e a gente separado, sempre separado, porque aí a minha mãe se “ajunta” com o Valdemar, e aí tem todo aquele distanciamento… Foram dois Valdemar, o Valdemar que era o pai do Nivaldo e do João e depois o Valdemar que é o Valdemar Xarica __________, então em todas essas coisas, a gente… por exemplo, conheci as minhas irmãs também nesse meio tempo aí depois de vinte anos, quase trinta anos que eu vim conhecer a Marli, eu vim conhecer a Celina, a Mara eu conheci muito… Bem recente, agora, mas demais, fomos criados separados e também não sei como que foi o modo de vida, eu sei porque eles me falam alguma coisa, quando o pai… porque assim, o pai abandonou, falou que deixou eles, e aí a mãe, a Dona Aparecida, teve que trabalhar pra sustentar eles. Passaram bastante dificuldade, bastante necessidade e muitas pessoas também ajudaram eles lá, e se tornaram as mulheres. Hoje estão todas também aqui na região, hoje tem filhos, tem netos aí, estão por aqui, E nós, quanto aqui, eu, o Valdir, o Antonisio, o Daram, Cacique Daram, a gente ficou aqui no meio dos nossos parentes, e a gente é criado aqui… Tio, primo, vó. Coitada da minha vó, foi uma mãe para mim, a gente viveu sempre aqui, não tivemos, assim, pai e nem a mãe ali na nossa educação, na nossa criação, mas tivemos a felicidade de estar ali na Aguaçu junto com os parentes, e a gente aprendeu muita coisa. A gente foi ensinado, não pelo pai, pela mãe, mas pelos xeramõi na casa de reza, e isso foi muito importante, essa criação junto com minha vó, no meio do nosso povo, isso foi, assim, me traz hoje boas lembranças, momento muito bom, apesar de as pessoas aqui serem muito sofridas, mas foi um momento feliz. Hoje a gente não tem mais os nossos xeramõi, sabe? Para aconselhar e nos orientar, como naquela época, a gente vê as coisas completamente diferentes. Mas assim, nós fomos criados, e agora de repente, depois de tantos anos ali, a gente se torna homem, casa, e aí sempre estamos na casa da minha mãe, do meu pai, nos aproximamos, tudo, mas a vida da gente num foi fácil. Também agradeço muito esse modo de vida que eu vivi, na casa de um, na casa de outro, aprendi muito, e em nenhum momento a gente é revoltado, não tem revolta, porque a comunidade, ela… naquela época o coletivo falava mais alto, porque ajudaram a nos criar por isso eu estou aqui. Então eu aprendi muito, o sistema de uma família, o sistema de outro, e a gente agregou tudo isso aí para trazer para a gente, quando a gente forma família, então é isso, um pouco disso que eu vou falar dos meus irmãos, e da gente, essa criação aí que não tivemos uma estrutura familiar, como se diz hoje, que é pai e mãe, mas sim uma estrutura da comunidade para nos criar e nos ensinar com todo… E aí hoje nós estamos aqui.
P/1 – Falando em criação, a gente pensa em ensinamentos, em educação. Eu gostaria que você pudesse também falar um pouco desse momento de criança, da infância, na antiga aldeia, como eram lá os ensinamentos, que tipo de conhecimentos com os mais velhos, com quem você conviveu, passam para vocês, que lembrança você tem desse período?
R – Então, esse período é muito importante, porque toda a noite, quase todas as noites, a gente sentava na beira do fogo, tinha uma cozinha lá, eu lembro como se fosse hoje, tinha aquela casa lá e uma cozinha separadinha, aquelas antigas. Naquele tempo também, muito engraçado, tinham as casas para gente lá, mas só que aquelas cinco casas lá e o resto ia casando. O Deguinha, finado Codlemir, o Augustinho, finado tio Ronaldo. Então ali as outras casas eram de sapê, só tinham aquelas cinco casas ali e três banheiros, e a gente não… e o rio Batalha passava ali acho que a duzentos metros, 150 metros, e a gente, às vezes, não ficava na casa, a gente saia da casa para pousar no rio, também não ia só uma família, ia todo mundo, as casas ficavam vazias, ia toda comunidade na beira do rio. E aí era muito gostoso, pescava, assava peixe, caçava tatu, e era muito divertido, nós pulávamos dos galhos da árvores, caíamos da árvore, brincávamos de cipó, pulávamos no rio e hoje eu vejo assim, que nós tínhamos tempo de frio, mas um frio para pousar na beira do rio só com fogueira, esquentava na beira do fogo, a pedra ficava até rosada, quente, e pulava no rio “pá”, a molecada toda pulava no rio. Pulava no rio a água quente, o frio estava lá fora, você pula na água e ela é morna, ai sai la de dentro do rio e ficava tremendo e ia na beira do fogo de novo, esquentar e pular no rio. E hoje se a gente for fazer isso com uma criança ou com qualquer um, eles falam que da choque térmico e fica doente, e a gente não, tinha essa resistência, eu acho que é o costume, a vivência da gente naquele tempo ali, então a gente não sentia, não ficávamos doentes. Aquilo trazia mais resistência para nós dentro da natureza, que era o modo