P/1 – Nilton, pra ficar registrado antes pra gente começar, fala o seu nome, local e data de nascimento pra mim.
R – Meu nome é Nilton Castro. Nasci no Rio de Janeiro em 1971, oito de maio.
P/1 – Você nasceu em que cidade do Rio?
R – Na cidade de Nova Iguaçu.
P/1 – Você nasceu em hospital ou em casa?
R – Eu nasci no hospital.
P/1 – Qual hospital foi?
R – Um hospital de Nova Iguaçu, Posse.
P/1 – E qual é o nome do seu pai?
R – O nome do meu pai é João da Silva Castro.
P/1 – Ele nasceu no Rio de Janeiro?
R – Não, ele nasceu em Vitória, Espírito Santo.
P/1 – Você sabe a data que ele nasceu?
R – Não tenho guardado na mente não, rapaz.
P/1 – Não tem problema, não.
R – Eu sei que ele é de 1941.
P/1 – E a sua mãe?
R – Minha mãe é falecida. Nascida no Espírito Santo também, em Vitória.
P/1 – Qual o nome dela?
R – O nome dela é Maria Antônia da Silva Castro.
P/1 – Ela nasceu em que data, você sabe?
R – A minha mãe, não. Ela morreu em 1993.
P/1 – E o seu pai, a família dele é do Espírito Santo.
R – É todinha do Espírito Santo, do meu pai e da minha mãe.
P/1 – E o que a família do seu pai fazia?
R – Eles tinham roça, trabalhavam na roça de café. Vendia café, trabalhava na roça, capinando. A família lá é assim, todinha, até hoje.
P/1 – Eles também fazem isso hoje?
R – Fazem. Tem parente ainda lá que faz essas coisinhas, com capinação, cortando café.
P/1 – E a família da sua mãe? É assim também?
R – Não, a família da minha mãe agora tem muito tempo que eu não vou lá, não tenho muito contato, mais com a do meu pai. Que foi indo todo mundo se acabando, né? Só tem uma tia lá em Vitória e uma aqui no Rio de Janeiro que nós vamos sempre lá, irmã da minha mãe. Mas é vida normal.
P/1 – Não trabalha na agricultura, na roça.
R – Não. Trabalha de empregada doméstica.
P/1 – E você sabe como seus pais se conheceram? Eles contaram essa história pra você?
R – Não. Quando eu vim estar mesmo assim eu estava com meus oito anos e não tinha a história deles não.
P/1 – Quando você nasceu os seus pais moravam em Nova Iguaçu já?
R – Já. Moravam em Nova Iguaçu.
P/1 – Como ele foram parar em Nova Iguaçu?
R – Como se diz, do Espírito Santo vieram pra... acho que a minha mãe tinha arrumado serviço na Barra da Tijuca e de lá, do Espírito Santo, vieram pro Rio de Janeiro e do Rio de Janeiro eles conseguiram um barraquinho lá pro lado da cidade de Nova Iguaçu. Aí lá foi criando os filhos.
P/1 – Se casaram lá.
R – Casaram lá no Rio de Janeiro mesmo. Não, se casaram no Espírito Santo, aí vieram ter os filhos tudo no Rio de Janeiro.
P/1 – E você tem quantos irmãos?
R – Ao todo eram cinco, agora tem quatro.
P/1 – E como é você nessa escadinha?
R – Ai tem o Nildo, mais velho, está com 52 anos. Uma que é a Niceia, está com 49. A Nilza está com 46 e eu que vou fazer agora 45 no dia oito de maio.
P/1 – É todo mundo com N?
R – Todo mundo com N.
P/1 – Nilton...
R – Nildo. Tinha um que chamava Nivaldo também. Então é Nildo, Niceia, Nilza, Nilton que sou eu e Nivaldo, cinco.
P/1 – Cinco.
R – Cinco. Três homens e duas mulheres (risos).
P/1 – E você nasceu em Nova Iguaçu. Como foi crescer lá, como era?
R – Eu nasci nesse Hospital Nova Iguaçu, da Posse e me criei por lá mesmo. Com meus 16, 17 anos que eu acompanhei minha mãe a vir pra cá em São Paulo. Ela saiu levando todo mundo, pegando o primeiro mais velho, a do meio, minha outra irmã e eu fui o último a vir pra cá pra São Paulo. Aí meu pai ficou por lá porque eles se separaram e minha mãe veio pra cá, veio pegando todo mundo. E ele gostava de tomar um mé, né? Aí nesse mé ele descontrolava, aí ripava todo mundo (risos). Aí cada um foi saindo fora, né? Veio embora pra São Paulo.
P/1 – Mas antes de falar daqui de São Paulo conta como foi crescer, como era sua casa em Nova Iguaçu?
R – Lá no Rio de Janeiro a casa não era aquela casa não, era uma casa pequena pra cinco pessoas. Minha mãe ia trabalhar fora pra dormir, meu pai também ia trabalhar. A gente ficava na casa dos outros, o pessoal tomava conta da gente e aí foi indo. Minha mãe às vezes dormia no emprego pra vir de final de semana e meu pai trabalhava perto mesmo. Durante o dia a vizinha tomava conta da gente, arrumava a gente pra ir pra escola e quando era tarde meu pai chegava e estava todo mundo em casa já. E aí fomos indo, crescendo, crescendo, crescendo. Depois arrumamos uma escola lá, todo mundo ia pra escola.
P/1 – Mas como é Nova Iguaçu, a cidade? E o bairro onde você mora?
R – O bairro que eu moro é um bairro chamado Nova Brasília, um bairro bom, que até hoje quando nós vamos lá todo mundo ainda: “Caramba, a gente pensava que vocês não iam vir mais pra cá”. E nós falamos: “Não, nós nascemos aqui, não esquecemos daqui não, poxa”. Tem sempre que estar olhando a casa que a gente deixou lá pra trás, de família, aí eu estou sempre indo lá visitar os amigos, a família. Mas o bairro é legal.
P/1 – A casa está lá ainda?
R – A casa está lá ainda, mas nós fizemos uma reforma que de muito tempo que nós morávamos era aquela telha pequena. Aí fomos trocando, quebrando parede, mexendo de um lado, mexendo de outro. Agora está reformada, fica uma casinha pra quando quer passar final de ano a família todinha, parte pra lá, aí tem seus quartinhos, sua casinha e depois retorna pra São Paulo. Vai todo mundo passar o Réveillon lá. Lá na casa, na casa das tias, dos primos, de vez em quando vamos pro Espírito Santo também ver os parentes da minha mãe e do meu pai, porque ficou um pouquinho pra lá ainda. Mas a nossa naturalidade é no Rio de Janeiro, onde nasci. Ainda vai sempre lá.
P/1 – Mas como é o bairro Nova Brasília?
R – O bairro Nova Brasília?
P/1 – É.
R – É um bairro de muita gente, uma casa perto da outra, colégio, hospital também. É um bairro bom.
P/1 – E que rua lá que você morava, que você cresceu?
R – Na rua que eu nasci, cara, foi na rua dos Pinheiros, número 125. Até hoje tem essa casa. Depois meu pai trocou. Bebeu demais e quando foi pensar que não fez rolo na casa. A nossa casa era grande, aí de tanto ele afundar a cara no remédio e a gente estar aqui em São Paulo ele foi e fez rolo na casa, aí nós estamos morando em outra casa, mais pequena. Só que a casa que eu nasci é na rua dos Pinheiros, 125, Nova Brasília.
P/1 – Você ficou quanto tempo nessa casa grande?
R – Nessa casa grande? Eu nasci lá e vim pra cá com 17 anos.
P/1 – Você morou até os 17 então.
R – Morei até os 17 lá.
P/1 – E como era essa casa? Descreve ela, como ela era.
R – Essa casa tinha quarto, cozinha, banheiro e duas salas e um quintal grandão.
P/1 – Ah, é?
R – É. Um pé de amêndoa grandão. Sempre de manhã quem varria era eu. Meu pai mandava eu: “Você lava banheiro e varre quintal” (risos).
P/1 – Era sua missão.
R – Era minha missão. Dali ia pra escola (risos).
P/1 – Tinha que fazer antes de ir pra escola?
R – Antes de ir pra escola. Porque se ele chegasse e derrubasse as folhas que tem em tempo de outono, quando bate aquele vento o quintal ficava cheio de folha. Aí quando ele chegava à noite e via aquele negócio lá: “Você não varreu o quintal!” “Varri pai, é que deu um vento aí”. A minha obrigação era essa.
P/1 – E era amêndoa?
R – É pé de amêndoa. Tinha no quintal lá.
P/1 – Você também tirava as amêndoas?
R – Não, amêndoa não tirava, não. É aquela amendoeira mesmo quando dá no pé da calçada. Mas não e essa amêndoa de comer não.
P/1 – E vocês brincavam muito lá em Nova Iguaçu? Vocês brincavam de quê na infância? Do que você gostava?
R – A infância nossa no Rio de Janeiro era patinete.
P/1 – Patinete?!
R – É. Meu pai fazia aqueles patinetes com essas taubas de 30 assim, botava um eixo no meio, ia lá e mandava o cara empurrar. Tinha uma descidona que é assim, não era asfalto não, era rua de paralelepípedo (risos). Era assim nossa infância.
P/1 – E você gostava?
R – Ah, demais, né? Era aquela infância de criança. E depois soltar pipa. E depois ir pescar junto com o pessoal.
P/1 – Dá pra pescar lá?
R – Lá pesca. Lá tem muito lago no meio do mato, então saía todo mundo, quando chovia muito dava aqueles tipos de rãs, aí a gente ia caçar rã no meio dos brejos.
P/1 – E o patinete vocês mesmos faziam?
R – A gente que fazia mesmo. Pedia a bicicleta pro pai que a situação era brava, ou dava a bicicleta ou então, não comia nada (risos). Fazia aqueles carrinhos de latinha pra brincar. Quando chovia saía puxando no meio daquelas lamas pra cima e pra baixo, até pegar uma idade e saber o que, né?
P/1 – E você se machucava muito?
R – De vez em quando ficava com o dedo do pé sem unha, que a rolimã passava por cima (risos). De vez em quando caía, escorregava, metia o peito no chão. Sempre acontecia um acidentezinho.
P/1 – E pipa você fazia também?
R – Pipa fazia. Aqueles tal de jerequinho, ia no mato, catava bambu, fazia aquele pipa de plástico mesmo, porque lá ninguém comprava, né? Você rasgava o seu caderno e fazia aquele tal de jerequinho (risos).
P/1 – E tinha alguém que fazia a pipa mais bonita?
R – Ah tinha!
P/1 – Tinha competição?
R – Tinha competição e já tinha um rapaz da rua de cima que fazia pipa pra vender. Então quem não poderia comprar fazia a nossa pipa de qualquer jeito. E já o outro vizinho chamado seu João, que é o dono da, ele era o rei da pipa lá, acho que é até hoje ainda. Aí todo mundo ia lá comprar as linhas com cerol e nós não tínhamos isso, aí pegava até linha de costura velha pra soltar pipa (risos).
P/1 – E vocês cortavam pipa um do outro?
R – Mas lá era assim, quem botou o pipa no alto, pipa no alto não tem dono. É, daí você entrava, cortava, daqui a pouquinho vinha confusão e vinha gente e tomava a nossa linha, a gente pegava pedra e jogava nele e saía correndo (risos), não podia se defender, né?
