Programa Conte a Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Hélcio Beuclair
Entrevistado por Bruna Oliveira
São Paulo, 22/08/2023
Entrevista n.°: PCSH_HV1409
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Hélcio, eu queria que você primeiro dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Eu sou itamarajuense, nasci na cidade de Itamaraju, no estado da Bahia, em abril de 1985, dia 08. Meu nome é Hélcio de Souza Beuclair.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – O meu pai se chama Hélcio Alves Beuclair e minha mãe se chama Simaria Rocha de Souza Beuclair.
P/1 – E como eles se conheceram, você sabe?
R – Década de 1970, paz e amor, a Bahia é um estado muito efervescente, é um estado muito festivo, e foi um amor de São João, eles se conheceram naquela época do São João. Eu tenho pouco registro, mas o que eu sei é que eles estudaram na mesma escola, e que eu estudei inclusive, no Ensino Médio, no final, que é o Colégio Estadual Inácio Costa Filho, primeiro e segundo grau. Então, eles se conheceram naquele lance de rede de amigos, na época, e viajaram, curtiram juntos, com os amigos, e eu surgi de uma dessas brincadeiras.
P/1 – E o que eles faziam?
R – O meu pai é filho do já falecido senhor Luiz Alves Beuclair e da dona Jovina de Souza Lima Beuclair. O meu avô é filho, já falecido, era filho do meu bisavô Nicolau Alves Beuclair, e o Nicolau, era filho de Maria Cachoeira que era uma indigena da região, Pataxó, que foi ‘tomada’ por Lui Alves Beauclair, um juiz francês que atuava na comarca da região. Minha cidade ainda não existia como cidade, emancipada, era um distrito do Prado, se chamava ainda Vila do Escondido, então eles vieram da região ali. Minha avó Jovina veio da região de Minas Gerais, uma família de pretos e portugueses, e da parte de meu avô, seu Luiz Caboclo, o vô Luiz, veio dessa coisa insana que a história do Brasil, infelizmente,...
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Entrevista de Hélcio Beuclair
Entrevistado por Bruna Oliveira
São Paulo, 22/08/2023
Entrevista n.°: PCSH_HV1409
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Hélcio, eu queria que você primeiro dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Eu sou itamarajuense, nasci na cidade de Itamaraju, no estado da Bahia, em abril de 1985, dia 08. Meu nome é Hélcio de Souza Beuclair.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – O meu pai se chama Hélcio Alves Beuclair e minha mãe se chama Simaria Rocha de Souza Beuclair.
P/1 – E como eles se conheceram, você sabe?
R – Década de 1970, paz e amor, a Bahia é um estado muito efervescente, é um estado muito festivo, e foi um amor de São João, eles se conheceram naquela época do São João. Eu tenho pouco registro, mas o que eu sei é que eles estudaram na mesma escola, e que eu estudei inclusive, no Ensino Médio, no final, que é o Colégio Estadual Inácio Costa Filho, primeiro e segundo grau. Então, eles se conheceram naquele lance de rede de amigos, na época, e viajaram, curtiram juntos, com os amigos, e eu surgi de uma dessas brincadeiras.
P/1 – E o que eles faziam?
R – O meu pai é filho do já falecido senhor Luiz Alves Beuclair e da dona Jovina de Souza Lima Beuclair. O meu avô é filho, já falecido, era filho do meu bisavô Nicolau Alves Beuclair, e o Nicolau, era filho de Maria Cachoeira que era uma indigena da região, Pataxó, que foi ‘tomada’ por Lui Alves Beauclair, um juiz francês que atuava na comarca da região. Minha cidade ainda não existia como cidade, emancipada, era um distrito do Prado, se chamava ainda Vila do Escondido, então eles vieram da região ali. Minha avó Jovina veio da região de Minas Gerais, uma família de pretos e portugueses, e da parte de meu avô, seu Luiz Caboclo, o vô Luiz, veio dessa coisa insana que a história do Brasil, infelizmente, nos proporciona, e ainda nos tem cicatriz. Meu pai estudou para ser contador, ele tem formação em Técnico Contábil, essa é a parte do meu pai, um pedacinho, e a gente pode aprofundar mais depois. Por parte de mãe, minha mãe Silmara Rocha de Souza Beuclair, filha da matriarca, literalmente matriarca, já falecida, infelizmente, dona Erundina Rocha de Souza, a dona Erundina Rocha de Souza e do seu Ursulino Bispo de Souza, seu Ursulino, homem preto. E eu tenho poucos registros da história daí para trás da família da minha mãe, o que eu sei é que eles vieram da região ali boa, de Sergipe, uma parte veio da região de Sergipe por parte do meu avô. [trecho retirado a pedido do autor] Meu avô, por parte de mãe, sempre trabalhou na roça, ele era um homem que sempre lidou com cacau, a minha região sempre foi uma região cacaueira. Então, criou os meus tios e minha mãe dentro do cacau e aí vendia na feira na cidade de Itamaraju, onde eu nasci. Já por parte de pai, meu avô Luiz, por conta do meu bisavó Nicolau, sempre foi uma família de comerciantes, em São Paulinho. São Paulinho é uma vila, um distrito da cidade de Itamaraju atualmente, foi onde o meu pai cresceu, inclusive, quando criança, e boa parte dos meus tios também. E vieram para Itamaraju e meu avô criou a loja, construiu a loja, comprou e fez a loja ali na Praça Castelo Branco no centro de Itamaraju. E boa parte da minha infância, a minha mãe, funcionária pública, pela EMBASA, que aqui em São Paulo é a SABESP, né? Lá é a EMBASA na Bahia. Fez carreira e hoje é aposentada pela EMBASA. Então, você tem o meu pai contábil, lidando com os negócios do comércio do meu avô, que vendia de tudo, tecido, na época, não tinha roupa pronta, então se mandava fazer tudo na costureira ou no alfaiate, e eu cresci nesse meio, de fazenda de vovô Celino e loja do vovô Luiz. Eu nasci em uma família de Testemunhas de Jeová, meu pai e meu avô paterno Testemunhas de Jeová, e por parte de minha mãe mais tarde se torna Adventista, a parte de minha mãe, boa parte, mas com base principalmente no Catolicismo e no Candomblé, por parte de mãe. Então, é uma família muito diversa, muito grande, quase uma dezena de filhos de ambas as partes da família, tanto de pai, como de mãe, tive muitos primos, uma infância muito linda, muito feliz. Estudei o Ensino Fundamental em colégio de freira, que é o Colégio São João Evangelista, que ainda existe lá, a irmã Marcela, lembro muito dela ainda, maravilhosa a irmã Marcela, acho que já faleceu, se não me engano. E depois fui para o Ensino Médio no ensino público, lá no Colégio Inácio Costa Filho.
P/1 – Antes de a gente ir para escola, queria ainda fazer algumas perguntas sobre a sua família. A primeira delas é como você descreveria o seu pai? E como você descreveria a sua mãe?
R – Sim, meu pai é um sonhador, um libriano sonhador, a minha mãe, uma ariana como eu, que também sou ariano, abril, 8 de abril, forte, focada, destemida. Então, você colocou uma pessoa de personalidades diferentes, mas o meu pai, eu encaro ele hoje, já o via dessa forma anteriormente, por um tempo na minha adolescência, ele se tornou um anti-herói para mim, na adolescência e a gente pode falar sobre isso mais tarde, mas hoje eu encaro meu pai como eu ser humano que cometeu muitos acertos, porque eu, literalmente, tive uma infância muito feliz e, também, com alguns erros. É uma família, por parte do meu pai, que vem de histórias bem dramáticas, para não ser tão melancólico, mas de muito trabalho, de muita guerra, de muito sucesso, de muito fartura, de muito amor principalmente. Para falar do meu pai, eu preciso falar do meu avô, Luiz Alves Beuclair, vovô Luiz, um homem que foi educado com muita violência física e psicológica, semianalfabeto, ele sabia ler e escrever alguma coisa, mas um analfabeto funcional, semi analfabeto, e ele foi criado pelo vovô Nicolau, de uma forma muito dura lá em São Paulinho, no interior da minha região. E meu avô Luiz também criou meus pais e meus tios dessa mesma forma, e o meu pai, infelizmente, em alguns momentos, reproduziu essa coisa do dominó caindo, dessas agressões físicas e psicológicas. Tanto, eu acredito hoje, pela forma como foram criados, mas também pela filosofia religiosa. Como eu disse, nasci em uma família de Testemunha de Jeová, e na Bíblia está escrito: “Se seu filho vai mal, usai a vara da disciplina.” Só que você não fala que vara é essa, se é de aço, se é de ferro, se é de madeira, e nem fala a intensidade da surra, tem que usar, se você não usar a vara da disciplina, você vai para o inferno ou para Geena, por conta dos seus filhos, então é uma filosofia pesada, uma filosofia violenta. Mas, eram as ferramentas que eles tinham naquela época para poder suprir a família diante de opressões, então era a reprodução de opressões, de um homem caboclo, com origem de uma mulher Pataxó, que foi retirada da aldeia e enganada. Porque tem uma história muito boa sobre meu sobrenome, meu sobrenome deveria ser Beauclair, francês, inclusive tem lá o castelo de Beauclair lá na França e não sei o quê, mas, me perdoem meus antepassados por falar dessa forma, mas em memória da Maria Cachoeira, a minha tataravó, o [trecho retirado a pedido do autor] Lui Alves Beaclauir, ele registrou o filho como Beuclair, tirou o ‘a’ para não terem direitos, para não serem reconhecidos, então isso ainda carrega muito a família, até hoje, essa coisa trágica, dá para sentir na atmosfera daquele ambiente. Mas, papai tentou acertar, vovô tentou acertar, vovó tentou acertar, vovô Nicolau tentou acertar, vovó Maria Cachoeira tentou acertar, né? Mas, eu fui uma criança muito mimada, ficava na casa dos meus pais, literalmente, fui o primeiro, tenho mais três irmãs, duas do casamento de minha mãe e meu pai, e uma fora do casamento, meu pai a teve antes de se casar com minha mãe, a Fabiana. Mas, eu tenho Raabe, que é um nome árabe bíblico, Raabe e Jéssica, são minhas irmãs também. E eu era o queridinho da família, alguns me chamavam de Cicinho, Cinho ou Hélcinho, então eu era o queridinho e eu sempre fui uma criança muito carinhosa, durante a infância, eu não tive contato com violência, mas na pré-adolescência e na adolescência, exatamente por eu estar em um ‘caminho errado’, e por ter, abre aspas, ‘escolhido’ fecha aspas, um ‘caminho equivocado, errado’, eu conheci as consequências da filosofia cristã, ultraconservadora. Então, classifico meu pai hoje, vejo meu pai hoje como um homem que lutou para manter o legado do vovô Luiz, porque a loja que era do vovô Luiz, ele se endividou, tomou, emprestou dinheiro para pessoas que não pagaram, teve que tomar dinheiro emprestado de agiota, e não conseguiu pagar, então meu pai assumiu a loja, assumiu as dívidas junto com a minha mãe para manter a estrutura. Hoje, a loja não existe mais, é muito louco, só existem os pontos onde eles recebem aluguel lá na região. E, quando eu ia estudar, a casa do vovô Luiz e vovô Jovina são do lado da escola São João Evangelista, então eu saía da escola e ia direto para casa da vovó e passava a tarde inteira lá, não, eu estudava a tarde, então eu chegava lá meio dia, de manhã, quando mamãe ia trabalhar, me deixava, eu ficava a manhã inteira na casa de vovó, depois eu ia para escola, depois ela me pegava na escola e me levava para casa. Mas, eu fui uma criança que foi doutrinada dentro das Testemunhas de Jeová, literalmente doutrinado, daí boa parte da minha capacidade de oratória, de poder falar em público, porque desde criança a gente sempre foi muito bem instruído dentro da igreja a fazer discurso diante de uma plateia e não sei o quê. Eu não consigo resumir o meu pai em uma única palavra, eu consigo visualizar o meu pai em um conjunto de vivências, mas ele errou tentando acertar, isso é legal, isso é muito importante. Por parte de mãe, como eu vejo a minha mãe, a minha mãe é uma mulher que é filha de uma matriarca e que, infelizmente, essa matriarca deu prioridade para os homens, para os filhos homens em uma sociedade machista, né? Mas, querendo ou não, a minha mãe, assim como as minhas tias, sempre foram colocadas no seu lugar como mulher, incrível né, uma mulher, matriarca, colocando outras mulheres no lugar de mulher e dando ênfase ao homem. Mas, a família da minha mãe é uma família muito unida, muito conectada, como eu disse, vovô Erundina, como matriarca, era muito controladora também, extremamente controladora, em alguns momentos, invasiva, mas um ser humano extremamente generoso, carinhosa, muito carinhosa, e eu também fiquei na casa dela e morei muito tempo na casa dela, porque quando meus pais saiam para trabalhar, eu tinha que ficar em algum lugar. Então, vovó Jovina e vovó Erundina. E a minha mãe, ela é uma mulher controladora, mas é um ser humano batalhador, é um ser humano que também tentou acertar, cometendo alguns erros, é humana, mas eu sou fruto desses erros e desses acertos, e eu posso dizer que… Uma vez, naquelas questões todas, que a gente vai entrar na adolescência em algum momento, eu disse que, eles, um dia, poderiam não estar sentindo orgulho de mim naquele momento, sentir vergonha de mim naquele momento, mas, um dia, eles sentiriam orgulho de mim, também estou aqui por isso.
P/1 – Eu queria saber, pensando na sua infância, se tem algum cheiro, alguma comida, ou alguma data comemorativa que lembra essa época?
R – Cheiro, eu acho que o cheiro do cacau na casa da minha avó, o cheiro do chocolate, como é que é o nome dela? A minha vizinha, aí caramba, eu lembro como se fosse hoje, eu, criança, levava cacau seco para ela fazer chocolate amargo, e eu me acabava naquele, meu Jeová, como é que eu esqueci o nome dela? É, esqueci também, esqueci duas coisas, tá vendo? A cidade de origem da família da minha avó e o nome da minha vizinha, mas ela está aqui nas minhas memórias, infelizmente, não vou registar, um dia eu lembro. Eu acho que o cheiro do cacau da roça, por parte de mãe, e, por parte de pai, eu acho que o cheiro que é muito marcante na minha infância é o cheiro de loja, de tecido, sabe? Cheiro de praia também, porque nas férias a gente sempre ia para a praia e aí é uma delícia, era uma delícia. E aí você perguntou sobre gosto também, eu acho que o cacau, hoje eu não gosto de chocolate, eu comi muito chocolate quando eu era criança, muito chocolate, mas eu acho que o gosto da infância, é o chocolate e o frango ao molho da minha avó Jovina, que é divino, minha mãe, eu acho que a moqueca é muito marcante, são gostos que me vem à memória agora.