de vida. Hoje é totalmente diferente, hoje nós temos ensinamento do médico que não pode, dá choque térmico, eu não sei o porquê as coisas foram se transformar dessa maneira, mas a gente, eu penso lá atrás, hoje eu também não consigo fazer isso com meu filho, com a minha neta, porque eu certamente vou matar eles, porque eles não estão acostumados com aquilo que eu fazia, que a gente fazia lá atrás, então era divertido, a gente, os meninos, eu, Claudino, finado Claudinei, quando moleques a gente ia caçar, pegava capivara com cachorro, fazia arte, vivia na beira do rio, andava descalço, no meio do sapê. Hoje eu não consigo andar mais, mas naquele tempo você ia esfregando o pé descalço no meio do sapê, porque é cheio de ferpa, e sabia andar. A hora que cutucava de um lado, virava o pé de um, de outro e não entrava o estrepe, andava no meio de queimada, rasgava a perna com colonial, aquelas ferpas lá, cortava as pernas e era muito divertido, muito divertido. Caçava passarinho, fazia mão de aqui, quebra cabeça, laço, arapuca, mão de aqui. Fazia de tudo, de tudo um pouco, então era muito divertido. Fora as brincadeiras, chutar espinho, a gente brincava de, tem aquele juá espinhudo assim, na beira do rio, quando aquele tempo não chovia, os xeramõi escolhiam a gente para ir lá buscar água para colocar no _________, trazia água, trazia peixe, e nós íamos brincando na beira do rio, tinha aqueles espinhos e a gente falava: “Quem tem coragem de chutar?” e cada um metia o pé naquele negócio e o espinho não entrava, ele para, impressionante. Tinha um jeito de bater nele para não entrar, então era uma brincadeira, nós íamos fazer esse pedido dos xeramõi brincando, a gente se divertia. Chegava no rio, pulava, brincava, depois voltamos com o vasilhame lá trazendo o pedido, e a gente também tinha o ensinamento dos xeramõi lá, fazia aquele cerco lá, dali não podia passar, porque ali também tinha os animais dos … tinha onça, tinha cavalo, tudo ali, os guardiões ali, então não poderia passar. A gente era ensinado, era educado por esse sistema e respeitava. À tarde os mais velhos falavam: “Não pode ficar subindo em árvore, não pode ficar andando por terreiro”, então a gente obedecia todos esses ensinamentos, a gente era educado dessa forma, respeitando a natureza, respeitando a hora, o momento. Quando falavam para gente não ir naquele lugar a gente não ia, já preparavam os xeramõi , já falavam: “Não, não é para ir lá, então aguarda que não é o momento”. Então a gente respeitava tudo isso aí, então esse momento de ensinamento de criança foi muito importante para nós e hoje a gente acha falta desses ensinamentos, hoje veio outro sistema de educação, que é a educação escolar, e nós tínhamos essa educação dentro da própria natureza, respeitar a natureza, o tempo, o dia, a noite. Tinha tudo ali, vamos dizer assim, repartido o que você devia fazer em cada horário, o horário que você podia brincar e o horário que você tinha que ficar quieto no seu lugar que não era o momento, então essa educação foi importante para nós, até por exemplo, quando vem chegando alguém ou quando o bicho tá vindo, temos passarinho que já avisa: “Opa, ta vindo alguma coisa aí ", um sinal no meio da mata, um estalo de madeira, sabíamos tudo, porque isso era ensinado, era prestado atenção, porque quando você anda no mato, você não vai ficar olhando para cima, primeiro você olha para baixo para olhar para cima, porque é perigoso. Eu falei pro meu filho esses dias, andando no trio aí, eu falei: “Meu filho, você nunca fica olhando direto para cima, você olha primeiro o seu trio onde você vai passar, depois você observa, porque se não você vai botar o pé, que é o perigo”. Então, primeiro analisar assim que a gente… então prestar atenção em tudo, até nos movimentos do mato, o movimento de ruído então a gente precisa prestar atenção em tudo. Isso foi ensinado para a gente, muito, assim, aprendia muito. E hoje nós temos a nossa educação, que a gente, na escola, no sistema, não quero dizer que é ruim, é mais necessário, mas essa diferença com esse conhecimento hoje da escola com o conhecimento tradicional, é essa que eu queria que “ajuntasse” para poder a gente ter essa educação diferenciada, e isso não é respeitado. Então esse modo de vida que eu estou falando de criança, um pouco do que eu to falando, esse, pra mim, foi fundamental, foi muito importante.
P/1 - É, só para… não tem problema ela ficar por aí tá, é até interessante a presença dela aí, mas você que resolve. Falando em educação, Anildo, eu gostaria que você, também pudesse falar a respeito do Anildo na escola, não essa escola dos xeramõi, mas a escola não indígena e seu tempo. Como foi o Anildo na escola, sua formação, até que tempo você estudou? Se pudesse contar um pouco dessa história, relacionado com escola e formação.
