AJUDEM UM CEGO A VER O REI PELÉ...
Em frente ao portão principal do estádio Maracanã, no Rio de Janeiro, em todos os jogos de futebol que lá se realizavam, uma figura singular se fazia presente no local. Tratava-se de um cidadão abagualado, jovem ainda, magriço e bem chumuscado pelo sol, o qual jazia passivamente abancado sobre um tamborete de madeira, e, amiúde, trajava-se sempre do mesmo modo.
Esse tipo curioso envergava um jaleco remendado, muito mais parecido com um poncho recortado; vestia uma camiseta grená; calça jeans desbotada; um tênis bem desbotado nos pés e sobre a cabeça ovalada, ostentava ainda um gorro azul furado.
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Como adereços, circundava-lhe o pescoço trigueiro uma correntinha de ouro com um penduricalho contendo a efígie do Cristo Redentor. Sobre a sua face morena, assentava um Ray-Ban escuro a cobrir seus olhos esmeraldinos; e por fim, ostentava enrodilhado ao seu antebraço esquerdo, um vistoso relógio de pulso Dumont.
Além desses petrechos, o carioca, ainda mantinha sobre o seu colo, bem arrimada, uma palheta surrada, mas sempre virada com o bojo para cima, a fim de realizar o seu propósito oportunista.
Esse personagem pitoresco, de praxe, permanecia imoto naquela posição, bem próximo às laterais do grande portão de entrada, exposto e ereto como se fosse uma escultura de pedra. Quem o via ali estancado sobre a banqueta, imediatamente o diferenciava dos torcedores, pois não se tratava de um deles. Burlescamente, ele mais se parecia com um boneco pândego de marionetes.
O desconhecido cidadão trazia no peito uma bandeira inusitada. Porém, a mesma não se tratava de nenhuma agremiação ou clube de futebol ao qual pudesse torcer. Em tal estandarte continha apenas os apelos de um torcedor, mas um torcedor diferenciado, que nos dias de jogos não aplaudia e nem assistia a nada, pois sua atividade o obrigava...
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Em frente ao portão principal do estádio Maracanã, no Rio de Janeiro, em todos os jogos de futebol que lá se realizavam, uma figura singular se fazia presente no local. Tratava-se de um cidadão abagualado, jovem ainda, magriço e bem chumuscado pelo sol, o qual jazia passivamente abancado sobre um tamborete de madeira, e, amiúde, trajava-se sempre do mesmo modo.
Esse tipo curioso envergava um jaleco remendado, muito mais parecido com um poncho recortado; vestia uma camiseta grená; calça jeans desbotada; um tênis bem desbotado nos pés e sobre a cabeça ovalada, ostentava ainda um gorro azul furado.
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Como adereços, circundava-lhe o pescoço trigueiro uma correntinha de ouro com um penduricalho contendo a efígie do Cristo Redentor. Sobre a sua face morena, assentava um Ray-Ban escuro a cobrir seus olhos esmeraldinos; e por fim, ostentava enrodilhado ao seu antebraço esquerdo, um vistoso relógio de pulso Dumont.
Além desses petrechos, o carioca, ainda mantinha sobre o seu colo, bem arrimada, uma palheta surrada, mas sempre virada com o bojo para cima, a fim de realizar o seu propósito oportunista.
Esse personagem pitoresco, de praxe, permanecia imoto naquela posição, bem próximo às laterais do grande portão de entrada, exposto e ereto como se fosse uma escultura de pedra. Quem o via ali estancado sobre a banqueta, imediatamente o diferenciava dos torcedores, pois não se tratava de um deles. Burlescamente, ele mais se parecia com um boneco pândego de marionetes.
O desconhecido cidadão trazia no peito uma bandeira inusitada. Porém, a mesma não se tratava de nenhuma agremiação ou clube de futebol ao qual pudesse torcer. Em tal estandarte continha apenas os apelos de um torcedor, mas um torcedor diferenciado, que nos dias de jogos não aplaudia e nem assistia a nada, pois sua atividade o obrigava ficar ali plantado como um totem humano, paciencioso e irredutível, semelhante uma estátua no tempo.