P/1 – E pensando na sua infância, como era a casa onde você morou?
R – Eu nasci na casa do lado onde meus pais ainda moram, tem uma foto que eu acho que vai aparecer aqui para vocês, onde eu estou na rua, e eu estou na frente dessa casa andando de bicicleta, pequenininho, moleque, então eu morei na rua, nasci no Hospital Santa Bárbara, lá na cidade de Itamaraju, hoje o extinto Hospital Santa Bárbara maternidade, mas eu cresci e nasci ali na rua Portugal. A minha casa ela sofreu, lógico, mudanças, mas é uma garagem, tinha o quarto da minha mãe, meu quarto, a sala, a sala de jantar, o quarto das minhas irmãs, os banheiros sociais logo do lado, a cozinha, a área de serviço e um quintal enorme. E uma casa simples, não era grande, era simples, mas eu tenho boas, maravilhosas memórias, e cicatrizes também daquela época.
P/1 – E o que você gostava de fazer na infância? Suas brincadeira favoritas?
R – Na frente da casa da minha avó Erundina, se não tiver mais, teve uma árvore de castanha do Pará, e aí eu adorava subir em árvores, com os meus primos, subir em árvores, loucamente, essa era a brincadeira. Eu fui criado de uma forma também, as Testemunhas de Jeová, tem uma filosofia de vida familiar, de grupo, em que não se mistura com o mundo, então eu não fui uma criança que comemorou aniversários, porque a filosofia das Testemunhas de Jeová, de que João Batista foi servido em uma bandeja graças ao pedido de uma mulher que pediu a cabeça dele no aniversário, não se comemora aniversário. Então, eu fui uma criança que estudava em um colégio particular a infância, Colégio São João Evangelista das irmãs, e que a galera fazia aniversário, tinha festa junina, eu não participava, o pessoal cantava o Hino Nacional e eu não cantava, doutrinado e as irmãs me separavam deste local. Então, quando tinha uma festa de aniversário, eu ia para a biblioteca, eu lembro isso sempre, e ficava sozinho lá, ou então minha mãe vinha me buscar. Uma coisa que me marca muito na infância, falando em escola, acho que escola vai falar ainda mais para frente, então vamos deixar para lá.
P/1 – Pode contar se quiser.
R – Eu fiz alfabetização na Escolinha Arco Íris da tia Sandra, tem uma coisa que me chamava muita atenção na escolinha, que eu me lembro até hoje, foi a surra que a tia Sandra me deu, porque eu fiz xixi nas calças, criança, bebê né, alfabetização, e ela me bateu. Minha mãe veio me buscar como uma leoa, veio a memória isso hoje, que doidera. Mas enfim, eu gostava de brincar de pega pega, quando eu entrei na adolescência, eu consegui ir para a rua, para a rua da frente da minha casa, durante a infância, eu não ficava na frente de casa, na casa da minha avó de vez em quando subia, podia ter acesso a rua. Porque, não que minha cidade era uma cidade violenta, eu também criança não tinha noção disso, mas por exemplo, eu não jogava futebol, não saia com os moleques de rua para dar um rolê, na verdade, eu nunca gostei de futebol também, acho que está aí uma coisa que meu pai sempre quis fazer, jogar futebol com o filho e eu nunca gostei de futebol, fazer o quê? E ele flamenguista e eu decidi torcer para o Vasco só para ficar contra ele, que viagem, diz ele, mas enfim. Eu gostava de pega pega, de subir em árvore, essas eram as brincadeiras que eu fazia, porque eu era muito limitado. Mas, tinha uma coisa que eu amava fazer, eu tinha uns bonecos, do Robocop, do Jaspion, o carro do Batman, e aí eu botava eles assim, em cima de um palco, acendia uma vela, pegava um espelho, botava na frente da vela para refletir a luz, e fazia de conta que estava no teatro, que estava no palco, e botava eles para brincar em cima daquele palco, muito louco, né? E como eu também, na pré-adolescência, meu pai sempre me corrigiu sobre isso, mas sempre que ele não estava olhando eu fazia isso, na loja do meu avô, eu ficava muito tempo na loja. Eu saia da escola, na quinta ou sexta série do ensino fundamental, ia para casa, almoçava, estudava de manhã já, ia para casa, almoçava, pegava a marmita do meu pai e ia para a loja, e passava a tarde inteira na loja, inclusive fazia o dever de casa na loja. Então, eu fiquei muito limitado ali na loja, aprendi muito, sobre atender pessoas, eu varria a loja, eu odiava aquilo tudo, mas eu aprendi, eu fazia… Eu estou enrolando, porque eu estou com vergonha, eu estou enrolando… A brincadeira, com os meus dedos, isso aqui é um boneco, então eu botava para brigar com os meus dedos, porque eu não tinha um boneco, está ligado? Antes de ter o Jaspion, aliás, eu lembro que eu perdi os bonecos, eu não sei o que aconteceu, eu não lembro agora o que aconteceu com os bonecos, mas não tinha mais os bonecos, mas eu acho que minha mãe viu eu brincando daquele jeito, achou estranho [trecho retirado a pedido do autor]. De repente, sumiu os meus brinquedos, ou eu quebrei também, não sei, ou alguém levou quando foi visitar, enfim, eu não me lembro o que aconteceu com aqueles bonecos, só sei que eu estava sem bonecos, e sem brinquedos, e eu usava os meus dedos, então eu ficava caminhando no balcão da loja com os dedos e fazendo joguinho com os dedos. Depois, ainda na pré-adolescência e na minha infância, eu conheci o Windows 3.1, que é um mouse enorme, grandão, uma tela monocromática verde, não existia, era o MS-DOS ainda na verdade, só que tinha o joguinho da lagartinha, né? Então, eu ia para escola de informática e datilografia do meu tio Silvol, porque eu fiz datilografia, eu digito muito bem por conta da datilografia, e eu ia para lá para ficar no computador jogando, aí veio o Windows 3.1, veio o Windows 3.11, veio o Windows 95, quando eu me peguei eu estava jogando Lotus, então eu fiquei viciado por jogos eletrônicos, eu era uma criança viciada por jogos eletrônicos. E aí vem aquela questão, como meu pai foi criado, meu pai sempre gostou de futebol, ele me contou um dia isso, eu acho que foi ele que me contou, ou foi a minha avó, ou minhas tias que me contaram, não me lembro, ele me contou na infância, que meu pai gostava de jogar futebol, só que ele tinha que ficar na loja, e aí ele fugia da loja para ir jogar futebol e teve um dia, aos quatorze anos, que ele tomou uma surra tão grande do meu avô, que ele fez necessidades durante a surra. E eu gostava de jogos eletrônicos, amava jogos eletrônicos, videogame, queria um videogame a qualquer custo um videogame, então, existiu naquela época as casas de videogame, onde você pagava um real para jogar 1 hora, e jogava videogame, e uma das vezes que eu fui jogar videogame, meu pai me quebrou dentro da, literalmente, porrada dentro da loja de videogame para me botar para voltar para dentro da loja, ele foi instruído dessa forma e decidiu continuar a educação dessa forma. Mas, são essas brincadeiras, eu acho que eu peguei aí uma infância e pré-adolescência todinha, mas o que mais me impactou eram os jogos, eu sempre fui apaixonado por jogos eletrônicos, jogos de corrida, need for speed. [trecho retirado a pedido do autor]
P/1 – E você tinha, nessa época, percepção sobre essas privações que você, de certa forma, passava?
R – Sim, sim, mas eu acho que, quando eu botava na balança, como criança, quando eu botava na balança, o que mais pesava eram os momentos felizes, sabe? Então, a ida para a casa da vovó, meu pai quando alugava um filme na videolocadora, vocês não vão conhecer isso, videolocadora, quando locava, ia lá, vocês são dessa época, né? Vocês pegaram vídeo locadora? Então, a primeira vez que eu fui no cinema, que não era o Cine Teatro Orion, era o Cine Teatro Martim, que hoje é uma Igreja Universal, então, poxa vida, eu acho que é, eu tinha muito essa conexão, mas eu não percebia, na verdade, não é que eu não percebia, os bons momentos pesavam muito mais, sabe? Por mais que existiam essas privações, de eu ver os moleques vivendo, eu não podia ir na casa dos amigos, dormir na casa de um amigo? Jamais, amigo dormir na minha casa? Nunca, a primeira vez que eu viajei sozinho foi quando eu tinha vinte anos, dezenove, sozinho, antes era só com a família, completamente, seja avô, tio, ou pai ou mãe, sempre com algum familiar. Não ia para excursões, eu era louco para ir para as excursões, eu acho que eu fui em uma excursão para o parque, acho que a gente nem subiu, no Parque Monte Pascoal, foi por onde o Brasil foi invadido, a minha região tem o Parque Monte Pascoal, “ Terra à vista”, mas hoje, olhando para aquela época, é incrível. O adulto, os traumas ficam muito mais… Me ouvindo, inclusive, nessa conversa que eu estou tendo contigo, a relevância daquilo que é mais negativo pro adulto é muito mais, muito maior, né? Mas, eu fui uma criança feliz também, muito mais feliz, inclusive.
P/1 – E na escola, como era? Você contou um pouco onde você estudou, mas eu queria saber se tem alguma história marcante da escola?
R – São várias histórias marcantes, eu vou começar pela ruim, meu apelido era ‘calcinha’, eu deixei de ir para escola no ensino fundamental, na oitava, não existia nono ano ainda, na oitava série, porque eu não queria sofrer o que se chama hoje de bullying na escola, eu tinha medo que as pessoas soubessem quem eu sou. Naquela época, nem eu queria aceitar quem eu era, e eu vou chegar lá. Então, mas vem a parte boa, eu também era uma criança muito amada pelos professores, porque eu era o aluno que ia, por exemplo, dava o sinal da professora de Ciências, bateu o sinal da professora de Português, eu já saia da sala, subia até a sala dos professores para ajudar a professora de Ciências a descer com os livros, falavam: “Ah, puxa saco, ‘calcinha’ é puxa saco.” Só que não, eu gostava de fazer isso, por quê? Olha que loucura, falando na professora de Ciências, puxa, por que eu não estou lembrado o nome dela? Ela era maravilhosa, estou lembrando da professora Margarete, que é de Português, de Ortografia, eu vou falar de Ciências, a gente estava estudando o corpo humano, a parte óssea, e o meu grupo ficou com o crânio, deram as partes, dividiu a sala em grupos: “Vocês vão ter que fazer um trabalho, me entregue o trabalho, se virem, o que vocês quiserem fazer, telejornal, cartolina…” Então, a galera queria toda ir para cartolina, e eu não queria ir para cartolina, então eu fui lá, falei com a professora, rompi com o grupo, aí a professora falou assim: “Está bom, você rompeu, você não quer fazer mesmo?” Eu falei: “Professora, não sou eu que não quero, são eles que não querem que eu participe do grupo.” Porque eu não queria aceitar fazer cartolina, eu queria fazer algo a mais, e como a professora já me conhecia, ela já falou assim: “Então, eu quero ver o que você vai tentar fazer para bater eles.” Eu era muito competitivo, ariano. Gata, era o crânio, né? Eu fui na delegacia da minha cidade, para perguntar ao policial civil que estava lá de plantão onde eu conseguia um crânio, porque o complexo policial era a delegacia, era a penitenciária e também o IML. Uma criança fazendo isso, meu, na sexta série, e aí ele falou: “Ah, um crânio? Sei lá, no cemitério.” Jogou, e eu falei: “Mas como é que eu consigo pegar esse crânio lá? É só chegar lá e pegar? “ Ele falou: “Você está doido?” E aí veio a escrivã, que conhecia a família da minha mãe, que a família da minha mãe era muito influente, porque meu tio Sioval tinha ali a escola de Datilografia e Informática, meu tio Milton trabalhava na EMBASA, foi gerente, já falecido, meu tio Lourival também gerente na cidade vizinha na EMBASA, minha mãe trabalhava na EMBASA, então todo mundo se conhecia. E ela: “Não, vem cá, Hélcio, vem cá, o que você quer?” Aí eu expliquei para ela o que eu queria fazer, levar um crânio para escola para apresentar um crânio. “Então, você aí precisa, primeiro você não pode andar com um crânio na mão na cidade, você precisa de uma autorização judicial.” O que que eu fiz? Fui parar no Fórum da minha cidade, fui falar com o Dr. Júlio César Freire Brandão, eu nunca vou me esquecer o nome dele, bati no gabinete dele, e aí contei a história para a chefe de gabinete dele, na época, secretária dele, e aí ela não acreditou, e eu acho que o Dr. Júlio ouviu eu falando e falou: “O que esse menino quer aqui?” Eu fui lá e falei com o juiz, e eu menti para ele, eu falei que queria ser médico. Olha, ele mandou a secretária emitir um ofício ordenando que os policiais civis fossem comigo até o cemitério de Itamaraju, coletasse um crânio na vala comum, levassem para o IML, o médico legal, legista, fizesse a limpeza do crânio, e eu entrei na escola escoltado pela polícia, com o crânio dentro de uma caixa de papelão para apresentar na sala de aula. Ficou o policial civil na porta da sala, e eu com o crânio na mão falando quais são os ossos daquele crânio. A escola inteira estava nos vidros da sala de aula, foi muito louco, foi muito louco, e, no final de tudo, fomos de novo para o cemitério devolver o crânio para a vala comum de pessoas indigentes. E tem outras histórias na escola, a professora de Geografia maravilhosa, eu também esqueci o nome, ai meu Deus. Mas, vou falar a professora Margarete que eu acho que é muito legal, muito marcante, a gente foi ler o livro “O Guarani” de José de Alencar, e aí ela queria que a gente fizesse um trabalho para falar sobre o guarani, o que que eu fiz com meu grupo? Dessa vez, eu já consegui convencer o grupo: “Vamos fazer um curta metragem sobre cenas do Guarani”, e aí cara, a gente fez um curta metragem, teve o beijo, eu fazia o Dom Diogo, teve o beijo do Dom Diogo, que eu dei um beijo na minha colega de sala, teve, enfim, foi muito lindo. A professora ganhou um prêmio em Salvador, a gente nem soube depois, que ganhou um prêmio pela Secretaria de Educação por conta desse trabalho também, a gente nem sabia, não tinha nem noção disso. A gente teve um outro livro de Walcyr Carrasco, que eu fui o diretor de outro curta metragem, criança insana, Meu Deus, eu tinha o quê? Uns doze anos, treze, quatorze anos, sexo, cerna de sexo, eu lembro muito bem hoje de meu colega Laurencio, que fez o rapaz, e a Jacqueline, que fez a moça, e a gente fez o camera, que era só um camera, com aquele take, só que eles não estavam nus, pareciam que estavam nus, eles estavam com lençol aqui, ela estava com uma meia calça não sei o quê e tal, e aquilo chocou a escola, virou um negócio, assim, fenomenal. Então, eu era essa criança insuportável, que chegava, batia na sala da coordenadora e falava assim: “Dona Ana Alzira, vamos fazer uma feira cultural? “ Aí ela falava: “Se você conseguir, a gente faz.” E a gente fazia feira cultural na escola, eu ia… A professora de química no Ensino Médio: “Professora, vamos falar sobre drogas?” aí ela: “Aí Hélcio, janeiro, logo, logo chega feveiro, vocês vão entrar no carnaval.” Eu falei: “Exatamente, vamos falar sobre drogas, num seminário sobre drogas, para falar quais são as substâncias de cada droga, como ela age no corpo, como o THC age, como a cocaína age.” A professora abraçou e, de repente, a gente estava fazendo um seminário sobre o rolê e quando eu vi jovens de outras escolas foram convidados, a imprensa estava lá da minha cidade, de rádio, que não tinha televisão na minha cidade, emissora. Então eu fui essa criança insuportável, talvez, por isso, a galera me odiava um pouco, porque a galera não queria fazer muito trabalho, e eu era o louco que inventava tudo isso, está ligado? Então essa é a parte linda. Os professores, a professora Margarete, e todas as outras minhas professoras foram essenciais para me deixar com liberdade para eu poder produzir, então eu fazia teatro, cinema, feira cultural, apresentava trabalho, eu entrei com um crânio na escola, meu Deus, o bicho era muito louco, um adloescente insuportável. Então, é isso.