R – Então, eu na verdade a gente começou a estudar lá na Aldeia Kopenoti, saída do [rio] Batalha, naquela época, e ia a pé lá. Mas, assim, a gente não tinha aquela aptidão, a gente gostava mesmo era de brincar, então a gente ia pra escola brincando, eu e o finado Claudinei, primo, ia brincando, o Claudino… ia tacando pedra em marimbondo, ia. Aí quando chegava lá em cima, tem um topo lá que dava para enxergar a escola e via a molecada, tinha aquele parque, tinha aquele negócio, assim, “puuum” batia, aí que a gente acordava e saia correndo “paah” até chegar na escola. Então a gente estudou pouco, eu estudei pouco, muito pouco, desde cedo a gente também já, quando os parentes começaram a própria SPI, depois a FUNAI introduziu o trabalho de plantio dentro das comunidades, aí as crianças também ajudavam, ia alí também tá junto. Então a escola, para mim, no caso, foi pouco. Eu estudava um pouco, não ia mais, mas assim fui levando. Aí cheguei lá na terceira série ali, naquela época, e paramos por ali, não avançava. Aí tinha que ajudar o trabalho, e também não me interessava muito na questão da escola. Para a gente, escola… dava aquela tristeza de ir pra escola, só quando chegava lá e encontrava os amigos, aí sim, mas pra sair de casa para ir para a escola, não tinha muito aquela vontade de tá indo para escola. Ai essa terceira série a gente parou por aí. Depois eu fui trabalhar nas fazendas também, nos arredores aqui, nos cafezais, quebrar milho, fazer essas coisas aí para ajudar na casa que já… Aí que eu digo que começou a se transformar, quando o SPI e a FUNAI introduzem essa plantação, que não era nem dos parentes, era para fundo. Para mim, esses falaram que era o fundo para as comunidades, mas esse recurso nunca retornou para as comunidades, muito menos para quem plantou. Então, foram situações… Isso me trazia assim, não é… tipo uma revolta mesmo, porque essa coisa toda que aconteceu aí… então, e aí começa a mudança de hábito até mesmo, porque eles tratavam a gente de vagabundo, preguiçoso, porque… forçando uma situação que não era o sistema nosso, então estavam introduzindo um sistema agrícola, de plantar, em grande escala aqui para nós, não era mais aquele cultivar milho no terreiro, abóbora no terreiro, já era alqueire, dez, vinte alqueires, aí os parentes começaram a trabalhar de dia até a noite, debulhando milho, carregando saco, colocando aquele clube, armazenando aquele clube que tem no Kopenoti. A gente [quando] criança acompanhou tudo isso aí. Então, aí que eu falo, aí então a gente começou a trabalhar no outro sistema já. Quando a gente começa a preocupar com a educação, eu já tava já com dezoito ou dezessete anos, aí eu fui fazer o mobral, porque era aquela coisa, eu não tinha a estrutura da família pai e mãe, então eu tinha que me virar desde cedo, então quem tem estrutura de pai e mãe ia pra escola, tinha condições de manter, de mandar ir pra escola estudar. Eu já não tinha, ficava pra lá e pra cá, casa de um outro, mas agradeço por isso. Então comecei a fazer o mobral, aí comecei a fazer o mobral, parei na quinta série, depois voltei, fui pra sexta série, aí na sexta eu parei de novo, aí com trinta e… Acho que trinta e poucos anos, com quarenta anos ali, quarenta, 41 eu vou fazer o CESUBE aqui em Bauru, fiz o CESUBE, parei na sexta, aí terminei o primeiro, aí fui para o segundo e terminei o terceiro aqui em Bauru no CESUBE, depois eu comecei a fazer Assistência Social lá na Anhanguera, aí também acabei parando porque também do movimento, a gente é liderança, então você acaba se preocupando bastante com o movimento, com essas questões de saúde, educação, território e tantas outras pautas aí, PL, PEC 215, Marco Temporal, tudo isso aí vem preocupando e a gente enquanto liderança vai… Então, deixa de lado a sua formação, eu costumo dizer que a liderança né, mas ela se sacrifica para dar espaço para os novos se formarem e nos ajudar futuramente.
P/1 – É isso mesmo. Anildo, você falou sobre trabalho, que você adiou os estudos por conta que começou cedo trabalhando na roça, aí ajudando os parentes. Que outros trabalhos você teve também durante a sua jornada até hoje?
R – Trabalho de função, você diz, né?
P/1 – Isso. Função e outros, assim, é se for… Eu sei que você foi professor, então esses outros tipos de trabalho, além de trabalhar na roça.
R – Então, depois de toda essa, da roça, a gente começou cedo a acompanhar os mais velhos nas reuniões, cedo, cedo, cedo. Com dezesseis anos, eu já estava participando de reuniões importantes, reuniões importantes e aprendendo ali, com Clademir, Alpino, Natiloco, finado Calair, que foi meu cacique lá embaixo no Batalha, não era nem aldeia ___________. Então acompanhando, essas discussões E fui assim, dando, tendo e aprendendo também, e quando chega, passa essa fase da roça, já muito novo também na liderança e começo a me destacar um pouco no meio dos parentes mais velhos, então aí os parentes mais velhos, que é isso que a gente também pretende, coitado já á um pouco cansado, aí começa a jogar as responsabilidades para os jovens. Eu, desde cedo, já gostava de caminhar junto, então fui indo. A primeira função que eu tive dentro da comunidade, importante, foi ser presidente da associação AFILI, Associação Comunitária Nimuendaju. Então fui o primeiro presente de uma associação dentro do nosso povo aqui. Então, e assim, a própria FUNAI também, quando ela joga essa responsabilidade de captação de recursos, e sai tudo por causa da FUNAI e tem que fazer a associação, tal. E também não trouxe capacitação, mas a gente jovem pegou até mesmo sem saber o que é isso. Hoje a gente sabe como é que funciona, como é que deve ser encaminhado, mas naquele tempo, não. E não tivemos orientação, assim, da FUNAI, nada, nem uma capacitação, nada. E nós jovens assumimos essa responsabilidade e até que fomos bem, até que fiz bem até, várias situações, inclusive nessa época, em 1992 ou noventa, foi em noventa, acho que começa ai, uma parceria com a USP, então a gente junto