P/1 – O que mais que acontecia nessa infância que você se lembra?
R – Ah, pouca lembrança. Era mais estudo, sete horas ia pra escola, quando era meio-dia estava de volta. E depois da escola era só ficar dentro de casa mesmo, naquela época era muito, tu sabe, né, aquela vida de ladrão prum lado, ladrão pro outro, era carro passando na rua. Então papai saía, quando dava meio-dia a vizinha pegava a gente, trancava o portão, estava todo mundo no quintal. Se a gente saísse pra rua os vizinhos falavam pro pai, né? Aí o pai falava assim: “Eu vi você na rua!” “Mentira, pai”. Mas o vizinho do lado já tinha, ele pedia pra falar, né? “Não deixa, não! Se ver fala pra mim”. Aí quando chegava era na orelha ou então uma chinelada. “Não adianta mentir, não!” (risos).
P/1 – Não podia sair de noite.
R – Não. À noite era mais perigoso ainda. Cidade do Rio de Janeiro, né? Agora não que cresceu, bastante casa, bastante vizinho, bastante vizinho, bastante luz, né?
P/1 – E vocês iam pra igreja lá na sua casa? Os seus pais eram de religião ou não?
R – Não, nessa época meu pai e minha mãe não tinham tempo não, cara. Era muito serviço e pouca luz, então não tinha tempo, não.
P/1 – Mas eles rezavam?
R – Ah, rezavam, sempre na hora de sair, dormir. Tem uma igreja lá que às vezes no final de semana, no domingo a gente ia, saía quatro e meia quando era oito horas estava voltando já.
P/1 – Mas era igreja católica?
R – É, igreja católica. Pastor Rubens. Até hoje eu lembro dele.
P/1 – Como é que ele era?
R – Era um senhor quase assim da minha cor, forte e muito legal. Às vezes fazia comida na igreja.
P/1 – Ah, é?
R – Fazia comida na igreja, reunia todo mundo.
P/1 – Pra todo mundo comer? Fazia pra todo mundo?
R – Pra todo mundo.
P/1 – E fazia o quê?
R – Ele fazia... aqui chama que é fissura de porco, lá no Rio é angu baiano. Fissura de porco com aquele angu bem molinho e já aqui em São Paulo já é fissura de porco. Aí fazia aquele negócio lá e todo mundo comia. Eu lembro que eu era pequenininho, pratão de plástico assim (risos).
P/1 – Você gostava?
R – Demais! Quando falava que ia pra igreja (risos).
P/1 – Era sempre que ele fazia?
R – Era todo domingo. Todo domingo tinha essa. Às vezes o vizinho passavam lá avisando: “Vai pra igreja hoje, dona Maria Antônia?”, era minha mãe, né? “Mais tarde todo mundo e os meninos estão indo pra lá!” (risos).
P/1 – E como era essa vizinhança? Quem eram seus vizinhos, você lembra?
R – Os vizinhos que quando nós nascemos, então a situação era brava, não tinha como você comprar um quilo de arroz, estar com o armário cheio. Aí a velha falava: “Vai lá na vizinha e pede um copo de óleo. Ela pode emprestar um copo de óleo”. Aí então você vai, foi indo, foi indo, foi indo, foi tendo muitos vizinhos. Às vezes não tinha o arroz, ia lá pedir uma caneca que semana que vem seu pai vai fazer compra. Foi indo, foi indo, foi indo e cada um foi se conhecendo assim. Às vezes você ia na feira e topava com aquele vizinho, aí falava: “Mãe, olha a sacola do vizinho, tá grande!” (risos). É assim cara.
P/1 – E os vizinhos tinham filhos também? Você amigo também dos caras?
R – Tinha, tinha. Colega, amigo, até hoje tenho uns quatro colegas lá que têm a mesma idade minha, estudou comigo e quando eu chego lá: “Caramba, Niltinho, como é que você conseguiu ir pra São Paulo?”. Eu falo assim: “Eu já falei pra você, quando você quiser ir lá tem espaço, rapaz”. Que às vezes você trabalha no Rio mas a renda é pouca. E aquele calor bravo, você trabalha já pensando. E aqui não, aqui demora pra receber, mas quando você recebe você pega uma coisa grande e dá pra você grande. Já no Rio não, é por semana o salário lá.
P/1 – Ah, é?
R – É por semana.
P/1 – Funciona assim pra todo mundo?
R – Pra todo mundo. Trabalhou de segunda a sexta, quando é cinco horas da tarde você pegou, aí na outra semana quando é domingo à tarde não tem dinheiro, está pensando já no (risos).
P/1 – É. Lá é assim. E aqui não, você trabalha por 30 dias e quando você pega esses 30 dias já pega uma coisa sabendo que vai sobrar pro outro mês ainda.
P/1 – É diferente então.
R – Diferente. Porque lá você ganhou e você já gasta logo lá, porque é por semana. Você ganhando por mês você pensa o que você vai fazer. Até pra construir você fica ruim lá no Rio, você ganha por semana, pra comprar três sacos de cimento, um metro de areia, o armário vai ficar, né? E o calor bravo demais também. Lá eu trabalhava de borracheiro. Não aguentava, não. Aquele calor bravo, aquele pneu de caminhão quente, cara! Nossa.
P/1 – Nós vamos chegar já lá. Mas antes de falar do trabalho de borracheiro eu ia te perguntar dessas amizades que você falou, desse pessoal que você fez amizade. Você tinha uma turminha lá que andava sempre com eles?
R – Nós tínhamos as amizades que nós íamos pescar, íamos em quatro pessoas, um ia de bicicleta, outros jogava atiradeira. Quando ia jogar bola reunia aquele monte de pessoa: “Ai, vamos bola com o pessoal da rua de cima” “Ah, não bota o Robertinho não que ele é muito ruim de bola, bota ele no gol!” (risos).
P/1 – Você gostava de jogar bola?
R – Ah, gostava. Entrava no meio daquelas peladas lá e sem camisa: “Chuta a bola! Chuta a bola!”. Depois quando acabava o futebol vinha todo mundo contando história: “Você foi ruim de bola hoje, hein?” “Que é isso, rapaz?” (risos).
P/1 – E tinha esse negócio de rua de baixo, rua de cima? Vocês faziam time de rua?
R – Tinha time de rua. Às vezes quando arrumava alguma briguinha aí falava: “Eu vou chamar o pessoal da rua de baixo, que é tudo nosso colega”. Aí quando passava naquela rua passava só de cinco, seis (risos). Também quando não estava, vinha uns cinco, seis em cima de você: “Ah, você lembra de ontem?”.
P/1 – Ixi. E você entrava muito nessas confusões também?
R – Eu era o primeiro.
P/1 – Ah, é?
R – Andava só com pedra no bolso.
P/1 – Ô louco!
R – Eu que apanhava mais (risos).
P/1 – Ah, é?
R – É. Eu que gostava da confusão era o que levava mais.
P/1 – No futebol também?
R – No futebol também. O outro vinha em mim, eu ia na perna dele e: “Fui na bola, fui na bola” (risos).
P/1 – E era time de quantos?
R – Quanto não tinha muitas pessoas fazia de quatro pessoas no campo, quatro pra lá, quatro pra cá.
P/1 – E um no gol.
R – E um no gol. Quando chegava mais gente falava assim: “Vai pro time dele!” “Deixa ele pro seu time!”, aí daí a a pouquinho o campo estava, já tinha até a próxima. “Vou fazer a próxima, hein!”. Aí já tinha seis pessoas pro lado de fora. Aquela peladinha de moleque mesmo.
P/1 – Jogava na rua ou tinha campinho?
R – Na rua mesmo. O campo o pessoal não deixava a gente entrar porque eles sempre conservavam a grama e era time de pessoal grande, né? Um time chamado Time da Reitoria. E o pessoal lá antigamente era meio bravo, então quando a gente ia lá a gente fazia bagunça mesmo, pulava na trave, segurava naquelas redes deles, rasgava. Não sabia jogar direito aí fazia bagunça lá, bagunçava o campo deles. Dali a pouco eles iam na casa da gente falar com o pai. Aí meu pai falava: “A rua aí! Ó o portão, por que não joga na sua porta? Vai lá pro campo lá” (risos).
P/1 – E você torce pra qual time?
R – Eu sou Botafogo. Eu gosto do Botafogo. Os parentes são todos flamenguistas, mas só eu e meu pai que é Botafogo.
P/1 – Seus irmãos são Flamengo?
R – Flamengo. Meu irmão mais velho, o outro também é Flamengo, minha irmão.
PAUSA
P/1 – Você estava falando do Botafogo. Você começou a torcer pro Botafogo, você se lembra como foram os primeiros jogos que você viu? Quando você começou a virar botafoguense, como é que estava?
R – Não, era assim, toda vez que tinha jogo o meu pai levava todo mundo pro estádio porque ele gostava muito também. Aí ele me botava em cima do pescoço dele e ia assistir o jogo. Ninguém ia de camisa, não. Aí ele começou a gostar do Botafogo, eu também. Aí levava o meu irmão também que é flamenguista: “Eu não gosto do Botafogo”. Eu comecei a gostar, meu pai me levava. Me levava e me dava sempre camisa do Botafogo, me levava pro bar e enquanto ele bebia me dava um guaraná e eu olhando o jogo do Botafogo, aí gostei do Botafogo. E até hoje eu sou fanático.
P/1 – Quem eram seus ídolos lá na sua infância do Botafogo?
R – Hoje eu não tenho muita lembrança que eu era pequeno, gostava era do Garrincha. Ver o joguinho de futebolzinho dele. Mas de lá pra cá eu fui crescendo, crescendo e comecei a me dedicar a serviço, né, e só ia no estádio com meu pai, sozinho ou com os colegas não ia, não. Porque eu via muito acidente lá dentro trem. Nego fazia você tirar a camisa, jogava spray de pimenta nas suas costas, batia dentro do vagão. Então meu pai falava: “Se você for pro estádio sozinho pode acontecer contigo”. Então eu nunca... eu fui crescendo, crescendo, crescendo, o tempo foi passando, aí só lembrança do time mesmo, uma camisa, ainda fiz uma tatuagem do Botafogo aqui no braço ainda (risos). Hoje não, agora só serviço mesmo e acabar de criar as crianças.
P/1 – Mas como é que ia pro estádio? Qual é o estádio do Botafogo?
R – O estádio é o Engenhão.
P/1 – Mas como é que você fazia pra ir pra lá pra ver com o seu pai?
R – Naquela época meu pai pegava, das vezes ia sempre um carrinho, então a gente entrava no meio do carro, dava um dinheiro pro cara botar gasolina, chegava lá e largava aquele monte de gente lá. Agora pra saber, que antigamente ia pegar o ônibus. Não, a gente ia sempre quando os vizinhos iam. Às vezes era o time do vizinho, o time do outro, eles apostavam, né? Então: “Vamos embora de carona. Dá uns três cruzeiros pra eles aí. Já ajuda a gasolina”. E lá nós entrava, todo mundo.
P/1 – Agora me fala como era em casa o seu pai, a sua mãe. Quem que fazia o quê? A sua mãe ficava mais em casa ou não, né?