P/1 – E de onde vinham essas referências para fazer essas novidades?
R – Os livros dos Testemunhas de Jeová, as publicações dos Testemunhas de Jeová elas eram muito ilustrativas, muito ilustrativos, e também muito texto, então imagine uma criança lendo um livro, chamado, sei lá: “O maior homem que já viveu”, não é literatura fácil, não é fácil uma criança subir em um púlpito para ler versículos da bíblia, e explicar esses versículos da bíblia para um [trecho retirado a pedido do autor], adultos, idosos e outras crianças, fazendo um discurso. Então, eu tive essa formação dentro da igreja, os Testemunhas de Jeová são bons nesse sentido, enfim. E eu era muito criativo meu, não sei, sempre fui uma criança muito criativa, você vê, eu fazia aquele negócio com o espelho quando eu era criança, com uma vela e os bonecos, brincava de lutinha com os dedos, então, sei lá, uma mente muito explodindo a todo tempo.
P/1 – Você começou a contar um pouco, mas eu queria saber o que mudou quando você chegou na adolescência? Se mudou alguma coisa?
R – Os hormônios explodiram, a minha primeira paixão foi Poliana Bastos, a minha primeira paixão, meu primeiro beijo foi nela, foi em uma feira agropecuária da minha cidade,meu primeiro beijo, minha primeira paixão, e ela estudava no Adventista, lá na Praça Nove de Julho, e aí eu descobri que ela estava apaixonada por um moleque que era lindo, o Diego, Diego , o Diego, é Diego. [trecho retirado a pedido do autor] O meu primeiro, aí depois eu tive, antes disso, na infância ainda, eu tive contato prematuro com o sexo, esse exposed eu não vou fazer, porque ele é um pouco complicado por conta da família, mas eu sofri abuso sexual quando criança, uma criança que teve contato com o sexo muito cedo, então ali eu fui tolhido, fui, não sei, muita coisa mudou em mim, e aí a Bíblia, a religião: “A homossexualidade é algo errado, é pecado”. Então, eu fui uma pessoa, um adolescente extremamente sexualmente ativo, sexo quase todos os dias, literalmente, ‘predando’ pessoas inclusive, eu saia para caçar na minha cidade, um adolescente saindo para caçar, em uma cidade pequena, me botando a riscos e perigos que eu olho hoje e falo “Hélcio, você fez isso, mano?” Indo para rio, na periferia, afastado de minha casa, para poder seduzir pessoas, para tentar fazer sexo. Exatamente por conta dessa consequencia de ter sido apresentado ao sexo muito cedo. Mas, eu tive meu primeiro amorzinho, [trecho retirado a pedido do autor], e foi a primeira vez que eu fiz sexo com amor, e o primeiro beijo, foi a coisa mais linda do mundo, sabe? E aí quando eu entrei na adolescência, por conta, já que a galera me chama de “calcinha” dentro da escola, já o bullying, eu vou pegar todos os meus colegas, eu me tornei um ‘predador sexual’ dentro da escola também, peguei vários moleques da minha escola, meu Deus, que doidera. E é insano isso, porque era uma criança, né mano? Que não deveria estar pesando em sexo, com treze, catorze, doze, onze, quinze anos, não deveria estar pesando em sexo, mas eu vou falar uma coisa para vocês, eu fiz mais sexo quando adolescente do que na idade adulta, muito louco isso, muito insano. E aí quando eu entrei na adolescência, o que mais dominou a minha mente foi a sexualidade, conflitos, porque, hoje, eu me entendo como um homem bissexual, um homem cisgênero bissexual, mas eu não aceitava isso, tanto que eu fui dar o primeiro beijo [trecho retirado a pedido do autor] quando eu já estava quase sei lá, com dezesseis, dezessete anos, mas antes eu já tinha feito sexo com outros meninos. Meu primeiro beijo foi aos dezesseis anos, com um colega de sala meu, na escola, eu acho que não era dezesseis gente, quinze, [trecho retirado a pedido do autor] hoje ele é hetero, mas a gente não só beijou, a gente transou e foi no quarto dele, na casa dele, ele morava na mesma rua da minha avó. O primeiro beijo foi no quarto dele, mas a transa rolou, a gente pulou o muro da casa, para transar numa casa do lado abandonada. O sexo sempre foi ligado ao nojo, para mim, na minha cabeça, é tanto que depois que eu transava eu me sentia um nojo e eu falava que não iria mais querer transar nunca mais, mas depois vinha um tesão e queria transar de novo, e aí ele foi meu primeiro beijo. Meu primeiro namorado, que eu namorei, caraca, evolui, mas para eu chegar lá, tinha, ainda tem, eu espero que ainda exista, na verdade, quando eu cheguei nessa idade aí, conflitos, eu entrei em depressão, eu era um jovem que só saia a noite, eu não terminei o Ensino Médio como qualquer outra criança, eu parei de estudar no primeiro ano do Ensino Médio, mais tarde eu fiz o ENCCEJA, que é aquela prova que faz, tipo hoje seria o ENEM para concluir, eu fiz o ENEM literalmente para concluir o Ensino Médio, porra, o quanto eu perdi, hein cara? Ensino Médio, eu poderia fazer muito mais loucura, mas enfim, aquela feira antidrogas foi no primeiro ano, foi quando eu decidi parar de estudar. Então, eu não estudava, não queria trabalhar, e eu comecei a ser tolhido dentro de casa, em vez de entendermos o que significava aquilo, e aí eu falo entendermos, eu me coloco no meio, me coloco no meio como adulto hoje, mas os adultos deveriam ter identificado aquilo, só que eu percebo, pode parecer um pouco de soberba o que eu vou dizer hoje, eu tentei suicídio quando eu era adolescente, duas vezes, uma eu tenho cicatriz até hoje, ela está aqui, ela era aqui no meu pulso, a outra foi tentando tomar remédios, quando… Lá vem outro exposed, eu conheci um amigo, fiz amizade [trecho retirado a pedido do autor], e ele morava só ele e a mãe dele [trecho retirado a pedido do autor] começou a entrar em um rolê que, para mim, é muito pesado que são drogas, loló, na época, criança, só que aí eu comecei a me interessar por drogas, só que não para usar drogas, mas para tentar tirar ele do rolê das drogas, porque ele estava iniciando ali, sabe? Eu não sabia como lidar com aquilo, a informação que eu sabia era que era errado, e ponto. E aí tem lugar na minha cidade, que eu espero que ainda esteja aberto, que é o Centro de Recuperação Benedito Ralile, Centro de Reabilitação e Recuperação Benedito Ralile, eu bati literalmente… Olha como eu era ousado. Nossa, eu bati no portão, quem atendeu foi o terapeuta, o Álvaro, e o Álvaro me chamou e eu entrei e falei: “Olha, como é que eu faço para ser voluntário?“ Porque eu queria entender como lidar [trecho retirado a pedido do autor], porque eu gostava muito dele, como amigo, e a gente transava também, mas eu não queria ver ele caindo nas drogas, e aí eu me tornei voluntário no Centro de Recuperação Benedito Ralile e comecei a assistir as terapias em grupo, era um local de internação, então foi uma época muito boa, porque eu já estava em depressão profunda, como eu disse, eu só saia a noite, e ficava vagando pela cidade à noite, ou, quando eu saia de dia, era para procurar sexo, não queria ir trabalhar, não queria estudar, não queria. E aí, meu amor, um belo dia, conversando com o Álvaro, ele me contou uma história muito linda, que é sobre uma história grega, que era o mestre e o discípulo, eles estavam caminhando pela estrada, e de longe viram uma casinha, e o mestre desviou, foi até a casinha, a casinha pobre, crianças pobres e tal, pediu uma água, perguntou quem era, e aí o dono da casa contou a história: “Mas de quem são essas terras?” “Essas terras são minhas.” “E como é que você sobrevive aqui e tal?”, “A gente tem aquela vaquinha ali.” Estava uma vaquinha lá longe, aí o mestre se despediu, foi embora. Ou seja, aquela casinha, o cara, o dono da casinha, o homem, a família, tinha terras, mas sobreviveram, e só tinha aquela vaquinha como subsistência do leite, queijo e tal. E o Álvaro me contando essa história. E aí o mestre pediu para o discípulo tanger a vaca até o precipício e empurrar a vaca no precipício. A vaca era a minha mãe, então eu empurrei, literalmente, aquele cordão umbilical que eu tinha, foi quando eu me assumi, na época, homossexual, aos dezenove anos, e aí eu tive meu primeiro namorado. É incrível, foi a primeira vez que eu me permiti amar. [trecho retirado a pedido do autor]. E aí foi o Geovani, Geovani Junior Marcati dos Santos, meu primeiro namorado, só que aí a gente namorava escondido, literalmente escondido, só que foi uma história de amor muito linda, até hoje eu e o Geo conversamos muito por redes sociais, e foi lindo, foi lindo, foi muito lindo, foi meu primeiro amor vivido, vívido e vivido, literalmente. E aí eu vim para São Paulo.
P/1 – Antes da gente ir para São Paulo, eu queria saber se você tinha referências do que você estava vivendo, de outras pessoas, você conhecia outras pessoas, ou se foi um processo só seu?
R – Gata, as Testemunhas de Jeová me colocaram em uma bolha, e eu tinha muita dificuldade de sair dessa bolha, então eu não tinha muitos amigos, eu era uma pessoa com facilidade de fazer amigos, mas manter essas amizades não. Teve uma vez, inclusive, que eu ia muito para Comuruxtiba, Comuruxatiba é uma vila de pescadores no interior, distrito da cidade do Prado, e as minhas férias eram lá, e eu amava ir para Corumuxatiba, porque em Coromuxatiba eu era livre, enquanto em Itamaraju eu não podia nem sair na rua, em Corumuxatiba, eu podia andar a vila inteira, ‘tá ligado’? Eu podia pescar, eu podia brincar, eu podia sair à noite para dançar, eu dançava muito lambada, na época, era lambada, aquelas lambadas francesas, o xote, então eu era uma criança, um adolescente muito feliz nas férias, assim, as férias eram intensas. Brincava de guerrinha da amendoeira, nossa, pescava, e aí eu fazia amizade com gente que era de São Paulo, de Minas, que passavam as férias lá, o Salomão, o Victor, o Tiago, o Pedro, nem sei se está vivo, acho que, enfim. Coromuxatiba era o meu lugar de liberdade, por que eu estou te falando isso? Porque, como a maior parte da minha vida, eu passava em Itamaraju [trecho retirado a pedido do autor]. Em Itamaraju, daí você fala sobre as referências, eu fui uma criança feliz, porque eu tinha acesso à internet, do modem que ficava discando, e eu consumia internet de 128 kbps, saudade daquela época, aí usando a internet eu conheci Linkin Park, Evanescence, Blink 182, Avril Lavigne, Madonna, foi ali que eu comecei a me aceitar aos dezenove anos com Madonna, sabe? Porque era libertário, então imagina o moleque em casa com um fone de ouvido, madrugada, conectado a internet, assistindo clipe, baixando, na verdade, pelo torrent, clipes, para ter um HD, eu andava literalmente com um HD, não era um HD externo, porque não existia HD externo ainda, era HD literalmente, HD SATA, e para usar ele no computador dos meus amigos, o que que eu fazia? Eu abria o gabinete, conctava o flat cable, porque eu já era foda em internet, em computador, eu já conseguia desmontar e montar um computador inteiro, uma CPU, no caso, um gabinete. Inclusive, o meu computador foi eu que montei, mamãe comprou, mas foi eu que montei, foi fodão meu computador, eu adorava jogar nele. E aí, eu chegava na casa dos meus amigos, que também tinham computador, então eu abria escondido, eu e eles, abria escondido dos pais deles, e aí a gente assistia clipes, velho, eu era o moleque do rolê que tinha clipe. Eu já estava livre intelectualmente, já conseguia fazer amizades e tal, então, às vezes, eu fazia festas na casa dos amigos com os videoclipes tocando nos computadores, nas caixinhas de som ampliando para uma outra caixa de som, então foi muito louco isso. E aí eu fiz amizades com Danilo Vieira, com o Mateus, da minha região lá, da minha cidade, e quando, e as minhas referências foram artísticas, foram ligadas à arte de videoclipes, de música. Mas teve uma pessoa que foi fundamental para eu me aceitar como eu era, antes de eu começar a namorar com o Geovani, pouco, bem pouco antes de eu começar a namorar com o Geovani, que foi o Mateus Magalhães [trecho retirado a pedido do autor], um ser humano muito importante para a minha vida, casado hoje, engenheiro, mora em Porto Seguro, que era um dos meus melhores amigos assim, sabe? Tem uma coisa que eu queria falar sobre o Mateus, teve uma vez que o pai dele, o professor Elton, porque era professor? Porque ele ensinava basquete pros adolescentes no ginásio da cidade e eu era uma das crianças que praticava basquete, o professor Elton ele foi preso, porque ele gostava de brigar, drogas e tals, e eu escrevi uma cartinha falando: “Professor, o senhor vai sair dessa, e não sei o quê”, eu era uma criança muito ousada, meu, muito ousado, cheguei lá no carcereiro, entreguei por carcereiro, e o professor Elton me contou depois, o Mateus me contou que, a partir daquele dia, o professor falou que nunca mais voltaria para cadeia, porque era um dos alunos dele pedindo referência e falando: “Professor, você é minha referência também.” Tocou muito ele. E aí o Mateus e eu fomos muito amigos, e a gente ficava ali, sei lá, das oito da noite até onze, uma, duas horas da manhã na frente da casa dele batendo papo e foi uma das pessoas que mais me incentivou na época, a ser quem eu era, foi daí que eu conheci o Giovani Júnior dos Santos, meu primeiro namorado.
