P/1 – Primeiro, Maria Luiza, eu queria que você dissesse pra gente o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Maria Luiza Guião Bastos, nasci em 1º de novembro de 1940, em Ribeirão Preto.
P/1 – Agora o nome completo do seu pai e da sua mãe. Se você souber a data de nascimento dos dois. Alcides Palma Guião, Paulina Figueiredo Ferraz Guião. Os dois nasceram em Cajuru, se conheceram lá. É isso?
P/1 – É isso.
R – Ele nasceu em 2 de março de 1892. Ele morreu com 104 anos, em 1997. E a minha mãe nasceu em 12 de dezembro de 1902 e morreu em 89, a data eu esqueci.
P/1 – O que seus pais faziam, Maria Luiza, profissionalmente?
R – Ambos professores. Ela era professora do que era o primário antigamente e ele era o diretor de uma escola profissional. Durante 40 anos foi professor de Matemática do Instituto de Educação Otoniel Mota, que era aquele colégio de antigamente, eu até acho que era o único, não tenho certeza. Brilhante professor de Matemática. Então muitas gerações fizeram Engenharia por causa dele.
P/1 – E como é que eles eram? Descreve um pouco pra gente a personalidade, o jeito deles.
R – Olha, ele como matemático era brilhante, ele fazia tudo. Na fazenda ele fazia enxerto, se ele resolvesse botar tomate com não sei o que, ele fazia, era brilhante. E com pessoas era um desastre total, absoluto. Nós éramos três Marias, ele quis ter. Ele era tão autoritário que ele disse pra minha mãe: “Nós vamos ter três filhas, as três serão Marias e as três serão rainhas”. A mais velha era a Maria Odette, eu nunca achei uma rainha com esse nome (risos). Eu era a do meio, Maria Luiza, que era a imperatriz que foi casada com Napoleão e todo mundo sabia que dava pra todo mundo. E a última, Maria Cristina, que foi da Suécia, eu acho. Ele dizia assim: “As três têm que ser mulheres pra cuidar de mim”. Então era um cara, assim, absurdamente autoritário até para os padrões daquela época. Por exemplo, ele era um professor muito rígido e ele tinha gêmeas, vamos supor, univitelinas, e elas faziam o que todas gêmeas fazem, né? E com ele não, porque ele descobriu que uma tinha uma covinha, então nas provas de Matemática elas não conseguiam enganá-lo. Era uma fera. E eu, infelizmente, ou felizmente, não sei, nasci ruiva. E a minha irmã mais velha, que era belíssima, me convenceu que eu tinha sido achada no trem, atrás da fazenda passava o trem. E a minha mãe não dizia nada, foi a mulher mais submissa que eu conheci. Eu vou morrer inconformada com isso, porque ela tinha um poder total, ele tinha loucura pelas filhas e ela deixou-o fazer tudo o que queria. Ele comprou um bairro, que hoje seria uma espécie de Vila Olímpia, e começou a construir casa para alugar. Depois ele fez um cinema, depois ele fez um restaurante, ele era meio assim, Silvio Santos. Eu preciso colocar aqui uma coisa que me marcou muito, ele fez a Poli em São Paulo e o irmão fez a Medicina na USP, os dois tinham uma diferença de um ano. E eles escolheram uma pensão na Rua Aurora, que naquele tempo era super chique, que só tinha americanos e eles queriam aprender inglês. E ele fez a tese do doutorado do irmão em Medicina em forma de desenho animado, porque ele era brilhante mesmo. Então o Walt Disney chamou-o pra trabalhar. A Universal tinha alugado um terreno chamado Hollywood em 1912 em Los Angeles e eles estavam procurando talentos pelo mundo. Ele foi chamado, o pai dele não deixou e ele não foi. Uma tia também era apaixonada por um rapaz que foi abrir uma fazenda em Mato Grosso, foi proibida. Essas coisas, desde que eu nasci eu não aceitava. Eu nunca consegui entender o poder que as pessoas tinham sobre outras pessoas e isso, afinal de contas, acabou definindo a minha vida. Como eu era muito bonita, dizem todos, eu não estava nem aí, eu queria ser inteligente, eles não me deixaram estudar. Você perguntou o que eles faziam? Ambos professores, minhas irmãs foram obrigadas a fazer faculdade e eu fui obrigada a não estudar. O primário eu fiz primeiro ano, segundo ano e quarto. Com nove anos eu me formei, eles acharam que não era importante, faltava aluno no quarto ano, uma coisa bárbara de barbárie. Depois eu fiz o vestibulinho pro Instituto de Educação, que naquele tempo era mais difícil do que entrar no ITA, passei em segundo lugar, porque eu rodei em Matemática, eu não fiz terceiro ano. Aí ele disse pra mim: “Você vai estudar na escola que eu dirijo, a escola profissional”, que era das sete e 20 às 17 e 20. Eu fiz mamadeira, bijuteria, cueca, bordados, tinha tudo o que uma moça prendada precisaria aprender. Só que naquela época eu já estava estudando latim, eu tinha paixão por estudar. Eu nasci na guerra, toda minha família tinha fazendas enormes e tinha o mapa da guerra na parede. A gente só tinha o rádio, eu lembro do recuo alemão, lembro claramente. Eu ficava sentadinha na sala, pequenininha, acho que eles nem notavam, aquele monte de fazendeiro de chicote, de bota. Brigavam, um odiava o Getúlio, o outro era não sei o quê, PRP, UDN, eu lembro. Mas tinha uma coisa que todos odiavam, que era um trem chamado Hitler. E aquilo eu ficava: “Mas eles brigam tanto, quem será esse tal de Hitler?”. Alguns tinham estudado na Europa; escutava os discursos de Churchill; de Hitler não entendiam nada, mas era uma gritaria. E o Jornal Nacional daquela época era no cinema. Em Ribeirão Preto tinha um número espantoso de salas de cinema, rodavam todas as noites. E os meus pais iam e me levavam, naquela época não tinha censura, não tinha nada. Então a guerra passava no jornal. Mas era uma coisa assim, se eu perguntasse eles não me levavam mais. Eu lembro do julgamento de Stauffenberg, que depois o Tom Cruise fez o filme Operação Valquíria. No final todos são enforcados, então eu perguntei pra minha mãe o que é essa cordinha no pescoço. Ela falou pro meu pai: “Melhor a gente não trazer mais essa menina”, eu fiquei quieta. Essa foi a minha formação. E no bairro que meu pai comprou, em 1928, tinha imigrantes espanhóis e italianos. Uma gente ótima, trabalhadeira, eles iam a pé pra cidade pela linha do trem, nem bicicleta tinham; famílias enormes. Eu escapava, ia comer macarrão. Ahhh, melhor macarrão que eu comi na minha vida foi numa dessas casas. E quando os animais atravessavam a cerca viva meu pai tinha uma winchester e matava. E eles diziam: “Mas doutor Guião, é o leite das crianças”, acho que era ovelha, eu não me lembro, era uma coisa horrorosa. Então nesse caldo, por exemplo, as minhas irmãs não lembram disso. Eu acho que a vida é uma questão do olhar, né? Porque às vezes elas dizem que eu invento. E meu pai quase foi assassinado e eu estava junto com ele. Eles iam, todos se reuniam, a casa tinha uma varanda enorme, chama-se Vila Japão: “Mas doutor Guião, queremos que chame Vila Vera Cruz, porque essa foi a terra que nos recebeu”. Eles falavam muito mal o português, tinham inúmeros filhos. Ele diz, eu lembro até hoje, Tereza, eu lembro até a cor do sol quando ele disse: “Vocês não são nada. Eu sou amigo do prefeito, dos vereadores, a minha santa de devoção é Terezinha, vai se chamar Vila Santa...”. Aquilo eu era minúscula, não estava nem na escola, mas eu não esqueço. Ele dizia assim: “Eu alugo casa, mas não alugo pra negro, pra militar e pra quem tem criança”. Eu pensava: “Vai alugar pra quem?”. E minha mãe, nada.
P/1 – E essa situação que você contou agora, Maria Luiza, que ele quase foi assassinado foi nessa circunstância?
R – Foi.
P/1 – Como é que foi isso?
R – O senhor Vicente Sacco que era um senhor que morava numa esquina, eu adorava ele! A mulher dele fazia um macarrão! A gente estava descendo de carro e ele jogou uma pedra gigantesca, ela passou zunindo entre as nossas cabeças. Poderia ter sido eu, né? Pra você ver a que ponto chegou o ódio. E como eu era muuuito pequena, eu não sei o que aconteceu com ele. Porque então era aquela família que tinha nome, tinha caráter, tinha honra. Dinheiro não existia, eles todos tinham uma vida de uma simplicidade monástica, mas ele exercia a autoridade em cima daqueles imigrantes de uma forma brutal! Ribeirão dizia, era o castelo do homem sem alma, que era um romance de Cronin, que era best seller naquela época. Aí uma vez eu tive um namorado aqui, já era viúvo e ele disse pra mim: “Eu não sei, de repente Ribeirão viu que o doutor Guião tinha duas filhas e uma era ruiva”, mas a gente vivia trancada. Levava na escola pronto, acabou. Ia no cinema, sei lá. Ele me punha de castigo porque eu fazia pergunta demais, eu o afrontava. Mas não era de propósito, eu queria saber, né? Uma vez ele me pôs de castigo tanto tempo, e ele tinha um diário. Ele disse: “Hoje você sai do castigo”, eu não tinha roupa, eu fui de uniforme de escola. Eu lembro de coisas assim. Uma vez eu estava em um salão de beleza, tinha uma Elle portuguesa, tinha um psiquiatra ruivo dizendo: “Quem nasce ruivo imediatamente entra em contato com a injustiça”. Eu devia ter roubado aquela revista (risos). Porque é verdade. Imagina, o psiquiatra e inglês, a Inglaterra está cheia de ruivos, né? Agora você imagina, Ribeirão tinha 25 mil habitantes. Meu pai teve o segundo carro da cidade. Ele parava na esquina e olhava se vinha pedestre (risos), porque não tinha sinal, não tinha nada. Então era uma vida assim, muito massacrante. As mulheres não existiam, as crianças não existiam. E eu existia porque diziam: “Cuidado, ela é bruxa”, eu escutava isso. E se você for observar, com o advento do Harry Potter essa história de ruivo bruxo voltou um pouco, quer dizer, não era imaginação minha. Eu lembro de uma vez na varanda da fazenda uma tia falar assim: “Além de bruxa, ela é escorpiana”, parece que é um negócio também que era... tanto que eu não entendia de signo, vivi a vida inteira sem saber, porque escorpião matava. Então essa foi a minha formação. O meu senso de justiça começou dentro de casa, então eu persegui a justiça, a verdade. Eu sou uma pessoa muito generosa, muito querida, muito comunicativa, eu adoro pessoas! Eu saio todos os dias, eu digo que eu levo a minha humanidade nessa necessaire, só que ela está numa bandeja de prata, com uma toalha suíça, com umas florzinhas amarelas. Porque eu escuto as pessoas, adoro escutar. O que eu sei de história. E eu comecei a pensar assim, essas pessoas que deveriam estar aqui. Tem uma caixa de uma padaria que quando abriu eu conheci, na Mello Alves, a Dengosa. A Iranete tem paixão por crianças. Casou a filha de 20 anos, ela me disse que ele tem o esperma morto, foi só assim. Resultado, ela engravidou e teve o neném. A minha filha não pode ter? Ainda tem 39 anos, vou ter um filho. Quer dizer, ela é uma pessoa extraordinária, não é?
P/1 – Você pode convidá-la também depois, Maria Luiza.
R – Ela é baixinha, gordinha, os óculos deste tamanho, feia, mas com uma segurança! Sabe uma pessoa adorável? Aí então eu levei um monte de coisa pra ela, de neném, ela teve neném em julho. Mas são várias pessoas, eu conheço um monte de gente. Então eu fui demitida em 2003, foi assédio moral, eu fui demitida a vida inteira.
P/1 – Deixa eu voltar um pouquinho, só antes de você contar essa história pra gente, das demissões, a gente vai chegar aí, mas eu quero voltar lá pra sua infância. Primeiro eu queria perguntar qual é a origem da sua família, os antepassados mesmo, de onde vieram?