R – Não, não. A vida todinha os dois trabalhavam. Só o final de semana que meu pai e minha mãe ficavam em casa, que não trabalhavam, né? Aí de manhã minha mãe ia pra feira, levava a gente, a gente comia nosso pastelzinho. Aí minha mãe trazia aquele peixe, meu pai com a garrafinha de pinga debaixo da pia, limpava o peixe. Minha mãe fazia comida. Aí quando era umas onze e meia me pai sumia na estrada, só chegava pra lá das três, quatro horas e já, ó, alegre. Aí era assim.
P/1 – Seu pai trabalhava de quê?
R – Meu pai trabalhava de operador mecânico. Não, operador de retroescavadeira, de máquina.
P/1 – Construção?
R – Em construção.
P/1 – Aí ficava o dia inteiro lá.
R – Ficava o dia inteiro, de segunda a sexta.
P/1 – E a sua mãe?
R – A minha mãe era empregada doméstica.
P/1 – No Rio de Janeiro mesmo.
R – No Rio de Janeiro. Trabalhava na Barra da Tijuca. De vez em quando levava a gente lá pro serviço dela, de sexta-feira. Às vezes tinha umas partes de uma livraria que ela não conseguia entrar, às vezes ela me levava pra passar álcool no vidro. E na volta da tarde me dava sempre um dinheirinho. Aí toda sexta-feira eu queria ir com ela (risos). “Mãe, não tem serviço hoje, não?” “Hoje não! Hoje é terça-feira ainda!” (risos).
P1 – E como era esse negócio do seu pai que você falou? Estava sempre com uma biritinha não, é isso? Gostava muito de beber.
R – Ah, gostava cara. Nós estamos em 2016? Foi quando eu tinha meus 12 anos. Ele era encostado, recebia no Banco Banerj do Rio de Janeiro e ele me levou pra Nova Iguaçu para ir receber com ele. Foi ali que eu comecei a ver meu pai tomar uns negocinhos. Eu falei: “Papai gosta mesmo. Ele me levou lá pro banco, recebeu, abriu uma cerveja lá” até hoje eu lembro, uma cerveja escura, Malzbier. Aí eu até tomei, dei uma lapadinha dela que é docinha, né? Experimentei, pensei que era aquela cachaça brava mas não era, não. De lá pra cá onde ele passava, passava num bar, passava no outro, parava e tomava uma. E eu atrás com a sacolinha (risos). Mas nunca parou de beber. Ele faleceu em 2011 agora, lá no Rio mesmo.
P/1 – Mas ele sempre chegava e estava tomando uma cerveja em casa.
R – Sempre chegava. Quando ele não estava no bar em casa sempre tinha também. Sempre no servicinho dele, serviço-casa, serviço-bar, casa-serviço.
P/1 – E a tua mãe, o que ela achava disso? Ela brigava com ele?
R – Às vezes ela começou a trabalhar pra dormir fora por causa disso, né? Toda vez que ele bebia ficava alterado. Toda vez que ele bebia queria bater em mim ou no meu outro irmão, na minha outra irmã, aí via que ela ia se meter: “Não se mete, não! O filho é meu! Deixa eu eu sei o que eu estou fazendo!”. Mas cheio de. Por isso que veio a separação. Ela conversou com a patroa, a patroa falou que conhecia São Paulo: “Eu tenho casa lá, eu te levo, você trabalha a semana, você vê se você gosta ou não”. Aí ela trouxe o mais velho. O mais velho veio, não gostou, muito frio, aí voltou, comentou que era frio. “Não comenta com seu pai não!”. Depois trouxe a minha irmã, a minha irmã ficou uns três, quatro meses, depois voltou e falou que era frio. E ela morando de aluguel, trabalhando aqui e a patroa pagando o aluguel pra ela. Aí depois foi acostumando, trouxe o mais velho, arrumou serviço, aí trouxe o outro também, arrumou serviço. Trouxe a outra, a outra começou a trabalhar também aqui em São Paulo. Aí trouxe a minha outra irmã, a Nilza. Aí por último, quando fui fazer 17 ela perguntou: “Você quer vir pra São Paulo”. Eu falei: “Mãe, tá todo mundo lá, eu quero sim” “Mas você não vai ficar chorando lá não, né? Que lá é frio, lá você não tem amizade, lá você não pode sair pra rua” “Mas por que, mãe?’ “Lá é São Paulo, lá não pode. Porque lá no Rio você tem amizade, nasceu lá” “Vou tentar”. Ela esperou meu pai ir trabalhar, dormiu na casa da vizinha, quando foi de manhã eu ia pra escola, pegou minhas roupas. Minha roupa nada, que nós não, usava um shorts, lavava, pendurava pro outro dia, né? Quando deu umas sete horas da manhã meu pai foi trabalhar, pegou a bicicletinha dele, ela foi lá, abriu a porta, chamou, chamou, chamou. Eu pulei o portão e parti. Nem sabia onde era essa rodoviária Novo Rio, que é lá no Rio de Janeiro. “Vai chegar lá e vai ficar chorando” “Não, mãe”. Aí eu vim, comecei trabalhar de borracheiro com meu irmão. Comecei a trabalhar não, eu ia com ele pra aprender, vendo ele fazendo o serviço e: “Coloca o macaco ali no carro”. Tirava os pneus, aí dali a pouco eu tinha aprendido a trabalhar de borracheiro. Depois ainda consegui juntar um dinheiro e falei: “Mãe, to querendo ir embora” “Ah não” “Mão, to querendo ir embora” “Ah, não”. Aí eu passei uma raiva no Embu das Artes que nós morávamos, a primeira casa. Pedi um dinheiro para um patrão que eu trabalhava, ele me deu, eu parti, nem sabia onde é que era a rodoviária aqui, essa Tietê. Eu sei que eu parti pra rodoviária: “Eu quero ônibus pro Rio de Janeiro”. Chegou lá, peguei o ônibus, eu parti pra casa do meu pai. Cheguei lá meu pai estava todo triste, chorando. “Ô pai” “Ué” (risos). “Vocês me abandonaram, hein?” “Não, pai, foi mamãe”. Aí comecei a ficar com papai de novo, meu pai começou a afundar a cara, afundar a cara, aí depois de vir jogar as coisas na cara da gente, né? “Sabe quando você era pequenininho? Você comia e não lavava o prato, então você ia pra rua, não tinha hora de vir”. Mamãe não estava em casa, meu pai bêbado. Não tinha irmão nenhum mais lá, estava tudo aqui. Então quando dava nove horas, eu pensava: “Eu vou pra casa, meu pai chega e vai falar”, ia dormir na casa da vizinha. E aí começou a falar, fala, arrumei mais um dinheiro, capinei o quintal do vizinho lá, quando pensou que não, minha mãe de volta. “Oxe, nem acabei de capinar o quintal do vizinho, minha mãe pegou de volta e eu ó”. Dali pra cá, foi onde eu fiquei morando pro Rio. Aí depois que eu peguei uma idade mais legal, uma consciência mais maneira, aí de três em três meses eu ia pra lá ver meu pai, ajudava ele, levava um dinheirinho daqui de São Paulo. “Ai pai, tá duro?” “É, negócio tá ruim pra mim hoje”. E aí, até 2011 eu nunca larguei de ir no Rio. Até hoje. Aí ele foi embora, faleceu. Ficou a casa, a família não estava querendo ir mais pra lá, aí arrumamos um dinheirinho, reformamos a casa. Uns queriam vender, eu falei: “Não, que às vezes nós vamos ter filhos”, que nem agora todo mundo tem filho, aí quer passar um reveillon no Rio, depender dos outros é ruim, né? Então metemos a cara na mão de obra lá no Rio, fizemos a casa. No final de ano a gente quer passar o final de ano, tem o nosso lugar pra passar. Tem as casas das tias, mas você sabe, né? Depois que passou três dias fica chato, tem gente que te olha com cara feia: “Já está passando três dias, ninguém vai embora” (risos).
P/1 – Mas qual foi a primeira escola que você frequentou lá no Rio?
R – A primeira escola? A minha primeira escola foi a Escola Estadual Marechal Marino Bento. Até hoje ela está lá. Eu passo lá, às vezes me dá vontade de entrar lá para ver se eu relembro meus professores, a dona da secretaria. O pessoal fala: “Nilton, esse pessoal já morreu tudinho” (risos). Eu tenho a maior vontade de ver se eu via a dona Irene ainda, ou a dona Cremilde que era uma professora minha. Era igual uma mãe. Eu não sabia fazer nada: “Ô Dona Cremilda, me ajuda aí, dona Cremilda” Calma Nilton, calma” (risos). Até hoje eu lembro.
P/1 – Você lembra de professores?
R – Ah lembro. Lembro dos meus coleguinhas da escola. Até hoje quando eu vou lá: “Você lembra quando eu não sabia formar uma frase?”. Aí chega numa menina, a Raquel: “Raquel, do que é a frase?”. Eu não sabia formar frase. Aí ela falava: “O coelho é do papai, o coelho é bonito” “Ah, isso que é frase?” (risos). Eu era muito cabeça dura na escola.
P/1 – Ah, é? Tinha alguma matéria que você gostava mais na escola?
R – Ah cara, eu não gostava de nenhuma matéria. Eu não gostava, não.
P/1 – Não gostava de escola.
R – Não gostava, não. Mas tinha que estudar porque meu pai sempre... eu repeti a terceira série umas três vezes. Quando chegava na lousa lá, só escrevia, forma frase, faz isso, faz aquilo, continha. Ih. Mas no final dava tudo certo (risos).
P/1 – Que outra professora que você se lembra?
R – Tia Cremilde. E a minha professora, que nessa época era só tia, né? “Ô tia! Tia Cremilde!”, Tia Valtina também, professora legal. “Qualquer dúvida pode vir, não fica nervoso, não. Não chora, não”. Às vezes eu não sabia fazer, as lágrimas saíam, uma vergonha. Ela chamava eu, um outro colega lá pra ler no quadro. Cara, o rapaz lia tudinho e: “Nilton!” (risos). Olha, rapaz. E ficava todo mundo: “Uhhhh”. Aí eu mandava pra um: “Vai ver só lá fora” (risos). Era. Aí depois fui me esforçando, me esforçando, aprendi a ler, aprendi a escrever, aprendi a viajar. Tinha um medo de viajar sozinho.
P/1 – Ah, é?
R – É. Depois eu comecei esse destino, Rio-São Paulo, Rio-Espírito Santo. Qualquer lugar que mandar eu ir e sumo na estrada (risos).
P/1 – E como é que era o intervalo nessa escola?
R – Intervalo? Quando dava nove e meia tocava a sirena, aí todo mundo.... eu gostava de levar bola de gude na minha mochila pra jogar. A professora não gostava, que às vezes quando eu perdia eu pegava a bola de gude e jogava nos moleques. “Não, dá minha bola de gude. Não, não, não, vou falar com a professora” “Quando sair lá fora eu vou te arrebentar, vou te meter o lápis”. Eu era muito, eu era sempre assim. Tinha uns coleguinhas que largavam eu entrar primeiro na escola pra entrar por último (risos).
P/1 – Aprontava então.
R – Ah, eu era danado. Gostava de uma confusãozinha.
P/1 – Eles davam advertência pra você? Castigo, essas coisas.