P/1 – E como foi essa mudança para São Paulo? O que aconteceu? Por que a decisão de vir para São Paulo?
R – [Trecho retirado a pedido do autor]. Aí, eu era uma pessoa muito ligada a internet, talvez vocês não sejam dessa época, tinha o Flogão e Vibeflog, eu era dos flogueiros mais famosinhos da minha região [trecho retirado a pedido do autor]. E aí o Flogão, o Vibeflog, eu arrasando. Nesse Flogão, uma das pessoas que nasceu em Itamaraju, mas morava em São Paulo em 2008, era o Jovenilson, um menino, eu contando a minha história, aqueles dramas todos que eu estou contando para você, aqui essas histórias sem nomes, só com iniciais, eu colocava tudo no Flogão, tudo no Vibeflog, e aí viralizou, porque essa era a intenção do Flogão e do Vibeflog, você contar sua história, o Orkut, eu fui uma das pessoas que foi convidada, porque, na minha época, você não podia fazer o login, você era convidado pelo Orkut para você fazer parte da rede, eu fui convidado pro Orkut, fui a primeira pessoa da minha cidade a ser convidada. E aí eu fiz amizade com ele, ele me adicionou no Orkut, e a gente ficou conversando, e um dia ele falou assim: “Vem para São Paulo.” Eu falei: “‘Tá’ doido? Não.” Um cara que só tinha saído sozinho para praia do lado, 30 km sozinho, ir para São Paulo? Não, relutei, em junho de 2008, ele decidiu vir a São Paulo, viagem, que ele sempre vinha no São João para curtir a festa do São João na minha região, então o Nino saiu de São Paulo, foi para Itamaraju, foi a época que eu terminei com o Geovani, então eu estava super ¨foda-se” para todo mundo, e aí o Nino veio, conheci o Nino, e o Nino falou: “Vamos para São Paulo, não sei o quê, não sei o quê”, eu falei: “Vou”. Mano do céu, caramba, que doidera, quando eu entrei no ônibus, antes de eu entrar no ônibus, uma das pessoas que eu me despedi com muito carinho e com muito amor foi do Mateus Magalhães e, quando eu entrei no ônibus, a música que eu estava ouvindo no fone de ouvido era Boa Sorte: “É só isso, não tem mais jeito, acabou, boa sorte.” Muito dramático, mano – gente, vocês vão ficar muito loucos agora com o que eu vou falar para vocês – estavam, do lado de fora do ônibus, as minhas duas irmãs, minha mãe e minha avó Erundina, e aí minha mãe chorando, minha avó chorando e minhas irmãs chorando: “Não vai, não vai, não vai, por favor, fica”. Eu já tinha 24 anos. E aí fechou a porta do ônibus, quando foi fechar a porta, eu segurei, empurrei e falei: “Mãe, eu sou viado”, porque até aquele momento eu não tinha assumido, olha que drama né, bicha? Passada! Até aquele momento eu não era assumido para minha mãe, todo mundo falava para minhas irmãs, minha irmã jogava na minha cara, me chamava de viado, de ‘calcinha’ também, falava para minha mãe que meu apelido era ‘calcinha’ na escola, Jéssica fazia isso, Raabi não, Raabi sempre foi uma menina muito contida, muito pisciana, então, maravilhosa. E aí, eu soltei a porta do ônibus e a lágrima que estava descendo da minha mãe voltou, mudou, a feição dela não era mais de tristeza, era de raiva, sabe? Entrei no ônibus e não vim direto para São Paulo, vim com Nino, mas enquanto eu estava saindo de casa, antes de entrar no ônibus, eu vou lembrando das coisas, antes de entrar no ônibus, que eu saí de casa, eles não achavam que eu ia embora, mano. É tanto que eu nem me despedi do meu pai, não me despedi dos meus tios, não me despedi dos meus primos, não me despedi de ninguém, só do Mateus. [choro] E eu com uma mochila nas costas, duas malas na mão, fui para rodoviária, o Nino já estava na rodoviária, e eu fui. E aí minha avó me deu 50 reais, lá na rodoviária, e aí eu botei o fone, Vanessa da Mata, assobiado, e de 2008 até hoje eu nunca mais voltei na minha cidade. Minha avó Erundina morreu e eu não pude ir ao enterro dela, meu avô Luiz morreu e eu não pude ir ao enterro dele, meu tio Nilton morreu e eu não pude ir ao enterro dele. Eu era um viado, né? A vergonha da família. Eu já tive o meu prato, meu garfo, minha faca e minha colher separados da família para ninguém ser contaminado pela doença do ‘homossexualismo’, eu dormia durante o dia e acordava à noite para não ver os meus pais, porque eu não queria causar dor e vergonha para eles. Aquela criança, linda, feliz e amorosa, se tornou uma criança extremamente fechada, amarga, sozinha, mas surgiu esperança. Eu só tinha duas escolhas: ou eu entrava naquele ônibus ou eu já teria morrido, porque eu não aguentava mais, a vergonha de ser quem eu era, de ser um moleque conhecido na cidade, mas não poder viver como eu era, de causar vergonha para família. E a cidade era muito pequena para mim.
P/1 – E como foi chegar aqui em São Paulo?
R – Antes de chegar em São Paulo, eu entrei em um ônibus da Águia Branca, não vim direto para São Paulo, eu fui para Pedro Canário, no Espírito Santo, para casa da família do Nino, e lá ficamos cinco dias, imagina, uma criança completamente, um jovem, uma criança não, 24 anos já, 23 anos, 24 anos, completamente deslocado, eu nunca tinha saído de casa, sozinho, saí só para ir para a praia sozinho uma vez. Então, depressivo, usando preto e não sei o quê, mas eu fui. Aí lá em Pedro Canário, o Nino e eu encontramos mais dois amigos do Nino, e de Pedro Canário até São Paulo foi uma viagem de carro, muito louco, aí caralho, muito louco, foi a primeira vez que eu tive contato com viado, sem sofrer nenhum tipo de recriminação, só umas bicha falando putaria dentro do babado do carro, falava de homem, falava de pegação e eu ali: “Não acredito que estou ouvindo tudo isso, caralho, que legal.” Quando eu cheguei em São Paulo, foi de madrugada, eu não sabia o que era frio, eu cheguei em junho, 8 graus. Quando eu cheguei em São Paulo, saindo da Dutra, para acessar a Marginal Tietê, Rádio Jovem Pan, tocou you are… [Pegou o celular] Aí meu Deus, desculpa, essa é a música da trilha sonora da minha chegada em São Paulo, é que eu vou pegar é da Kelly Rowland, se eu não me engano, é irmã da Beyonce, se não for o povo vai me matar aí, os Beyhives, deixa só eu pegar o nome da música que eu acho muito bom, Kelly Rowland, sei lá, When Love Takes Over, aí eu estou sem internet, que merda, estou sem internet no celular, mas enfim, era essa música: When Love Takes Over. E quando o carro saiu da Dutra e entrou na Marginal, aquela neblina do caramba, aquele frio, e eu fui acordado, porque eu estava dormindo no banco do passageiro na frente e eu fui acordado por essa música e comecei a chorar loucamente, mas era uma lágrima de alegria, de felicidade, de liberdade. Fui morar na Vila Maria, Zona Norte de São Paulo, perto da Avenida Deputado Emílio Carlos, perto do Cachoeirinha. E aí cheguei, ele tinha uma lan house, eu fui trabalhar na lan house dele. Ele era casado, o Nino, com o Sebastião, com o Tião na época, e aí eles me levaram para uma noite em São Paulo, noite gay. Bicha, quando eu vi esses aranhas céu, os prédios enormes, fiquei chocada. Quando eu entrei no Metrô a primeira vez, a escada rolante, tive acesso, foi foda, muito lindo. Quando eu cheguei na [Avenida] Vieira de Carvalho, na região da República e do [Largo do] Arouche, Vieira de Carvalho é a Avenida que liga a República com o Largo do Arouche, a gente estava andando, estava vindo um casal gay de mãos dadas, e eles deram um beijo, pararam e deram um beijo, atrás deles, estava vindo uma viatura da polícia, eu fiquei morrendo de medo, de que os policiais pudessem fazer alguma coisa com eles, mas não, passou. Ali, o meu Orgulho começou a crescer, a nascer, ali meu Orgulho começou a flamejar e a minha revolta também, como a gente não pode ter uma Vieira, um Largo do Arouche em cada canto do Brasil? Por que eu não tive acesso a isso? Por que eu não pude amar normalmente? Por que eu tive que me esconder? Por que eu fui torturado fisicamente, psicologicamente? Por que tentaram me corrigir? São Paulo tem uma puta sorte, quem nasce aqui tem uma puta sorte, sendo LGBT. E aí, estou morando lá no Nino e eu sou um cara que gosta sempre de inovar, e aí era lan house mano, Counter Strike, eu já tinha vindo lá da Bahia, Counter Strike, The Sims, eu comecei a criar campeonato de Counter Strike dentro da lan house do Nino, e aí varava a madrugada, eu tomando conta da lan house, a galera jogando, e aí o Tião ficou enciumado, a gente saiu na mão, brigamos. E aí eu saí da casa do Nino, fui morar na casa de uma senhora de cinquenta e poucos anos, que tinha dois filhos pequenos, numa casa com banheiro, cozinha e quarto, na Brasilândia. Ali eu comecei a trabalhar na Atento, estava desempregado, comecei a trabalhar na Atento, a Atento da Liberdade, na região da Rua Galvão Bueno, depois, agora eu vou começar a dar uma resumida, tem muitos detalhes lindos nesse trajeto inteiro. A primeira vez que eu fui na balada foi na Blue Space, gata, quando eu vi, o que era aquilo, gente? No dia que eu fui, eu peguei a performance de Lady Gaga, Judas, a bicha foi crucificada e a crucificação dela ficou no ar. Mano, quem conhece a Blue Space, é um negócio lindo. O Victor, que hoje eu conheço, como militante LGBT que sou, tenho o privilégio, então eu conheci a Blue Space, conheci a Tunnel, que não existe mais, conheci a Danger Dance, conheci… A Tunnel existe, perdão, o que não existe é a Freedom, no Largo do Arouche. Conheci a Blue Space, conheci a Tunnel, conheci a The Week, conheci a Freedom, conheci a Danger Dance, conheci a Pink, conheci a D-Edge, conheci todas as baladas em São Paulo, mas durante esse período, eu saí da casa daquela amiga minha, de cinquenta e poucos anos que tinha dois filhos e fui morar na Zona Leste, em São Miguel Paulista, na Rua Santa Rita, pegava o trenzão para vir trabalhar na Liberdade, lá na Ermelino Matarazzo não, pelo amor de Deus, Jardim Helena, Vila Mara… Meu Deus, um baiano vivendo aquilo pela primeira vez. Um belo dia, eu acordei na minha folga, com a namorada do Max gritando loucamente, pedindo ajuda, pedindo socorro, ele tinha tocado álcool no próprio corpo e queria se queimar e queimar ela, incendiar tudo. Eu fui sequestrado pelo Max, não sabia que ele tinha esquizofrenia aguda, e era meu colega de trabalho, hétero. E aí deu o GATE, o GATE lá, em São Paulo, com negociador e tal, helicóptero da Record, rua fechada, ambulância, polícia para caramba, nunca vi tanta polícia na minha vida, eu dentro do meu quarto e ele falou que, se eu saísse, me matava com a faca. Eu fui a primeira pessoa que ele liberou na negociação, depois conseguiu liberar a Aline e depois se entregou. Depois, eu descobri que o Max era filho de militares no Rio de Janeiro, a mãe dele veio no dia que aconteceu tudo isso, no dia seguinte eu acho, chegou em São Paulo com o pai, padrasto dele, o pai dele não veio, não sei se tava morto, enfim, não soube da história do pai dele, e o Max amarrado no Hospital, se cagando inteiro, pedindo desculpa, pedindo desculpa, como não tinha ninguém, eu fui lá para ficar com ele, a inocência do moleque, né mano? Isso foi em abril, dois dias antes do meu aniversário, 08 de abril, a mãe dele chega no hospital, e fala: “Hélcio, eu vou entregar a casa”, mas eu não tinha dinheiro, para onde eu ia? Eu fui para a rua, morei na rua, na região da República, e para sobreviver, de início, eu fiz programa, então eu trabalhava na Atento e fazia programa, e com o dinheiro da Atento e dos programas, eu aluguei um quarto em uma pensão em Higienópolis, e morei lá durante um ano. Depois, eu fui morar em um quarto junto com outro amigo, na Rua Vitória, em frente ao Bar Queen que eu também conhecia, não falei da Queen mano, o Bar dos Amigos. Então, como eu era garoto de programa, e estava no epicentro da noite LGBT paulistana, eu conheci tudo ali. No dia do meu aniversário, eu estava na [Avenida] Vieira de Carvalho, com a mochila e sem minhas malas, porque as minhas malas, eu deixei na Zona Leste, com o vizinho de baixo, depois eu fui pegar, na rua, em abril, mas mesmo assim eu me senti acolhido, porque naquele dia eu conheci o Fernando, que depois se tornou um grande amigo meu, ele nasceu e mora em Pindamonhangaba, terra do Alckmin, e o Fernando morava na casa de uma bicha, me levou para casa dessa bicha, dormi lá um dia, mas no outro dia eu não tinha onde dormir, aí eu fui dormir na casa de outra bicha, e eu acordo de madrugada com ela tentando sexo comigo, e eu não queria transar com ela, e ele falou assim: “Se você não transar comigo, você vai embora”, aí eu tive que fazer sexo com ele, foi aí que eu me tornei garoto de programa. E eu era lindo, eu ainda sou lindo, eu era lindo, mas na verdade eu ainda sou lindo, eu falei de novo. (risos) Malhado, magrinho, todo lindo, novinho, baiano. E aí eu conheci a noite LGBT paulistana, mas nunca usei drogas, e nunca roubei ninguém, e foi uma das melhores épocas assim, sabe? E aí eu conheci o Bruno, o Bruno Domingos que se tornou meu primeiro amor em São Paulo, você quer fazer alguma pergunta? Se não eu vou falando.
P/1 – Não, eu ia te perguntar como foi esse momento na rua? Como foi esse momento na rua?