R – O meu bisavô Guião devia ser cristão novo, porque os ruivos são judeus, né? Mas ele contava uma história que a mãe ia fazê-lo padre, como ele não tinha vocação ele fugiu. Aí ele se instalou no Rio de Janeiro, o paterno. O meu avô materno nasceu em Grão Mogol, norte de Minas. Perdeu os pais, veio tocando burro, analfabeto, ele veio com 12 anos. Ele foi o mais rico de toda família, tinha um tino comercial, teve uma fortuna. Eram famílias abastadas, mas de uma ignorância, eu não me conformo com isso! Alguns até estudaram na Europa. Mas eles olhavam mulher sem ver. Era mais do que um objeto, é uma palavra que eu não sei dizer. Porque isso eu via desde pequena, as mulheres na cozinha, elas não sentavam na mesa. As crianças tinham uma mesa separada, mas não podiam falar. Agora, a gente tinha cavalo, subia em árvore, nadava no rio, aprontava todas, né? Então eram dois universos. E eu tinha um monte de primo. Tem um provérbio do Pantanal que eu adoro: “Primos e ganso sujam a casa”. A gente assim, por exemplo, o Caio vai ter filho ou você, não vai ser nada disso, né? E é uma coisa fundamental.
P/1 – Quais eram as brincadeiras da sua infância, Maria Luiza? Do que você brincava?
R – A mais emocionante era a de esconde-esconde. Aliás, tem um conto daquele que fez o Apanhador do Campo de Centeio, tem um conto dele, o livro chama-se Nove Contos. São contos belíssimos. Uma criança morre. Porque a fazenda era gigantesca, a luz apagada, a gente tinha milhões de esconderijos. Mas quando alguém ia chegando pra pegar a gente. E esse conto descreve um menino que morre. Mas tinha cadeia, tinha, o que mais que tinha? Bola de gude não, isso não me lembro, se era, era só os meninos.
P/1 – E brinquedos? Você tinha brinquedo?
R – Não. Isso não existia. Não existia boneca, não existia nada. Tinha uma loja em Ribeirão, no centro, na Praça XV, eu passava e via. Onde as moças da alta sociedade exibiam seus enxovais, ali tinha, mas elas vinham da Alemanha, deviam ser caríssimas. Então eu fazia espiga de milho, eu punha terra no copinho e falava: “Vou levar café pro meu marido”, mas era tudo a gente que fazia. Agora, eu tinha um amor extremado por animais, não era uma coisa comum, não. Eu tinha muitos gatos, muitos cachorros, mas era uma paixão desmedida. E não sei o que eu fiz, a escada da cozinha era grande, eu chegava lá em cima e falava: “Meninos Um”, e vinham os cães, todos policiais alemães, aqueles pretos, lindíssimos. Aí eu brincava, ria, fazia: “Meninos Dois”, vinham os gatos. Como eu consegui isso? Eu não sei como eu consegui. Porque eu punha a gata prenha dentro do meu armário, senão minha mãe mandava jogar no rio os gatinhos. Aí de repente nascia uma ninhada, ia ficando, né? E eu tinha um cavalo, chamava-se Varisto. Aí chegou uma visita e falou: “Essa menina é tonta, ele chama Evaristo”. Foi a primeira vez que eu senti ódio na minha vida, eu me lembro até hoje. Era uma coisa que eu não sabia que existia. Eu queria matar aquela mulher. “Como Evaristo?!”, aí que paixão eu tinha por ele. E tinha uma égua que chamava Ituverava. Isso eu acho que também me fez muito, me fez ser diferente. Toda criança precisa da natureza e de bichos. Embaixo da cerca viva eu li Proust inteirinho, lembro até hoje. Aí um dia apareceu uma joaninha marrom com pintinha amarela, eu fiz um escândalo, chamei todo mundo pra ver. A vida era assim, as cores, a natureza, as estrelas! Os vagalumes! Aquela coisa que canta, cigarra. Nossa senhora! E a cigarra macho não canta. Você sabia disso? Sabia, Tereza?!
P/1 – Eu já escutei dizer, não sou uma conhecedora da natureza não, mas ouvi falar que só a fêmea que canta.
R – Aí a minha avó me chamou pra mostrar o satélite. Porque era assim, eu morava em Ribeirão e meus avós tinham fazenda em Santa Rosa do Viterbo. Uma fazenda enorme, ia até Tambaú. Um dia ela me mostrou um satélite, acho que deve ter sido em 57, o primeiro acho que foi russo, plena Guerra Fria. Então é isso.
P/1 – Conta um pouco como era essa casa. Você já descreveu um pouco, mas como era essa casa que você passou a infância. A fazenda, a casa?
R – A casa dos meus pais era sombria, era triste, porque eles não se amavam, não se davam bem e a minha mãe era assim, muito submissa. Eu me lembro do meu avô dizendo para ela: “Deixa esse homem que eu te dou uma fazenda”. E eu: “Deixa mãezinha, deixa!”. Porque fazenda pra mim era dos meus avós, em Santa Rosa do Viterbo. Essa era mágica. A minha avó era completamente, ela era um misto de Simone de Beauvoir com Madre Teresa de Calcutá. Ela tinha uma filha esquizofrênica, então a filha ficou doente com 15 anos e ela nunca mais saiu de casa, ela era trancada com grades, ela avançava. Essa mulher, ela me deu um apartamento na rua da Santa Casa, uma kitinete. E minhas tias falaram: “Lá só tem puta”. Ela falou: “Mas se a Maria Luiza quiser ser puta o problema é dela”. Ninguém tinha essa cabeça, entendeu, Tereza? Uma velhinha! Se fosse hoje, hoje ainda seria surpreendente, mas isso foi em 1965. “Mas se ela quiser ser puta qual é o problema? A vida é dela”. Mas ela tinha um monte de netos e ela disse que ganhou dinheiro alvejando saco. E ninguém reclamou. Até hoje eu não entendo como, era uma kitinete desse, acho que um pouquinho maior do que isso aqui, mas os netos ficaram quietos. E ela dizia que eu tinha o espírito superior. Então eu também era discriminada por causa disso, porque se ela elogiava, ela era espírita, mas ela era ecumênica, né? Ela me pediu um livro de João XXIII, ela falava esperanto, cantava esperanto. Tinha uma escola na fazenda e a professora tinha o quarto, o prato era melhor. E se algum colono tirasse o filho da escola ela demitia. E ela ensinava as crianças a cantar o hino em esperanto e as crianças aprendiam. Aí chegou um casal do Japão. Ali eu vi a minha avó assim, virar uma pocinha d’água. Porque ela tinha uma extrema paciência com os que vinham de Minas, todos vestidos de branco, você via as pulgas, sabe? Um saquinho na mão. Ela ensinava com o caixote a fazer móveis. Aí esse casal veio e plantou tomate. E às seis da tarde ela deixava a casa, subia e ia ensinar português e aprender japonês. Quer dizer, aquela inquietação. Eu nunca tinha visto minha avó sair de casa. Aí ela ficou chocada porque essa mão de obra que veio era fantástica, ela não tinha que ensinar nada. E os outros, ela dizia assim: “Minha filha, eles são pobres não porque eles sejam pobres, mas porque eles não tiveram educação”. Então eu cresci escutando o quanto a educação, você vê, até hoje se fala isso, só que ela viu, pelo casal japonês ela viu, a diferença foi brutal. E há uns cinco anos um neto ou bisneto foi à fazenda entrevistar o primo que herdou a casa, a sede. E fotografou. Ela escreveu uns livros sobre os avós no Japão e os avós falavam muito da minha avó. Eu fico só imaginando o que eles falavam, né? Então o cenário era esse, os dois eram rurais, em Ribeirão eu tinha os bichos, apesar de ser muito longe da cidade, mas tinha natureza. E perto era o Hospital Santa Tereza, de loucos. Os loucos fugiam, eu punha pra dentro também, não tinha porque ter medo. E tinha um que era gráfico, seu Antenor. Esse tinha um português! Devia ser Carlos Castelo Branco. Agora nenhuma mulher fugiu, eu não sei se não tinha mulher louca ou se a mulheres loucas não fugiam. Eu não tinha medo de nada, passava mendigo, vamos. Porque eu tinha um roseiral em frente da casa, eu cuidava. Então, minhas irmãs martelam isso até hoje: “Você é louca, você nunca teve medo de ninguém. Você dava comida, se não tivesse você fazia. Você ficava perguntando o porquê que o senhor chegou nessa condição”. Aí, Ribeirão tinha só Medicina da USP. Naquele tempo os rapazes vinham, só homens, do Brasil inteiro, primeira turma, mas eles ficavam os cincos anos. Não tinha dinheiro, não tinha avião, não tinha nada. Então, todas as minhas amigas casaram com médico, todas. Se acharam o máximo. Todos se tornaram grandes fazendeiros, grandes fortunas. E eu fugia deles, eu não queria casar, eu só queria sair de Ribeirão. Porque era uma terra muito pesada, era muito calor; calor é uma coisa que eu não suporto até hoje. Aí abriu Direito e uma prima da minha mãe, era Esther de Figueiredo Ferraz, meu pai me chamou e me disse assim: “Eu te deixo fazer Direito se você prometer que vai ser melhor do que a Esther”. Eu falei: “Olha, ela é famosa por causa das roubalheiras do Adhemar de Barros”, quer dizer, eu não tinha jogo de cintura, eu não conseguia, como fala isso, me ajuda?
P/1 – Era muito franca.
R – É, eu não conseguia. Que coisa, não? Eu era direta, e sou assim até hoje.
P/1 – Posso voltar um pouquinho?
R – Volta.
P/1 – Você mencionou a escola algumas vezes. Queria saber quais são suas primeiras lembranças da escola.
R – Ah, eram ótimas. Nossa, eu adorava. Eu tinha sete anos. Só que o diretor chamava-se Álvaro Cardoso. Ele reunia no pátio e falava assim: “Cadê a cabelinho de fogo?”, eu queria que abrisse um buraco. Eu era muito tímida. Mas eu acho que o cabelinho de fogo devia ser bom, ele que foi pedir pros meus pais para passar do segundo pro quarto ano. Naquele tempo os professores eram os pilares da comunidade. Não só eles ganhavam muito bem, como eles eram tudo, eram mais importantes do que os políticos, muito mais. Você vê a diferença, né? Agora eu adorava a escola porque eu estava aprendendo. Só que do segundo pro quarto eu perdi a minha turma e no quarto ano eu não sabia nada. Eu lembro que um dia uma professora me deu um tapa, eu estava na lousa. Eu me senti a última das criaturas porque eu não conseguia entender o que estava sendo dito. Parece que o terceiro ano é básico. Eu não sei contar, subtrair, eu não sei ordem alfabética; um pouco é de dislexia, mas abriu um buraco em mim, eu não consegui, por exemplo, estudar nenhuma língua. E gozado, eu entendo, eu não preciso nem ler legenda, eu entendo de tanto ir ao cinema, mas não consegui estudar. Isso eu acho que foi, porque as minhas irmãs odiavam estudar, elas queriam ser prendadas, elas que deviam ter ido pra escola profissional. Quer dizer, aí são as circunstâncias, né?
P/1 – E como foi na escola profissional? Conta um pouco como era?