com o Mário que tava na FUNAI, o prefeito de Avaí, e nós, enquanto associação da comunidade, que eram duas associações, Alice era presidente da Aldeia Kopenoti, e eu o presidente do Nimuendaju, assinamos esse convênio, essa parceria com a USP, que dura até hoje. E aí a gente teve vários formados, então aí começa, tão novo já participando, ai já tivemos a participação dentro da educação, primeiro seminário da educação indigena, lá em Cajamar, com as demais liderança, várias lideranças do estado todo. Então, desde cedo, a gente começa a avançar, e eu acabo saindo da associação para atender, fazer um trabalho… que a saúde era da FUNAI. Quando ela passa para FMS [Fundação Municipal de Saúde] e depois para SUCAM [Superintendência de Campanhas de Saúde Pública], depois retorna a FUNAI, aí a gente tem o espaço. Aquele tempo não era remunerado também, de agente de saúde. Começou por aí, então agente de saúde, voluntário, e aí por diante, quando chega, passa lá para a FUNASA [Fundação Nacional de Saúde]. Então foi feito todo um trabalho, participei também de toda essa transição da FUNAI, SESAI [Secretaria Especial de Saúde Indígena], FMS, todos esse processo aí a gente vem acompanhando, por estar ali sempre no meio da liderança, e a gente acabou assumindo essa essa responsabilidade de acompanhar e fazer essa discussão, até mesmo, às vezes, sem entender, porque a primeira vez que eu fui em uma conferência, eu conto aqui que eu falo para minha esposa, para os meus filhos, eu falo para as pessoas. Eu vi as pessoas levantarem a mão, eu vi a maioria levantar a mão, as pessoas falavam, falavam e eu ficava olhando, levantou a mão, mas chegou um tempo que eu fui escutando, fui ouvindo e fui tendo posicionamento, ai eu tive a capacidade de fazer a diferença daquilo que eu achava que era certo ou não. Aí eu comecei também a falar lá na frente, não só levantar a mão, comecei a questionar, quando um ia falar lá na frente comecei a questionar, a debater, aí comecei a entender o que era uma conferência e a responsabilidade da gente ali naquele momento, desde cedo. Então eu tive esse processo de formação também para estar aí hoje enquanto liderança. Então esse processo foi muito importante, eu sempre falo pro jovem: “Não tenha vergonha, posicione”. Porque assim, a gente fica muito, muito acanhado quando você tá no meio da multidão, mas você tem alguma coisa para falar, você não fala por pensar que é errado, mesmo que seja errado, fale, que alguém vai corrigir, alguém vai te ajudar, e você vai entender. Então, passamos por todo esse processo. Aí quando chega a FUNASA tem um espaço aí de contratação de agente de saúde, agente de saneamento, enfermeiro, enfermeira, então aí nós, indígenas também, começamos a ocupar, a gente já trabalhava voluntariamente, automaticamente a gente já pegou, na época o Rondam contratou a gente para estar trabalhando na área, então, primeiro fui agente de saúde, depois eu passei para ser do saneamento, depois eu fiz o curso de enfermagem, auxiliar na época, de auxiliar de enfermagem eu passei para auxiliar de enfermagem. Aí em 2009, acho que foi em 2009, acho... 2007, 2009, 2008, nesse meio né, a gente teve aí um processo de luta para tá trocando a direção da FUNAI, houve aí toda uma negociação, hoje a coordenação está lá em Bauru, e a gente, FUNAI… acabei assumindo aí a Coordenação Técnica da FUNAI, CTL, aliás, da FUNAI, aí em 2010. Aí em 2014, 2013, 2014 ali, entre o meio, eu acabo saindo da FUNAI também e retornando à aldeia. E aí como eu tava trabalhando… em 2003 eu tava trabalhando na saúde, é que eu pulei a etapa aí, eu fiz um curso e eu voltei para aldeia em 2003 para trabalhar como auxiliar, ai de auxiliar a diretora, que era minha esposa, me convidou para trabalhar na escola, aí eu não, assim, na verdade, eu não tenho cara de professor, eu nunca me vi como professor, mas acabei aceitando, eu falei: “Não, para colaborar”. Inclusive eu tenho muito orgulho da minha passagem enquanto professor, porque eu trabalhei ali com a Ivone, hoje ela se formou, passou ali por minha mão, ensinei, fiz esse processo, tenho muito orgulho de ser o professor dela, ela foi a USC ai ta fazendo a pós graduação, então tem outros alunos que passaram por mim e hoje estão aí na faculdade e isso é muito importante. Então dali acabo assumindo a FUNAI, depois retorno e retomo também a educação, retorno a educação de novo, ai como eu sou assim, muito ligado ao movimento, eu acabo também desligando da educação, porque eu não podia ver um movimento que queria estar lá, era saúde em Curitiba, eu queria tá lá, tinha algum movimento em Brasília, eu queria estar lá, então a educação ali, a escola, tava me prendendo, eu não me via ali, eu me via no movimento, ali junto com os parentes, ali para poder fazer o embate para melhoria das comunidades, então é isso, um pouco aí das funções aí. E depois eu acabo também, não na função de trabalho, mas acabo assumindo o CPISP [Comissão Pró-Índio de São Paulo], aí também acabo saindo da educação e assumindo o movimento de fato, aí eu sou o presidente do polo aqui de Bauru, presidente distrital, representando a região. Ai o CPISP eu fui presidente, agora vice-presidente, aí eu vou para coordenação da APIB, e quando o Daram sai da ARPINSudeste [Articulação dos Povos Indígenas da região Sudeste], aí me colocam como Coordenador Geral da ARPINSudeste, que é outra coisa. E agora eu estou olhando agora pro município, assessor das comunidades indígenas nos municípios, então tenho essas funções ainda.
P/1 – Muito bem, eu ia chegar nessa tua representatividade no Movimento Indígena e perguntar como está sendo a sua experiência, sendo um representante a nível local, regional e agora a nível nacional. Como é você atuando nesses movimentos, nessas principais instâncias hoje do Movimento Indígena? Agora essa sua visão um pouco mais geral, você contando um pouco dessa, como você diz: “Eu sou do CPSPI, sou da APIB, da ARPINSudeste”, se você pudesse contar um pouco dessa tua representatividade.