R – Eu tive sorte, que eu não fiquei muito tempo na rua, e eu não dormi na calçada, eu não tinha onde dormir, eu não tinha onde morar, eu dormia na casa de um, na casa de outro, na casa de um, na casa de outro, durante um bom tempo, dois, três meses. Então, eu ia por exemplo, quando eu estava trabalhando na Atento, e morava em Higienópolis, até que hoje eu odeio salsicha, porque eu só comia salsicha, macarrão e miojo, nossa, que horror. O salário mínimo era 600, 500 reais na época, e aí, também, o programa deu garantias, então cada conquista que eu tinha, mano, era lindo, minha primeira cama de casal, meu primeiro computador, minha primeira geladeira, meu primeiro fogão. Então, eu fui entendo a noite, como funciona o universo gay, ali, naquele momento, e por mais que carreguem o universo gay, inclusive nós, a comunidade LGBT, a gente carregue o universo LGBT de forma muito negativa, mas é um universo de apoio, um apoia o outro, literalmente, conheci muita gente ruim na rua? Conheci gente ruim, mas eu acho que universo, por mais que esse drama todo pesado, que para mim hoje, olhando, foram ensinamentos, porque poxa, e não tinha acesso a nada na minha cidade, de repente eu estou em São Paulo , no centro de São Paulo, sem conhecer nada e nem ninguém mano, entendeu? Então, eu tive sorte de não conhecer muita gente ruim, sacas? Eu sempre tive esse feeling para fazer boas amizades, por exemplo, drogas, eu não me meti com drogas, coisa e tal, não roubava e tal, essas coisas todas, eu nunca fiz isso. Conheci pessoas lindas ali na região, sabe? E aí veio 2013, as manifestações de 2013, foi ali que eu comecei a me engajar politicamente, um dos livros que conta aquela história, não vou lembrar o nome do livro também, meu Deus, eu não lembrei o nome da cidade da minha mãe, não lembrei o nome do professor, não lembro o nome do livro. No livro, aparece uma foto minha onde eu levei uma bala de borracha na [Rua da] Consolação com aquela rua que leva até os bares ali do Mackenzie, a gente estava subindo em direção à [Avenida] Paulista. Nossa, fiquei com tanta raiva do governador Alckmin, prefeito Haddad na época, dali eu comecei a me engajar politicamente, taquei pedra na polícia na [Rua] Augusta, em frente ao extinto Panamericano ali, Hotel Panamericano. [trecho retirado a pedido do autor], não fui um black bloc, mas fiz muita amizade nas manifestações, com anarquistas, descobri o Anarquismo. [trecho retirado a pedido do autor]. Então, eu fiz amizade com a galera da Ação Antifascista em São Paulo, com os black blocs, conheci a galera, foi um momento muito lindo na minha vida. Na campanha de 2014 de Dilma, teve um encontro LGBT no Largo do Arouche, onde Jean Wyllys, que era um herói para mim, naquela época, foi, a Ideli Salvatti foi tomar água na minha casa, caraca, que daora, Ideli Salvatti foi tomar água na minha casa, pediu para carregar o celular dela, o iphone dela, aí eu levei ela em casa, deixei carregando, ela foi lá em casa, muito daora, que era a Ministra de Direitos Humanos na época da Dilma. E aí eu tive contato com Marielle Franco, caraca, tive contato com Marielle Franco, com a Mônica, e aí eu comecei a me interessar por política. E aí tendo a infraestrutura do governo do município de São Paulo, Prefeito, Vice- Prefeito, Secretário dos Direitos Humanos Suplicy, que eu também conheci, e o coordenador que é o Alessandro Belchior, Coordenador de Políticas Públicas da Comunidade LGBT da infraestrutura da Prefeitura. Um belo dia, eles fizeram um projeto chamado Week na Praça né, que ainda existe esse projeto na internet, e eles fizeram um evento para falar sobre a comunidade LGBT e eu participei desse evento, tinha um grupo, um coletivo de famílias LGBT da região que estava responsável pela parte LGBT dentro do projeto Week Praça, mas como é que é? É uma galera da Vila Madalena, um pessoal do Week Praça, uma galera da Vila Madalena, todos héteros, que estavam dentro do território para falar sobre ocupação do espaço público, e achando que o espaço era de todos, que a cidade… Sabe aquela noção super branca, classe média, carnavalesca caviar, de que a cidade é de todos? Utopia do caralho. Não é de todos, nunca foi de todos, é de todos para quem tem dinheiro, né? Para quem é branco, quem mora na Vila Madalena, classe média alta. E aí o babado foi que eu assumi, não deu certo a parte LGBT do projeto, eu assumi, porque eu comecei a participar das reuniões, dos eventos, eu assumi a parte. Eu lembro de ter assumido em uma noite em que o Alessandro, através da solicitação do setor LGBT do projeto, pediu uma infraestrutura, só que não utilizaram essa infraestrutura, então ele teria que responder ao Tribunal de Contas do Município porque não utilizou aquela estrutura, porque não tem foto, não tem vidéo, não tem nada para provar que o dinheiro investido naquilo. Aí eu falei: “Alessandro, e o Alessandro desesperado, não sei o quê, me ignorando completamente, eu falei: “Posso tentar utilizar a estrutura?” Ele falou: “Como?”; “Posso?” Aí eu peguei a caixa de som, na época, levamos para debaixo da estrutura, fizemos um grande festival de funk, as bichas dançando funk, e eu falando no microfone, animando as bichas. Aí eu fiquei na Week Praça até o final, em 2016, veio golpe contra Dilma, foi triste demais, eu fui para Brasília participar das manifestações anti golpe, minha primeira viagem para Brasília dentro de um ônibus contratado pela Apeoesp, Associação dos Professores do estado de São Paulo, a Bebel que era a presidenta, maravilhosa a Bebel, e eu falei: “Bebel, eu não sou professora, posso ir? Porque eu estou com muita vontade de tacar um alguma coisa, um ovo na cabeça do Eduardo Cunha.” Eu odiava o Eduardo Cunha, “Vamo, vamos lá.” Só que a gente não foi para depredar, lógico, as manifestações dos movimentos sociais não são para esse tipo de coisa, mas a repressão da polícia foi muito foda, eu fui preso lá em Brasília, mas ninguém ficou para trás, os ônibus só sairam e voltaram para São Paulo quando todo mundo foi liberado. E aí em uma segunda viagem para Brasília, eu já sabia e tinha conversas, conversava,conhecia muita gente e tinha grandes amigos ali no Arouche, por conta do projeto Week Praça, e aí eu reuni uma galera, e falei: “Bebel, vocês vão para Brasília na manifestação do dia tal?” Ela falou: “Vamos.”; “Tem espaço para mim e para mais quinze viados?” Aí ela falou: “Só vocês, quase, lota o ônibus.” Eu falei: “Está bom.” “Para quinze não tem, mas tem para sete.” Fui eu e mais sete bichas para lá, inclusive um dos que morava comigo, Pedro, que hoje é skinhead, mas só para as pessoas entenderem, skinhead não é neonazista, skinhead é uma cultuta jamaicana preta, que foi levada para Inglaterra, e que, infelizmente, a polícia burra de São Paulo classifica skinhead como neonazista, neonazista é uma coisa completamente uó, skinhead é uma coisa da subcultura, de esquerda, muito mais ligada ao anarquismo, é bom deixar esse registro. E aí o Pedro, que hoje é skinhead, fomos todos para lá, para Brasília, quando eu voltei eu perdi meu emprego. Lá vou eu de novo para a rua, não estava conseguindo trabalhar, fazendo um programa aqui, outro ali, definhou, veio a crise, né? Para tirarem Dilma eles tiveram que criar uma crise econômica, as pautas bombas de Eduardo Cunha, a classe média não sentiu isso, as classes mais ricas, mas nós que estamos nas ruas, quem é pobre, sentiu. E eu que era garoto de programa e trabalhava como call center na Tivit, se eu não me engano na época , hoje é Neobpo, a gente sentiu isso, então fiquei sem dinheiro, porque os clientes não procuravam mais, não tinham tinham dinheiro, cortaram os gastos e, um dos gastos, era sair com garoto de programa ou queria pagar muito pouco. E aí lá vou eu para a rua, em 2016, muito energético.
P/1 – Eu ia perguntar se foi o momento que você deixou de estudar?
R – Ah, então, teve o babado do estudo. Então, antes de tudo isso acontecer, em 2012, eu fazia programa, trabalhava na… Não era mais na Atento… Era, era, na Atento, mas era na São Bento, na área de segurança de um cartão de crédito na época do extinto Banco Ibis. E aí, eu fazia programa e trabalhava, então eu estava ganhando muito dinheiro na época, e a minha mãe, pagava faculdade particular de Administração para minha irmã, bancou a pós graduação dela, banca a Medicina da minha irmã na Argentina, e eu sempre pedi para pagar a minha faculdade aqui, nunca quiseram, e aí eu comecei a pagar minha faculdade na Uninove, estudava na Barra Funda. Então, eu pagava minha faculdade, e teve um momento em que eu não consegui mais pagar, e aí eu tranquei a faculdade de Jornalismo e Comunicação Social. Foi um dos momentos mais maravilhosos, que eu curti muito fazer, mas o primeiro semestre é bem chato, né? O professor veio me pedir para fazer, o que ele pediu para fazer, gente? Pediu para fazer gibi! Eu falei: “Viado, estou aqui para mudar o mundo, como é que você quer que eu faça gibi?” Mas enfim, era primeiro semestre, segundo semestre, e aí, meu irmão, eu abandonei a faculdade. Quando eu estava na rua já, uma travesti que, infelizmente, morreu durante o Covid-19, Valeria Rodrigues, me tirou da rua e eu fui morar com ela na Zona Oeste. Fiquei morando um tempo com ela, ela já era uma militante fodida, e aí eu tive contato com Fernanda de Moraes, que é uma militante trans que ajudou a fundar a ANTRA, que é a Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Eu tive contato com militantes da comunidade LGBT paulista e paulistana, foi uma oportunidade linda, porque eu viajei para Peruíbe, viajei para diversos lugares, participei, em Florianópolis, morando na casa da Valéria, do seminário de putas, travestis e… Como é o nome dela? Monique Prada, que é uma feminista babado, elas criaram, as feministas brasileiras, prostitutas, criaram um seminário e eu fui participar desse seminário, como garoto de programa, era Saúde nas Esquinas, em 2016, abril de 2016, eu fiz aniversário no dia de uma das partes do seminario, mas antes disso, eu juntei skinheads, antifascistas e bichas e fizemos o primeiro ato e evento do Coletivo dos Arochianos no Largo do Arouche, dia 3 de abril de 2016. Como surgiu o Coletivo Arouchianos? Como eu já tinha aquele feeling vindo do Week Praça, e contato por diversas militâncias, eu já era militante, mas eu odiava a militância de elite LGBT paulistana, que é uma militância branca, que não gosta de meter o pé no asfalto, que não gosta de meter o pé na lama, e que pensava políticas públicas que beneficiavam, primeiro, a classe média. Por exemplo, a Lei 10948 que criminaliza a LGBTfobia no estado de São Paulo, quem tem mais acesso a lei, quem tem dinheiro para pagar um advogado para processar uma empresa caso aconteça um caso de LGBTfobia em um estabelecimento comercial, por exemplo? Quem é pobre, vai procurar a Defensoria Pública, e a gente sabe como a Defensoria Pública é pequena diante do problema, o acesso a justiça é caro, mas é uma política pública criada por essa galera que não entende o que significa ser LGBT de front, e aí eu comecei… Me tornei o inimigo número um da militância LGBT paulistana. Eu tinha um blog chamado Beuclair pelo Mundo, onde eu tive oito milhões de acessos e teve uma travesti que foi presa, que é a Verônica Bolina, foi presa por espancar uma senhora idosa, na região ali da Bela Vista, ok, presa, processada, trâmites normais, até aí tudo bem, só que ela foi espancada dentro do 2º DP, do Bom Retiro, cortaram o cabelo dela, espancaram ela de tantas formas, que desconfigurou o rosto, e tiraram, o pessoal do GOE, que é o Grupo de Operações Especiais da polícia civil, tirou uma foto dela algemada com as mãos para trás, algemaram os pés, sem camisa, com os seios à mostra, completamente sem cabelo e desfigurada. Como eu tinha um blog, eu era um famosinho dentro da militância, enfrentava a militância LGBT de elite branca, as gays brancas, esse material chegou na minha mão, hoje eu posso dizer de onde veio o material, porque já foi. Lembra do Alessandro Melchior, o coordenador municipal LGBT? Ele, chegou esse négocio, ele poderia ter jogado na mão de qualquer jornalista, mas a Globo já tinha feito uma matéria falando que a Verônica Bolina foi espancada dentro do rolê por internos, porque ela tentou sexo com os homens e era mentira. Por que era mentira? Porque chegou um áudio para mim, em que a, então, coordenadora estadual, governador, vice governador, secretário de justiça, ela, Heloisa Alves, um áudio falando para Verônica dizer que não foi torturada, para dizer que não queria ser utilizada, porque, ela falava com a Agatha Lima, que era a presidente do conselho estadual LGBT, que a Ágata tinha que disseminar rápido essa áudio da Verônica, porque já existia um cara chamado Helcio Beuclair falando que a Verônica tinha sido torturada nos porões do governo Alckmin. E aí isso chegou na minha mão, as fotos que o Alessandro disponibilizou, os áudios, e eu boom, joguei no meu babado. A janela da minha casa, na Rua Vitória, n.