R – Era periferia. Longe. O maior sonho das minhas colegas era casar com os rapazes das Lojas Pernambucanas. Ribeirão só tinha Loja Pernambucas, estava começando a abrir outras, não tinha Americanas, não tinha nada. Eu ficava perturbadíssima, eu falava: “Meu Deus, tudo o que eu quero é sair daqui”. E elas, a ascensão social era casar com os rapazes que vendiam, eu até fui lá pra ver como é que era essa coisa (risos). Mas eu pulava o muro e perto tinha a igreja de Santo Antônio tinha uma biblioteca. Eu achava a coisa mais natural, eu não estava gostando, eu pulava o muro e ia ler. Aí o bedel, o seu Luís ia de bicicleta me buscar. Aí eu fiquei muito doente porque não dava. Ah, e era assim, não podia fumar desde pequena; não podia mascar chicletes, não podia ler gibis. Era o tipo da coisa, eu acho que eu comecei a fumar de tanto escutar que não podia, né? Pois fui fumar no banheiro da escola profissional. As professoras me adoravam porque elas deviam ter muita pena de mim. As mesas eram enormes, com umas gavetas desse tamanho e dentro tinha tesoura, linha. Eu lembro que eu li “O Amante de Lady Chatterley”. Estava lá explicando não sei o que eu lendo, depois passava pras outras meninas. Era uma escola mista e eu me apaixonei por um menino porque no intervalo a gente se encontrava. Aí o meu pai me chamou na diretoria: “Você está apaixonada”, não sei, porque tinha olhos na nuca, todo mundo me vigiava. “A mãe dele tem um bordel”, mas eu não sabia o que era bordel. Eu só falei: “O senhor não me pôs aqui? Não é aqui que eu estudo? Eu não sou apaixonada por ele, ele simplesmente é um menino muito bonito”. Ai, eu não entendia, sabe, o que é isso? Quer dizer que eu olho pro menino, a mãe dele tem um bordel. Aí fui perguntar o que era bordel, né? Mas aquele tempo era de uma inocência total, você não tinha televisão, não tinha revista, não tinha nada. Aliás, revista tinha. Isso eu sou grata ao meu pai, ele assinava tudo o que existia: Alterosa, que era o O Cruzeiro de Minas Gerais, todos os jornais, A Cena Muda, Cinelândia, Filmelândia, isso eu serei eternamente grata. E tinha um porão e lá embaixo, a casa era assim, lá embaixo a gente colocava tudo. Um dia eu abri Cinelândia, minha irmã mais nova tinha recortado, colocado no armário dela (risos). Ai que barato! Mas eu não tinha com quem conversar, né? Então, a questão do sexo, eu tive que descobrir tudo sozinha. E minha mãe irresolvida sexualmente, eu imagino, dizia assim pra mim: “Você tem cabelo de puta, entendeu? Você só pode usar branco, cor de rosa e azul claro”. E eu não sabia o que era isso. Aí quando eu vi “E o Vento Levou”, eu entendi um pouco o que era puta. Ela falou: “Quando você fizer 15 anos, o que você pedir eu dou”. Aí, eu combinei com a dona Sebastiana que ela ia tingir meu cabelo de preto, estava tudo combinado. Ela falou: “Você fez 15 anos, o que você quer?” “A dona Sebastiana vai...” “O que é isso?”. Eu falei: “Mas vem cá, a senhora não aceita! Vamos resolver logo isso. É bom ser ruiva, é ruim. Eu tenho cabelo de puta, eu vou ser puta? Porque deve ser muito interessante”, porque quando vi E o Vento Levou achei lindo. E ela dizia: “Cuidado com a sua mão, você tem mão de lavadeira”. Olha, tudo o que a mãe diz você guarda, né? Eu adoro minha mão, eu não uso esmalte porque eu sou preguiçosa. Ou: “Essa menina tem uma mão de cavala”. Eu falava: “Mãezinha, é pata de égua”, porque tudo o que eu punha a mão quebrava. Até hoje eu não troco lâmpada. Eu não sei se realmente eu sou um desastre ou se aquilo foi. Isso, hoje, que as crianças têm essa liberdade ilimitada, eu acho que eu passei do oito pro 80 mil, né? Mas eu não sei se as mães sabem o poder que elas continuam tendo. Porque o meu sonho, não sei quando vai ser, os nenéns vão ficar tudo na parede e o casal vai visitar, como se fosse um microondas. Não tem essa história da mãe é culpada de tudo. Aí quando nasce o neném sai uma fichinha junto assim, falando as doenças que vai ter. Porque precisa acabar, Freud ia adorar isso (risos). Pronto, acabou.
P/1 – Você falou pra gente, mencionou o rádio algumas vezes. Queria te fazer primeiro uma pergunta se você lembra do final da Segunda Guerra.
R – Tudo.
P/1 – Conta como é que foi vivenciar isso.
R – Eu lembro que esses homens que se encontravam, eles ficaram com ódio mortal de Eisenhower porque quando estava terminando os americanos poderiam tomar Berlim e o Ike fez assim pros russos. Aí foi uma barbárie total. Mas eles davam pulos, eu não entendia direito porque o tal do Eisenhower entrou em Berlim. Eram só indagações, mas eu via depois no cinema, né? Aí começou a estudar. Quando eu parei, eu parei na Guerra de Cem Anos, quando veio a Guerra da Coreia. Porque aí eu comecei a voltar pra trás, a Primeira, tudo eu queria entender. A Guerra do Vietnã, eu acho que, a minha irmã dizia assim: “Se tivesse ‘o céu é o limite’ você podia responder, ou Watergate. Ela sabe o nome dos avós dos arrombadores do Watergate” (risos). Porque aí, sei lá, eu passava a noite lendo. Porque eu nunca fui de dormir. A minha mãe via a luz e mandava apagar, aí eu acendia uma vela, não sei como eu não pus fogo. E na fazenda, quando desligavam a luz de medo da fiação eu lia com a lua, então não parava de ler.
P/1 – Você lembra como foi a movimentação quando veio a notícia do final da guerra. Onde você estava?
R – Estava na fazenda dos meus avós. Foi em maio de 45, eu tinha quatro anos, Tereza.
P/1 – Muito novinha, né?
R – E no entanto o mapa falava muito, né? Eu acho que eles se encontravam porque todos tinham carro. Não era só lá, todo mundo tinha fazenda. A única coisa que eu não via era dinheiro, não tinha bebida, não tinha boas comidas, ninguém se vestia bem. Mas eles se encontravam pra discutir. Ou então na casa dos meus avós em Ribeirão, que era na Praça Camões. Sabe a Recra?
P/1 – Sei.
R – Em frente tinha a Rua Rui Barbosa e os meus avós moravam lá. Uma casa enorme também. Eu não lembro se foi na fazenda ou se foi na Rui Barbosa, sei que tinha um monte de homem. Furiosos, querendo que Eisenhower fosse morto, onde já se viu entregar Berlim para os russos. Até hoje eu vejo, agora, ano que vem vai fazer 60 anos, né? Aliás, o que salvou a minha vida mesmo foi a BBC. Eu tenho HD, eles têm documentários gloriosos sobre isso, porque existem aspectos que até hoje eu não conheço. Como é que chama quando o homem come um homem? Deu um branco.
P/2 – Canibalismo.
P/1 – Canibalismo.
R – Canibalismo. Agora que eu vi um documentário mostrando isso. Com todo aquele terror dos campos de extermínio, os filmes que eu vi, agora. Porque os arquivos ingleses foram abertos há pouco tempo. Mas eu tenho fascinação pela guerra, porque ela definiu, inclusive, o mundo hoje. Oriente Médio, tudo isso vem daquela partilha, né?
P/1 – E além dessas transmissões no rádio, de guerra, vocês escutavam outras coisas no rádio?
R – Eu não sei quem foi que teve a ideia de me dar um rádio. Não se pode dar um rádio pra uma criança. Eu não dormia. Tinha a rádio Jornal do Brasil, que era maravilhosa. À meia-noite era assim, O Tempo no Mundo. “Aqui, Dinamarca, começou a primavera. População foi para as ilhas, fez 12 graus”. Não entendia nada. A rádio do ministério, do MEC, foi fechada em 64. Eu me lembro das duas. A Rádio MEC me mostrou Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Jacques Prévert. E eu escutava e escrevia. Eu aprendi a taquigrafar assim, sozinha. Eu tenho um caderno até hoje. Mas foi uma revolução. E eu tinha um tio, poderoso. Imagina você que ele morava em Casa Branca e tinha piscina, naquele tempo ninguém tinha piscina, 1950. A casa estava assim nas férias, ele fez assim pra mim. Era a Copa de 50! Ele falou: “Você vai assistir no rádio o Brasil ser campeão”. E não foi. E com estática e tudo a gente escutou o silêncio do Maracanã. Então nessa Copa eu saía fazer discurso. Gente, eu sou tão velha que eu lembro da de 50! Porque o Obdulio Varela no intervalo comprou todos os jornais do Rio, Brasil Campeão, forrou o vestiário e urinou em cima. Os jogadores levantaram e urinaram, e fizeram o gol. Agora a gente de sete a um, o que você acha, Caio? (risos)
P/1 – Foi dureza, né?
R – Foi a mesma coisa, só que o Maracanazzo de sete a um, eu nem estava assistindo, estava lendo e achei o silêncio da vizinhança muito forte. Quando eu liguei estava cinco. Quer dizer, eu revivi na Copa. Esse meu tio era amigo de Walter Moreira Salles, Herbert Levy, era super poderoso. Imagina um cara que tinha piscina. Por que ele me escolheu? Estava assim de gente. Ele fechou aquela porta dupla, separou todo mundo e ficamos nós dois na sala de jantar que até hoje é gigantesca. A casa é de 1872, maravilhosa. E assistimos o jogo. Isso me marcou muito. Agora, muito tempo depois eu comecei a me perguntar por que ele me chamou. Quer dizer, o meu olhar era um olhar de inquietação, né? Só pode ter sido isso, porque com tanta gente lá, uma Copa tão importante, a inauguração do Maracanã. Parece que tinha 240 mil pessoas, porque não tinha arquibancada, todo mundo de pé. Depois eu fui ao Maracanã, fui ao Morumbi. Eu ia muito pro Rio. Bom, volta, pronto acabou, te dei?
P/1 – Claro. Podemos seguir, acho que respondeu a minha questão sim. Você se lembra da chegada da TV na sua casa? Vocês tiveram televisão?
R – Eu já não morava mais lá. Eu lembro que no dia 23 de novembro de 63 uma colega de faculdade que tinha carro passou lá na fazenda e falou: “Você quer ir comigo ver um campo de arroz?”. Eu falei: “Nossa, campo de arroz é a coisa mais linda!”, porque são N tonalidades de verde. A gente ficou conversando, quando eu cheguei em casa a minha mãe veio. Ela nunca fazia isso: “Preciso te contar uma coisa. Mataram o Kennedy”. Isso também nunca vou esquecer. Porque eu saía a pé naquele tempo, não tinha nenhum problema. Mato, né? Ficava acho que a 12 quilômetros da cidade. No Correio central chegavam dois exemplares do Correio da Manhã e dois do Jornal do Brasil. Uma banca de revista comprava os dois e eu comprava dois, voltava a pé. Então eu adorava jornal. O Jornal do Brasil e o Correio da Manhã não dá pra você imaginar, Paulo Francis, Odylo Costa Filho, Dines. Aquilo era um privilégio. Então eu disse pra minha mãe: “Lá em Dallas tem um cartaz com Kennedy, de Procura-se. Mãezinha, ele não deve lá”. Quando ela me contou eu falei: “Nossa!”, a gente não tinha televisão, olha a sorte, né? Porque acho que eu não ia aguentar ver aquele funeral. E logo depois eu vim pra São Paulo. Eu só fui ter televisão na anistia. Eu sempre fui contra ter televisão; não é que fosse contra, era uma amolação, entendeu? Não tinha nada de consistente, era ditadura. O Jovem Urgente do Paulo Gaudêncio, eu arrumava uma amiga, taquigrafafa e mandava pra minha irmã, que teve cinco filhos. Mas logo a ditadura cortou, mas foi um programa maravilhoso da TV Cultura.
P/1 – Quantos anos você tinha quando você saiu de casa, Maria Luiza? Da casa dos seus pais.
R – Vinte e cinco. Foi a primeira vez que eu morei na cidade. Aí vim morar na rua da Santa Casa, Cesário Mota Júnior, uma kitinete. Aquele prédio ‘balança mas não cai’.
P/1 – E como foi a saída de casa pra você? Conta um pouco como foi.