R – Então… primeiro, eu quero aqui fazer uma introdução dessa experiência, como eu disse muito cedo, e a gente acabou assumindo várias representatividades das comunidades, as pessoas veem que você pode estar ali representando, mas assim, hoje, na minha trajetória, acho que quase 35 anos de trajetória ai ou mais de trajetória, de liderança, eu vejo essa passagem de bastão, por conta assim, das caminhadas. Por que eu falo isso? Porque nós, lideranças, no caso, começar cedo, você não tem tempo para sua família, para o seus filhos, você não vê crescer quase direto, não fica tempo com a família, o tempo é pouco, corrido. Hoje tenho neta, tenho três netas hoje, e assim, é pouco que a gente fica perto da nossa família. Ainda quando eu digo que a gente se sacrifica para o jovem, para dar passagem para o jovem se capacitar, mas eu pretendo ainda passar o bastão e dar um tempo para mim, para fazer alguma coisa aí. Eu quero ser doutor ainda, mas assim, eu vejo, o movimento é muito, para nós, liderança, é bem gratificante, mas por outro lado, bem pesado, que é uma responsabilidade, um pensamento diferente. E a gente teve problema em vários momentos, desde quando compondo a liderança a gente vem enfrentando para criar espaço na educação, difícil, até hoje a gente não conseguiu ainda chegar naquilo que a gente acha ideal, estamos no meio do caminho, aí dando, digamos assim, alguns passos muito pequenos. E a gente tem uma luta muito grande ainda, a nível estadual, aqui a gente sabe, você teve por aqui, você sabe como está em andamento sempre enquadro dentro do sistema estadual, a gente não enquadra no sistema ainda, o nosso sistema não está enquadrado junto com o sistema de estado, então nosso território do estado de São Paulo sobre parques ai junto com o governo já houve conflito e agora não sabemos como vai proceder essa questão dos territórios sobrepostos ao parque, porque tem várias empresas querendo, governo querendo terceirizar os parques, então a situação é complicada, nosso parente, nessa atual conjuntura a nível estadual. Para quem não sabe, nós temos também a Mata Atlântica, nós temos os desmatamentos, grandes empreendedores, até mineiração a gente tem aqui no estado também, a gente sabe disso, mas nessa representações elas trazem ai essa, enquanto liderança, essa discussão, e muitos parentes que, às vezes não acompanham, não conseguem entender essa nossa luta enquanto representante, trazendo isso para nível nacional, ela vem mais forte, que são assassinatos, estupro, invação, mineiração, poluição desmatamento, então que vem ai, ataques de retirada de direito são as PEC, são as PL, os PL, tendo muita coisa, então e a gente passou esses últimos, não só esses últimos quatro anos, mas os anos anteriores também, que nós tivemos também no próprio governo do PT, na época essa mudança ai dessa transformação da FUNAI criar coordenação e criar CPL, e tira os postos de dentro da base, onde foi reestruturação da FUNAI, teve também toda essa complicação. Então, por isso que eu digo que a luta nossa é constante, desde a… eu sempre digo, desde a invasão, então a gente tem essa luta, essa resistência e até o momento. E nesses quatro anos a gente teve um dos maiores conflitos, isso assim, visualmente assim, o próprio, diretamente, não foi nem indiretamente, diretamente o governo atacando o nosso povo, o nosso território, o nosso direito. Ataques por PL, ataques por palavras, discriminação, querendo introduzier a integração total para que tire toda a nossa residência, então houve uma luta desde o primeiro dia de governo. E já tiveram vários direitos retirados, inclusive representações, CNPI, e todos, de todos os modos. Então ai vem com as PL e também várias formas de ataque para nós enquanto indigena, e a gente teve esse embate durante esses quatro anos, um embate que não foi fácil, perdemos muitas vidas, inclusive a Covid levou bastante das nossas lideranças de base que estavam nessa batalha, vários parentes aí, hoje já não estão. A gente enfrentou tanto o governo, tanto a pandemia, aí nesse embate com o governo, tivemos nessa resistência mesmo de fato colocada, porque nenhum movimento social teve essa coragem de estar indo para Brasília, fazendo movimento, acampando, como o nosso povo teve, então foi um momento assim, difícil, mas gratificante, porque ali a gente viu a nossa união entre os povos originários do Brasil todo. As organizações, as lideranças, os caciques, os jovens, como você lá fez esse cobertura, viu bem esse nosso embate, então, agora, nesse processo de transição do novo governo, a gente fez… eu queria também deixar registrado, há muita confusão na questão da APIB [Articulação dos Povos Indígenas] das organizações, a APIB é uma organização, uma articulação dos povos indígenas do Brasil, no qual faço parte da Coordenação Executiva, indicado