º 821, apartamento 4, 4° andar, foi alvejada de tiro, na época, [trecho retirado a pedido do autor], eu chamei atenção na região, isso não era bom, mas ao invés dos caras, depois que eu fui chamado para as ideias: “O que está acontecendo? O que você está fazendo aqui? Polícia, tiro na sua porta? Não sei o quê” Eu expliquei o que eu era, tudo que tinha acontecido, e o chefe da época, [trecho retirado a pedido do autor], então ele segurou a minha e eu não fui, porque, pela lógica, eu tinha que sair dali, daquela região. Então, eu era perseguido pela militância LGBT, porque eu denunciei a Heloisa Alves na época, então ela foi protegida, inclusive, Laerte Coutinho defendeu Heloisa Alves na época, grandes nomes da militância, o advogado que defendeu a criminalização da homofobia no Supremo Tribunal Federal e que ajudou o casamento civil no STF, deixa eu lembrar o nome dele, meu Deus, como é que é o nome dele? Eu estou com o rosto dele na minha mente e não estou lembrando o nome dele, ele também me perseguiu, então a militância começou a vir atrás, então eu era perseguido pela militância LGBT, pela polícia civil, porque eles descobriram onde eu morava, aqueles tiros na minha janela não foram disparados pelo crime, foram disparados por policiais civis, que pararam, quem conta isso são as testemunhas ali da região, pararam o carro, miraram na minha janela e dispararam para tentar me intimidar. E eu saia de casa quase nunca, então eu fui parar na rua, que eu estava sem trabalhar, fazia programa, o programa não estava mais rendendo, e aí aconteceu esse negócio da Verônica Bolina, então, fui para a rua, a Valéria pegou e me levou para a casa dela. Eu fui para o Saúde nas Esquinas lá de Florianópolis, quando eu voltei, dia 3, as bichas fizeram o primeiro ato/evento em São Paulo, só que para eu chegar lá em Floripa, eu fui de ônibus, né? A galera foi toda de avião, eu fui de ônibus, porque eu consegui fazer uma vaquinha com a galera, porque eu queria sair de São Paulo um pouco, para tentar respirar, então eu pedi para os amigos fazerem uma vaquinha e pagarem a minha passagem para Floripa, para participar do Saúde nas Esquinas promovido pelas feministas, putas e travestis. Só que daqui até lá, o ato/evento, primeiro ato/evento, 3 de abril de 2016, em um domingo, ocorreu sem mim, porque eu já estava na estrada no ônibus, porque, dia 2, eu tinha saído de São Paulo, quando eu cheguei lá, participei do seminário, blá, blá, blá, e dia 08 foi meu aniversário, eu estava lá no seminário ainda, quando eu voltei a São Paulo, a gente mandou ver no Coletivo Arouchianos. O Coletivo Arouchianos foi idealizado por mim, e co-fundado junto com Gedielson Rodrigo e Lucas Killer e a nossa ideia era que a gente se juntasse para fazer e manter seis objetivos: primeiro, manter e defender a ocupação histórica da comunidade LGBT no Largo do Arouche, que há mais de 60 anos é ocupado pela comunidade; segundo, defender as pessoas mais vulneráveis, porque a polícia militar, tinha um sargento lá, chamado sargento Bigode, o sargento Pires, ele gostava de ter um bigode igual de Adolf Hitler, igualzinho, e eu enfrentava o Bigode, mano, botava o dedo na cara dele, fui para ALESP denunciar ele na Comissão de Direitos Humanos, fui para a Câmara Municipal, na ALESP, eu não consegui nada, porque o Giannazi era fraco, a esquerda era fraca na ALESP, mas na Câmara Municipal de vereadores eu consegui, porque quem era o presidente da Comissão Extraordinária de Direitos Humanos e Cidadania na Câmara era o [Eduardo] Suplicy, que eu já conhecia, então, levei a situação para o Suplicy, ele chamou uma audiência pública junto com os movimentos sociais, chamou o responsável pelo policiamento da região, e deram um —, fizemos a manifestação na República, porqur esse Sargento Pires, o Sargento Bigode, em 2017, saiu pela região da República prendendo as travestis, acusando elas de se prostituirem na República, e na República tem uma EMEI, que é uma escola de crianças, né? E aí essa é a justificativa, para limpar o rolê. E aí a gente fez uma manifestação lá no rolê, e eu no microfone, raivosamente, gritando, eu nem sabia que tinha autoridades lá na manifestação, e eu falando: “Existem bons policiais, e a instituição da polícia militar é importante que exista, e bababa.” Aquele discurso político. “Mas existem os maus policiais, e existem bandidos…” Quando eu falei bandido, meu irmão, brotou polícia militar do inferno, o major com mais vinte policiais, vieram para me dar voz de prisão, e do nada, eu nem sabia que estava lá, o deputado estadual Américo, José Américo, eu nem conhecia o José Américo, ele falou: “Opa, carteirada, não vai prender o cara.” E eles lá batendo boca e eu continuei no meio aqui, então eu fui um pouco irresponsável nessa época, e aí eu comecei a ser perseguido pela polícia militar também, e era babado, e era babado. Mas, eu não tinha medo não, tinha uma base da polícia no Largo do Arouche, e as bichas viam as árvores assim, a noite dava uma sombrinha, as bichas gostavam de beijar ali de baixo, porque a maioria… Quem frequenta o Largo do Arouche historicamente são LGBTs que vem das periferias pobres da capital e da região metropolitana, migrantes como eu, imigrantes, bolivianos, peruanos, palestinos, haitianos, senegaleses, angolanos, que usam a região para ser quem são, e aí meu irmão, quando essas bichas, para não serem vistas beijando outras bichas, iam para esses lugares mais escondidinhos que ficam exatemente do lado da base, ele fazia o quê? Esse Sargento Pires, mandava o cabo, mandava o soldado tirar a bicha lá, e aí eu fazia um carnaval, meu amor, gritava e a galera filmando, não sei o quê. E aí aconteceu, o Coletivo Arouchianos, todos os domingos, a gente fazia junto com a ocupação LGBT, não era o Arouchianos que fazia a ocupação, o Arouchianos era, ainda é, uma ferramenta dessa ocupação. Então, tem esses seis objetivos: o primeiro, garantir a visibilidade e a permanência dessa ocupação histórica; segundo, proteger as LGBTs mais vulneráveis; terceiro, fomentar e dar visibilidade a arte e cultura LGBT, porque ali era antro de feitura da noite cultural e artística LGBT, da noite paulistana, Márcia Pantera inventou o bate cabelo ali, a ________ fez o rolê ali, Silvetty Montilla, Salete Campari, tantos outros nomes, a Cris, vulgo Cris Negão ali, que é a nossa Madame Satã paulistana, então é uma região, uma mina de ouro, só que a militancia LGBT palustana não estava interessada nisso, porque quem eram? Pretos, drogados, egressos do sistema penitenciário, prostitutos como eu, a galera com HIV, indígenas, ‘um bando de bolivianos fedidos’, então eles não queriam saber disso, nunca olharam para aquela região, e é o maior bairro LGBT do mundo, e quem diz isso não sou, quem diz isso é a guia gay São Paulo, que fez o levantamento, primeiro levantamento de comércio, ele nem olhou para pessoas, ele olhou para comércio, então é o maior conglomerado de comércios voltado para o público LGBT do mundo. E aí eu tive contato com Stonewall, chegou 2017, meu amor, a gente está lá no Largo do Arouche, o Dória ganha as eleições, a primeira coisa que ele fez, em 1º de janeiro foi tomar posse, e ele foi lá para a Praça 9 de julho, 9 de julho não, [Praça] 14 bis, na 9 de julho, aquele dia que ele se vestiu de gari, e, na entrevista, falou que um dos projetos para o centro de São Paulo, para a revitalização, era começar pelo “boulevard francês” no Largo do Arouche, e o sonho dele é que tivesse uma carruagem ligando o Largo do Arouche com a Praça da Luz. Aí eu olhei aquilo e falei: “Como assim, mano?” É por conta da porra do traçado da praça? É por conta do traçado da praça que foi um presente do governo francês, que é inspirado nos jardins franceses? É por conta do, sei lá, do La Casserole, que está lá onde ele gostava e ainda frequenta para comer? É por conta da Academia Paulista de Letras que está lá no Largo do Arouche? É por conta do Gato Que Ri, que é um dos restaurantes italianos mais.. É por conta disso? E a ocupação LGBT, mano? E aí a gente começou a fazer a luta dentro do rolê e foi uma luta linda de se ver, porque eram bichas que moravam na rua, que foram para dentro da Academia Paulista de Letras, para ouvir o projeto feito pelo Triptyque, um escritório de arquitetura francesa, com um projeto pronto, e cadê a comunidade LGBT? Nada, e aí a gente começou a fazer articulação dentro da praça. Muitas bichas adoraram o projeto, porque é um projeto arquitetônico que vai melhorar a praça, mas o que chamou atenção e a gente conseguiu convencer muita gente, é que por trás do projeto, vamos falar por trás não, de forma muito clara, de forma muito visivel, existia dentro do projeto, dentro dessa bolha, uma bolha, um projeto publicitário e um projeto higienista, gentrificador da região do Largo do Arouche, de apagamento da comunidade LGBT, não era a primeira vez que a comunidade LGBT sofria esse tipo de apagamento, o Richetti tentou fazer isso na Operação Tarântula, a epidemia de AIDS tentou varrear as bichas dali, bichas apareciam todos os dias mortas na década de 11990, década de 1980, a pauladas e a tiros na região, e a ocupação histórica da comunidade LGBT são de travestis e transsexuais, são elas que trabalhavam na Rua Amaral Gurgel, na Rua Rego Freitas, na [Rua] Santa Isabel, na [Rua] Marquês de Itu, na [Rua] Major Sertório, que ainda ocupam lá, claro que sofrendo, hoje, uma grande pressão, porque tem uma galera branca da Vila Madalena que quer gourmetizar aquela região ali, aí tem um monte de bar que surgiu depois da [Casa do] Porco e eles põem seguranças, então a travesti que está ali fazendo o programa, tem aquele monte de gente passando, os clientes não chegam, e aí os seguranças mandam essas travestis saírem dali também, então toda aquela região que era ocupada para fazer programa por travestis, que era o que tinha de emprego para elas, deu merda. E aí eu comecei a ser perseguido também por conta disso, e eu ainda estava sem trabalhar, morando lá na casa da travesti, da Valéria Rodrigues, só que chegou um momento que a crise também pega ela, então eu não consegui mais morar lá e éramos super amigos, a Valeria Rodrigues e eu, e a Nicole também, Nicole Bair morava também na casa com o namorado dela, e aí eu me vi na rua de novo, em plena luta contra o processo do boulevard francês, eu estava na rua. Mas, mesmo assim a gente conseguiu fazer o que, aí eu fui parar em Mogi das Cruzes, foi até bom porque eu fiz uma descansada mentalmente, foi importante, na casa de um militante de Mogi das Cruzes, que é o Luiz, professor Luizinho, que é do PCO, na época, do PSTU, hoje, ele eu acho, mas é uma figura de esquerda maravilhosa, professor de geografia, gay, a gente se conheceu, ele me conheceu na Conferência Estadual LGBT quando eu quebrei o pau, nas conferências estaduais, ai caramba, muito louco, militância é uma viagem, os bastidores é quebra pau mas, no final, está todo mundo junto, contra os inimigos que querem nos devastar. E aí, bebê, essa luta, nos aproximou da Repep, a Rede Paulista de Educação Patrimonial, que estava fazendo o inventário participativo da região do Minhocão, que é o Minhocão contra a Gentrificação, e aí eles me entrevistaram para esse rolê, e eu falei: “Caralho, patrimônio histórico, a comunidade LGBT não têm patrimônio histórico? “ E eu nunca tinha entrado no Museu da Diversidade Sexual que ficava na República, e o Museu da Diversidade Sexual nunca tinha feito nenhuma exposição contando sobre essa ocupação histórica da comunidade LGBT na região, querida, nós fomos para o Condephaat, porque para a execução da obra inicial o Conpresp precisava autorizar e o Conpresp é o órgão municipal de patrimônio histórico, só que eles atropelaram lá, aprovaram e a gente nem conseguiu se articular para participar dessa reunião do Conpresp, então a gente conseguiu ir para o Condephaat, cheguei no Condephaat que é onde funciona ali a Sala São Paulo, como Secretária de Cultura do estado de São Paulo, chegamos lá às 8h da manhã, a reunião começava às 9h, e aí foi a primeira vez que o Condephaat ouviu falar sobre patrimônio histórico da comunidade LGBT, durante três horas, eu ocupei três horas, e o presidente mandando eu calar a boca, e eu não vou, e os conselheiros dizendo: “Deixa ele falar, é importante que ele fale, mas tem a pauta para aprovar, vamos votar para deixar ele falar.” E rodou e eu continuei falando, tem um áudio gravado, e não podia gravar, mas gravou. A gente conseguiu uma luta muito boa no Condephaat, porque a gente conseguiu retardar a aprovação, porque, naquele dia, ia aprovar o início das obras, então a informação que a gente levou para dentro do Condephaat retardou essa aprovação, aí eu sugestionar ao presidente e aos conselheiros do Condephaat que fosse feita uma audiência pública para falar sobre patrimônio histórico da comunidade LGBT e nos ouvir, porque o Triptyque achava que uma bandeirinha colocada no Largo do Arouche estava bom, só que não, a gente quer participar de todo o processo, a gente quer que o João Dória, quando for lançar a pedra fundamental da construção da praça, fale que ali é uma região ocupada historicamente pela comunidade LGBT, ele era o prefeito da cidade de São Paulo, que tem a maior Parada do Orgulho LGBT do mundo, que é o segundo evento que mais traz dinheiro para a cidade de São Paulo, que tem o maior bairro LGBT do mundo, e que não é reconhecido pela prefeitura, até aquele momento. E aí bebê, conseguimos, o presidente aprovou para criar essa audiência pública, só que o governo do estado atropelou, a audiência pública nem aconteceu, eles chamaram uma reunião extraordinária só para lidar com essa questão do Arouche e aprovaram o início das obras. Só que a gente continuou fazendo os atos/eventos na praça, nós tínhamos dois eventos semanais dos Arouchianos, quartas feiras fazendo as assembleias abertas, o que que é assembleia aberta? Onde a gente discute questões do Arouchianos e onde a gente faz formação suprapartidária, política suprapartidária sobre feminismo, então a gente traz uma feminista para falar com as bichas sobre feminismo, onde a gente traz uma pessoa do movimento negro para falar sobre as questões do negro, a gente traz uma pessoa de esquerda para falar… A direita não tem espaço? Não, não tinha espaço. E aí meu amor, aos domingos era o resultado dessas assembleias, então a gente tinha aos domingos atividades artísticas, que tinha as apresentações e as batalhas de Vogue, batalhas de Twerking, são as bichas dançando funk, dançando axé, jogando queimada, roda de conversas sobre temas que eram decididos na assembleia, então a gente falar sobre HIV/AIDS na praça, a gente levou a Maite Schneider que é uma das criadoras do transempregos para falar Empregabilidade LGBT e, principalmente, trans. A gente levou o Léo Paulino, que é um dos homens que fundou o IBRAT - Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, enfim, a gente fez uma rede e toda quarta e domingo a gente fazia o rolê. Só que eu vinha de Mogi das Cruzes para São Paulo, lembra que eu morava em Mogi das Cruzes? Então, eu vinha de Mogi com uma caixa de som, lá de Mogi até São Paulo, toda quarta e todo domingo, fazer esse rolê, foi cansativo? Foi delicioso, porque eu amo fazer política, amo estar na rua, amo fazer tudo que eu faço, porque fazendo tudo que eu faço, e junto com os meus, fazemos juntos, a gente planta sementinhas para que jovens e crianças lá no futuro não precisem passar pelo que eu passei, esse é o objetivo final.
P/1 – Eu queria te perguntar, tem uma casa, né? Dos Arouchianos, eu queria saber qual a importância… Como surgiu essa casa, e qual a importância do acolhimento que ela traz?