R – Ah, eu vim de ônibus, eu não acreditava no tamanho da minha felicidade. Porque a minha avó comprou o apartamento e um tia de Mococa mobiliou. Eu tinha que ligar água, luz, essas coisas, mas isso ficou tão periférico. Não, acho que água tinha. Eu não tinha dinheiro pra comprar chuveiro. Eu vim em fevereiro, março, por aí. Teve uma enchente brutal e a minha mala ficou presa no mercadão, então, eu fiquei com a roupa do corpo. Mas quando eu enfiei a chave e vi o apartamento. Olha, foram os quatro melhores anos da minha vida, morando sozinha. Todo mundo em Ribeirão falando: “Se é com a filhinha do Doutor Guião você pode morar”, então as meninas faziam fila. Eu falei: “Não, eu não quero morar com ninguém, imagina!” Só que todo mundo foi e alugou, você acredita? (risos) Eu fui pra Rhodia, a Rhodia fez um concurso, sei lá como chamava, e eu sei que eu passei. Mas era de uma inocência, sabe goiaba? A fábrica tinha cinco mil operários, só que eu conheci os cinco mil. E trouxe seis assistentes sociais de Ribeirão, então elas moraram todas no mesmo corredor. Aí uma casou, outra casou, outra casou, outra comprou na Vila Nova, que a Vila Buarque era show, né? Chico Buarque meu vizinho, Milton Nascimento, Sá e Guarabira. Não tinha banco, não tinha nada, então eles pegavam o telefone da padaria da Amaral Gurgel. O Sá e Guarabira falavam: “Agora é farra, agora assim”. Ficava horas, né? Mas eu não queria, eu ganhava muito bem, mas não queria telefone, senão meus pais iam me vigiar. Não queria ter carro, não queria ter nada. A sexta-feira à meia-noite eu saía, eu punha o salário na carteira, ia comprar flor no Largo do Arouche. Hoje, Tereza, eu ganharia uns 12 mil reais, sabe? A Rhodia pagava 30% a mais do que o mercado, era muito dinheiro.
P/1 – Nesse emprego da Rhodia era como assistente social, o que era esse trabalho?
R – Como assistente social.
P/1 – Você já tinha feito faculdade? Você chegou a fazer faculdade?
R – Fiz.
P/1 – Então...
R – Fiz bem na ditadura. Primeira turma. A primeira turma costuma ser brilhante, porque ela chama quem está à toa, né? Eu fiz o vestibular, passei em segundo lugar, perdi para um ex-seminarista. Mas eu tinha uma cultura acima da média, eu fui muito bem. Tanto que no exame oral caiu Anchieta, eu não sabia nada dele, mudei pra não sei onde. Era o cérebro fervilhando. E a faculdade, nós abrimos o estágio, aí eu fui fazer Paulo Freire na favela. Tinha uma favela minúscula, mas ficou tudo por nossa conta, não tinha professor, é tudo muito precário. Então quando eu fui pra fábrica eu vi que a escola, falam tanto da escola, eu nunca fiz dever de casa, não levava a escola a sério. Hoje a escola é tudo, né? As pessoas se matam por causa da escola. É que eu queria saber eu mesma, né? Eu estou sendo desconexa? Estou, eu sei que eu estou.
P/1 – Não, está ótima, você está ótima. Eu queria te perguntar quando é que você decidiu o que você ia fazer de faculdade. E onde...
R – Só tinha Direito. Quando abriu Serviço Social eu fui falar com o meu pai e ele falou: “Ah, é muito caro, não vou poder pagar”. Nesse ínterim tem uma coisa que eu nem sei explicar. Eu tinha uns 15, 16 anos, no banheiro tinha uma varanda. Em Ribeirão fazia frio uma vez por ano. Esse ano, por exemplo, não fez (risos). Mas quando fazia dava três graus. Eu saí na varanda, tirei o pijama de lã. Quando eu entrei naquele estado de hipotermia eu pus o pijama de novo e fui pra cama. Acordei 15 dias depois minha mãe falando: (berra) “Essa menina!”. Eu não sabia que era suicídio. Eu sei que quando eu escutei a minha mãe falando ‘essa menina’ eu falei: “Eu não acredito que eu estou aqui ainda”, foi a primeira coisa que eu pensei. Mas eu era muito ignorante. Depois eu fui estudar Descartes e a palavra suicídio, quer dizer, a minha vida era um horror. Eu estudava numa escola que eu odiava; aprendia coisas que não tinham nada a ver comigo e tinha meu pai me vigiando, ninguém podia ser tão infeliz, né? Aí eu resolvi morrer, só que eu não sei se eu falei: “Hoje eu vou morrer”, foi uma coisa instintiva. Aí abriu Serviço Social e o meu pai disse assim: “Olha, eu acho que eu não vou conseguir pagar” “Tudo bem”, aí fugi de casa. Não, eu já tinha fugido. Eu vim pra São Paulo em 1959, eu tinha 18 anos. Ai cidade maravilhosa. Primeiro, fazia frio de janeiro a dezembro. Aí eu fui trabalhar na Slopper, que era a Daslu daquele tempo. Aí todo mundo queria casar comigo, eu falei: “Mas que inferno! Não! Eu vou pintar esse cabelo de preto”. Aí eu ia na Basílio da Gama, que tinha um posto telefônico. Podia levar um romance. Pedia a ligação pra Ribeirão e lia o romance, pegava uma senha. E aí a telefonista falou: “Ligação pra Ribeirão”, aí eu já tinha acabado de ler o romance: “Mãezinha! Eu posso fazer...” “Seu pai falou que não” “Então tchau”. Mas aí eu me arrependo, meu único arrependimento, um dia eu voltei, ele aceitou e eu voltei. Eu não devia ter voltado. Porque eu fico tão impressionada quando as pessoas falam assim: “Se eu tivesse que viver, eu faria tudo igualzinho”. Que falta de imaginação, não? Não, eu mudaria um monte de coisa, uma delas seria não voltar pra casa paterna. Eu estava ótima aqui. Sabia que minha mãe estava chorando muito, mas eu falava: “Logo ela acostuma, ela tem outras filhas”.
P/1 – Como é que foi essa volta?
R – Eu não lembro. Eu lembro da paixão que era São Paulo. Aquelas mulheres de tailleur na Praça da República, com chapeuzinho de rendinha preta. Ahhhh. Eu não sei quantos habitantes tinha, mas era uma cidade pequena. Pouquíssimos carros. Tinha bonde. Eu andava a pé. Morava em cima do Cine Joia, na Liberdade. Era super chique. Você imagina hoje, né? Então tudo era maravilhoso, tudo. Tinha livrarias. Em Ribeirão tinha uma, eu fui suplicar pra minha mãe abrir uma conta lá, ela tinha conta nas lojas de tecido, que depois tinha que ir pra costureira, não tinha a menor paciência com isso. Aqui tinha o Palácio do Livro no Ipiranga, era um palácio mesmo! Eu me lembro disso, eu não me lembro de ter ido a teatro, nem a cinema, eu não sei porquê. Eu acho que eu era muito mocinha e já tinha um certo perigo no ar, eu não sei explicar pra você. Eu chamava muita atenção até aqui. Então quando eu voltei, eu voltei bem, prestei o vestibular, fui muito bem. Tinha cola naquele tempo, era uma zona, né? Hoje falam que a escola... imagina, zona era naquele tempo! Como tem um depoimento aí de um rapaz que foi assistir o Bill Halley num cinema e botou fogo nas cortinas. Isso era normal. Bullying existia, bullying era aceito. As coisas eram absolutamente normais. Outro dia eu vi que GNT tem um programa pra ensinar como é que fica grávida, como é que são os nove meses. Mas que vida chata, não? Está tudo muito pesado, né? Muito careta também. Eu fumo, eu sou super, como fala? Não é ofendida. Outro dia eu estava no Largo São Francisco, acendi um cigarro e um cara fez assim. Eu tirei o rosto, eu falei: “Mas por que você ia me bater?” “Não pode fumar”. No mundo inteiro não pode fumar, mas ninguém sacaneia os outros. E eu não admito. Quer dizer, eu tenho uma propensão fortíssima pra afrontar, sabe? Por isso que eu fui tão demitida.
P/1 – Onde você fez a faculdade e como foi a sua faculdade?
R – Foi a primeira turma, foi uma turma brilhante e eu adquiri a minha liberdade, porque eu vivia trancada.
P/1 – Foi em Ribeirão?
R – Foi. Eu dizia pra minha mãe: “Tem prova amanhã, nós vamos passar a noite estudando”, aprendi a jogar buraco. Quer dizer, sacaneava todo mundo. Mas não era como hoje, hoje o jovem não presta, os pais não sabem o que fazer, chamam a terapeuta. É uma coisa assim, a gente era tão sacana porque os pais eram muito rígidos, só bastava pra nós infringir as leis, infringir as normas. “Tem uma prova amanhã”, aí aprendi a jogar buraco, adorei, né? Ia ao cinema, cabulava aula. Um marco na minha vida foi ver o primeiro 007. Porque naquele tempo não tinha jornal, não tinha crítica. Eu deixei de ir à aula e fui ver no Cine Centenário, que acho que não existe mais. E saí de lá boba, eu nunca tinha visto um filme daquele jeito. Porque o West Side Story foi o último musical, ele foi profundamente vaiado, passou no Cine São Jorge. Eu estou dizendo esses nomes porque se você tiver uma boa memória você, sua família está lá, eu não sei se o Cine Centenário fechou, o São Jorge acho que também. Mas o West Side Story foi vaiado. Imagina, vaiar aquele filme! Já se queria uma coisa a mais, que veio com 007 também, Godard, Cinema Novo. Ah, eu entrei em AP, Ação Popular, mas foi mais o pessoal da JUC, Juventude Universitária Católica. Mas eu não levava a sério não, eu só queria ser livre. Aliás, até hoje, eu não sou fanática por política. Acho que até tenho um certo desprezo, porque tudo o que eu esperei que acontecesse não aconteceu. Então, quando eu vim pra São Paulo a AP me mandou trabalhar numa livraria no Metrópolis, que era um conjunto chiquéssimo. Mas eu não vendi nenhum livro, fiquei conversando, vendi um monte de gente. Aí logo eu falei: “Não quero mais, chega”, acho que nem salário eu recebi. Aí a Rhodia era absorvente, era das sete a meia-noite. Eu ficava até o último trem. E eram cinco mil operários, a fábrica novinha. Você acredita que eu conheci os cinco mil? E era tipo assim, só vou te dar um exemplo, dois exemplos. O doutor Jean Avril era diretor-presidente do Grupo Rhône-Poulenc, ele tinha uma sala no meio de um jardim e as secretárias iam trabalhar de Chanel. E eu impliquei com isso, pedi uniforme e eles deram. Minhas amigas todas iam almoçar no restaurante da diretoria porque elas queriam casar com os engenheiros e eu ia almoçar no dos operários. Então veio Maio de 68, Jornal do Brasil, eu xerocava. Xerox naquela época, acho que nem o Presidente da República tinha, mas o doutor Jean Avril tinha. Eu dizia: “Boa tarde, boa tarde. Posso xerocar?”. Elas falaram pro doutor Avril: “Essa assistente social está tirando muita xerox”, com ódio de mim, né? Aí ele falou: “A próxima vez eu quero uma”, e ele era francês. Ele deu ordem para as secretárias: “Quando ela vier xerocar, tem que xerocar mais vezes porque eu quero”. Elas me odiaram mais ainda. Eu não sei porque elas me odiavam, eu não tinha importância na hierarquia.
P/1 – Você xerocava notícias, era isso, pra distribuir? O que você xerocava?
