Capítulo 58.
A invasão de violeiros
Até os anos setenta, Búzios era um paraíso escondido, município de Cabo Frio, onde os nascidos e crescidos lá viviam praticamente da pesca. O comércio ficava em Cabo Frio. A terra não tinha documentação, era de posse, de pai para filho, e a praia ainda não era lazer. Dona Virgulina, minha vizinha, nasceu, cresceu e morreu numa casinha pequena, sem nunca ter entrado no mar.
Quando Brigite Bardot foi lá, em 1964, começou o que se tornaria um inferno: uma península, superlotada de turistas, que não tem para onde crescer. O que, de alguma forma, minimizou, e muito, os danos e a destruição que viria depois foi o fato das construções não poderem ter mais que dois andares, gabarito que vigora até hoje.
Os terrenos eram vendidos a qualquer preço. Comprei e vendi vários. Valorizava, eu vendia, gastava uma parte e comprava outro. Era tudo muito barato.
Um deles, na colina da Praia de Tucuns, dei sinal com recibo assinado em papel de pão. Tive terreno na Aldeia, na Praia Rasa, em Praia Seca, e outros que até esqueci.
Alguns nativos encheram os olhos, venderam seu quinhão de terra e se mudaram para a Cem Braças, mais longe e mais feia. E Geribá ia, aos poucos, passando para as mãos dos forasteiros, nós.
Como nunca havia sido feito inventário nas terras, tudo era acordo.
Porém, mesmo em papel de pão, os documentos de venda tinham validade legal, depois de registrados em cartório.
Lá, todo mundo era parente. Eu brincava que Adão e Eva tinham nascido em Geribá.
Outros viram uma oportunidade de alugar casa para os jovens aventureiros que chegavam, aos poucos, cabeludos, com flores no cabelo, jovens e duros.
A primeira casa que aluguei com uma amiga ainda não estava pronta. Os móveis eram de alvenaria, faltavam portas, janelas, emboço, tinta, mas a gente alugava assim mesmo. Éramos estudantes, ou jovens começando a vida, e tudo que queríamos era fugir da cidade grande e...
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Capítulo 58.
A invasão de violeiros
Até os anos setenta, Búzios era um paraíso escondido, município de Cabo Frio, onde os nascidos e crescidos lá viviam praticamente da pesca. O comércio ficava em Cabo Frio. A terra não tinha documentação, era de posse, de pai para filho, e a praia ainda não era lazer. Dona Virgulina, minha vizinha, nasceu, cresceu e morreu numa casinha pequena, sem nunca ter entrado no mar.
Quando Brigite Bardot foi lá, em 1964, começou o que se tornaria um inferno: uma península, superlotada de turistas, que não tem para onde crescer. O que, de alguma forma, minimizou, e muito, os danos e a destruição que viria depois foi o fato das construções não poderem ter mais que dois andares, gabarito que vigora até hoje.
Os terrenos eram vendidos a qualquer preço. Comprei e vendi vários. Valorizava, eu vendia, gastava uma parte e comprava outro. Era tudo muito barato.
Um deles, na colina da Praia de Tucuns, dei sinal com recibo assinado em papel de pão. Tive terreno na Aldeia, na Praia Rasa, em Praia Seca, e outros que até esqueci.
Alguns nativos encheram os olhos, venderam seu quinhão de terra e se mudaram para a Cem Braças, mais longe e mais feia. E Geribá ia, aos poucos, passando para as mãos dos forasteiros, nós.
Como nunca havia sido feito inventário nas terras, tudo era acordo.
Porém, mesmo em papel de pão, os documentos de venda tinham validade legal, depois de registrados em cartório.
Lá, todo mundo era parente. Eu brincava que Adão e Eva tinham nascido em Geribá.
Outros viram uma oportunidade de alugar casa para os jovens aventureiros que chegavam, aos poucos, cabeludos, com flores no cabelo, jovens e duros.
A primeira casa que aluguei com uma amiga ainda não estava pronta. Os móveis eram de alvenaria, faltavam portas, janelas, emboço, tinta, mas a gente alugava assim mesmo. Éramos estudantes, ou jovens começando a vida, e tudo que queríamos era fugir da cidade grande e ficar dentro da praia, completamente deserta.
Sem conforto nenhum: luz elétrica, água encanada, estradas seguras.
Comprávamos espumas de colchonete para camas e sofás, e pano de chita para fazer as vezes de portas, cortinas, toalhas de mesa, almofadas. E tínhamos mosquiteiros.
A arquitetura era tosca, tetos baixos demais, quartos onde não cabia uma cama, portas de entrada sem trancas, tudo precário, e com goteiras.
Lampiões a gás, velas, baldes, água salobra, poços furados artesanalmente na força do braço e no risco. Ou a água era comprada em Cabo Frio, e ia em caminhões-pipa, o que acabou sendo um ótimo negócio, porque a água era de graça, os motoristas lucravam com o transporte.
A praia tinha dois bares: o do Dorival e da Zuleide, na beira da praia, de madeira, com duas ou três mesas improvisadas, e isopor com cerveja e gelo, fogões à lenha ou com bujão, tudo comprado em Cabo Frio.
No canto esquerdo, o Geribar, do Ivan, maior e com tijolos nas paredes.
No canto direito, perto das pedras, o point dos surfistas.
Quem não podia construir casa pra alugar, se mudava pra casa de algum parente e alugava a sua.
Era um lugar seguro. A gente deixava a toalha na praia quando saía no pôr do sol, e no dia seguinte, a toalha estava lá, no mesmo lugar.