R – Para chegar na Casa de Acolhimento LGBT Arouchianos, a gente precisa passar antes em algumas coisas, a obra estava acontecendo na praça, e a gente estava gritando, literalmente, e aí Sâmia Bomfim, que era vereadora, junto com Eduardo Suplicy chamou a primeira audiência pública, foi na Casa do Professor, lembra da cura gay, das manifestações? Teve a primeira manifestação e teve a segunda manifestação, a segunda manifestação começou na Praça do Ciclista e terminou na audiência pública, lá na Casa do Professor, na Rua Bento Freitas, na audiência pública sobre o Largo do Arouche. Deu polícia militar, porque tinha gente querendo entrar, e já estava lotado, a escada lotada, o salão lotado, foi uma coisa linda, a audiência teve que parar porque tinha muita gente. Aí eu queria botar uma caixa de… A audiência pública foi chamada pela Comissão de Direitos Humanos, então toda a estrutura de som, de imagem, a TV Câmara estava lá, era da Câmara, e aí eu sou uma bicha de rua (risos), meu Deus do céu, eu queria botar a caixa de som na janela, para o povo lá fora ouvir o que estava acontecendo ali dentro, e aí enfim, teve que encerrar, mas foi lindo a audiência pública, foi muito importante, foi convidado o Triptyque e eles não foram, que era o Greg Bousquet, da Triptyque, foi convidada a Prefeitura, a Prefeitura não mandou ninguém. E aí tinha um Coordenador, na época, do Dória, que era o Ivan Batista, e ele começou a fazer a articulação dele e da militância LGBT branca contra nós. A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, que é a APOLGBT, também foi contra nós, também foi a favor do projeto do Triptyque, por quê? Eram bichar semi-analfabetas, sem ensino superior, putas, viado de rua, garoto de programa, travesti, sapatão, homem trans, levantando bandeira sobre patrimonio histórico, é inadmissível isso, gata, enfrantando o governo municipal? É inadmissível isso, eles não fizeram, a gente fez, a revolta de Stonewall não foi feita pelas bichas brancas engravatadas, foi feita por essa bichas também, e foi tão natural que eu, a única coisa que foi utillizada de mim, foi minha voz, o resto eram todas nós. Eu me arrepio inteiro, se você estivesse no meu corpo agora você sentiria o mesmo arrepio, e eu me emociono, porque travesti como Fernanda Frazão, morando na rua, lutando para que ela tenha o direito de ter o Largo do Arouche como lugar dela, e eu ouvindo lá: “Cala boca, bicha ‘aidetica’”, uma outra travesti falando, enquanto eu estava falando no microfone, em um dos domingos de ato/evento do coletivo: “Cala a boca, bicha ‘aidetica’.” E eu respondendo com amor para ela: “Irmã, a senhora está na colocação, louquíssima, bicha, eu preciso falar com as bichas sobre os assuntos…” “ Ah, você fala muito, viado.” “Falo mesmo, eu sou louca, louquíssima, sou da rua também, você está boa? Vem ouvir.” E ela veio: “Vou ouvir o que é essa palhaçada que você está falando, então.” E chegou, sentou, ouviu, foi maravilhoso, depois ela cometeu suicidio mais tarde, eu vou chegar lá. As obras acontecendo e a gente fez o primeiro Natal Comunitário LGBT Arouchanos, hackeamos o natal, o Papai Noel era um homem preto, [trecho retirado a pedido do autor] e a Mamãe Noel foi uma travesti, nós hackeamos o São João, Santo Antônio, Santa Pietra, Santa Joana, e fizemos o primeiro Arraial Comunitário LGBT Arouchianos no Largo do Arouche, só que não é só festa, é comida, então tinha aquela bicha que estava me ouvindo falando, gritando no microfone semanas atrás para trazer alguma coisa, um prato de comida, ela descendo do apartamento cujo a porra do condominio é 2000 reais, descendo com um prato de torta na mão, botando na mesa, e ela entrando na fila para comer junto com o morador de rua, tanto no natal, panetone, refrigerante, apresentações artisticas, e São João com a quadrilha junina no Largo do Arouche. E as obras acontecendo, as obras aconteceram, foram quatro milhões de reais investidos no Largo do Arouche, e é bom registrar isso, quatro milhões de reais investido no Largo do Arouche para colocar concreto cru na praça, e é isso. Veio a pandemia, eu estava casado, na época, com o Cicero Edson Praça de Oliveira, e a gente morava, eu fui morar com ele em Santo André, depois que eu saí do Luizinho, eu fui morar com o Pedro, lá na Zona Norte, junto com o marido dele, o Pedro que inclusive morou comigo na Rua Vitória, o skinhead, morei com o Pedro lá na Zona Norte, não vou lembrar agora o nome do bairro, mas enfim, foi na Zona Norte, depois fui morar com o Edson em Santo André, depois de Santo André, nós mudamos para Itaquera, de Itaquera, nós fomos para onde? Pacaembu, moramos no Pacaembu. Quando eu estava morando com o Edson, veio o quê? A Pandemia, final de 2019, início de 2020, só que antes da pandemia acontecer, meu amor, a gente estava morando no Pacaembu, como eu falei, e ele falou assim: “O Hélcio…” Aí tinha a Fernanda, que é integrante do coletivo, uma travesti preta e que estava morando na rua, de baixo do Minhocão. Érika Malunguinho foi eleita deputada, primeira deputada estadual eleita, travesti, da história toda no estado de São Paulo, e é parceira nossa, era, depois vou chegar nesses negócios, Érika, eu te amo, mas enfim, por que você fez isso? E aí nós fomos para uma audiência pública sobre um projeto de lei que queriam proibir travestis e transsexuais no estado de São Paulo de praticar esportes junto com mulheres cis, olha que loucura, está doida, anticonstituicional, fomos lá e participamos de audiência, e aí nós fomos para o gabinete da Érika, e aí quando a gente saiu lá de casa nós fomos todos de Uber, foram dois Ubers para levar os integrantes do coletivo e aí na volta, voltamos lá para casa no Pacaembu, e aí eu perguntei para a Fernanda: “Você vai para onde?” E ela estava com uma mochila grande assim, bem robusta: “Vou para a rua, estou morando embaixo do Minhocão.” Você entendeu o babado? A travesti estava lutando por esportistas travestis, a travesti preta em situação de rua, morando de baixo do Minhocão, acreditando em um projeto do Arouchianos, como integrante do Coletivo Arouchianos, como Co-coordenadora de Arte e Cultura do Coletivo Arouchianos, investindo na própria arte dela, permitindo dança dentro da praça, interpretar Beyoncé, interpretar Anitta, foi para a ALESP brigar pelas bichas e quando a gente voltou ela estava na rua, aí o Edson, o Cicero Edson falou assim: “‘Mor’, se a gente conseguisse uma casa de dois quartos, com o mesmo preço que a gente paga aqui…” Era 1200 reais na época.”... A gente chama a Fernanda para morar com a gente.” Aí a Tia ngela, a Vovó do Arouche, a gente chama ela de Tia ngela extamente por isso, porque as bichas chamam ela assim, eu contei para ela: “Ai tia, eu precisava arrumar uma casa, a senhora não conhece nenhuma casa?” Aí ela falou: “Ai, vou procurar aqui no Brás.” Ela mora no Brás, e aí ela achou uma casa, e aí ela ligou para mim, a gente foi lá, Edson e eu fomos lá, achamos uma casa com dois quartos, sala, cozinha, banheiro, porão, terracinho. Eu falei: “Caramba…” Mesmo preço, cem reais a mais, 1300 reais, eu falei: “Caraca, daora, vamos chamar a Fernanda, Fernanda vem…” “Não.” A gente mudou, nós fizemos uma surpresa para ela, nós mudamos e chamamos ela para morar, ela falou não, no final de 2019, eu falei: “Caramba, tá, a casa está aqui.” Outubro de 2019, nós mudamos, passou novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, veio pandemia, e aí tinham integrantes do Coletivo Arouchianos, a Fernanda, o Tales, o Anderson e tals, e outras pessoas, todo mundo em casa, só que a Fernanda não tinha onde morar, aí ela decidiu vir morar com a gente, porque ela ficou com medo de ficar na rua, pegar a doença e morrer, então ela veio morar, mas antes dela, veio o Anderson, o Tales, aí veio a Fernanda, aí veio a Vanessa, quando eu vi estávamos morando em sete dentro da casa, e aí eu olhei assim e falei: “Caralho, estamos em sete pessoas.” Só quem estava trabalhando na época era o Edson, como cozinheiro, auxiliar de cozinha, como é que a gente vai pagar o aluguel, mano? Eu fazendo os meus bicos, mas não dava nada: “Como que a gente vai pagar o aluguel dessa porra, e para comer?” Aí eu falei: “Casa de Acolhimento LGBT Arouchianos.” Aí a gente criou o projeto, pedimos doações, conseguimos trinta e pouco mil reais, só que durante esse processo que a gente estava pedindo cesta básica, pedindo para as pessoas doarem dinheiro para a gente poder manter a casa e tal, pessoas começaram a mandar mensagem para gente no Instagram e no Whatsapp pedindo ajuda: “Socorro, não tenho o que comer.” Quem são essas pessoas? Travestis, prostitutas, elas são as primeiras impactadas na comunidade LGBT, e garotos de programa, porque elas não conseguiam mais trabalhar, então a gente, por exemplo, atendeu uma casa de travestis, de cafetina, onde moravam trinta travestis, entendeu? Com cestas básicas, porque aí a gente começou a pedir as cestas básicas não só mais para gente, a gente criou uma campanha, aí a gente criou as ações humanitárias LGBT Arouchianos contra a Covid-19, a primeira ação a gente entregou dez cestas básicas no Largo do Arouche, graças a Casa Chama que fez uma parceria conosco, e disponibilizou. A gente começou a pedir doações para cesta, a gente não tinha pedido ainda nas primeiras, aí o Digo, que é um homem trans, um dos fundadores da Casa Chama falou: “Por que vocês não pedem doações? A gente está pedindo também.” “Como assim pedindo doação para cesta básica?” “Pede doação.” Aí veio logo o pix, o pix facilitou para caramba, porque aí o pessoal conseguia depositar na hora, e aí a primeira vez foram dez, a segunda vez foram vinte, na terceira foram cinquenta, na quarta ação humanitária, que era realizada aos sábados, a gente entregou duzentas cestas básicas no Largo do Arouche. E aí começou a se aproximar de celebridades noite LGBT, aí a striper Ella Uber que morava lá, que é uma artista fudida da nossa comunidade, morava lá em Berlim, viu nossa campanha, doou, avisou para as amigas, aí começaram a se aproximar as drags, todo mundo começou a pedir dinheiro para a gente conseguir fazer a campanha, do nada chegou a Lindsay Paulino que é do Multishow e interpreta a travesti presa lá e tal, e ela começou, do nada a gente está lá, porque assim, a gente para fazer as entregas, a gente escolheu fazer as entregas no Largo do Arouche, primeiro, como símbolo de luta, mesmo na pandemia, as bichas estão ocupando o Largo do Arouche, segundo, é um espaço aberto a gente não ia chamar todo mundo apra um galpão para entregar cesta básica, terceiro, a gente marcava no chão, com fitas, para que as pessoas… Distanciamento. E aí a coisa começou a ter uma proporção, eu precisei de voluntários, então eu comecei a pedir dinheiro e pedir voluntários, e um desses voluntários foi Lindsay Paulino, do nada, com um amigo nosso que era é o Caio Paulo, são amigos da Lindsay, levaram a Lindsay e a Lindsay foi voluntária nossa, querida, e eu falei: “Caralho, que daora, mano, vamos investir nesse rolê para a gente alimentar aquelas bichas.” E aí o ano de 2020 foi babado, a gente da Casa, o que distraia a gente na casa, porque a gente estava em isolamento, eram as ações comunitárias do Coletivo Arouchianos, que a gente passava a semana inteira. As cestas básicas, a gente pedia dinheiro, a gente conseguia alcançar, sei lá, 10000 reais, que era 60 reais, se eu não me engano a cesta básica, depois ficou mais cara, a gente comprava as cestas, as cestas chegavam lá em casa, só que lá em casa, a minha casa é a sexta casa no fundo de uma vila, então a gente carregava do caminhão até em casa, em casa a gente chegava, botava máscaras dentro do rolê, dentro da cesta básica, botava produtos de higiene pessoal e para casa, colocava livro, colocava camisinha, colocava teste de HIV, graças a ONG Pela Vida que começou a ceder teste e camisinha, teste de HIV, camisinhas, lubrificante, então a gente fez uma mega cesta básica que não era mais cesta básica, já tinha um monte de coisa lá, e a gente foi… A casa começou a se transformar, a casa é pequena, gente, imagina cem cestas básicas para a gente organizar em uma sala, a sala ficou tomada, quase até o teto de cesta básica, e aí do nada, mano, não é do nada, graças ao nosso trabalho, a Igreja Anglicana dos Estados Unidos viu, porque a Igreja Metropolitana dos Estados Unidos, que foi primeira igreja LGBT nos Estados Unidos, viu nosso trampo, chegou lá fora, e eles doaram 250000 dólares, para a gente doar cestas básicas, mandou para a sede da Igreja Metropolitana Anglicana no Brasil, que é aqui em São Paulo, o reverendo comprou as cestas, o dinheiro não veio para a gente, o que a gente queria eram as cestas básicas. Para eu lidar com dinheiro era muito mais difícil, porque eu tinha que receber o dinheiro, prestar as contas, comprar as cestas. Se você comprasse as cestas para mim, já me tirava o problema de prestação de contas, está ligado? Então, vocês resolviam tudo. E aí maravilhoso, chegou a comprar as cestas, só que essas cestas com 250000 reais 250000 dólares, as cestas começaram a vir como? Leite… E aí a gente foi para: “Onde vocês compram as cestas?” A gente comprava na CVS, aí eu falei assim: “Não vamos comprar na CVS não, vamos comprar do MST.” E aí a cesta veio com orgânicos, com leite, foi uma cesta enorme, querida. Cada cesta básica quase 200 ‘pau’, meu irmão, e a gente levava 200, 300 cestas básicas por sabádo, pagava frete, frete 400 ‘pau’, parça, 400 para ir, 400 para vir, que eu levava estrutura, tenda, levava caixa de som, e as cestas, e aí tinha o Uber, porque a gente não podia ir todos na caminhonete, comprava álcool em gel, todos os voluntários de máscara e com face shield, higienizando a mão o tempo inteiro mesmo com luva, luva vinha até aqui. E aí, meu irmão, a gente conheceu o Ãngelo Assumpção, que explodiu a coisa do ngelo no final de 2020, e aí quem entrou em contato conosco foi o racista, [trecho retirado a pedido do autor], que fez o infeliz crime, comparando o saco preto que é de lixo, o saco branco que é de supermercado com o ngelo, e [trecho retirado a pedido do autor] entrou em contato conosco pedindo para poder ajudar a campanha e tal, e aí eu aceitei, porque eu não sabia desse rolê, que tinha acontecido, aí as bichas pretas também do setorial antirracista do Coletivo Arouchianos que falou: “Hélcio, não!” Aí eu falei: “Opa, calma, o que aconteceu?” Aí me mostrou e eu falei: “Opa, não vai rolar com você.” Aí eu entrei em contato com o ngelo, o ngelo estava fazendo vaquinha, não estava mais conseguindo trabalhar lá no Esporte Clube Pinheiros, e aí a gente doou na época, foram 200 reais para o ngelo, eu chamei atenção o ngelo, aí o ngelo se tornou parceiro nosso, e aí ele foi o Papai Noel [trecho retirado a pedido do autor].