pela ARPINSudeste, ela nunca foi de política partidária, mas sim brigando pelo direito, para que possa ser respeitado o nosso direito, mas nesse governo nós só temos uma deputada, Dra Joenia [Wapichana], que estava lá e fez um embate muito importante para nós, defendeu nossa causa. E a APIB naquele momento achou necessário, se fez necessário que criasse um projeto onde a gente pudesse lançar, toda região, os candidatos a deputado e formar a bancada do cocar. A gente teve esse projeto, porque a APIB é apartidária, então tivemos que nos posicionar enquanto a APIB, enquanto organização ARPINSudeste, enquanto APIB, para posicionar politicamente e apoiar o governo Lula, porque a gente não achou outra saída, a gente teve que né, houve a necessidade de fazer esse posicionamento. A gente fez e nós elegemos duas deputadas do movimento e uma deputada do contexto urbano que tá chegando agora também na comunidade Terena, a Juliana Cardoso, então temos essas três indígenas. Sônia [Guajajara] acaba assumindo o Ministério dos Povos Originários. Então, assim, foi necessidade, deixar claro que foi necessidade mesmo, por conta da gente ter somente a Joenia lá para fazer esse embate dentro do congresso, e ela sofreu muito ataque, mas foi uma guerreira, uma guerreira e permaneceu, está de pé, está firme, tá aí com a gente, uma grande guerreira. Então deixando claro que a APIB continua no movimento, enquanto movimento, o foco é proteção do nosso território, direito, demarcação, saúde e estamos nesse foco, apesar dessa nossa transição, nesses espaços criados, que hoje esses espaços, foram propostos ai pelo Lula, ele tá assumindo esses compromissos e a gente vê também que enquanto movimento, todo esse espaço, mas que temos também embates importantes, aquele que eu digo sempre no estado, nós temos vários territórios, apesar que nós termos aí um planejamento de demarcação de… e terras, mas isso são poucos territórios, que existem muitos territórios, muitos parentes que estão aí em beira de estrada, na retomada, e precisam do atendimento da SESAI, precisa da proteção das lideranças que estão sendo assassinadas. Tivemos vários assassinatos de jovens, de lideranças, então essa é uma preocupação que nossa luta não acaba aqui, a gente ainda não chegou na nossa terra sem males, enquanto estivemos aqui a gente vai ter que tá sempre lutando, apesar de ter diálogo com o governo, de ter todo esse espaço, mas acreditamos que a nossa luta não para por aqui, que todos aqueles direitos já construídos, já garantidos, não foram aí retirados, precisamos “ajuntar” os cacos, tirar a sujeira para reconstruir. Para destruir é fácil, para reconstruir novamente a gente terá uma batalha muito grande pela frente, por isso a gente pede um foco pro parente, e continuando unido, apesar do espaço ter aí para nós enquanto indígenas, mas sabemos, devemos estar unidos, de mão dadas, ninguém solta a mão de ninguém, junto nós somos mais fortes, então precisamos continuar, porque esses quatro anos não será mil maravilhas, mas teremos aí um fôlego, não sabemos o que virá pela frente, então nós temos que nos preparar, também, após quatro anos, e também o golpe que veio aí na semana retrasada né, e é muito triste aquilo lá. E observamos que nós, enquanto lutamos pelos nossos direitos, a gente leva bala de borracha, gás né, tudo quanto é tipo de agressão, e quando a gente vê aquilo, tiveram a passagem livre para baderna e envergonhar o país. Nós não, queremos apenas garantir os nossos direitos e não quebramos nada, a gente só queria ter diálogo com o governo e buscar o direito, garantir o direito. Então, nós, enquanto liderança, eu vejo desse lado, então me preocupo muito das lideranças acharem que tá resolvido a situação, ainda não, a gente tem muita coisa para fazer, tem muita coisa para avançar, sabemos que o congresso não é favorável ao governo, tanto o congresso quanto o senado, mas vimos que muito aí estão debandando, mas até que ponto a gente não sabe que vai chegar essas negociações todas políticas que a gente sabe que existe, para você poder tá ocupando aí o poder executivo que é a presidência. Então a gente tem que tá bastante ciente que teremos muitas batalhas, mas nesse governo teremos diálogo, mas não sabemos o que virá pela frente.
P/1 – É isso mesmo, Anildo. Voltando no outro tema que você colocou aí na luta, que foi a luta durante a pandemia, eu gostaria que você pudesse também falar como é a luta pela vida durante todo esse tempo de pandemia, nós estamos ainda na pandemia. O que foi feito para tentar amenizar, para diminuir o impacto? Se você pudesse contar esse enfrentamento, como foi o enfrentamento contra a Covid-19? Você teve perdas na família, se alguém chegou a falecer ou não na comunidade, se você pudesse contar um pouco desse enfrentamento e os impactos da pandemia.