Naquele estandarte havia apenas o lema apelativo da necessidade e confeccionado numa tabuleta bem simples, ficando ela exposta na frente do seu busto ereto, onde estava inserida apenas uma garatuja tortuosa, em cuja frase se lia:
“DÊ UMA ESMOLA A UM CEGO PELO AMOR DOS SEUS!”
Bem nessas, a grande afluência de público no local, que se aglomerava em filas, eram torcedores afoitos, fanáticos e barulhentos, os quais o viam com a plaqueta simbólica no peito, e vale dizer, bem poucos se detinham a lançar alguns pichulés em sua esburacada palheta.
No entanto, quase toda regra apresenta alguma exceção. Num domingo aprazível, no meio da avalanche de pessoas que compunham as alas para entrar no redondel, pelo menos uma delas estancou para observá-lo e analisá-lo como um cidadão do mundo.
Era um homem barbudo, arruivado, com olhos cianóticos aguçados e de aspecto aprazível. O mesmo comprimia nos lábios um cachimbo cubano Miraflores, cujo tabaco emitia no ar um aroma de chocolate. No seu olho direito havia um discreto pincinê atado a um cordão prateado circundando o seu pescoço delgado. O sujeito parou junto ao suposto cego e ficou a contemplá-lo minuciosamente. Depois sacou do bolso da camisa uma cédula e a depositou na picareta do esmoleiro, na qual havia apenas algumas moedas. Este o agradeceu pela dádiva, dizendo ao benfeitor no seu bom carioquês:
– Obrigado, mano bom! – Que eu o veja, com os olhos das tuas mãos!
Mas antes de seguir a fila para adentrar no estádio, o barbudo perguntou a ele:
– Tu estarás aqui no domingo que vem para eu vê-lo, meu rapaz?
– O deficiente binocular, bem girigoto, lhe anuiu exclamando com ênfase:
– Pode crer amigaço! – Aqui estarei batalhando com as bênçãos do meu Cristo!
O generoso barbudo, respondeu-lhe:
– Tá legal. – Então me aguarde aqui no próximo domingo, que voltarei para ajudá-lo, OK? Em seguida, acompanhou uma das filas para entrar no estádio.
O hipotético ceguinho sorriu pelos cantos da boca com um esgar de júbilo.
Quando Pelé, o atleta do século XX, apresentava-se para jogar pelo Santos FC nos grandes estádios do mundo, uma imensidão de torcedores neles afluía para assistir e aplaudir os espetaculares lances que o magistral craque realizava dentro de campo.
Assim, uma semana depois e no mesmo local, as mesmas cenas se repetiam. O estádio do Maracanã já estava a postos para receber o seu turbilhão de espectadores. Naquele dia a equipe de Pelé estaria em campo se apresentando para enfrentar o Clube de Regatas Flamengo a partir das 16h00, esperando encantar a sua plateia com a genialidade do rei da bola.
E ali, no portão principal do estádio, no lugar de sempre e bem mais cedo, encontrava-se ele, o ceguinho do Maraca, como era conhecido. Postava-se sentado no mesmo banquinho de madeira, com os mesmos trajes, o Ray-Ban escuro no rosto, a palheta surrada no colo e o relógio de pulso Dumont no braço esquerdo. Quedava-se ereto e estático como um manequim de vitrine. Jazia sobre o seu peito uma camiseta rota, e sobre ela, tremulava a idêntica bandeira, acompanhada pelas batidas do seu coração, contendo a mesma frase:
“DÊ UMA ESMOLA A UM CEGO PELO AMOR DOS SEUS!”