R – Eu xerocava Maio de 68, que foi uma coisa assim, uma coisa que até hoje é feito a guerra, não se tem... aquele negócio é pedir o impossível, foi uma coisa inesperada. Daniel Cohn-Bendit era um líder. Mas tudo eu queria saber. Não tinha televisão, mas tinha rádio e continuava comprando esses jornais. E a outra coisa... Ah, os meninos da mecânica eram os xiitas daquele tempo, eles entraram na minha sala e falaram: “Nós viemos reclamar aqui que as meninas vão no restaurante de minissaia”, porque aí veio a Mary Quant, né? “E está perturbando o nosso almoço”. Eu falei: “Vamos fazer o seguinte? Vocês escolham cinco rapazes belíssimos, desabotoam até o umbigo e põe uma gravata aqui e vamos ver o que acontece”. Quer dizer, eu era muito revolucionária, entendeu Tereza? Enquanto todo mundo era burocrata, eu entrava dentro da fábrica, eu conhecia todo mundo. E eu fuçava, perguntava, eu tinha uma reunião especial por semana, porque a mecânica eram os xiitas, dava um trabalhão. E era 24 horas, então, por exemplo, se um marido se sentisse mal e chegasse em casa e pegasse a mulher na cama com outro, parava a fábrica. E isso vinha, porque eles tinham viradas, eles não ficavam fixos. Aí alguém morria, eu que tinha que avisar. Teve uma moça que cometeu suicídio, eu fui visitar, saber como ela estava. Ela pegou a minha mão, pôs no seio dela. Foi a primeira lésbica. As lésbicas de Ribeirão já tinham passado, né? Mas eu era muito inocente, eu acho que eu continuo até hoje meio babaca. Mas foi uma grande experiência, até que mudou a minha chefe e veio uma outra que ficou cheia de ciúmes. E o Juan Ramón, cujo nome eu não esqueci, era o superintendente da Rhône-Poulenc pra América Latina, ele ligou pra mim. Eu não sei o que ele falou, mas ele foi muito grosseiro. Eu falei: “Olha, nós temos um contrato, o senhor pode rompê-lo e eu também. E o senhor quer saber? O senhor vá à pqp!”, e pá, bati o telefone. Aí foi justa causa. Mas eu acho que eu já estava cansada, nossa, o que eu trabalhava!
P/1 – Quanto tempo você ficou lá?
R – Três anos.
P/1 – Você se lembra o que você fez com seus primeiros salários? Você falou que ganhava super bem. Você comprou alguma coisa especial?
R – Ah, comprava presente. E a Rhodia tinha uma cooperativa que era lendária, né? Eu só não comprei carro: rádio, vitrola, tudo o que você puder imaginar. E os meus cinco sobrinhos eu gastava em roupa; comprava joia da Natan pras menininhas. Eu distribuía um pouco do salário e o resto ficava na carteira. Tinha um que chamava Feminilidades, que era para eu comprar minhas coisas. Mas como eu tinha uniforme eu também nunca, eu não me cuidava, até hoje, vai de qualquer jeito. E não me pintava. Já dava tanto trabalho sem nada, já pensou se eu me arrumasse? Porque a fábrica devia ser uma bateção de p., eu era mocinha de tudo, débil mental; os caras me cantavam e eu nem... aí eu tive uma baita cólica de rim e me internaram no Hospital Tamandaré. O médico escreveu assim: virgo intacta. Eu falei: “Mas o que é isso?”. Ele falou: “A Rhodia perguntou se você é virgem”. Porque todo mundo achava que eu estava dando pra alguém, não tava nada, eu era completamente débil mental, não queria casar também, né? E o medo de engravidar?
P/1 – Você não teve nenhum grande amor nesse período, juventude?
R – Não, só artista. Mas gente, eu acho que eles eram tão incultos... mas isso até hoje, viu? Os caras me cantam: “Quando é que você nasceu?”, eu falo: “Quando Hitler invadiu a Polônia”, porque eu sei que eles não vão saber. Sujeito da minha idade. Mas eu quis muito ser sozinha, muito, demais. A minha primeira prisão foi em 64, o irmão do meu pai, médico, amigo de Filinto Müller, foi ao Dops e falou: “A minha sobrinha é chefe de célula. Vocês prenderam todo mundo e não prenderam?”, claro que eles tinham que me prender, né? Porque ele dizia assim pra mim: “Os russos levantam de manhã, a mulher tira o neném do forno e eles comem criancinhas”. Eu falava: “O senhor acha?”, em vez de ficar quieta, todo mundo ficava quieto, eu não, tinha que brigar. Eu gosto da verdade, a verdade incomoda, né? Aí ele foi e me dedou. Meu pai quase morreu. Eu falei: “Não, essas coisas acontecem”. E o major falou assim: “Olha, eu peguei a sua ficha da faculdade, está escrito Porina, lésbica”, o que quer dizer isso? Eu falei: “Não, Porina é apelido. Lésbica é porque eu não namoro”. Não namorava, porque se eu namorasse eu tinha que casar, né? Era seríssimo isso. Primeira turma da USP, todo mundo querendo, eu não saía de casa, só queria estudar.
P/1 – Conta pra gente por que o apelido Porina?
R – Era menina do cabelo pôr de sol, uma. Segundo, eu sabia de cor o Pequeno Príncipe, que não era uma coisa usual, estava sendo lançado. Saint-Exupéry foi um ídolo da minha geração. E depois, Ribeirão, na Praça XV tinha uma biblioteca na casa da dona Sinhá Junqueira, um prédio imenso. E a diretora era Regina Pessoa, filha do doutor Samuel Pessoa que foi um dos fundadores do Partidão, médico, adorava visitar ele. Eu morava do lado. A Regina chamou meu pai, falou: “Doutor Guião, essa menina leu a minha biblioteca inteira, agora ela está em Linus Pauling, o senhor precisa tirá-la daqui”. Ele ficou com ódio da Regina. “Você lê muito, né? Por isso que você usa óculos. Está estragando a vista”. Por isso eu tenho a impressão de que eu não devia ter nascido aqui, muito menos em Ribeirão; eu devia ter nascido aqui, na metrópole ou no Rio. Eu não saía do Rio, Tereza. Caio, eu ia de avião, de navio e de ônibus. Conheci Vinícius – não chegava perto, né? O Rio era desse tamanho. Andava de bonde, os caras falavam: (imita sotaque carioca) “Paulixxta? Não vamox cobrar”. Primeiro filme proibido eu vi lá, quando eu fiz 18 anos. Les Amant. Aí o cara começa a chupar a Jeanne Moreau, ela levanta aqui, ela não depilava. Eu falei: “Mas isso que é filme proibido?”, eu achei uma coisa horrorosa aquele monte de pelo aqui, né? Isso broxa completamente; eu saí do cinema: “Não quero nem saber que porcaria de filme, vou fazer 18 anos pra ver isso”. Porque todo mundo, era Madame Delly, era um romantismo exarcebado. Então é isso. A segunda prisão foi em 68, em Pindamonhangaba. Eu trabalhava pra Neves & Paoliello que criou o Gegran, Sérgio Motta. A gente estava estudando os metrôs, como ia ser São Paulo, foi uma época maravilhosa, maravilhosa! Eu saí da Rhodia e fui pra lá. E eles disseram assim: “Nós queremos uma pessoa que fique na região Leste, cujo centro é Mogi”. Eu falei: “Olha, eu cansei de trem, tem um hotelzinho lá, vocês me deixam?”, deixaram. Tereza, Caio, a equipe inteirinha era formada por ALN, MR8, Lamarca, todos. Dois foram assassinados, o resto tudo foi preso e a bacana aqui nem... um dia uma menina falou assim pra mim: “O que você acha dos mendigos de Paris?”, eu falei: “Eles são clochat”. Sabe por quê? Eu não queria me meter em confusão, achava tudo porralouca. Fechou, todo mundo saiu. Eu morei em Mogi, fiz coisas extraordinárias. O menino que trabalhava comigo, engenheiro, era dono do fusquinha onde o Marighella foi assassinado. Então a prisão foi total. Como eu era Porina, ficou restrito. Aí o dono da Neves & Paoliello me chamou e falou: “Você não vai embora, nós não vamos deixar você ir embora. Você tem que tirar o seu CNPJ”, eu falei: “Ah não, não vou fazer isso, não”. Uma preguiça. Eu sempre tive muito problema com o térreo. Eu vivo... é um horror, daí eu fui embora. Eu não queria de jeito nenhum, mas eu fiz um trabalho belíssimo.
P/1 – Qual era o seu trabalho lá, Maria Luiza?
R – Era, por exemplo, eu tinha que dar pra Neves & Paoliello um relatório sobre os problemas da região, Suzano, Mogi, então, eu fui, primeiro eu reuni os prefeitos. Mas precisava de muita lábia, aí entravam os caras que eram da Fundap, que eram tudo gente brilhante, que estavam na Neves & Paoliello, Sérgio Motta. Eles iam ver qual era a demanda, porque estava se formando a Grande São Paulo. Reunia associação de moradores. Numa dessas é que eu fui presa, fui considerada comunista porque a Associação de Moradores era uma coisa comunista. Aí foi Pindamonhangaba.
P/1 – Você tinha sido filiada ao Partido Comunista ou não?
R – Não. Eu nunca fui de nada.
P/1 – E essa atividade com a AP? Durou pouco tempo, como foi isso?
R – Ah, quando eu saí da Livraria do Ponto e nunca mais. Agora eu conhecia todo mundo, eu só não conheci mesmo o Lamarca. Mas eu conheci o Marighella. Eu achava todos porralouquíssimos, todos. Até hoje eu acho. Esse negócio de pegar em arma? Porque até que ponto isso não acirrou e veio o Ato número cinco? O dia da invasão da Maria Antonia, eu cheguei da Rhodia, estava cavalaria, porque eu morava ali na Maria Antonia. Essa história de: “Eu vou fazer uma revolução pro povo acordar e ficar do nosso lado”, olha que coisa mais insensata! Então sofreu-se muito por isso. Aí eu fiz um concurso no Hospital do Servidor, passei em segundo lugar também. Nossa, como eu escrevi, eu devia escrever bem, sei lá, não lembro. Aí, na divisão de trabalho me puseram como assistente social do trabalho, eu não mexia com doença, mexia só com funcionário. Aí é uma história que se eu for contar demora cinco horas. Mas tinha um chefe tarado. Eu entrava na sala dele e tirava a chave. Graças a Deus, eu esqueci o nome dele. Era um velho asqueroso, era tipo Boilesen, sabe? Aí eu fui, não aguentei mais, não estava certo aquilo. A Psiquiatria me chamou, eu não quis. Eu fui num sábado e pedi demissão porque era assim de emprego. Eles chamam a SNI e falam que eu era comunista. Aí, aí foi complicado. No Dops o cara falou pra mim: “Eu vou quebrar tua rótula, se você gritar eu quebro a outra”. E a dor é indescritível, né? Então, eu nunca mais... No dia seguinte ele veio pedir desculpas, ele falou: “Olha, nós temos oito interrogadores, seis estupram. E você é muito bonita”. Até hoje eu me pergunto: “Será que não teria sido melhor ser estuprada?” Porque eu parei de andar. Porque ter uma rótula quebrada, e eu desempregada, nem jogador de futebol curava, joelho tinha que ir pro exterior, né? Aí eu tinha tido um professor lá atrás, no Normal, que pra variar também não sacava nada, o cara era loucamente apaixonado. Quando eu saí, aí já da Oban, os dois se odiavam. O Fleury estava proscrito porque tinha dado injeção de sal no Mário Japa. Essas coisas todo mundo sabia lá no Vale do Ribeira. Graças a Deus eu não peguei o Fleury. Aí eu fui pra Oban. Mas nessa altura a família ficou sabendo e minha família tinha, além da Esther tinha o Alberto, bom, tinha um monte de gente. E área de Segurança Nacional o meu apartamento. Esse professor foi morar lá. Tereza, eu não tinha noção da extensão, eu não sei explicar, ele tinha uma fixação em mim, ele tinha sido meu professor em 1960, 58, não me lembro, no Normal. Eu tinha 30 anos e ele tinha 53, era casado, tinha filhos e netos. Quando eu saí da Oban, não só ele estava morando lá, como ele disse: “Já terminei meu casamento”. Eu estava assim, eu fui, dei um tempo, fui pra Ribeirão, minha mãe me viu e começou a chorar. Eu devia estar com uns 30 quilos. Eu fiz greve de fome na Oban. Eu dizia: “Eu só tomo um copo de leite se vocês me derem um maço de cigarro”. E fiquei lá contando, porque eles pegaram esse meu chefe. Quando eu, eu pedi uma bolsa ditadura, eu pedi pra ser anistiada, faz três anos. Aí vieram os documentos do Dops, aí veio o nome dele, mas eu não guardo o nome dele. Enfim, então tinha um ex-professor morando na kitinete e eu não arrumei emprego, eu fiquei sem água pra beber no país. Eu fui pra uma fábrica na Mooca, tinha muito emprego, o rapaz do RH falou pra mim: “Nós ligamos lá no hospital e disseram que você é brilhante, mas você saiu presa”. Isso em 70. Foi um escândalo. Aí esse professor tinha um primo irmão chamado Roberto de Oliveira Campos, que foi embaixador, ministro, era o Bob Fields do Pasquim, era o homem mais xingado. Aí o Roberto falou pra mim, eu fui visitá-lo na Avenida São Luís, ele queria me conhecer. Eu falei: “Roberto, fala pro seu primo voltar pra mulher dele. Ele pode ter um caso comigo se ele quiser, agora casar” “Mas eu já falei”. Ele falou: “Bom, eu vou te arrumar um emprego. Mário!”. Eu falei: “Não! No Mobral, era o Mario Henrique” “Onde você quer trabalhar?”, eu falei: “Na esquina da minha casa tem a Cohab” “Então é o Paulo”. Era o Maluf. Papapapa, pronto. Você imagina aquele homem horroroso. E não existia QI naquele tempo, então eu fui super maltratada. Mas eu precisava trabalhar, né? Com o tempo eu virei chefe do Setor Social. Fiz coisas maravilhosas, eu sempre tive paixão por gente, né, sabe? Nossa, que bom que era a Cohab. Tinha um coronel e a gente que enchia a Kombi. Caiu um conjunto em Cumbica, não tinha nem aeroporto. O coronel desceu e falou assim: “Por que tanto papel higiênico?”, eu falei: “Pra limpar a bunda, coronel”, e o pessoal ficava estarrecido, porque ninguém tinha essa coragem. Às vezes eu acho que eu sou Scarlett O’Hara, uma aristocrata sulista decadente, não tem dinheiro, mas nada vai me segurar. Eu lembro que foi um escândalo. Mas enfim. Essa foi a última prisão, essa foi, realmente... não dá pra descrever o que é você se ver numa cela. Eram três colchões, 12 ou 13 mulheres. E você olhava e via pulga, graças a Deus elas não me picaram, né? Mas era lancinante ser presa no Dops. E o delegado que foi me prender levou um investigador, o investigador falou baixinho pra mim no camburão: “Seu chefe não gosta de você”, porque senão você era presa, quem? Não tinha habeas corpus, não tinha nada. Levaram toda minha biblioteca, levaram inclusive “O Homem do Revólver de Ouro”, você acredita? Foi considerado subversivo. Nunca mais eu vi. Foi pra Oban, na Oban os caras eram treinados no Texas, né, eles diziam assim: “Quer os livros?”. Se eu tiver um livro no meu carro eu posso ser presa. Eu: “Não, não quero”. Perdi todos, eu tinha livros lindíssimos sobre o Vietnã, de um jornalista australiano. E era considerado subversivo. Eles acharam gravíssimo isso. Mas o poster era o Kennedy e a Marilyn, deste tamanho. E o delegado falou assim: “Você é a única que eu prendi que não tinha o Che Guevara”. Eu falei: “Não gosto muito dele”, não gostava. Então sempre muito crítica. E vendo que aquela adoração certamente tinha alguma coisa errada. Eu era a favor do Vietnã, claramente, aquela guerra foi tão estúpida que a maior potência do mundo perdeu, né? Agora eu sou subversiva porque eu gosto do Ho Chi Minh? Então, isso foi quando terminou a guerra, aquele ar de esperança, terminou a ditadura, aquele ar de esperança. Você vê que p. de país é esse? Não pode fumar, não pode beber. O que mais? Eu estava no Shopping Iguatemi, tem um fumódromo, um menininho desse tamanho falou: “Não pode jogar na rua, viu?” Falei: “Desse tamanho você já é chato?” Porque não é normal uma criança falar isso.