R – Então, esse impacto ai da pandemia na comunidade foi um momento bastante complicado, porque era uma doença, aí nesse pandemia, desconhecida, totalmente do planeta todo, então… e o momento foi difícil para nós, comunidade indígena, enquanto movimento buscar a vacina. Por conta do próprio estudo científico, das comunidades indígenas serem mais vulneráveis, então a gente consegue a vacina também com luta do próprio conselho de saúde, a liderança, os movimentos, porque muita gente não sabe, quando você consegue uma vacina na base, ou outra situação como foi na pandemia, de cestas básicas que foram feitas, tem outro trabalho dos nossos jurídicos, e outro trabalho da ARPINSudeste, muita gente não sabe isso, às vezes acha que é um trabalho feito atráves de liderança local, mas é um trabalho coletivo, é da base, do meio, até lá em cima, então é um trabalho feito coletivamente, cada um da sua forma. A base briga com o município, e o movimento briga no estado, no município e briga a nível nacional, inclusive acionando o STF. Então, a gente consegue as vacinas aí, atráves da justiça, do corpo jurídico, a onde começa a aparecer as vacinas para priorizar as comunidades indígenas, então houve trabalho intenso do setor jurídico, que a gente acompanhou na APIB, muitos encaminhamentos de petição, judicialização, inclusive para os nossos parentes que vivem em contexto urbano, e nós, aqui na região, a gente fez essa judicialização através do ministério público, a gente conseguiu atingir alguns parentes, não conseguimos atingir 100%, mas em alguma região, por exemplo a capital, Mogi Mirim, Alto do Tietê, Bauru, e decepcionante foi aqui Avaí, que a gente não conseguiu, o nosso município, onde a gente faz parte, a onde é munícipio e os parentes moram aí, e a gente ouviu um não né, foi negada a vacina, esperou como todo mundo esperou. Então, tem certas situações, que trazem assim, tristeza para gente, mesmo com seu direito garantido às pessoas negam isso, isso não só pelo município, mas assim, negado pelo próprio governo, que é responsável pela liberação do recurso para a saúde para fazer esses atendimentos. Então, foi negado, até pelo presidente, a nível nacional, não foi só para indígenas, foi para todos. Houve todo aquele desaforo imitando as pessoas, dando risada, então houve tanta coisa, e nesse sentido a própria SESAI, eu acho que ela, meu ponto de vista enquanto liderança, ela se distanciou da equipe que trabalha dentro das comunidades e nós chegamos num momento aqui, eu falo da nossa região, chegamos em um momento em que a gente não tinha um álcool em gel dentro do polo básico, não tinha um para se enxugar a mão, para fazer a higiene básica e para poder prevenir, para não contagiar os próprios EPIs dos motoristas, das enfermeiras, a falta de tudo. Não teve, apesar de ser uma pandemia desconhecida para todos, mas a gente tinha o Ministério da Saúde, tinha a SESAI, tinha o DICEI, onde existe um coordenador, onde existe uma equipe que poderia tá orientando melhor as equipes que atendem os polos básicos, que atendem dentro da aldeia. Então houve, da própria comunidade das lideranças, fazer essas barreiras sanitárias, partiu da comunidade. Eu fiquei muito indignado quando eu escutei o Coordenador Regional da FUNAI, eu fiquei muito triste, dizendo que a responsabilidade seria do cacique, enquanto eu achava, achava não, e acho, que a responsabilidade é da SESAI, da equipe, do coordenador, para achar forma, capacitar, orientar, para poder combater. Mas, deixam as comunidades fazerem essa proteção, essa barreira sanitária por si só, tanto a FUNAI tirou o corpo fora, jogando a responsabilidade para os caciques, então foi um momento assim, muito difícil, nessa questão da pandemia, muito triste. Jogar a responsabilidade em quem não é, a responsabilidade da saúde não é do cacique, é da própria SESAI, e a FUNAI é um órgão fiscalizador, porque ela sai da FUNAI para a SESAI, não quer dizer que a FUNAI não tem nada a ver, ela tem tudo a ver com isso, ajudar a gente lá a fiscalizar e também responsabilizar para atendimento, para capacitar. Eu fico indignado até hoje, pelo menos na nossa região, no nosso… eu fico indignado até hoje, as pessoas não priorizam esse tipo de situação. Muitas coisas, às vezes acontecem por conta de ter uma política, não política pública de atendimento, mas uma política de manipulação antiga, que eu detesto, e eu vi acontecer isso com meus mais antigos, com meus velhinhos, que já hoje não estão… Eu vi a FUNAI fazer, não vi a SPI, mas contaram muita coisa para gente, então isso me entristece. E a gente começa a trabalhar com a ARPINSudeste judicializando, e depois a gente começa a distribuição através da APIB, a arrecadação de alimento, de recurso, aliás que veio para a APIB e a APIB distribuía para as regionais fazerem essa entrega de cesta para as comunidades, tanto a ARPINSudeste no caso, ela entregou para o contexto aldeia e o contexto urbano, naquilo que a gente conseguiu abranger ali e conectar, como que chama? Mapear naquele momento, então a gente fez aqui São Paulo, Rio de Janeiro, a onde a gente tinha contato a gente foi distribuindo. É pouco sim, mas a gente fez a nossa parte enquanto movimento, enquanto a APIB né, organizado junto com as bases aqui, demos a mão um pro outro para a gente poder passar. Tiveram perdas das nossas regiões aqui, lideranças importantes no litoral, aqui na aldeia, pessoas importantes, pessoas da comunidade, tivemos bastante perda, assim, e grandes, do ponto de vista, porque a gente perde não só a vida, perde todo um membro da comunidade, que é ali, tão amado por todos, as vezes por falta de cuidado, de orientação, acaba perdendo a vida aí. O atraso da vacina também trouxe, não só para nós indígenas, mas para todos, então houve essa situação de embate também com o coordenador regional da nossa região, mas a gente… inclusive não queriam nem dar os dados de contágio, os números para a gente tá divulgando. Os funcionários da SESAI foram obrigados a não dar essas informações para nós, enquanto organização, para a gente estar divulgando. Então, foi um processo difícil a pandemia, não só quanto governo, mas os próprios coordenadores, a própria SESAI, os secretários, incluindo todos aí. Agora, as nossas equipes foram guerreiras, fez a ponto, e a gente até que teve pouco contágio na nossa região aqui no nosso polo básico Bauru, mas as demais regiões foram bastante afetadas.