R – Dava. Dava castigo. “Leva esse papelzinho aqui e entrega pro seu pai” “Pô, se eu entregar pro meu pai eu vou apanhar, cara”. Chegava lá ou eu amassava ou rasgava. “Nilton, cadê o papel que eu dei pro seu pai? Você só vai entrar se o seu pai estiver aqui” “E cara, eu rasguei, e agora? Pai, professora pediu pra você dar um pulo lá” “Eu vou faltar em serviço pra ir pra escola por causa de você? Eu vou, mas quando chegar”. Nossa (risos). A professora falava: “Não bate nele, não bate nele” “Não, mas tá bom, tá bom”. Chegava em casa. É. E era bravo.
P/1 – Você estudava com seus irmãos também?
R – Não, por causa do horário, né?
P/1 – Era trocado.
R – Era trocado. De manhã eu chegava, aí de uma hora da tarde já entrava eles. Eu saía às sete pra estudar, de sete até meio-dia. De uma hora da tarde os outros entravam. Aí ele não via, essa confusãozinha que tinha lá em casa. É verdade.
P/1 – Como era você com seus irmãos? Vocês andavam sempre juntos?
R – Sempre juntos. Desde pequeno até agora somos unidos, não tem nenhum com raiva de um, de ninguém. Um vai na casa do outro, quando é final de ano pergunta pra onde vocês vão. Tudo unido. Porque o pai batia na gente, então quando chamava, quando o velho chegava todo mundo estava juntinho ali, um de olho grande no outro: “Será que ele está bem ruim?”. Isso aí fez a nossa união.
P/1 – E vocês ouviam rádio em casa, assistiam TV?
R – Nessa época lá era difícil ter televisão. Às vezes a gente ia na casa dos outros assistir Os Trapalhões, assistir Jornal Nacional. Até hoje eu lembro, o primeiro Jornal Nacional foi com o Cid Moreira. A gente era pequenininho e a minha mãe trabalhava lá na Urca, no prédio dele, seu Cid Moreira. Minha mãe trabalhava na casa dele, aí no fundo do prédio dele tinha um tal do braço do mar e a gente ficava da janela vendo aquele monte de peixe, cardume de sardinha passando.
P/1 – Ela trabalhou pra ele?
R – Minha mãe já trabalhou pra ele.
P/1 – Você viu ele já assim?
R – Já, já vi ele. Eu era pequenininho. Ele novo. Eu já, hein.
P/1 – E o que você gostava de assistir na TV nessa época?
R – Quando eu era pequenininho mesmo, cara, eu gostava da Turma da Xuxa, que tinha aquela caverna do dragão, os smurfs, eu gostava daquela. Era no Jardim Botânico o negócio dela. Gostava muito.
P/1 – Rádio você ouvia também?
R – Não. Meu pai que gostava, deixava o rádio sempre numa rádio de samba. O samba pede passagem, do Moisés da Rocha. Muitos anos. Aí na cozinha, batendo na panelinha, negocinho da pia lá (risos). Acordava cedo, fazia café.
P/1 – Sempre rolava samba na sua casa?
R – Sempre samba.
P/1 – Você se lembra de alguma música que ele cantava bastante ou era muita coisa?
R – Era muita coisa. Tenho umas lembranças mas está muito longe (risos), não dá pra puxar.
P/1 – Entendi. E você falou que vocês não iam muito na igreja não, né?
R – Não, era muito difícil. Só ia quando o Pastor Rubens fazia um negócio lá, a situação não era muito boa, reunia as pessoas (risos).
P/1 – E o Rio de Janeiro? Você foi muito pra lá também, né? Você morava no Estado do Rio mas você ia na cidade também.
R – Olha, quando eu fui conhecer a cidade eu já estava bem com meus 18 anos já. Não tinha tempo, ficava mais em casa, aí com meus 17 anos eu fui me apresentar no quartel, aí me deram, como se diz?
P/1 – Reservista?
R – É. Dali pra cá eu vim pra São Paulo, pouco tempo que eu _0:39:23_ da Grande Rio, Copacabana, ali a Urca, as praias.
P/1 – Como é que era nessa época, você gostou de ir lá, ficar na praia?
R – Eu não gostei, não, porque era muita gente e tinha o tal do arrastão e meu pai não deixava a gente ir. Ficava mais no bairro, lá na vila mesmo.
P/1 – Tinha muito arrastão nessa época?
R – Nessa época tinha. Situação brava, né?
P/1 – Você já sentiu nesses anos no Rio essa questão de violência?
R – Não. Não porque eu estou mais aqui. Às vezes eu vou pro Rio só final de semana, aí não tem tempo porque daqui eu vou direto pra casa, tenho casa lá. E praia também eu não sou muito fanático por praia, não. O sol já é quente, aquela areia lá, meu irmão (risos).
P/1 – Você nunca gostou muito de calor, né?
R – Não.
P/1 – Estou percebendo.
R – E perto de casa tem sempre cachoeira, tem piscina, então você fica assim, meio enjoado. Até aqui em Santos mesmo, quando eu vou pras excursões que eles fazem aqui eu não sou muito de ficar na beira da praia. Fico sentado no calçadão conversando com alguém, pegando a bicicleta e andando pra cima e pra baixo.
P/1 – O seu pai levava vocês para algum lugar nessa época?
R – Não, cara.
P/1 – Não dava.
R – Não dava. A situação era ruim e a renda deles era mesmo só pra manter cinco crianças. Então...
P/1 – E você começou a trabalhar como borracheiro no Rio?
R – Foi.
P/1 – Como é que você arranjou esse trabalho?
R – Cara, devido a situação lá, que não era muito boa, então meu irmão arrumou um serviço aqui, quase chegando em São Paulo já, num lugar chamado Barra Mansa, uma borracharia de um delegado chamado Queiroz. Muitos anos, nem sei se é vivo ainda. E ele fazia 24 horas, 48. Eu estava sem escola e ele me chamou para eu ir aprender com ele. Eu falei: “Ah não! Lá é muito longe, vou ficar 48 horas em pé?” “É normal, você dorme depois eu durmo”. Eu fui pra Barra Mansa. Lá eu conheci o que era uma borracharia, o que era entrar debaixo de um caminhão, botar o macaco, tirar aqueles pneus grandões. Depois eu aprendi a profissão, aí ele descia pro Rio, ficava durante o dia, eu ficava do dia até sete horas da noite e às sete horas da noite ele chegava, eu ia pra casa, ou então dormia na borracharia. Fomos trabalhando isso daí mais ou menos uns seis anos. De lá pra cá ele conheceu mais um pessoal que trouxe a gente pra cá.
P/1 – Pra São Paulo.
R – Pro centro de São Paulo.
P/1 – Então você começou a trabalhar com quantos anos?
R – Eu comecei a trabalhar com 16 anos, 16 a 17.
P/1 – E era pesado esse trabalho?
R – Ah, serviço de borracheiro é pesado, cara. E perigoso.
P/1 – Perigoso também.
R – É. O cara usa compressor, que são aqueles aros de caminhão e aquelas portas de roda roiada. Se você não souber tirar ela, ela voa no peito da gente, na testa.
P/1 – E quente também né?
R – É. Ele fica rodando, rodando, rodando, então o pneu só vai pegando caloria. E você com o corpo frio, quando você entra pra desmontar ele no outro dia você está gripado, com sinusite. Se você abaixa parece que isso aqui seu vai cair.
P/1 – E o que você tinha que fazer? Era borracharia mais pra caminhão, pra carro?
R – Ali era 24 horas, 24 por 48, ali era tudo, caminhão, moto, carro de passeio, tudo. Carrinho de mão, sabe? Tem tudo.
P/1 – Você tem que tirar a roda e refazer.
R – Tinha que desmontar o pneu, tirar a câmara de ar, às vezes pneu sem câmara, aqueles caminhões grandões. Tudo o que você aparecia, porque você é borracheiro de estrada, né? Você está ali pra socorrer qualquer coisa. Tem uns que a gente até exigia: “Ó, moto não mexo não, é mais caro”. Só que demora muito a moto, é um sufoco pra você mexer nisso.
P/1 – Ah, é? É mais difícil moto?
R – Mais difícil.
P/1 – Por quê?
R – O pneuzinho dela é muito apertado e o aro dela é tala assim, então a espátula tem hora que não entra. Ali se você não desmontar você fura a câmara sem querer. E no montar também você fura a câmara. Aí ali o conserto é você que, já ia vir de você errar.
P/1 – Mas você tinha tempo pra se divertir também quando você tinha seus 16, você ganhava dinheiro já mas você... Como é que era isso?
R – Não, pra divertir era muito pouco. Eu não sou muito de estar em salão, baile, que eu sou meio medroso.
P/1 – Ah, é?
R – É. Porque a vida que nós leva, já vivemos até aqui, só de ver bastante coisa pela televisão, não sou muito de sair, não.
P/1 – Mas o que tinha pra fazer na sua adolescência lá? Você começou a namorar, sair com a menininha?
R – Não, eu vim começar a namorar com 26 anos.
P/1 – Ah, é?
R – É, foi. Meu primeiro filho eu já tive com 27 anos (risos). Não tinha nada de diversão, não. O baile no Rio lá, se você fosse apanhava, que é o tal de Furacão 2000, só briga. Você encostava em um e o cara já queria brigar contigo. E só andava de cinco, seis, então não dava, não. Era o campinho, jogava bola, às vezes o patinete que eu brincava e às vezes ficava brincando lá de pica e esconde. Ou quando dava oito horas também.
P/1 – Pra casa.
R – Pra casa. Papai e mamãe já sabem, né.
P/1 – Então você não saiu muuuito assim.
R – Não. Pra sair assim pra dar passeio, não. Agora eu gostava de pular um carnavalzinho lá perto de casa mesmo.
P/1 – Ah, é?
R – É.
P/1 – Como é que era esse carnaval? Era na rua?
R – Carnaval de rua, sabe aqueles carnavais que coloca a máscara, bate bola. Aí sempre quando tinha eu pulava no meio. Metia um batom na cara, metia uma perua (risos). É igual na escola, o mais farrento era eu. Aí ali todo mundo ia. Da rua. Pegava a latinha e saía todo mundo (faz barulho de carnaval), aquele monte de gente (risos).
P/1 – Carnaval você gostava. Gosta.
R – Até hoje gosto, até hoje. Mas hoje eu não entro no meio do bloco, não, mas fico na pracinha de Vila de Cava, que é um bairro perto da gente, vendo aquele pessoal antigo, aquele senhor de idade. Eu falo: “Eu lembro desse senhor até hoje”. Aí passa outra pessoa, lembro dele até hoje ainda. Tem gente que chega: “Ô, Miltinho! Ôpa!” (risos).
P/1 – Você passa o carnaval no Rio sempre?
R – Olha, quando cai numa data boa é carnaval, é Réveillon. Aí a firma aqui é legal pra caramba, né, ái quando eu quero um: “Ajuda aí, seu Roberto”. Aí também faz cara feia (risos).
P/1 – Mas acaba dando uma grana?
R – É (risos).
P/1 – E você tem uma lembrança boa do carnaval lá no Rio? O que você se lembra?
R – Não, não. A lembrança mesmo é que todo ano eu sei que já vem na consciência: “Esse ano eu vou passar no Rio de novo”. Aí daqui um ano: “Vou passar de novo”.
P/1 – E me conta como foi quando você chegou aqui em São Paulo. Você pegou o ônibus e veio pra cá. Como é que foi, você chegou aqui?