P/1 – Deixa eu te perguntar uma coisa. Foi o seu chefe que te denunciou? Eu não entendi isso. Foi esse chefe que te assediou que te denunciou?
R – Foi, ligou pro SNI. Daniel Sabbag. Não, não é Daniel, é não sei o que Sabbag, é uma família de médicos. Ele já deve ter morrido, ele era velho naquela época, 1970. Ele disse: “Eu tenho uma funcionária comunista”. Ah, ele colocou no meu arquivo uma oração pela luta armada, maoísta. Que eu ri, né? O delegado me mostrou eu falei: “Olha, esses caras são ridículos”.
P/1 – E você foi presa no trabalho?
R – Não, eu pedi demissão no sábado, fui pra casa, acho que foi terça à noite. Eles bateram, eu falei: “Pois não?” “É o Dops”. Na hora, né? Eu falei: “Os senhores podem voltar depois?”, mas sabendo exatamente o que me esperava. Porque naquele tempo a cidade era pequena. Eu não sei, a Vila Buarque era muito significativa, né? A gente realmente conhecia todo mundo. E às vezes eu desemcampanava apartamento, louca, né? “Você pode ir lá, Porina, pra ver se o Dops tá?”, e eu ia. Estava arriscando a vida, né?
P/1 – Como era isso? Me explica melhor.
R – Tinha aparelhos, determinados aparelhos. E era preciso saber se o Dops estava vigiando, então eles mandavam lá. Eu fui só a dois. Se eu entrasse e fosse presa era sinal de que o aparelho já tinha caído, né? Foi uma época muito ruim, eu sentia, eu lembro que o Tancredo falou assim: “Nós temos uma manta negra sobre o país, mas isso um dia passa”. O Thiago de Mello então, tem uma poesia que: “Faz escuro mas eu canto”. Foi uma época pavorosa. O Delfim disse que não foi ditadura, foi ditabranda. Eu acho que ele devia ter sido torturado. Porque não importa, foram 500 pessoas, no Chile foram 30 mil, mas você não ter direito a nada, não é? Foi uma época assim, eu acho que a Comissão da Verdade não fez nada, foi lá, mexeu, levantou uma poeira, mas eu nunca acreditei nela. Não pegou o Getúlio, que a época do Estado Novo foi igual. Tirava-se com alicate unhas e ponta de seio. Puseram uma jiboia com uma menina de Belo Horizonte, foi uma jararaca mesmo. E a gente acabou ficando sabendo de tudo, né? O mundo era muito pequeno, não tinha telefone, não tinha celular. Agora, aí Tancredo morre, né? É como Eduardo Campos, esse é um país de tragédia grega, né? O Tancredo morre, o Brasil perde a Copa de 82, Caio, você lembra? Não, você não era nascido, nem você nem Tereza?
P/1 – Eu estava nascendo.
R – Estava. Foi o melhor time, o Brasil volta pra casa nas quartas de final. Eu falo, gente, esse é um país de tragédia grega. Agora morre o moço? Se eu fosse piloto daquele avião eu vinha pra Congonhas, você acha que eu ia pra Santos? Fazer o quê em Santos? Bom, enfim, é isso, acho que falei tudo.
P/1 – Ih, não vou deixar parar (risos). Tem a coisa do seu professor que foi morar na kitinete te receber quando você saiu da prisão. Como terminou essa história? Vocês ficaram juntos, não?
R – Ficamos. Foi um escândalo. Mas na época eu não dei a menor importância. Imagina ela, não casa com o homem que pode ser pai dela. Eu tinha um monte de namorado tudo mais jovem, mas dizia: “Não, não vou casar. Não é um bom negócio pra mulher”. Bom, aí...
P/1 – Quanto tempo vocês ficaram juntos?
R – Dez anos. Ele teve um câncer aqui, espinocelular. Gozado, eu tive, acabei ficando grávida, ele falou: “Vamos ter um filho”. Eu falo pro meu filho: “Se eu soubesse eu teria tido meio”, porque meu filho é um saco, entendeu? É muito difícil aguentar uma mãe assim, ele vive, ele quer me dobrar. Então o meu marido tinha um ciúmes, ele não falava, né? Uma vez ele disse uma coisa só: “Eu quero pôr você no alto de uma montanha, numa casa grande, trancar a casa e jogar a chave fora”, era o sonho dele. Tanto que nesses dez anos ele era professor titular da UFMG, foi lá e pediu demissão. O protocolo disse pra ele: “Professor, nunca ninguém pediu demissão, nós não sabemos”, sem me consultar. Se ele não tivesse feito isso eu teria uma pensão de 25 mil, sei lá. Aí veio pra cá, foi lecionar na GV, na Faap, sei lá. E fez concurso e foi pra Unesp de Araraquara.
P/1 – Você estava contando que ele deu aula em vários locais aqui em São Paulo.
R – É, pra sustentar a casa. Depois fez concurso pra Araraquara, Unesp. Quando ele ficou doente o reitor ligou pra mim. Mandou eu ir na rodoviária ligar pra ele do orelhão. Esqueci o nome dele, um sujeito muito simpático. Ele disse: “A junta médica já está pronta, ele vai fazer concurso”, que era INSS. Naquele tempo era INPS. Eu disse: “Professor, é na boca, não tem jeito”, porque pegou aqui, né? Ele escondeu durante anos. Aí ele ficou dois anos. Meu filho diz assim: “Ele tinha um mês de vida, deixasse ele morrer”. Mas eu fui vendendo o que eu tinha, eu tinha fazenda, eu tinha um monte de coisa, tudo de herança. Terrenos. Tinha uma fazenda ma-ra-vi-lho-sa em Tambaú, terra do padre Donizetti. Linda. Tinha rio. Eu achava a coisa mais, mais rica que a rainha da Inglaterra, porque pelo que eu saiba ela não é dona de um rio, né? Não, estou brincando, claro que é, né? Mas eu não deixei ele ir pra enfermaria, entendeu? Naquele tempo uma quimioterapia era cinco mil dólares, vinha do Japão. Eu não sei quanto era o dólar, era caríssimo. Aí eu fui vendendo, perdi tudo. Eu tinha comprado uma casa, um dia ele falou pra mim: “Não sei qual é o problema de pagar aluguel”. Eu fiquei muito assustada, saí e comprei uma casa no nome dele. Ele morreu a casa foi quitada. Por isso que eu comprei um apartamento no Itaim, minha casa era muito bonita. Bom, ele morreu, foi cremado. Eu não tinha dinheiro pra pegar o Cometa pra voltar pra Ribeirão. Então eu resolvi que em Araraquara eu não ficaria, não ia criar um filho que tinha 12 anos numa cidade que cheirava maconha, enfim, quando eu voltei, vocês vão rolar de rir com essa, a cidade inteira me pediu em casamento. Eu tinha 40 anos. “Mas o que é isso?” “Mas a senhora foi fiel” “Como assim?” “Não, não existe isso. Viram a senhora de bobs às nove da manhã indo pra feira, alguma coisa ela vai fazer”. Sabiam da vida de todo mundo, porque também era uma cidade pequena, né?
P/1 – Isso era Araraquara?