P/1 – Antes de eu partir aqui para as perguntas conclusivas, eu quero voltar um pouquinho ainda, perguntar se você é casado, tem filhos, quem são eles? Se você pudesse contar um pouco dessa parte da…
R – Então eu, na primeira vez casei com a Jacira, eu tive um filho que é o Anderson, e depois eu peguei a Aline, a Lili que é acostumado falar, desde oito dias de nascida eu peguei, a minha sobrinha, e criei ela, ela é minha filha mesmo, eu trato como minha filha, eu que criei, peguei nos braços, eu e a Jacira. Logo após a gente se separar da Jacira a gente né, aí eu não casei ainda, pretendo casar ainda, mas estamos juntos com a Edel aí mais de vinte anos já, né. Então aí eu tenho o Ícaro, Ícaro Cornélio Sebastião Lulu e a Itaúna Naua Sebastião Lulu, desse novo relacionamento com a Edeldrudes, essa união estável, que já dura muito tempo. Então daí eu tenho… o Anderson se casou também com a parente Terena ali do Cássio e também lá tenho uma neta, tenho uma neta que é a Gabriele. E vindo pra cá para casa eu tenho duas netas, que é a Inês, que tava aqui comigo, e tenho outra pequenininha agora, que acho que tem, meu Deus, acho que tem um mês e pouco, quase dois meses, a Inauane, que tá aqui comigo. Então essa é a família que nesse momento tá comigo. E a minha mãe está lá pro Vale do Ribeira, e o Darã tá pra Brasília aí, mas a aldeia é Itaporã ali, então estamos todos meio separados, eu to aqui no Tereguá, depois de sair do União da Ajuda, vim para o Tereguá e permaneço aqui, na região com a família da minha esposa, com cunhado, com minha sogra, e to por aqui até não sei quando, mas eu pretendo ficar por aqui mesmo.
P/1 – É, bom, depois de você ter contato toda essa trajetória das suas origens, da luta, do movimento. Então você tá dizendo que tá por aí ainda. Eu gostaria de te perguntar quais são as coisas mais importantes para você hoje, e também quais seus sonhos, e qual legado você quer deixar?
R – Para mim, o mais importante para mim seria, hoje, a minha família, minha família aqui, os meus netos, e assim eu vejo que eu dediquei esses 35 anos na luta pelo nosso povo, representando, sempre aí acompanhando, então… e assim, eu deixei de ficar um pouco com eles. Então o mais importante agora, para mim, é tá fazendo todo esse trabalho, e essa expectativa de vida da gente agora, depois dos cinquenta anos não é muito longa, então é de ficar um pouco com eles, então… O meu desejo assim, de tá junto mesmo é a família, o mais importante nesse momento, nessa expectativa pouca de vida que a gente tem é ficar próximo da família. Quanto ao sonho né, o meu sonho é de tá concluindo todo esse trabalho, enquanto liderança, e sempre to falando com o jovem, tentando puxar o jovem para essa responsabilidade, de tá aí assumindo, dando continuidade a luta, e passar, assim, deixar essa luta de forma, com bastante responsabilidade, e ver o jovem se engajar nisso, nessa luta. Hoje, eu creio que está muito mais preparado que a gente, com conhecimento técnico, com visão de duas partes, tanto do tradicional, do espiritual e agora tecnicamente eu eu acho o jovem tá preparado. O meu sonho é deixar que isso vá para dar essa continuidade, que eu possa ali, ver o jovem fazendo esse embate, e garantindo assim, continuando e garantindo o direito, e o bem estar das comunidades. Aí eu quero terra sem mais, contente, feliz.
P/1 – É, muito bem. Anildo, só para a gente fechar, última pergunta, como foi contar a sua história hoje?
R – Olha, contar minha história, foi, assim, trouxe muita emoção, passou um filme muito grande e acabei esquecendo muita coisa, mas deu para contar um pouco, fiquei bastante emocionado lembrando, assim. Ao mesmo tempo traz bastante alegria e saudade, saudade, saudade… Muita saudade, mas estamos aqui firme.
P/1 – Anildo, então eu compartilho com você toda essa luta, dessa visão que você tem. E essa história que você trouxe hoje, ela vai ser muito rica para as gerações atuais, para quem não tem conhecimento dessa parte, mesmo que você não tenha contado tudo, porque levaria muitos dias, muito tempo, mas já vai servir para essas gerações atuais e futuras gerações, para que outros possam… Tá, eu vou deixar você falar.
R – É, eu poderia, eu lembrei uma coisa importante que eu poderia deixar registrado, eu acho que isso é importante mesmo, tá, então, porque assim, falando da minha avó, avó Mariquinha. Hoje, eu analisando todo esse processo aí, que eu contei lá atrás, mas eu esqueci essa parte, hoje nós temos o grupo Nimuendaju, em Nhandewa, Nimuendaju, mas a finada minha avó que trouxe essa origem, fortalecendo toda a … em Nhandewa, porque foram as filhas da Mariquinha né… Que são hoje, por isso que são meus primos, então são meus primos legítimos ali, porque ela tem esse papel importante. Por que? Porque ela ficou sozinha, quando ela chegou aqui, ela ficou sozinha, ela veio com os parentes, pai, mãe, tio, só que no meio desse processo todo, quando, naquela época do FTI, ditadura, o que acontece nessa época? Eles acabam falando que vão transferir a família dela e ela fica sozinha, ela dizia para nós: “Ó, vocês são minha família, só vocês”. E só os netos dela, que ela falava, e nesse sentido. Conversa aqui, conversa lá, e eu fiquei sabendo do, não sei se vocês conheceram o Zé, o sogro do Tião, naquela época ele trabalhava também, naquela época na sede lá, ele contou uma história muito triste, quando eles falaram que iriam transferir, quando na verdade eles assassinaram todos os parentes da minha avó, irmão, pai, tio, ali onde a Alida mora, e falaram que jogaram eles ali, e enterraram eles por ali, então essa parte eu queria deixar registrada. Eles não foram transferidos, se eles tivessem sido transferidos eles teriam voltado, a gente teria vestígios da família da minha avó, então a gente não acha esse vestígio, então eles foram assassinados aqui na região, jogados e enterrados. Então, eu queria deixar isso registrado, e essa é a importância da figura da Maria Laura da Silva, para fortalecimento da Nimuendaju hoje, então é isso, isso é importante.
[Fim da Entrevista]
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