R – Eu vim com a minha mãe, ela que me trouxe pra cá. Esse papo que eu estava passando, que meu pai bebia demais, então foi isso aí. De tanto ela ver ele bater na gente quando ela se metia, ele também sotaca, ela foi puxando para não, cada um, cada um. Aí eu vim parar aqui, a família todinha.
P/1 – Vocês foram morar no Embu, né?
R – É. A primeira casa que nós fomos morar aqui em São Paulo foi no Embu das Artes, Jardim Santo Eduardo, bairro da Luz, de aluguel. Aí também trabalhei no borracheiro lá no Embu.
P/1 – Com o seu irmão.
R – Junto com meu irmão também. Aí era borracharia e chaveiro. Aprendi a fazer chave, trabalhei de chaveiro também, fazer cópias. Aí depois no Embu fui trabalhar aqui na Júlio Prestes, numa Casa do Norte, entregador de carga. Fiquei seis anos lá. Aí a casa lá faliu, eu vinha fazer compra aqui no Brás pra firma lá, aí eu vinha aqui fazer compra direto com o homem da outra firma. A firma lá faliu, daí ele foi e ligou pra esse homem aqui, o Roberto: “Roberto, a minha loja quebrou, eu estou com um menino aqui muito bom, aquele que vai sempre fazer compra aí. Não quer?” Manda fazer um teste e estou até hoje aqui, agarrado com eles, firme e forte. Daí é assim.
P/1 – E como é que foi trabalhar de chaveiro?
R – Eu fui trabalhar de chaveiro porque a borracharia era borracharia e chaveiro. Então o dono da borracharia falou: “Se o seu irmão trabalha de borracheiro, senta aqui, aprende a fazer chave”. Eu era mais bobo ainda e comecei a me interessar, aí aprendi a fazer chave. E virei borracheiro e chaveiro. Quando chegava o pessoal que fazia as chaves o homem não estava, eu já sabia, a chave todinha, eu fiz painel todinho.
P/1 – E como é que faz uma chave?
R – Cara, a chave já vem feita, só que tem uma máquina quase igual a essa câmera aí que você trava ela aqui assim, essa cópia aqui e essa aqui é lisa, daí conforme a máquina vem, a máquina vai comendo e essa aqui é a cópia. E do jeito que a máquina vai entrando, essa aqui vai só percorrendo. Você vê a marca da chave certinho. É que ela já vem feita, é só você colocar na forma dela, que aqui você vai passando e ela vai...
P/1 – Só fazendo.
R – Hunrum, só acompanhando os dentes.
P/1 – Tem muito tipo de chave?
R – Ah, tem várias chaves, cara! Muita chave mesmo. Como se diz, todas as portas são iguais, mas o miolo não são, então muda a diferença. Por nome, por numerais.
P/1 – E como é que você foi descobrir esse trabalho na Casa do Norte? Como você foi mudar?
R – A minha sogra trabalhava com uma moça chamada Dona Heloísa, que tinha empresa de ônibus. Aí a minha sogra perguntou pra ela se não tinha um serviço. Aí a mulher perguntou: “Ele trabalha de quê?”, a minha sogra perguntou: “Você trabalha de quê, Niltinho?” “Dona Aparecida, qualquer coisa que a senhora me arrumar eu encaro, preciso”. Aí ela me indicou, deu um papel pra mim: “Vai até a Júlio Prestes”, eu morava ainda no Santo Eduardo, “Vai até em frente a estação Júlio Prestes e caça essa loja aqui, no número do 182”. Eu cheguei lá com o mando dela, ele perguntou se eu sabia pesar. Eu não sabia, mas falei que sabia. Quando foi na segunda-feira eu já estava encaixado. O homem gostou de mim e eu trabalhei pra ele.
P/1 – E você tinha quantos anos quando você entrou lá na Casa do Norte?
R – Na Casa do Norte eu já estava com 21 anos.
P/1 – Vinte e um? Mas já tinha sogra, já?
R – Já tinha sogra já. Mas não tinha filho, não. Estava namorando ainda.
P/1 – E essa namorada é a sua esposa hoje?
R – É.
P/1 – Como é que você conheceu ela?
R – Ela? Eu conheci ela no Rio de Janeiro. Depois disso a minha mãe foi pro Rio de Janeiro e essa mulher falou assim: “Dona Maria Antônia, se a senhora for pro Rio de Janeiro a senhora não arruma um serviço pra mim lá, não?”, aí minha mãe pegou essa mulher. E eu já tinha amizade com essa filha dela, nós estudava junto. Depois a mãe dela foi fazendo a mesma coisa. Foi lá e pegou o filho mais velho, o outro filho e pegou a menina.
P/1 – E eles foram morar perto de vocês?
R – Eles moravam lá perto da gente, lá no Rio de Janeiro também.
P/1 – Qual é o nome dela?
R – Da minha sogra?
P/1 – Não, da sua esposa.
R – Não, nós somos separados agora. Não deu certo mais, não. O nome dela é Márcia Cristina Ferreira Marinho.
P/1 – E vocês estavam namorando essa época então?
R – Estava namorando.
P/1 – Aí você começou a trabalhar lá, trabalhava de quê na Casa do Norte?
R – Ela não trabalhava não, ela estava parada. Foi a mãe dela que arrumou o serviço através da patroa dela.
P/1 – Sei. Mas você trabalhou de quê na Casa do Norte?
R – Lá eu trabalhava pesando, a mesma coisa que aqui. Pesando, atendendo cliente, fazendo entrega de carne salgada pra feijoada.
P/1 – Você nunca tinha feito isso na vida, né?
R – Não. Eu comecei a trabalhar no balcão, aí o cara que entregava carne saiu e o seu Vicente falou: “Nilton, você vai começar a ir pra rua agora” “Seu Vicente, eu não conheço nada aqui, não” “Eu vou te dar o papel e você vai perguntando. Para na banca de jornal, para no carro de polícia e pergunta que você vai conhecer São Paulo tudinho”. Aí colocou umas cargas na bicicleta, eu fui pedalando e olhando pra rua. “Você conhece essa rua aqui?” “É aquela lá” “Conhece a Barão de Limeira?” “É do lado de lá” “Você conhece a Duque de Caxias?”, ia assim, dali um pouquinho eu estava (risos).
P/1 – Com a bicicleta?
R – Com a bicicleta. Aí conheci a avenida São João do começo ao fim, conheci o pontilhão, conheci a tal da Água Funda, conheci a República de bicicleta. E aqui agora onde você mandar eu ir, tudinho aqui. Não conhecia aqui pra buscar mercadoria, vinha de bicicleta.
P/1 – Você gosta do centro? Você acha bonito?
R – Ah, gosto cara. Eu gosto. Eu gosto do centro, sim.
P/1 – O que você acha?
R – Eu acho muito movimentado e legal. Muita variedade. Daqui cinco horas eu saio daqui e vou a pé até o terminal Bandeira cortando aqui por dentro, quando pensa que não estou lá já. Passo no meio do vale do Anhangabaú lotado de gente, já distraiu a mente.
P/1 – E você começou a lidar com balcão já no chaveiro, imagino. Ficar no balcão atendendo.
R – É. Eu comecei já fui depois do chaveiro. Porque o chaveiro é tipo balcão, né? “Pois não?” “Tem essa chave aqui, neguinho?” “Tem essa chave aqui?” “Deixa eu dar uma olhada”. Daqui a pouquinho você pegou a manha do balcão.
P/1 – Como é essa manha do balcão?
R – A manha do balcão é você ter já o conhecimento de atender, saber falar não: “Pois não, o que você precisa? O que eu posso te ajudar?”. Que nem aqui, chega o cliente e eu: “Pois não, senhor” “Você me serve um quilo de...”, aí você vai se distraindo, distraindo, daqui a pouquinho você está desenvolto, tem que se interessar, né? Às vezes tem cliente que você olha assim, não vai muito com a cara mas tem que atender (risos). Às vezes o cara está brincando contigo, uma brincadeira meio boba e você tem que relevar pra não dar aquele... mas é assim mesmo. Tem horas que tem um cliente bom que você quer conversar e você fala que não dá. É assim. E assim vai indo.
P/1 – Como eram os clientes lá na Casa do Norte?
R – Na Casa do Norte era tudo gente fina, tudo maneiro. E chegava lá um me chamava de carioca, outro de Pelé, outro de neguinho (risos). Os clientes que você já conhece e que você já se dá bem. Sempre tem uns que são meio estúpidos, mal humoroso, mas você desvia dele.
P/1 – Como é que você faz pra desviar de um cara desses? Um cara que chega com a cabeça quente, tal?
R – O cara que está com a cabeça muito quente, se ele está dando atenção: “Pera que eu vou no banheiro aqui” “Pera que eu vou fazer o jogo do bicho” “Ah, caiu um negócio no fundo lá. Fala rapidinho o que você precisa” (risos). Aí ele está vendo que você está querendo... às vezes tu chama: “Me ajuda aqui, me ajuda aqui. Atende ele aqui”. O cara está no seu pé e você está vendo que você tem que adiantar o serviço. É um meio de não ofender, né?
P/1 – E quando está só você e o cara e não tem como e o cara tá puto? E aí?
R – Aí você pergunta: “O que mais amigo?”, aí tu pega a vassoura pra varrer o balcão pra ele ver que você está... tem que desviar.
P/1 – Já surgiu muita bucha pra você nessa Casa do Norte? Situação difícil de resolver.
R – Não, não. Porque toda bucha que acontecia eu passava logo pro dono da firma: “Seu Vicente, o cara está nervoso ali, chegou um negócio aí” “Ô Nilton, mas eu não sei, foi vendido pra ele sim, mas não. Pega lá, troca pra mim”. Às vezes: “Nilton, pega a mercadoria e leva lá naquele número 320”. Eu sei que era mentira (risos). Aí ele ia conversar. Lá ele falava: “Vem amanhã aí que eu vou resolver pra você, deixa aí, dá o seu nome”. Aí eu ficava lá de longe só vendo, depois que ele saiu eu voltava. Aí ele falava: “Cliente chato, né meu?” “Eu não posso falar que nem o senhor fala, o senhor é dono” (risos).
P/1 – E como é trabalhar com carne? É um produto diferente.
R – Produto diferente. Porque é lá na Casa do Norte, né? Na Casa do Norte só vende pertence para feijoada, então é só artigo do norte. Lá tinha pé de porco, orelha, costela, bacon, linguiça, língua. Essas linguiças paio.
P/1 – E você tinha que entregar também.
R – Além de separar, separava o pedido, largava lá, colocava o nome, saía pra entregar. Estava na bicicleta.
P/1 – E como é que era andar de bicicleta pelo centro?
R – Cara, igual doido. Pega igual essas motocas. Você vê uns freinhos bons, sabe de carga? Aquela que é uma caixa na frente e atrás uma caixa também. Igual doido. Igual saía aí no Mercadão, gritando: “Cuidado! Cuidado! Dá licença, dá licença, dá licença!”. Vinha na faixa, essas senhoras de idade, nossa! Você passando, a bicicleta pesada quase não tem freio, é fogo.
P/1 – E é meio perigoso, imagino.