R – Era. E a minha casa era tipo uma escola, assim, porque o que tinha de criança, eu punha tudo dentro do carro, fotografafa a cidade, dava festa da pipoca, fechamos a rua pro São João. Foi uma época maravilhosa porque tinha muita criança e todas com os avós nascidos naquele quarteirão, todos protestantes. Então sempre uma parede na minha frente. Ah, eu não posso falar palavrão também, então não falo, né? Mas eu ensinava eles: “Vocês vão aprender, não vão? Fala comigo: p.!”, mas farra, folia, era tudo... brincava de esconde-esconde, a casa era enorme. Aí eu comprei uma casa, quando ele morreu eu aluguei para a Nestlé e vim pra cá. A casa era maravilhosa. Cheguei aqui, esqueci que tinha condomínio, entendeu? Aí eu fui fazer faxina. O condomínio era altíssimo, o apartamento era do prefeito de Araraquara, Marcelo Barbieri, lindo, Alves Guimarães. Mas eu era muito desligada, aí eu tive que faxinar. Uma dor nas costas, Tereza. Aí o meu filho começou, começaram a falar, os primos começaram a falar: “Sua mãe jogou tudo fora, milhões”. Então ele não me chama de mãe, ele é muito bravo comigo. Ele é um cara perfeito. Não casa, namora, namora, não vai pra frente. Agora disse que vai morar comigo porque eu pedi pra ele sair de casa: “Vai morar sozinho. Filho único de mãe viúva não dá certo”. Ele se administrou bem, ele fez 500 concursos, trabalha no TRT. Não quis ser juiz, isso eu não perdoo, porque ele ficou me enganando. Ele é um cara brilhante, mas não me aceita; quer dizer, até o filho não aceita, então é porque eu não sou uma mãe igual as outras. Eu saio, saio de madrugada, tem um bar onde os garçons, aqueles restaurantes belíssimos do Itaim, eles se encontram ali às duas da manhã, eu sento, fico conversando. A gente fala... mulheres também. Antigamente era bala da Brunella, depois foi fitinha, agora é esmalte. É um prazer. E ele fica assim: “Onde você foi?”, eu falo: “Meu Deus do céu. O pai foi um algoz, o marido foi um algoz”. Domingo ele falou não sei o quê, eu falei: “Como você chama?” “Por quê?” “Você não vai morar aqui não. Você está pensando o quê? Você vai trazer seu corpo? Vai trocar lâmpada, vai consertar. Não”. Porque os homens têm problema, vão pro bar e bebem cerveja; as mulheres enfrentam. Eu estou louca? E a minha obsessão era qual é a diferença entre homem e mulher. Já entendi tudo isso, agora, homem não tem o hormônio da mulher, né, Caio? Eles se acomodam melhor. A gente é guerreira. Eu tenho uma faxineira que é um show, ela construiu sozinha a casa dela. Ela falou: “Agora não tenho dinheiro pra porta”, eu falei: “Quanto custa essa porta?” “400 reais” “Eu te dou”. Aí parei de pintar o cabelo. Não dá pra ter as duas coisas. Adorei, pô, não preciso mais. Eu ficava deprimida. Aí comecei a ser mais cantada, você acredita?! Outro dia um cara sentou no fumódromo e falou assim: “Voltei ontem de Havana” “Tá, good for you” “É, peguei uma puta genial. Muito, nunca vi uma mulher daquela” “Você pegou onde?” “Na rua”. Eu falei: “Meu caro, se você quiser uma puta em Havana, você fala pro taxista o que você quer, ele põe o preço na sola do sapato, senão ele vai preso e ela também. Agora vou dizer uma coisa pra você, puta igual a eu você nunca vai ter. Porque você está vendo essas ruguinhas aqui? Eu chupo”. Ele queria me matar, entendeu? Quer dizer, até hoje eu sou aquela que não aceita, entendeu? Aí o outro chega e fala assim: “Nossa, como você é bonita”, o Nuno Cobra fez isso: “Você é muito bonita”. Não, mas não foi o Nuno, foi um cara da Bolsa. Ele falou assim: “Eu tenho um Honda, você viu o meu Honda? E moro no vigésimo primeiro andar da Alameda Santos”, eu falei: “Olha meu bem, eu também. E tem mais, eu não dou pra rico, rico mija esperma, pobre goza. Eu dou para um funileiro da Juscelino, ele fica com...” mas é tudo mentira, né? Mas também se tiver que dar, dou, não tem nenhum problema. “Ele todo cheio de graxa, mas ele é gostoso. Você, perfumado, você vai mixar esperma em mim, não vou mesmo, nenhum dinheiro do mundo”. Eles ficam assim. Eu penso: “Pô, será que eu não vou parar, né?”.
P/1 – Acho que não (risos).
R – Olha na minha idade. Mexeu comigo. Porque não tem respeito, gente da minha idade. Eles não são másculos. Por isso que eu gosto de artista, pelo menos artista você não precisa ver, né? É uma mentira, não é? Porque... Caio, você está escutando, Caio? Eu falo pro frentista, garçom, eu tive grupo de tudo quanto foi gente. Manobrista, eles falavam assim: “Se vier uma velhinha num Palio esculhambado é ela, viu?”. Eu falava: “Não, não precisa manobrar meu carro não, porque eu não tenho direção hidráulica” “Moça, hoje eu já manobrei 182. Os caras nem olham na minha cara. Às vezes jogam uma gorjeta de cem reais. Minha mulher já vai me esperar com gelo, bolsa de água quente”. Aí os seguranças não deixavam eu entrar, falavam: “Aí é muito caro, você não vai poder pagar. Está vendo aquela moça? Aquela é de boa família, aquela ali é de programa”. Falou. “Como você sabe?” “Mulher”. Eu aprendi demais com eles. Barista, manobrista, segurança. Depois eu tive um grupo de puta, porque eu não consigo ficar parada, entendeu Tereza? Não consigo. Esse grupo era perto da Folha, mas no fim eu percebi que eu ia pra cama com um cara e elas iam filmar e botar na internet. Até aí tudo bem, mas meu filho ia ter quíntuplos japoneses negros, né? Ele é todo certinho. Mas também foi uma época de conhecer bem o mundo delas, elas fazem porque elas gostam, elas são as terapeutas dos caras, sabe? Esses universos. Porque o universo dos ricos eu já conheço, né? Teve uma reunião do Gracinha na minha casa por conta de uma menina que quase morreu com droga. As professorras falaram: “A gente vai fazer o quê? 30% dos pais são drogados”. Quer dizer, o mundo hoje está... porque na área eu peguei, primeiro bicheiro, depois justiceiro, depois traficante. Eu não sei quem que mora em Guarulhos, eu vi um carro de Guarulhos lá embaixo. Eu tirei Padre Bento que era um leprosário, uma tarefa hercúlea, mas tem que fazer? Deixa que eu faço do meu jeito, né? Tocava mutirão, tirava favela.
P/1 – Tudo isso trabalhando, Maria Luiza? Deixa eu entender. Você se aproximava desses grupos a trabalho, é isso?
R – Não. Esses grupos foi depois que eu perdi meu emprego. Porque eu não conseguia ficar parada. Acontece, entendeu? Vai montando assim.
P/1 – Aí você se aproximava pra poder conhecer, é isso?
R – É. Aí pergunta uma coisa, como você chama, onde você mora. Aí no fim eles traziam outras pessoas. Eu fiz coisas assim, no MAM eu reuni as meninas uma vez, elas que pediram. Nossa, elas sentaram no chão, acho que a gente ficou umas três horas conversando. Foi uma coisa muito boa. É um talento? Eu acho que a palavra da moda é empatia, Tereza. Todo mundo está se tocando que se não tiver não vai resolver. Porque eu peguei incesto, pedófilo, pra quem eu ia falar? Eu ia levar pra polícia? Falar o quê? Heliópolis foi a experiência que eu mais, lancinante que eu tive, porque eu entrei às seis da manhã e me enfiei em uma creche, sem carro oficial e sem crachá. Favela todo mundo entra, né? E como a Cohab estava muito desmoralizada eu comecei a... Bom, quando a Santa Madre, o PT e o PMDB acordaram, a favela estava sonhando. Quando você implanta um sonho ninguém tira. Eu dizia: “Cada um vai ter um lote de 150 metros”. E com o tempo, aquele jeito, chegava um carinha, papel de pão: “O que a senhora acha da minha casa?” “Eu acho ótima, cadê a garagem?” “Mas eu nunca vou ter carro” “Quem falou que o senhor não vai ter carro?”. Sabe? Ou a mulher que chegava e dizia assim: “Meu marido tem uma dor nas costas” “Vocês fazem coito interrompido” “Como a senhora sabe?”. Aí arrumei um médico que fazia por 200, era de graça, vasectomia. Nossa, a igreja ficou louca, né? Aí foram no Ibirapuera pedir a minha demissão. Oficialmente. PT, PMDB e o padre. Aí o Jânio me chamou. Ele era um cara brilhante, completamente louco, ele proibiu a minha demissão. Ele foi o único que não me demitiu. Não só não demitiu, proibiu. Aí a CDHU me chamou, eu estava em Itaquera, CDHU me chamou. Eu ganhava mil, era para ganhar três e 600 e trabalhar lá na Paulista. O Jânio falou: “Não pode” “Tá bom, então eu fico aqui mesmo”. Mas aí uma avançou numa outra, a lésbica, aí teve que mandar embora. Ele era um cara justo, né? Me mandou e eu fui pra CDHU.
P/1 – Foi uma briga isso? Não entendi. O que aconteceu nessa situação que você foi demitida?
R – Era proibido, mas ele teve que mandar uma embora porque ela atacou uma moça no elevador, a lésbica. Aí meu gerente, seu Jesus, era um barato ele. Ele falava assim: “Quando eu ficar viúvo eu vou casar com você”. Eu falava: “Seu Jesus, para com isso”, era um gaúcho janista. “A sua mulher está viva” “Mas logo ela morre” “Pelo amor de Deus!”, mas aquilo vinha de tudo quanto era lado. Ele disse: “Você é a mulher mais sensata que eu conheço”. Nunca ninguém tinha falado isso. Por quê? Eles foram na Globo e falaram: “Quem não puder pagar prestação é só falar com a assistente social”. Eu estava em Itaquera, que tinha 120 mil habitantes. Rodava assim. Eu dei pra uma viúva diminuir a prestação. Eu falei: “A senhora vai ter a prestação diminuída não porque a senhora mereça, mas porque a senhora é melhor do que eu”. Falei não pra todo mundo, aí vai espalhando, veio aquela mulher, parou um pouco a fila. Mas durante uns dez dias eu não podia nem fazer xixi, porque 120 mil habitantes todo mundo queria diminuir. E o seu Jesus que era meu gerente recebia meus relatórios, não, não, não. Sabe, ninguém passava conversa. Porque como eu já tinha perdido tudo, o mutirão também, a gente fazia assim. Aí vinha freira da Alemanha, que mutirão era uma coisa assim, era o comecinho das ONGs e o começo do MST também, Itaim Paulista. Aí vinha a Marta e o Eduardo brancos, de branco, de joia, perfumados e eu fazendo inscrição naquelas catacumbas, São Miguel 45 graus. Aí trazia aquele monte de freira alemã. Aí um dia eu menstruei, porque eu assentava tijolo com eles, falava: “Gente, vamos embora, o Jânio vai ganhar”, isso foi no Covas, né? “Quando ele ganhar ele acaba com o mutirão”. Em seis meses fizemos 123 casas. Aí eu menstruei e vazou. A mulher falou pra mim: “A senhora está menstruada?”, eu falei: “Reunião hoje”. Era tão pobre que era embaixo da árvore a reunião. Eu falei: “Eu quero saber quem é que não menstrua aqui”, dei uma dura nelas. Eu falei: “Todo mundo viu, só uma me avisou?”. Eu pus uma roupa e tudo bem, vamos embora. Aí começamos a falar sobre sexo. As freiras pediram a minha demissão porque não pode falar. Quer dizer, eu não sei mais como é hoje, evidentemente que eu não faço ideia, acho que nem existe mais trabalho social, nem imagino. Esse monte de invasão, né? Mas naquele tempo você não podia discutir nada. Isso foi até 98. Aí em 98 eu pedi pra sair do social porque eu não aguentava mais o PT, né, eu fiquei 19 anos com o PT. Fazia aquela reunião maravilhosa, três, quatro, alguém ia trabalhar, eles não. Aí eu pedi pra sair do social e me puseram numa biblioteca técnica. Só tinha livro pra arquiteto e engenheiro: “Bom, você fica aí que você descansa”. Levei meus DVDs, romance, livros, CDs; tiveram que botar um monte de mesa, de cadeira, os funcionários queriam me linchar. Porque ninguém trabalhava, né? Fiquei cinco anos. Levei Harry Potter. Aí foi lindo, né? Todos aqueles livros que eu adora. O que mais saía era o do Carandiru, do Drauzio Varela. Todo mundo lendo, Tereza! Aí eu recebi uma ordem: terceirizados não podem frequentar a biblioteca. Eu falei: “Tudo bem, vocês me dão isso por escrito”. Porque foram os que mais aproveitaram.
P/1 – Onde era essa biblioteca?
R – Era na Nove de Julho, CDHU. Nove de Julho, quase com a São Gabriel. Aí que eu comprei o apartamento lá. Mas aí foi o melhor tempo da minha vida, porque eu via avidez, sabe? Aí a Acecap, a Associação dos Funcionários começou a me dar 500 reais por mês pr comprar, porque eu gastava do meu salário, né? Aí deu uma ciumeira, me tiraram de lá assim, do dia pra noite. Aí eu fui demitida. Fui pra um lugar pra fazer o site e a outra coisa que eu esqueci. A capa do site eram diamantes daquela loja linda de joia com morangos. Como é que chama aquela loja?