Duas horas antes do jogo as filas para a entrada no estádio já se alongavam por dezenas de metros. Num dado momento, eis que aparece o homem barbudo que lá estivera no domingo anterior. Este se aproximou do deficiente já plantado em seu posto, o qual mantinha de praxe a sua palhinha voltada com o bojo para cima.
O benfeitor indagou-o educadamente:
– Me permita lhe dar um reforço, meu jovem?
O cego respondeu-lhe prontamente:
– Pode crer amigaço! Em seguida acrescentou o seu famoso bordão:
– \\\\\\\"Que eu o veja, com os olhos das tuas mãos!\\\\\\\"
O barbudo então, roboticamente, arrancou a plaqueta garatujada que jazia afixada ao busto do pressuposto deficiente. Na sequência, sacou do interior de uma mochila outra bem novinha, feita em bom tamanho e com belos caracteres tipográficos, para acomodá-la delicadamente no peito do pedinte.
Após esse ato de permuta, ele fez uma expressão de satisfação e lhe ditou:
– Distinto carecido! – De agora em diante exiba essa nova placa, a qual, certamente irá ajudá-lo em tua função. Dizendo isso, ele foi se afastando, mas sem entrar no estádio. O cego, muito admirado com aquela generosidade, o agradeceu com vênia.
Na nova plaqueta exposta em seu busto, agora se lia muito explicitamente os dizeres tipográficos:
“COLABOREM! AJUDEM UM CEGO A VER O REI PELÉ!”
Daquele momento em diante, o público que ia entrando no estádio, centenas de torcedores em renques, olhavam para o lado do ceguinho, e, como que pasmados, esbugalhavam os olhos na placa estanque e bem visível a todos. Porém, não refletiam eles que um cego jamais poderia ver o rei Pelé. Como que encantados e quase hipnotizados pela frase na plaqueta, enfiavam as mãos pelas algibeiras e puxavam de suas capangas, carteiras e pochetes, tiravando delas as moedas ou cédulas para colocarem no ‘rotim’ bem surrado e arrebitado para cima, o qual jazia sobre o colo do desvalido da visão.
Nisso, em minutos a palhinha do deficiente foi ficando abarrotada de dinheiro. E assim ocorreram dezenas de vezes, aos borbotões. Eis que caía sem parar a dádiva das mãos alheias para ajudar aquela singular criatura.
Uma hora depois... Já havendo iniciado o jogo, ainda assim, alguns mais retardos também se dispunham a colaborar com o necessitado e ajudá-lo a ver o rei Pelé jogar em campo. O ceguinho forrou o garnacho.
Com a guaiaca recheada de ajudas, ele levantou-se da banqueta, recolheu todo o seu quinhão, para em seguida zarpar do local. Depois disso, colocou a sua rota palhinha sobre a cabeça e saiu manquitolando, meio troncho, tateando ligeiramente os passos com o auxílio de um bordão de jacarandá. Caminhou por dois quarteirões distantes do estádio, olhou para trás, e, de sopetão, entrou numa viela semideserta. Sentou-se sobre uma escada de pedra-de-águia, e, um tanto desconfiado, verificou os arredores com jeitão de sanhaço arisco.
O diligente cego, espreitando o local, logo desarticulou do peito a plaqueta do benfeitor, retirou seu poncho surrado, a camiseta grená e os óculos escuros do rosto. Bem lampeiro, ele vestiu uma camiseta com a estampa do Flamengo, despiu-se da calça jeans e calçou um bermudão, trocou o gorro azul furado por um casquete seminovo na cabeça. Em seguida, enfiou os velhos trajes numa tiracolo e, agilmente, guardou as moedas e centenas de cédulas dentro de um bissaco, as quais lhe depositaram na palheta.
Ato contínuo, mironeou o seu relógio de pulso Dumont e voou com os pés em direção ao estádio do Maracanã para assistir o jogo com os olhos da ‘cara de pau’, que lhe moldara a malandragem.