R – É perigoso mesmo. Em tempo de chuva você tem que fazer entrega, então, às vezes tomava muito tombo, às vezes batia no carro dos outros, os outros batiam no carro, chegava lá na firma com a roda tudo torta: “Que é isso, Nilton?!” “O senhor não sabe, o carro quase que me pega, ele não parou” (risos).
P/1 – Você já teve um acidente ou um quase acidente?
R – Eu tive um acidente de bicicleta.
P/1 – O que aconteceu? (risos)
R – Eu ia descendo a avenida Rio Branco com a bicicleta cheia de carne seca e pertences pra feijoada. E a bicicleta passou o peso na frente começou a pular, pular, pular e o freio não segurava. Quando foi apertar o freio, apertei o freio da frente a bicicleta bateu a caixa da frente, eu bati e cabeça e a bicicleta por cima de mim. Aqui na Rio Branco. A viatura me colocou no carro e me levou lá na firma (risos).
P/1 – Com as cargas e tudo?
R – Foi. Eu trabalhava na Sucesso, nessa mesma firma de entrega de carne. Foi. Esse dia foi feio pra mim (risos).
P/1 – Você não conseguiu entregar no fim.
R – Não consegui, não. O policial me pegou, perguntou onde eu trabalhava. Eu trabalho na Júlio Prestes, em frente à Estação Júlio Prestes. Aí me levou lá, quando eu desci do carro o seu Vicente me olhou, tiro os óculos assim: “Que é isso, Nilton? O que aconteceu?” “Seu Vicente, o negócio foi feio” (risos).
P/1 – Machucou?
R – Orra, ralei isso aqui.
P/1 – Voltou de viatura.
R – No carro da viatura.
P/1 – Você conheceu a zona cerealista aqui entregando.
R – Eu vinha fazer compra aqui pra levar pra lá, de feijão branco, grão de bico, coloral.
P/1 – Como foi o primeiro dia que você veio pra essa região? Você se lembra?
R – Rapaz, eu acho que o primeiro dia que eu vim pra essa região aqui, acho que foi em 92, cara, 91. Em 1991 eu vim pra cá, pra essa região aqui. Eu trabalhava lá na Júlio Prestes ainda e fazia compra pro homem. Pegava grão de bico, feijão branco aqui e lá na outra firma do Chicão pegava feijão, pegava polvilho e lá numa firma chamava Venezuela, na Benjamim de Oliveira, pegava mais umas coisas pra ele, farinha d’água, farinha grossa, pra levar pra lá no triciclo.
P/1 – No triciclo.
R – Triciclo é uma bicicleta com duas rodas na frente, grandão, e uma roda grandona atrás e o pedal bem no meio.
P/1 – É pesado, né?
R – Puxa vida!
P/1 – E como era aqui, você lembra? Era parecido?
R – Não, era esse mesmo roteiro. Agora que mudou umas lojas, pintaram, reformaram.
P/1 – E você se lembra o que você achou daqui quando você veio aqui e viu as lojas.
R – Durante o dia quando eu vinha aqui era muito movimentado eu achei até legal. Toda vez que era sexta-feira lá em cima eu falava assim: “Seu Vicente, não vai mandar fazer compra lá no povo, não?”. Aí tinha uma perua lá do lado que era Kombi, que o vizinho fazia compra também: “Não, ele vai vir de perua, eu mandei trazer umas coisas a mais”. Aí eu sentia falta. Quando ele mandava eu vir, vixi, eu gostava (risos).
P/1 – E você já conhecia alguém aqui da zona cerealista nessa época que você foi conhecendo?
R – Não, só loja só que era para eu vir buscar mercadoria. “Vai na Roma comprar, vai no Chicão comprar, vai na Venezuela”. Eu vinha com o cheque da firma dele mesmo e daqui mesmo... não tinha conhecimento, não, com ninguém, só nas lojas mesmo.
P/1 – E esse tempo todo você morava em Embu.
R – Em Embu das Artes ainda. No Santo Eduardo. Bairro da Luz.
P/1 – Como é esse bairro? Eu não perguntei. Como é lá?
R – Cara, esse bairro lá era um lugarzinho, não sei se hoje é ainda pra falar, mas era um lugarzinho perigoso. Da hora que a gente saía de manhã, vinha, chegava em casa, a gente era novo no bairro, então final de semana só saía pra fazer feira, nem saía no meio da rua lá mesmo. Porque já tinha má fama esse bairro e pela gente ser carioca a gente sempre foi medroso, pé dentro e pé fora, né?
P/1 – Ah, é?
R – É. Já tinha fama já o bairro.
P/1 – E como é que era a visão de São Paulo pra vocês no Rio?
R – A visão de São Paulo lá no Rio era uma cidade maravilhosa. Eu pensava que era uma cidade bem... sabe quando você fala assim: “Vou lá pro Ceará” e a gente nunca foi pro Ceará. E aí vem na cabeça: “Será que lá deve ser bom pra caramba?”. Mas que nada, aqui é lugar de serviço, diversão não tem, não tem não. No final de semana não tem uma praia, não tem um lugar pra você se divertir, é shopping. Nem campo tem pra você jogar bola. Quer pegar uma praia vai quase três horas daqui até Santos, pra vir então. Você vai pro Rio, pega a Dutra aí, cinco horas. Passa cinco, seis praias. Aí dali pra cá é a consciência que eu tenho, que São Paulo é só pra serviço, não vai pensar que é pra se divertir, não. “Final de semana eu vou pra São Paulo, vou tirar onda lá em São Paulo”. Final de semana, deu domingo fica deserto.
P/1 – É diferente mesmo.
R – Diferente. Já lá no Rio, não. Final de semana você pega a bicicleta e vai pra cachoeira, pra praia, pro campo, vai pescar. E aqui você não faz isso. Aqui você vai fazer isso daí a viatura sempre te para: “Vai pra onde?”. Poxa.
P/1 – Te pararam muito aqui já?
R – Caraca, meu irmão! Demais. Demais.
P/1 – Como é?
R – Ainda mais quando você é carioca, a polícia fala que você veio fugido. Você mostra RG e ele fala: “Ladrão também tem RG”. E você fala: “Pode puxar então, seu polícia. Eu pago pensão ainda, policial”. Uma vez eu fui parado perto de casa, numa ROTA. Eu falando que eu moro ali, o dono do bar me vendo, mas, ixi, fez eu tirar meu documento, mexeu na minha mochila tudo no chão, olhou, olhou, olhou, aí depois que eu abri a carteira e mostrei até o holerite que eu trabalho na Roma e pago pensão, aí depois pediu desculpa: “Isso é o nosso serviço”. Chegou a sair água dos olhos. E uma vez que deu um tapa aqui na nuca sem mais nem menos? O cara me deu um tapa no meio da nuca, eu larguei meu RG na mão dele e saí, entrei pro bar. Ele continuou me chamando e eu falei: “Você deu um chute na minha perna, me deu um tapa na nuca. Não sou ladrão. Que é isso, seu polícia?” “Toma aqui seu RG!” “Não sou ladrão e estou apanhando”. Aí foram, largou o RG no chão lá, ligou o carro. Os caras falaram: “Você é louco, carioca” “Louco, nada! Vocês estão vendo ele me bater e não foi lá nem me falar que me conhece!” (risos). Tive que tomar uma pra me acalmar (risos).
P/1 – Não é fácil aguentar isso daí?
R – Oxa! Uma vez foi eu e meus filhos. De carro. Ali perto do cemitério do Morumbi. A gente ia pro Extra fazer compra. A polícia fez a gente descer, olhou tudinho o carro, porta mala, perguntou se o carro era roubado ou não, mostrei o documento, tenho esse carro desde 2002. Pediu o RG, habilitação, olhou, perguntou se não era falsa. Ué?
P/1 – Por que você acha que acontece tanto isso?
R – Ô cara, eu vou falar contigo. Isso é serviço deles mesmo, mas também humilhar a gente também não, né? Porque é o seu serviço. Mas não sei se é por causa da cor, mas... Está certo o serviço deles, mas humilhar a gente? Não passa ninguém na rua está dando um 151 na gente, está chutando a sua canela, é. É assim, meu.
P/1 – E trabalhando muito o dia inteiro, né?
R – Trabalhando o nosso dia a dia mesmo, você já tem a sua meta, né? Às vezes dá muito serviço, às vezes passa o dia coçando. Coçando assim, vambora encher a prateleira, deixar isso aqui limpo. Quando dá movimento também a gente não pode reclamar. Que às vezes se não tem está reclamando, se tem, então embora, do jeito que vier vai segurar a peteca.
P/1 – Quando você veio pra Roma aqui você veio trabalhar a mesma coisa, né?
R – O mesmo ramo que eu saí de lá era o mesmo ramo daqui. Só que lá vendia carne, mas atender cliente, tirar pedido, pesar, a mesma coisa.
P/1 – Mas você teve que aprender aqui os produtos, o que era o quê, como foi isso daí? Ou você já sabia?
R – Já sabia um pouquinho. E pelo colega que eu vim aqui comprar, então ele me instruiu mais ainda. “Ô Nilton, aqui fica o orégano” “Ô Nilton, aqui que fica a pimenta do reino” “Ô Nilton, é assim. Me ajuda a separar pedido”. Aí um colega, o Sérgio que sempre, assim que eu entrei ele estava, né? Seu Romeu também, um senhor de idade. Muuito legal. E foi instruindo, instruindo, instruindo, até hoje eu estou aqui. Não trabalha sábado, dá para viajar no Rio, dá pra pegar a família, tirar sua onda pra lá. Sair daqui sete horas da noite, chega lá uma hora da manhã, tudo claro, tem ônibus. Chega no domingo, meia-noite de lá vem embora, chega aqui cinco horas da manhã. Oxi, o que quer mais? Se trabalhar sábado não aproveita nada. Eu falei: “É aqui que eu vou ficar!” (risos). É ou não é? Pega uma firma aí, você não conhece o patrão, tem funcionário mais antigo que quer te mandar. E você é um cara que não gosta de ser mandado. Sabe que está sujo ali? Limpa. Sabe que tem que, hoje é sexta-feira, vai esperar o homem mandar lavar o banheiro? Não, vai lá. Então é assim.
P/1 – Você tem outra relação aqui com esse lugar já, né?
R – Como assim?
P/1 – Não é só que você trabalha aqui, eu imagino. Você trabalha mas você também está há muito tempo já, né? Então vai cuidar.
R – É. O tempo que eu estou aqui, então é aquilo, você está vendo errado não vamos passar por cima, não. Mesmo que você se agarra ali mais dois minutinhos você não vai perder tempo, está sendo pra nós mesmos, né? É assim. Quando chega mercadoria: “Opa, vamos embora tirar do chão que vai chegar mais”. Se deixar acumula aquele monte ali e depois você não sabe nem o que chegou. É assim.
P/1 – E quais são os produtos que vocês trabalham aqui na Roma?
R – Nosso produto é orégano, sucrilhos, carne de soja, condimentos, esses temperos tudinhos, dendê, essas coisas do Istambul, cominho, erva-doce, amendoim.
P/1 – Tem coisa importada também?
R – Tem, tem. Istambul acho que é importado. Tem bastante coisinha aí.
P/1 – E você usa algumas coisas daqui que você aprendeu a usar, temperar comida, compra pra patroa.