P/1 – Mas o que era esse site? Eu não entendi.
R – O site da CDHU.
P/1 – Ah, da CDHU.
R – Como eu escrevia muito, que eu tinha um jornal, o jornal era maior gracinha. Foram os primeiros sites, o primeiro blog. E eu tinha uma chefe espetacular, que era filha do professor Cesarino, aquele professor negro das Arcadas. Ela, petista roxa, está em Brasília até hoje mas, ela me deixou trabalhar.
P/1 – Aí você foi trabalhar fazendo site, escrevendo pro site, é isso?
R – É. Depois desses cinco anos. Porque um chefe, eu era magra naquele tempo, um chefe chegou e falou assim: “Eu acho que você não entendeu o nosso objetivo. Aqui nós só queremos funcionários analfabetos”. Eu voei em cima dele. Passei por cima da mesa. Ele saiu correndo. Eu sou lendária lá, até hoje. Porque se mexesse comigo. Você imagina, você está num lugar onde as pessoas estão lendo. Eu comprava filme pra criança, filme de ação, filme de romance. Tinha fila! E eu pegava o telefone: “Fulano, chegou”. Aí que eu comecei a ficar doente porque os chefes falavam: “Biblioteca é lugar de vagabundo”, então eu não fechava. Eles só podiam ir na hora do almoço. E depois das 18 horas ia outra turma, então eu chegava em casa 11 horas da noite. E sábado e domingo, como os guardas eram os que mais gostavam dos DVDs, eles deixavam o meu carro entrar, não passava na catraca. Então o trabalho administrativo eu fazia sábado e domingo. Aí eu fiquei diabética, hipertensa, não comia também, mas também não tinha importância. Tudo isso tem sentido. Agora ver um cara falando assim: “Olha, na porta da minha casa é uma boca de fumo, agora eu faço churrasco, passei aquele filme do Vin Diesel”, sei lá, “e reuni cunhado, sogro”. Isso não tem preço, quer dizer, todo mundo começou a acordar para filmes E livros. Harry Potter, quem descobriu foi a viúva do Paulo Francis. Eu assinava a Gazeta Mercantil e ela fez uma entrevista com ela, nem tinha chegado da Inglaterra e eu fiquei esperando. A viúva dele, a Sonia Nolasco, é uma mulher brilhante, deve ser belíssima. Harry Potter tinha fila, um monte, né? Fora os que eu levei meus. Então foi uma época assim. E de noite eu chamava os artesãos. Tinha um da prata, de Goiás; tinha a menina que só trabalhava com pedras. E eu sabia quem gostava do quê. Lá virava o maior comércio de noite, mas não era proibido. Só que eu ia pra casa eu dançava, eu punha música e dançava até encharcar. Nessa altura, chegando dez, onze horas da noite não podia por música alta, eu comecei a engordar, né? Pronto, acabou, é isso. Acho que não tem mais nada pra falar, né?
P/1 – Não, falou bastante coisa. Eu queria saber, você aposentou na CDHU, parou de trabalhar?
R – Foi.
P/1 – Foi seu último trabalho.
R – Mas acho que eu estava tão exausta. Porque eu lembro que as pessoas pediam blog sobre cinema, mas eu acho que a minha preguiça, a minha falta de disciplina, aquela coisa. De repente eu falei pra Luiza no telefone, eu não posso ir às 14 porque eu vou dormir às cinco da manhã. Como eu vou? Eu virei assim, feito neném. É uma delícia ver os filmes na madrugada, são os melhores. Eu nunca fiz isso! Acordava com as estrelas. Agora é uma bagunça, então eu blog de cinema? Ah não! Agora eu tenho só duas pessoas no Facebook que eu aceitei, os dois são malucos por música e por cinema. Então isso me dá muito prazer porque eu falo com gente que não me acha louca. Todo mundo acha que eu sou louca, minha família inteirinha fala. Meu filho fala: “O que eu faço com a minha mãe?” “É, você tem que ter paciência porque o DNA dela é fortíssimo. Ela fuma, não dorme, não faz exercício e não morre. Então você tem que ter paciência”. Quer dizer, não tem aquela palavra de carinho, né? É por isso que eu não gosto de Ribeirão, não tem nada interessante acontecendo lá. Tereza, no meu tempo era cidade vermelha, cidade que votou em Getúlio! Tinha PRK7, tinha debate. Eu não sei as outras cidades, acho que acabou em todas, né? A gente era altamente argumentativo, eu não vejo mais isso. Vejo na internet, mas xinga mais do que argumenta, né?
P/1 – E Maria Luiza, você tem netos? Seu filho teve filhos?
R – Não, ele não casa. Ele fala que é porque ele não tem carro, que as meninas olham o chaveiro. Os homens estão falando muito mal das mulheres, né? Caio, você é casado há quanto tempo?
P/2 – Há uns cinco anos já.
R – Bastante, né? Não, eu escuto duas coisas, um fala mal do outro e ambos dizem: “Não queremos ter filho” (risos). Você escuta isso?
P/1 – Às vezes.
R – Gozado, né? Até dando, ter filho ficou uma coisa amedrontadora, né? Eu acho que até certo ponto. Porque pra mim o que mudou foi o crack, porque os pedófilos, os incestuosos, tudo isso que eu vivi, que eu sofri horrores, não tinha helicóptero, não tinha Datena, nada. Ai, perdi o raciocínio.
P/1 – Você disse que o que mudou foi a questão do crack, da sua época pra agora.
R – É. Porque quando o Rio não aceitava o crack, por ser muito barato, não era tão violento quanto é agora. Quer dizer, porque quando eu conheci a cidade, era Araraquara, eu tinha 15 anos e tinha quatro tias lá. E as senhoras da alta sociedade se drogavam. Eu acho que era heroína. Eu tinha um tio farmacêutico, ele saía com uma bandeja. Aí um dia, tinha o puteiro lá, famoso, eram juízes de direito e médicos famosos. Um dia um passou mal, chegou em casa, pegou a mulher com o cavalariço, quer dizer, aquelas mansões. Aí todos os cavalariços foram demitidos. Eu tinha um amigo que era chofer do ponto de carro de aluguel, não era nem táxi, Carmo. E ele me contava essas coisas. Então a alta classe acho que sempre teve droga. Agora quando ela desceu, disseminou e ficou barata, aí entrou a maldade, né? Hoje a gente vê coisas muito más acontecendo. Outras acho que sempre aconteceram, né, Tereza?
P/1 – Eu acho que sim.
R – A minha avó ficava na fazenda, ela ficava na porta e tinha uma fila de colonos. Ela ia dando o bolo de fubá, que era feito na brasa e eu olhando, falava: “Ai, vai tudo”. Depois banana e depois pão. Colono falava assim pra ela: “Dona Nequinha, minha mulher” “Eu vou mudar você de colônia”. Eu só vi isso em Faulkner, quando eu fui estudar Faulkner. Quer dizer, era uma coisa monossilábica de filme de cowboy, mas ela sabia o que ele estava falando. Então, essas coisas. Incesto existia demais. Todo mundo sabia, ninguém fazia nada, fazer o quê? Agora quando você põe a droga, Tereza, aí a coisa complica, né? Que sempre existiu, sempre. Enfim, acho que não falta nada, né? Estou doida pra fumar.
P/1 – Eu vou te falar as duas perguntas finais então, e a gente encaminha para o encerramento. A primeira é: Quais são seus sonhos?
R – Ah, eu quero ficar sempre assim. Eu não sei o que poder acontecer. Eu tenho um carro velho, como às vezes eu estou guiando e a glicemia baixa, eu bato em poste, bato em guardrail, então não arrumo mais. Esse carro é famoso, acho que nem na periferia tem um carro tão batido. Então quando eu chego os manobristas já sabem que sou eu. E eles vêm contar a vida, eles vêm falar, sabe, isso me alimenta. Esse é o meu sonho. O meu filho eu já desisti, ele não vai ser feliz porque ele nasceu infeliz. E eu não vou ter netos, estou muito velha pra ter neto. Não gosto de nenezinho pequenininho, eu gosto quando eles começam a falar. E ele vai morar comigo. Então isso eu estou muito triste. Em compensação, o ano que vem eu recebo a última herança, vai dar pra ele comprar o apartamento, ou mudar, ou fazer outro concurso, ele vive fazendo concurso. Agora ele quer Receita Federal. E ele poderia ser juiz, aliás ele é brilhante, empático, culto, adora cinema. Ele viaja, ele pega promoção, viaja o Brasil inteiro. Agora eu vou com ele pra Curitiba, primeira viagem que nós vamos fazer, mas ele demorou muito pra convidar, eu respeito muito. Ele chega e diz assim: “Conversei com o taxista, conversei com o garçom do PC Farias”, resumo: “Todos estão dizendo a mesma coisa, se eu estivesse lá eu também estaria roubando. Isso pra mim é o fim, sabe? Passamos do limite. Vamos recomeçar. Eu não vou ver, eu tenho certeza que eu não vou ver. Talvez você também não veja, Tereza. Porque é um país que anda tão devagar, né? Ninguém mais está com tesão por Educação. Acabou o tesão. Quem é que trabalha? Eu não conheço ninguém que trabalha, as pessoas da área social que eu ainda conheço dizem assim: “Olha, acabou viu? Acabou. Está tudo ao Deus dará”. O meu sonho seria ver o Brasil indo pra frente, porque eu não consegui fazer isso, entendeu?
P/1 – E por fim, como é que foi contar a sua história?
R – Eu gostei porque acho que a velhice que todo mundo teme tanto, na velhice, se você viveu cada dia intensamente, porque ontem já foi e amanhã não sei, você vai adquirindo identidade. Eu acho que o que falta é isso, é identidade. Eu acompanho muito o trabalho da Monica Goldenberg. Ela diz: “O Brasil não tem velha, tem loira”. Ela começa a se preocupar com o corpo. Até que ponto eu deixei isso acontecer também como forma de discutir. Porque a mulher brasileira pode ter bunda grande, peito, barriga não. Eu tenho barriga e estômago e não escondo. Eu quero que as pessoas pensem mais, entendeu? A vida é uma coisa maravilhosa. Eu não tenho religião porque não sei como é ter religião. Você acha, minha mãe dizia: “Aqui é o planeta do suplício, a gente morre e vai pra um melhorzinho”. Eu não vou acreditar nisso, eu admiro quem acredita, tenho um monte de amigo espírita, um monte de amigo gay, lésbica. Meu sonho é ver as pessoas se conhecendo. Eu acho que eu me conheço bem, mas foi tudo sofrido, foi tudo... mas não é nada de vítima, sabe? O que aconteceu foram as minhas escolhas. Continua sendo as minhas escolhas. Agora, por exemplo, eu tinha uma chefe que morava aqui. Eu gostei tanto de voltar, daí continua aquela rua estreitinha? Um trânsito assim, devastador, né? Uma casa de hera. É que eu não ando, senão eu ia bater a campainha. Todas as casas que eu tive tinha hera. Eu achei aqui um ambiente encantado, fiquei muito emocionada. É linda aquela sala. E pra você, você gostou?
P/1 – Gostei muito. Foi incrível, foi uma delícia.
R – Eu não sei, eu não falei de São Paulo, não deu tempo, né? É uma coisa que eu amo de paixão essa cidade. Sinto agora que ela está nos sendo tirada, nunca tinha sentido isso, porque o Itaim está indo pra baixo, Tereza. É assim... não vai sobrar nada, porque quando eu fui trabalhar lá tinha a fábrica da Kopenhagen, era um bairro que cheirava chocolate. Aí veio Kinoplex, sabe quando você vai percebendo tudo? Isso eu sinto. Eu sinto falta dos meus amigos do posto que foram pra outro. Agora quando eu abasteço o carro eu quero saber do dono se ele é dono do terreno; se ele for dono do terreno eu volto, senão não volto mais (risos). Tá querida?
P/1 – Tá bom, tá ótimo, muito obrigada, viu Maria Luiza?
FINAL DA ENTREVISTA
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