P/1 – Helcio, eu queria saber, você morou em vários lugares de São Paulo, e desde que você veio, eu queria que você fizesse uma reflexão sobre acolhimento, se todo lugar é acolhedor aqui em São Paulo? O acolhimento que você veio procurar aqui, em quais lugares você encontrou? Essa pergunta assim, ela é ampla, porque eu queria que você pensasse mesmo na questão do acolhimento aqui em São Paulo.
R – “Não existe amor em SP." É isso, não tem, é dinheiro, São Paulo é dinheiro, tudo bem também, a gente aprende a jogar o jogo, eu aprendi a jogar o jogo de São Paulo, eu aprendi a hackear as bichas ricas da Oscar Freire, dos Jardins, do Morumbi: "Vem amiga, arrasa, vem aqui, vem conhecer, vem ser voluntária com a gente, viado." Bichas que nunca tiveram contato com uma travesti, foram lá entregar cesta básica apra travesti, mas não só entregar cesta básica, elas tem que atender, e aí antes do atendimento eu fazia uma rápido cursinho para falar: "Respeitem o nome social, entendam o que significa o que vocês estão fazendo, cuidado, porque vocês vão atender pessoas que podem estar com a higiene pessoal, são pessoas pobres, precisando comer, imagina a higiene social, entre comer e higiene pessoal, você acha vai escolher o quê? Não façam cara feia, de nojo, não usem, “vou utilizar álcool em gel para manter a segurança”, justificando sempre. " Então, a gente fazia um treinamento com essa galera, então eles tiveram contato pela primeira vez. Sobre bairros, o que eu vou dizer é um pouco difícil, mas precisa ser dito, as maiores violências contra comunidade LGBT acontecem em bairros mais pobres, os maiores crimes cometidos contra a comunidade LGBT acontecem em bairros mais pobres, por quê? Porque em bairros mais pobres existem mais igrejas neopentecostais evangélicas do que bibliotecas, galerias de arte, teatros, acesso à informação, então essas pessoas que são oprimidas pelo sistema, também reproduzem suas opressões, então no Pacaembu, eu fui feliz, em Higienópolis, eu fui feliz, no Centro, eu fui feliz, nos bairros mais afastados, eu tive problema, eu não podia andar de mão dada em Brasilândia, na Vila Maria, em São Miguel Paulista, no Jardim Helena, em Mogi das Cruzes, no Tremembé, lembrei o nome do bairro lá na Zona Norte, onde eu morei com o Pedro e com o marido dele, ex, agora eles são amigos e moram juntos. Era difícil, e ainda é, mas a gente ainda se ilude, tem pessoas que ainda se iludem: “Ah, mas está melhor”. Até a página dois, saca? A LGBTfobia existe, a LGBTfobia está aí, por mais que o Supremo tribunal Federal tenha criminalizado a nível de racismo , e ontem, porque hoje é dia 22, ontem dia 21, além de ser criminalizado de forma coletiva no nível de racismo, também é de forma individual a partir de agora, como injúria racial, que é inafiançável e leva até cinco anos de cadeia. Então, não existe amor em SP, é verdade, e quando eu falo amor, amor, quem constroi essa cidade, quem construiu essa cidades são migrantes e imigrantes, são pessoas que vieram com essas experiências, por exemplo, tem uma coisa que eu falei lá no ínicio da nossa conversa, que a minha família é grande, e aqui tem uma visão de família, pai, mãe e filhos, no nordeste, por exemplo, família é até primo de terceiro grau, e com muito orgulho, e com muito amor. Imagina uma casa lotada, uma casa de dois quartos, lotada de criança, de adultos, nas férias de verão, saca? As pessoas, quem comete esses gestos de amor que também existem, mas a cidade em si, ela é bem cruel. São Paulo é uma mãe farta dos seios grandes, mas é a cidade das ilusões também, pessoas que se envolvem com a dependência química, principalmente, eles tendem a ter mais dificuldades. Então, para a comunidade LGBT no total, principalmente para pretos, indígenas, pobres, migrantes como eu, imigrantes, a coisa fica mais difícil, e a gente só se sente seguro na região central de São Paulo, ponto. Passou da República, e teve acesso na Barão de Itapetininga você já não se sente tão seguro, chegou na [Avenida] Paulista, complicadinho ainda, passou da [Avenida] Paulista e vai para Paraíso, calma, beijo na rua e andar de mãos dadas é babado. E tem, falando em [Avenida] Paulista, a região do Largo do Arouche, como eu disse, é mais de 60 anos ocupada pela comunidade LGBT, mas tem uma rua em São Paulo chamada Frei Caneca que é ocupada pelos gays, só que as duas ocupações são diferentes, você olha para a Frei Caneca e vê gays brancos, ricos e de classe média, bombados, aquele estereótipo da Barbie, que é o estilo da comunidade, você olha para o Largo do Arouche, para a República, você vê a Comunidade LGBT, a Frei Caneca é a comunidade gay branca, na região do Largo do Arouche: pretas, indígenas,migrantes, imigrantes, LGBTQIAPND+.
P/1 – A gente já está chegando nas perguntas finais, a primeira delas, eu queria saber qual o legado que você traz para o futuro?
R – Eu sempre quis ser imortal, desde criança, sempre quis ser imortal, uma criança que leva um crânio para dentro do rolê, ela não veio para o mundo a passeio, né? O meu corpo é uma ferramenta, e eu nasci onde eu nasci, eu estou onde estou, passei pelo que passei, continuo vivo, depois de tentar suicido, depois de passar por tudo que eu passei, porque meu corpo é uma ferramenta, de luta, como diversos outros corpos, ferramenta de luta. Então, eu utilizo tudo aquilo que eu aprendi dentro das Testemunhas de Jeová, oratória, tatatatata, a oportunidade que eu tive de estudar em um colégio de freiras no ensino fundamental, então boa educação, eu hackei tudo isso e utilizo para quem precisa. Quem é que leva bichas para dentro de casa que nem conhece, para morar? A gente, bichas que foram acolhidas, acolhem, eu fui acolhido por Valeria Rodrigues, eu fui acolhido pelo Nino, fui acolhido pelo Luiz, fui acolhido pelo Edson, fui acolhido por tantas pessoas que eu também acolho. O legado que eu quero é uma estátua minha no meio da praça da minha cidade em Itamaraju na Bahia com no nome da praça mudado, pode ser qualquer outro nome, mas não Praça Castelo Branco, que é o nome do ditador lá, da ditadura, mas eles vão construir uma estátua para mim lá, eu sei que vão, eu queria muito. E aí tem amigos meus que me perguntam: “Helcio, porque você nunca voltou para Bahia, mano?” Eu voltei uma vez, mas não foi para Itamaraju, eu voltei para Salvador, eu fui em Salvador, para encerrar a nossa conversa, eu acho que ia ser muito simbólico, não que a gente vai encerrar agora, você vai ter mais perguntas, sei lá. Quando eu fui para Salvador, porque a minha tia Nivalda, ela saiu de Itamaraju e foi morar em Salvador, então ela também se desprendeu do núcleo familiar, e sofreu por isso também, porque ela saiu de uma cidadezinha micro, que na época dela ainda era mais micro, e foi para a capital da Bahia, ela tinha feito já Administração, e agora estava se formando em Direito. E ela pediu, ela veio para São Paulo uma vez, me chamou para assistir o Rei Leão, eu inclusive gritei lá de cima: “Uuuuh” (vaia) no Rei Leão. Mano, você acredita que as hienas estavam falando no musical do Rei Leão como se fala a galera da periferia de São Paulo? “E aí parça, não sei o quê, mano…” E aí eu falei: “ Feio para caralho…” Ou seja, as hienas, as ‘bandidas’ do rolê utilizando essa linguagem, inclusive eles fazem isso ainda no musical, eu acho ridículo isso. Ela que me levou para assistir, porque quando eu cheguei em São Paulo, eu não contei isso para vocês, eu sempre fui apaixonado por teatro, eu amo teatro, amo, amo, amo. A criança que brincava com a vela com o espelhinho, a criança que brincava com os dedinhos, amo teatro. Eu fui ver teatro pela primeira vez em São Paulo, na minha cidade tinha o Cine Teatro Orion, e eu queria fazer uma peça de teatro lá, eu até escrevi uma peça de teatro “Um Amor entre Pedro e Tiago”, só que você acha que vai fazer no meio do rolê? O dono do teatro que é da Seicho-no-ie ainda, enfim, e aí eu assisti musicais em São Paulo, no Teatro Procópio Ferreira, Bibi Ferreira, Procopio Ferreira assisti no teatro, enfim, foi lindo, e a minha tia Nivalda, como eu estava sem dinheiro, quando ela vinha para São Paulo, ela adorava vir no frio para usar os casacos dela, que na Bahia não faz frio, né? Minha tia Nivalda é maravilhosa, e ela me chamou, e eu assisti com ela Priscila, A Rainha do Deserto, no Teatro Bradesco lá no Shopping Bourbon, assisti o Rei Leão, no Teatro Renault lá na [Avenida] Brigadeiro, e assisti várias peças, assisti o Teatro Oficina, Renata Oliveira, travesti interpretando Jesus, lá no Teatro Oficina do Zé Celso, Zé Celso maravilhoso, muito da hora, inclusive o irmão dele foi assassinado na República, né? Babado, gay. E aí eu sempre fui apaixonado por teatro, sempre adorei esse rolê, e eu sempre tive o sonho de fazer também, escrever alguma coisa, quem sabe? Eu deixe memórias, essa história vire um livro, eu deixe memórias, romances, eu acho muito daora, quem sabe? E aí a minha estátua, não esqueçam da estátua de fazer para mim, viado.
P/1 – Hoje foi um recorte da sua história, né? A gente queria poder ficar mais, e contar mais, você contar mais para a gente da sua história, mas eu queria saber como que foi contar esse recorte, como foi relembrar sua trajetória até aqui?
R – Dá medo, né? Fazer o que eu fiz agora é bem difícil, porque você literalmente se expõe, né? E não se exponha apenas, porque a minha história é o outro também, né? Eu, sozinho, não existo, então eu expus todo mundo, eu expus os meus pais, meus pais podem ser odiados, não odeiem eles, tá? Só eu tenho direito, a louca, mas não odeio eles, eu amo eles, de verdade. Quando eu fui para Salvador, quando a minha tia Nivalda, ela pediu para eu subir para entregar o diploma junto com a minha avó na colação de grau dela, e o meu pai foi, foi a única vez que eu vi meu pai. De 2008 até hoje, eu nunca mais vi minha irmã Raabe, minha irmã Jéssica, pessoalmente, Raabe, Jéssica, minha mãe Simaria e eu não tinha visto o meu pai, a gente estava andando pelo terreiro de Alá, a Praia de Alá, lá na Costa Azul, no bairro Costa Azul onde minha tia mora, em Salvador, e aí conversando com meu pai e tal, e aí aquela coisa, era 2018, 2017, 14, 14? 14… Eu já tinha algumas noções, eu já estava com a visão mais libertária, então eu sabia que tinha que engolir mais alguma coisa ali, e aí meu pai perguntando sobre a minha vida, aí eu: “Aí meu Deus, puta que pariu, lá vem ele fazer sermão, ser homofóbico mais uma vez, mas vamos lá, eu estou acostumado.” Aí ele faz uma pergunta: “E você está namorando alguém?”; “Puts, vai perguntar sobre mulher, mano, vai falar que ele tem o sonho de ter um neto, vai falar que eu sou o primeiro filho homem e único filho homem dele.” “Não pai, não estou namorando ninguém, estou solteiro e tal.”; “Você tem que arrumar um namorado, cara.”; “Como assim, namorado?” “É, não pode ficar sozinho, tem que ficar com alguém.” Então, a minha mãe, é só por telefone, Dia das mães, não se comemora, Testemunha de Jeová, mas já liguei algumas vezes para ela, e a gente cai sempre nessa nessa celeuma, nesse babado de embate, ela é ariana, eu sou ariano, ela é guerreira. E tem uma coisa que meu pai terminou dizendo, ele assumiu a culpa de tudo que ele fez, das surras, das correntes, das pauladas, e tem uma coisa que ele falou que eu acho muito importante e que, naquele dia, quando ele falou aquilo, muitas das minhas feridas foram cicatrizadas, e eu concordo plenamente com ele. “Eu te bati, passou, mas o que me levava a fazer aquilo é o conhecimento que eu tinha.” A ideologia cristã ultraconservadora, ou qualquer religião ultraconservadora, ou qualquer visão fascista estimula seus pais a cometerem o ódio e violência em nome do amor, então eu entendo plenamente, perdoar é uma palavra muito difícil, mas eu entendo, eu respeito, eu aceito e eu agradeço pelos momentos mais lindos e mais felizes que eu já vivi na minha vida, agradeço pelo alimentação, eu agradeço pelo carinho, agradeço pelos dodóis curados, agradeço pelo sorriso, agradeço pela disciplina boa. Meu pai era um cara, que loucura, um cara que, antes de me dar uma surra, falava: “Antes de te bater, eu vou te falar porque você está apanhando, porque você vai apanhar, eu quero que você saiba.” Mas ele também tinha essas loucuras de tipo, pegar o cinto, dava o cinto na minha mão e mandava eu me autoflagelar: “Se você não bater com força, eu vou te espancar.” Essa é a estrutura em que ele foi criado, um menino de quatorze anos apanhando a ponto de urinar e vomitar só porque estava jogando futebol, o que ele vai carregar como adulto? Então, eu acho que é uma oportunidade, eu não sei se eu vou ser pai, hoje eu sou pai de dois cachorros, dois gatos, dez peixes e quatro pássaros, não, seis pássaros, não sei se eu vou ter filho humano. Minhas irmãs também não tem filhos, Raabe tem 37, Jéssica já tem mais de 30, eu não tenho filhos, elas não tem filhos, por que será? Mas a culpa não é deles, é isso que eu acho muito louco, a culpa é da porra da Biblía, a culpa é da merda da religião, e até quando? Espero que a gente consiga plantar alguma coisa hoje com o nosso trabalho, com a nossa energia, para que o futuro seja mais ameno, mais justo. E isso!
[Fim da Entrevista]
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