Lá chegando, depositou na catraca o ingresso que havia comprado antecipadamente, adentrou na arena e se misturou no meio da geral. Logo divisou os espaços livres numa das alas de arquibancadas e não titubeou. Lance a lance, o gaiato foi galgando com lepidez os degraus da mesma até encontrar um espaço vazio para nele se refestelar como se fosse um convidado especial.
Não delongou muito eis que, subitamente, chega ao mesmo local o benfeitor barbudo. O mesmo sentou-se bem ao seu lado na arquibancada geral. Perscrutando-o furtivamente com o olhar, cumprimentou o malandro com um sorriso enigmático e bem significativo. Soltando uma piscadela maliciosa, o adjutor falou:
– É muito bacana poder ver o rei Pelé jogando aqui, não é mesmo parceiro?
Este, parecendo um pouco aturdido, exclamou:
– Certamente! – Esse Pelé joga demais!
O barbudo então, se acostou um pouco mais a ele e, sussurrou-lhe baixinho no ouvido direito, as palavras:
– Admire agora o rei Pelé jogando com os olhos das minhas mãos, meu camuflado cego de araque!
– Guardaste então na guaiaca o teu tesouro e tua escultura, não foi mesmo, pigmalandrão?
Desconcertado com a revelação que o interpelante lhe fazia, ele retrucou:
– Me desculpe senhor – eu enxergo um pouco sim, pois na realidade sou mesmo deficiente visual, com hipermetropia congênita!
Um tanto vexado, ele, de soslaio, indagou ao barbudo com a voz meio roufenha:
– Mas como foi que percebeu o meu disfarce, senhor X-9?
O homem, coçando a barba com os dedos, soltou uma leve gargalhada e ditou:
– Veja bem, senhor malaco! – Como cego e bem caracterizado, até que não foste mal. – No entanto, cometeste duas gafes as quais pude discerni-las muito bem, através da tua máscara profana.
– Analisei-as assim:
– O primeiro deslize, você sempre o articulava em tuas próprias palavras, pois revelaste não ser cego hipermetrope coisa nenhuma, quer dizer: sempre dizias aos doadores: “Que eu o veja, com os olhos das tuas mãos!”.
– Ora bolas, ao afirmar essa frase, você mascarava um ato visível, não com os olhos das mãos alheias, mas com os teus próprios olhos. – Desconfiei disso e o segui, constatando amiúde a tua farsa chaplinesca.
– A segunda mancada que deste, esteve sempre em teu próprio braço esquerdo.
– Tu foste o único cego do mundo que observei usando um relógio de pulso nos teus afazeres, como o faz até o presente momento! – Sendo assim, eu decidi desmascará-lo e confeccionei a placa: “COLABOREM! AJUDEM UM CEGO A VER O REI PELÉ!”
Analisando as expressões de rubor no rosto do farsante ao seu lado, o barbudo continuou o seu escólio:
– Na verdade jibarra, um cego hipermétrope jamais veria o rei Pelé com um relógio no pulso, concorda comigo? – Eu pensei: Isso seria uma antítese do irreal, um contrassenso à vista dos crédulos que possuem a visão. – No entanto, eu preferi que você mesmo o visse, com os olhos das minhas mãos, como já havias me agradecido antes.
Na sequência o homem lhe tascou o tapa com a luva de pelica:
– Veja bem, meu nobre zarolho! – O teu ouropel a mim não convenceu! – O disfarce que usaste até que foi bem, mas as tuas coxeadas, só um cego de verdade é quem nunca as poderiam ver!
O benfeitor, em seguida, lhe aplicou o sermão:
– Avalie que esse embuste que tens aplicado não é digno de um cidadão de bem, mas sim, a de um pulha ou golpista explorador da fé alheia, pois analise o seguinte:
– Se queres viver e agir como um cego de verdade faça, então, a doação das suas córneas a quem precisa delas realmente!
E moralmente arrematou:
“Saibas de uma coisa, bufão!... Em terra de cego esperto, qualquer bom malandro enxerga até com os olhos fechados!”.
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