R – Já. Tem o tal do chimichurri aqui da Roma, tem esse tal de limão herb pro peixe, essa páprica doce pra dar um gosto na carne. Vários temperos aí. Caldo de galinha, caldo de carne, às vezes a comida tá meio branca, fala: “Sai mulher, testa esse”. E ela fala: “Eu nunca coloquei esse na panela, não!’. Daqui a pouquinho fala assim: “Não tem mais daquele temperinho lá não?”, aí você esqueceu até o nome que você trouxe (risos).
P/1 – E como são os clientes aqui na zona cerealista?
R – Olha, os nossos clientes que vêm sempre aqui são tudo legal. Não são aqueles caras bravos, chatos que pegam no seu pé. Desde quando eu estou aqui não tenho nada a reclamar dos clientes não. Dá caixinha, te trata bem, brinca contigo. Verdade.
P/1 – Tem algum que te marcou que você lembra agora?
R – Ah, tem, tem um monte de cliente que sempre, sempre rindo pra ele, sempre agradando mesmo. Tem um cliente chamado seu Renê, um senhor de idade legal pra caramba. Quando ele vem aqui já vem brincando comigo: “Ué carioca, você caiu da cama?” (risos). “Ó o carioca aí!”, legal pra caramba! E você sempre também, então você vai incentivando também a pessoa. O seu Roberto também é legal. Dona Mari também é legal pra caramba. Às vezes a gente brinca, brinca, brinca, daqui a pouquinho a gente está meio sério, mas daqui meia hora acabou (risos). Meus amigos também de serviço. “Nilton, me ajuda aqui?” “Ivanildo, joga o negócio pra mim” “Sobe lá em cima la”. Não é aquele cara que pega o serviço e... não.
P/1 – Quem que trabalha contigo aqui? É você e tem mais quem?
R – Aqui trabalha a dona Mari pega no serviço, a Tatiane também pega no serviço. Seu Roberto também pega quando está apertado. Aí vem eu, o Ivanildo e o Alan, que é tudo balconista, um empacotador. E quando a gente vai almoçar eles fazem a frente também lá, a Tati, dona Mari. Dona Mari é legal pra caramba. Tatiana também. É um revezando o outro, sabe? Aqui ninguém corre do serviço não (risos). Quando não dá ela mesma sobe aqui em cima. Não é aquela pessoa de estar só te mandando: “Vai lá, Sai lá!”. Não, aqui todo mundo. Tem outras firmas que a pessoa só dá o pedido assim, né? Não, elas entende.
P/1 – E como é o dia a dia aqui? Conta pra mim: você chega, o que você faz? Como é que é?
R – O meu dia a dia aqui é assim, eu cheguei, já vou caçar meu serviço pra fazer, encher as prateleiras, trocar os sacos de lixo, ver que tem mercadoria faltando aqui para falar com o homem, que às vezes chega cliente aí e faltou mercadoria. Ele já não gosta. “Está faltando fala comigo, não fique com vergonha”. Às vezes a gente esquece também, né? Então o dia a dia é esse daí, encher a barrica, atender o cliente, levou a mercadoria do cliente até o carro, voltou. “Tem mais pedido aí, dona Mari”. Se não tem pega uma vassoura e vai varrer, sai espanando, vê se não tem nada vencido. E vai girando.
P/1 – Nunca fica parado, né?
R – Não. Não. Aqui assim, sempre que você olhar pro lado tem uma coisinha pra fazer. Só fica parado quem quer, sabe assim, quer passar em cima do serviço, empurrando serviço. Não. Se você olhar pro lado sempre tem um servicinho. Igual hoje, o movimento é fraco, então dá tempo de lavar banheiro, de passar um pano na loja, de ver prateleira. Quando não tem você está na frente da coisa: “Pois não, senhor”. Aí sendo sexta-feira mais fraco, então vamos embora aproveitar de fazer pra segunda-feira estar bonito.
P/1 – E como é um atendimento meio padrão pro cliente? Ele chega aqui, como você faz? O que você pensa em fazer?
R – Assim que o cliente chega já logo pergunto pra ele: “E aí, o que vai levar hoje?” “Ó carioca, marca pra mim aí”. E você vai incentivando ele. “Não está faltando mais orégano, não? Não está faltando mais dendê, não?”. E chegou uma novidade qualquer: “Chegou pedra de sal aí, você não quer?” “Qual é, carioca, como é que faz isso?” “Pergunta pra Tati que ela te explica como é que vai. Aí eu mando pra lá e lá ela. E os clientes que chega vai perguntando: “Pois não”. Quando tu vê que é demais, você cria um (inaudível) inventa: “Vou lavar o copo aqui” (risos).
P/1 – E você conheceu gente do bairro aqui também? Da zona cerealista, da Santa Rosa?
R – Do pessoal aqui? Como assim?
P/1 – Você conheceu alguém que está, não sei se você vai almoçar aqui fora, você conhece outros armazéns?
R – Conheço. É que do tempo que a gente está aqui a gente conhece os armazéns tudinho. Bastante conhecimento.
P/1 – E você fez amizade com alguém aqui?
R – Eu posso sair daqui até o final da rua, é geral. Um me chama de papa-goiaba, o outro de carioca, o outro de beiçola, sabe? “E aí, neguinho!”. Muitos anos que você trabalha aqui você faz amizade. Muita amizade mesmo.
P/1 – Aqui no Brás.
R – Aqui no Brás. Aqui eu posso rodar isso aqui tudinho. Tem nego que fala pro seu Roberto: “O Nilton estava lááá” (risos).
P/1 – Não pode sair que o pessoal deda então.
R – Não posso sair não que o pessoal fala que estava na rua de trás, estava na rua de cima: “Rapaz, como é na rua de trás lá, Nilton?” “Eu?” “Não vem mentir pra mim, não” (risos).
P/1 – Que nem os seus vizinhos lá em Nova Iguaçu.
R – É (risos). “Olha, de manhã seu filho estava por aqui” “Fazendo o quê?” “Estava jogando bolinha”. Aí eu: “Como é que meu pai sabe? Meu pai está trabalhando” (risos). Mesma coisa.
P/1 – E vocês já passaram por enchente aqui?
R – Ô rapaz! Meu patrão tem até história. Quando alaga aqui, rapaz, nós já perdemos um monte de mercadoria aqui dentro.
P/1 – Sério?
R – Já. Uma vez deu uma chuva forte, aí, quando nós chegamos de manhã aqui a água estava batendo aqui assim, ó, passando do sapato. E a mercadoria tudo. Como é que esse moço ficou? Mercadoria cara. E nós jogamos o negócio pra cima, o negócio puxa pra lá e joga água pra fora. Tem, toda vez que chove forte alaga.
P/1 – Até hoje.
R – Até hoje. Por isso tem aquela comporta. Tem duas comportas lá quando a gente tem medo.
P/1 – Você já ficou aqui ilhado?
R – Já. Eu, seu Roberto, dona Mari, os companheiros. Ficamos até uma sete, oito horas e a água não abaixava. E fora os vizinhos também. De sair, meter o pé nessa água aí e tentar desentupir. Eu, seu Roberto, Ivanildo, os vizinhos do lado aqui também, Casa Flora, ajudando, vizinho do bar também. De tirar lixo mesmo. É.
P/1 – Pode pegar até doença, né, meu?
R – É. É verdade, essa tal de lepto...
P/1 – Leptospirose.
R – Leptospirose. Mas você tem que fazer, a união tem que ir, senão ia ficar até dez horas, onze horas. Verdade.
P/1 – E você acha que o povo aqui é unido, os comerciantes?
R – São tudo unido, sim. Um ajuda o outro. Se precisar de um carrinho emprestado não faz cara feia. A Casa Flora aqui com a gente parece até irmão, o que a gente precisar eles servem a gente, e o que eles precisarem também o seu Roberto serve eles. O vizinho do lado aqui também. Não tem negócio de inveja e nem olho gordo. É. Porque às vezes tem vizinho que você vai pedir emprestado e ele prefere que você compra, né? Agora aqui não, tem uns que falam assim: “Não, vai lá, fala com ele pra dar o vale lá e depois ele paga”. Por ser muito tempo que tem aqui, né, sabendo que a firma é boa, nunca teve nome sujo, nome errado de nada, sempre mantém o seu padrão.
P/1 – E você frequenta aqui algum lugar assim, algum bar, algum restaurante que você conhece bastante?
R – Conheço, conheço vários bairros e restaurantes aqui dentro da feirinha onde o almoço é razoável. Aqui também, na Benjamim, tem uns barzinhos lá que de vez em quando nós vamos comer lá. Não todo dia naquele bar porque enjoa comida todo dia do bar.
P/1 – E você se casou alguns anos atrás?
R – Não, cara. Foi tudo assim. Juntamos, sabe? Casar assim na igreja, papel assim, não. Gostei dela, ela gostou de mim, nos unimos, criamos os filhos. Eu tenho um filho e uma menina com uma outra mulher também, mora lá em Franco da Rocha. E meus dois filhos.
P/1 – Dois filhos hoje?
R – É. Tenho um com 21, está no Belém do Pará, foi pra lá, casou e está lá. E tenho um com 19 anos, que está em casa.
P/1 – Qual é o nome do de 21?
R – Júlio César. Júlio César Ferreira Castro.
P/1 – Como é que foi o dia que você nasceu, você se lembra?
R – Ele nasceu em 1994. No hospital do Campo Limpo, Santo Amaro.
P/1 – Como é que foi?
R – Esse dia 1994 eu estava trabalhando lá na Sucesso ainda, aqui na Júlio Prestes. Aí foi a maior alegria quando a mulher foi pro hospital, aí eu só fiquei sabendo na hora que foi para o hospital e lá meu patrão me mandou meter o pé. “Vai que sua mulher foi ganhar neném e você tem que estar lá!” “Que é isso, seu Vicente?”, aí me deu aquela tremedeira, aquela suadeira, puta merda (risos). Eu meti o pé e fui parar lá no hospital. Não estava de alta ainda, só fui pra incubadeira ver o menino, o que tem o nome fica no pé do neném, o Júlio César, Júlio César, Júlio César. É, foi bom. Gostei.
P/1 – E como é que foi ser pai? Mudou?
R – Teve uma mudança, né? Dar valor dentro de casa, dar valor à mulher, ajudar a esposa, estava recente ainda, cheio de conta. E parar de sair pra rua e me dedicar mais ao serviço e à casa. Foi bom. E até hoje. Quando ele nasceu eu trabalhava ali na Sucesso, depois eu vim pra cá. E até hoje eu estou aqui.
P/1 – O outro filho veio quando?
R – O outro veio em 95, ele tem 19 anos.
P/1 – Qual é o nome dele?
R – É o Jeferson. Jeferson Ferreira Castro também.
P/1 – E como é que eles são, seus filhos?
R – Um agora está pro Belém do Pará, casou. E o outro está em casa. Estudaram os dois, os dois iam pra creche direto. Até hoje ainda nós moramos a mulher pergunta, a diretora pergunta por ele. Porque eu vou na creche ainda, minha sobrinha está na creche, né, de vez em quando eu passo lá. “E seu menino, seu Nilton?” “Meu menino casou” “E o outro, seu Nilton?” “Tá trabalhando ou deve estar em casa”. É.
P/1 – Casou cedo o seu filho, né?
R – É, ele casou cedo, casou com 20 anos, 21. É. Serviu o quartel, gostou da menininha aqui, foi lá pro Belém do Pará e lá casou. Lá montaram a casinha. De vez em quando liga pra mim.