A Mara era secretária da Partime, trabalhava um tempo cobrindo férias de outras secretárias, ganhava bem, depois ficava semanas acampada sozinha na Praia da Ferradurinha. Conseguia ser profissional e hippie, simultaneamente.
Na Aldeia, volta e meia, alguém tinha diarreia, talvez por causa do gelo feito de água da bica. Não tínhamos controle sobre como eram feitos os gelos das caipirinhas.
Sem televisão, aparelhos de som ou rádios, tudo era silêncio. Antes. Depois, os jovens chegaram com seus violões, e a cantoria animada começou a perturbar a calma dos moradores antigos.
Uma vez, um pescador, de nome Mosquito, interrompeu nosso som ao vivo, chegando, de madrugada, com peixeira ou espingarda, não lembro, gritando por silêncio. A gente ria, e obedecia. Mas cantava de novo no dia seguinte.
A primeira casa que aluguei com uma amiga era a casa da Linda, no tijolo. Tinha uma bomba d\\\\\\\'água manual que a gente, como já disse anteriormente, bombeava com os próprios braços. Não me lembro que torneira funcionava, mas tomávamos banho e lavávamos louça em baldes.
Eu só ia à Rua das Pedras pra comer o PF do Central.
O Dorival teve um bar que servia café da manhã, em frente ao único posto de gasolina que havia e que ainda há: o do Ceceu. Não consigo me lembrar o nome do bar.
Existiam outros restaurantes mais caros, acho que o Maia e o David. Mas eu só ia no Central, onde encontrava as mesmas pessoas com quem estivera mais cedo, e estaria de noite.
Era comum a gente tomar muitas caipirinhas na praia, jogar frescobol, depois tomar banho, dormir, e só sair pra comer de noite. Sei de casos em que a pessoa acordou, se arrumou pra jantar e, quando viu, o dia estava raiando. Acho que lá tirávamos os relógios.
Uma noite, eu vinha caminhando pela praia escura, de short jeans e blusinha verde de alcinha, cobrindo o short, parecendo um baby doll, quando ouvi uma sinfonia de violões vinda de uma casa pequena, construída na beira da praia. Havia uma entradinha sem portão, um quintal de areia sem plantas, e uma varanda simples, onde vários rapazes e moças cantavam e tocavam Gil, Caetano, Djavan, Chico...
Entrei calmamente e curiosa, não conhecia ninguém, e ninguém me estranhou. Vi uma rede vazia, e nela eu me deitei. Curtia o som e observava, claro, os rapazes.
Ninguém me deu a mínima bola, era como se eu fosse da casa. Não recebi nenhum olhar de estranheza, e tampouco paquera.
Alguns estavam em casais, outros não.
Mas um violão se destacava, e eu observei, de rabo de olho, o moreno afinadíssimo. Simpatizei sem sonhar que seria o pai da minha filha. Foi a primeira vez que reparei no Juja.
Um tempo depois, não sei precisar quando, eu estava conversando com o Julinho no bar do Dorival, quando ele me disse:
- Você vai gostar daquele cara ali, o de sunga branca, jogando frescobol. Ele é inteligente, é físico, e toca violão.
Gostei da indicação e fiquei avaliando o frescobol dele.
Reconheci o rapaz da varanda. Ele veio em direção ao bar.
Julinho nos apresentou:
- Conhece a Gloria? É poeta.
Juja e eu ficamos a tarde inteira tomando cerveja e conversando.
Em algum momento, ele disse, do alto de seus vinte e oito anos:
- Já me casei duas vezes e vou me casar a terceira.
Eu pensei: Comigo!
E disse: Eu quero ter um filho.
Mas voltamos pro Rio, sem o telefone um do do outro.
Um tempo passou, eu liguei pra Mara, namorada do Ênio, que trabalhava ou tinha trabalhado com o Juja na Cobra, e pedi que ela conseguisse o telefone dele.
Liguei pro Juja do orelhão que ficava na entrada da Editora da Fundação Getúlio Vargas, onde eu trabalhava. Tomei coragem para convidá-lo para uma festinha lá no apartamento onde eu morava com meu pai. Tive a ideia da festa na hora, depois da ligação cair três vezes. Houve a festa, ele foi, fui pra Europa de férias, voltei e, nove meses depois do meu regresso, tivemos uma filha, a Maíra.
Dez anos depois, ele teve o segundo filho com a mulher com quem está casado até hoje. Eu sou a madrinha do Julian, e cuidava dele quando Jorge e Kris viajavam com o Garganta. Kristine é cantora lírica e popular, e cantava, como ele, na Orquestra de Vozes Garganta Profunda.
Nós três temos uma neta que canta muitíssimo bem, e estuda violão e piano. Eu sempre cuidei da minha neta quando Maíra trabalhava ou o Ordinarius viajava. Nossa filha é Pós-graduada em Música, professora, assim como seu marido Augusto Ordine, regente do grupo vocal Ordinarius, onde cantam. E o Julian, meu afilhado e irmão da minha filha, é físico. Todos são professores.
Músico e Físico, Jorge repassou seus talentos igualmente para os filhos.
O tempo passou, Geribá superlotou.
E eu estou numa família de músicos.
#gloriahortapoeta
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Dorival e sua esposa Zuleide faleceram, mas deixaram um point eterno, tocado por seus filhos e netos, que agora tem placa: Bar da Tia Zu ♡
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Trecho de um livro em construção
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