P/1 – E como é ser pai? Como você tentou criar seus filhos?
R – Foi mesmo aquela vida que meu pai tinha, não de... manter aquele ritmo mesmo, dar do bom e do melhor, manter a sua casa, a esposa. Aí depois não deu certo, a esposa foi embora, os meninos ficaram comigo e minha irmã chamada Niceia, aí Niceia me ajudou a criar eles, uma irmã minha que mora comigo do lado, casa minha aqui e casa dela aqui. Aí ela foi levando meu menino mais novo pra escola, pra creche e as filhas dela também, o casal, mesmo tamanho, e ela me deu a maior força. Ele gosta da Niceia como se a Niceia fosse a mãe dele. A Niceia dá uma força pra ele, uma moral, mostrar o dia a dia, né? Até hoje eu não abandonei o barco, continuo trabalhando, continuo, pra manter porque se eu fico parado ou fico na rua igual eu bobo eu estava numa situação brava, né? Que a mãe abandonou os filhos, foi embora de casa. E se eu largo esse barco pra lá também, aí eu ia ser um pai, ia ser uma pessoa não responsável. Só porque minha mulher me largou, largou as crianças comigo eu ia meter a cara na pinga e abandonar o barco? Meti a cara. E assim foi indo. Agora está tudo criado, o mais velho está com 21, ele está com 19, né? E eu estou chutando a pedra por aí, não pode parar.
P/1 – E o seu filho Jeferson mora com você ainda, né?
R – O Jeferson mora. Mora que está reformando o barraquinho ainda, mas está lá comigo ainda. Está dando uma ripinha por aí, lá na M’ Boi Mirim, entrando um dinheirinho e eu por aqui também, na Roma aqui até hoje, juntando um dinheirinho pra acabar de reformar o biongo.
P/1 – O que ele está fazendo lá?
R – Ele está trabalhando lá no Atacadão de empacotamento, empacotar mercadoria, botar na caixa, levar até o carro do cliente.
P/1 – E ele tem cabeça boa, você acha?
R – Ah, cara, nessa idade cabecinha meio dura ainda, sabe? Está com 19 anos, na fase de namorar, de vez em quando chega tarde em casa eu falo com ele, aí: “Ah pai, ah pai”, porque nunca quer escutar a verdade, né? Mas até lá ele vai ficar bonzinho ainda.
P/1 – Você leva eles pro Rio também?
R – Ah, levo, eu levo. Quando eu cismo de partir pro Rio eu logo aviso: “Essa semana eu estou metendo o pé lá pra casa do papai, hein?”, porque papai morreu mas eu falo que a casa, porque era do papai mesmo. Aí ele fala: “Pai, posso ir contigo?” “Ué, claro que pode. Se lá é nosso. Mas você tem o dinheiro da sua passagem, não tem?” (risos) “Eu pago a ida e você paga a volta, pai” “Ah, não” (risos).
P/1 – E você sente falta do seu pai, da sua mãe hoje?
R – Ô cara, de vez em quando dá aquela lembrança, aquela saudade. De vez em quando dá aquele final de semana com aquela comida maravilhosa, aquelas brincadeiras legais. Vinha da feira com aquela sacola grandona na cabeça aqui assim. É, todo domingão assim, sabadão, passa até rápido. Dá saudade sim. Ô. Eu sinto saudade legal do meu pai e da minha mãe, eu sinto mesmo. De vez em quando está na cama lá, vem aquela saudade: “Ah, se tivesse minha mãe hoje será que eu estava assim?” “Assim como, Nilton?” “Ah, sei lá”. Porque tu sabe, conselho de mãe é bom, né? A hora que você está com um probleminha, sua mãe te olha e logo sabe que você está com problema. Às vezes você não tem ninguém pra conversar. Quando eu ia pro Rio eu brincava muito com meu pai. “Pai, tá de cara limpa, nada?” “É, tá ruim, não tem nenhum dinheiro”. Aí eu ia lá no bolso assim: “Caraca, rapaz!”, aí saía alegrinho (risos). Quando vinha, vinha com a garrafa debaixo do braço cantando a música.
PAUSA
P/1 – Você estava falando do seu pai, né? Você deu um dinheiro pra ele e ele voltava com uma garrafa.
R – Aí voltava com a garrafa, cantando a música e todo alegre dentro de casa. Às vezes quando eu metia o pé de volta pro Rio eu ligava já avisando: “Pai, amanhã cedo eu estou aí”. E ele logo já avisava até os colegas que eu tinha lá, que eu tenho. “Amanhã meu moleque está aí” “É mesmo?” “É”. Pensava que não, de manhã eu estava em casa. Cedinho. Saía meia-noite, seis horas eu estava lá. Já tinha gente me esperando: “Ê Niltinho!”, assim mesmo. O tempo foi passando, os seus amigos que tinham certa idade, uns morreram, faleceram, outros estão lá ainda. É assim, essa lembrança.
P/1 – Você tem sonho pro seu futuro hoje?
R – Meu futuro? Tenho sim, cara. Tenho. Por trabalhar, por me manter, né? Tem sim. Meu carrinho não é novo, mas é um Santaninha 86 (risos). Tenho um barraquinho aí no Paraisópolis, onde eu moro. E tenho a casinha do meu pai lá que ele largou pra nós, acabamos de reformar. É. Tem sim. Falar que está ruim é mentira. Não pode falar que está ruim, né, que Deus não ajuda (risos). É assim mesmo.
P/1 – E pros seus filhos, você tem algum plano, você espera alguma coisa pra eles agora?
R – Não, cara. Eu espero que eles mesmos procurem fazer o plano deles, que eu tenho todo o trabalho de largar a minha situação assim normal. Quanto mais você busca o negócio parece que vai andando pra trás. Mas não pode baixar a cabeça, né?
P/1 – Você está com quantos anos hoje?
R – Eu estou com 44. Agora dia oito de maio eu já faço mais um, 45, fico mais velho. Aí lembro, mês de Maria, né? Eu falo assim: “Caraca, por isso que eu sou alegre, mês de mamãe” (risos).
P/1 – Você quer viver muito tempo ainda?
R – Oxa, claro! Eu quero. Quero viver muito tempo mesmo.
P/1 – Por que?
R – Pra curtir mais a vida, né? Desfrutar ela mais. Tão novo esvairecer, não. Eu pretendo, né, se Deus me... quero ainda pedalar muito nessa estrada aí.
P/1 – Pensa em viajar também, conhecer outro lugar?
R – Penso! Penso. Um dia eu vou pegar umas férias bonitas aqui na Roma com seu Roberto, partir pra Bahia que eu não conheço a Bahia, né? O pessoal me chama de Bahia. “Ô Bahia!”, eu falo: “Eu nunca passeei lá não, mas um dia eu vou conhecer esse lugar aí” (risos). Conheci já o Espírito Santo, Vitória. Só assim, porque meu pai nasceu. Mas um dia, quando me aposentar e falar que: “Agora”. Vou dar um passeio por esse mundo de Deus. Que nem meu filho, eu nunca esperava que meu filho fosse parar lá no Belém do Pará. Serviu o quartel, acabou o estudo todinho, conheceu a menina. O pai e a menina perguntaram se ele queria ir lá conhecer, ele foi, casou lá. Ligou pra mim, gostou de lá, está gostando. Eu falei: “Deixa, uma hora eu vou pegar um pássaro de ferro aí e vou dar uma encostada aí” (risos).
P/1 – Tem quanto tempo que ele foi?
R – Ele foi em março, cara. Ele casou dia cinco de março lá.
P/1 – Agora.
R – É, agora. Dia cinco de março ele casou lá. Não deu pra ir porque a passagem era muito cara e foi na última hora que eu fui caçar, que não deu para eu ir lá ver o casamento não, a merreca é meio devagar.
P/1 – Mas você quer ir lá ainda.
R – Ah, tenho que conhecer lá, né? Ver pro final de ano aí, eu não sei como é que. Aqui eles sempre viajam no final de ano, sempre dá um... vou ver se consigo pegar um valinho com ele e dar uma chegadinha até lá.
P/1 – Você acha que você aprendeu muito com o comércio, com o balcão? O que você aprendeu?
R – Não aprendi muito ainda não, cara. Tudo, muito, muito não, cara. Mas dá para eu desenrolar, desenrolar no desempenho, aprender tudo, tudo. Porque é só balcão mesmo, tirar pedido, mas tem mais coisas ainda pela frente.
P/1 – Mas você acha que você aprendeu a lidar com as pessoas?
R – A lidar com pessoas, atender o cliente, tratar bem, tratar o próximo bem. Tratar meus patrões aqui também bem. Os problemas que eu tenho lá em casa não tem, né? Aprendi sim.
P/1 – O que você acha que tem que ser pra ser um bom vendedor, pra vender bem? O que você acha que precisa ter?
R – Cara, eu acho que tem que ser um cara alegre, um cara sempre disposto, um cara que tu chegou e não tem esse negócio de cara feia, de estar se escondendo, um cara visto. “Poxa, eu gostei de você, você é um cara legal pra caramba” “Não, te explico, que você me explicou que isso aqui é mais caro, esse aqui é mais barato. Essa aqui sai mais” “Poxa, você no seu golpe de vista, isso aqui é mais caro, isso aqui é a mesma coisa, mas pode levar que vai vender que nem esse”. E você vai estar sempre na... como se diz? Te empurrando mercadoria que você sabe que vai vender, vai ganhar dinheiro, não vai querer te empurrar uma coisa cara que vai ficar parado lá. Aí o cara fala assim: “Pô, comprei uma coisa cara de você, neguinho, está lá parada até hoje. Levei essa aqui e tem saída” “Então leva essa mais barata aí. Ou então você mistura, bate as duas juntas e você não perde”. Porque as pessoas vão pedindo mais informação, mais alguma coisa. “Que novidade que você tem aí, seu carioca?” “Ô cara, tenho uma novidade que chegou aqui agora” “É mais caro ou não?” “Não é que é mais caro, é a qualidade, dá uma olhadinha”. É. E assim você vai indo. Daqui a pouquinho você está lá na... é assim.
P/1 – O que você achou de conversar um pouco com a gente, contar um pouco da sua história, como é que foi?
R – Achei legal. Gostei, conversei, não fiquei nervoso (risos). Gostei sim.
P/1 – Você não ficou nervoso, não, ficou tranquilo?
R – Não. Fiquei nervoso naquele dia, no primeiro dia no balcão ali, né? Aí todo mundo que estava na rua: “Está acontecendo alguma coisa” (risos). Mas aqui está quietinho. E eles também estão cientes que você pediu autorização. Agora se você não tivesse pedido. Ele é legal, mas de vez em quando, tu sabe que é patrão mesmo, né? Não ia deixar, ia falar: “Ô Nilton, ó o serviço! Ô Nilton, caiu um negócio aqui”. Porque nós já conhecemos assim. Agora quando no balcão, até para conversar no balcão, se eu ficar mais de 20 minutos prá prá prá ele já grita: “O Nilton! Vai lá no bar pra mim buscar aquele negócio lá” (risos).
P/1 – Mas você gostou, foi bom?
R – Foi sim, gostei sim. Gostei.
P/1 – Tá certo, então obrigado, viu, Nilton?
R – De nada.
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