Meu nome é Jaqueline.
Eu nasci Jaqueline, mas eu sou a Jaque. Sempre me incomodei em ser chamada pelo meu nome completo. Não faço ideia do porquê.
Então eu sou a Jaque, leitora desde menina. Menina quieta, olhar intenso, curiosa por natureza. A princesinha do papai, por poucos anos. Depois ele foi embora da minha vida. Aí me tornei o patinho feio da casa. Mal cuidada, piolhenta, desnutrida. Mesmo assim, não deixava de ler. Pedia para os vizinhos me matricularem na escola, emprestava livros na biblioteca pública todas as sextas-feiras. E lia todos. Mesmo quando não gostava da história, ia até o fim. Era como um compromisso comigo mesma. E fui assim por muitos anos, teimosa, valente. Quase não tive infância, tive que amadurecer cedo. Casei menina. Mesmo assim, sempre dava um jeito de voltar a estudar. Mãe nova, trabalhando a noite, estudando enfermagem de dia, consegui me formar. Quase não dormia. Comi muito miojo para conseguir terminar. Depois a vida melhorou por um tempo. Já mulher, filho criado, conheci o segundo marido. Depois de um tempo e uma filha bebê, descobri que vivia com um narcisista. Levou doze anos para conseguir sair dali. Mas saí, recomecei. Tinha meu trabalho, minha família. Me tornei a única mulher socorrista condecorada da minha cidade, samuzeira, porreta. Nessa época conheci meu grande amor. Fui tão feliz em poucos meses, que me é difícil até hoje, anos depois, acreditar que não vivemos por décadas juntos. Ele era perfeito para mim. Meu amor não bastou para ele ficar, foi embora. E eu fiquei. Trabalhando, nessa época comecei a beber demais... Estava perdida. Então chegou o Beto. Meu amigo de adolescência. Estava morando em outro Estado. Não sei direito como foi que passamos de amigos para suporte um do outro. Em pouco tempo, largou tudo e veio viver com a gente. Éramos uma família, eu, ele e minha filha. Ele tinha uma pressa em fazer as coisas acontecerem. Eu dizia, \\\"calma homem!\\\" Queríamos cozinhar...
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Meu nome é Jaqueline.
Eu nasci Jaqueline, mas eu sou a Jaque. Sempre me incomodei em ser chamada pelo meu nome completo. Não faço ideia do porquê.
Então eu sou a Jaque, leitora desde menina. Menina quieta, olhar intenso, curiosa por natureza. A princesinha do papai, por poucos anos. Depois ele foi embora da minha vida. Aí me tornei o patinho feio da casa. Mal cuidada, piolhenta, desnutrida. Mesmo assim, não deixava de ler. Pedia para os vizinhos me matricularem na escola, emprestava livros na biblioteca pública todas as sextas-feiras. E lia todos. Mesmo quando não gostava da história, ia até o fim. Era como um compromisso comigo mesma. E fui assim por muitos anos, teimosa, valente. Quase não tive infância, tive que amadurecer cedo. Casei menina. Mesmo assim, sempre dava um jeito de voltar a estudar. Mãe nova, trabalhando a noite, estudando enfermagem de dia, consegui me formar. Quase não dormia. Comi muito miojo para conseguir terminar. Depois a vida melhorou por um tempo. Já mulher, filho criado, conheci o segundo marido. Depois de um tempo e uma filha bebê, descobri que vivia com um narcisista. Levou doze anos para conseguir sair dali. Mas saí, recomecei. Tinha meu trabalho, minha família. Me tornei a única mulher socorrista condecorada da minha cidade, samuzeira, porreta. Nessa época conheci meu grande amor. Fui tão feliz em poucos meses, que me é difícil até hoje, anos depois, acreditar que não vivemos por décadas juntos. Ele era perfeito para mim. Meu amor não bastou para ele ficar, foi embora. E eu fiquei. Trabalhando, nessa época comecei a beber demais... Estava perdida. Então chegou o Beto. Meu amigo de adolescência. Estava morando em outro Estado. Não sei direito como foi que passamos de amigos para suporte um do outro. Em pouco tempo, largou tudo e veio viver com a gente. Éramos uma família, eu, ele e minha filha. Ele tinha uma pressa em fazer as coisas acontecerem. Eu dizia, \\\"calma homem!\\\" Queríamos cozinhar juntos, abrir um barzinho estiloso. Ele era chef de cozinha e eu sua suchef. Logo eu descobri o porquê da pressa. Ele morreu, nos meus braços, um dia depois do natal. Estava com 48 anos. Infartou. Eu ainda estava processando aquilo, quando veio a pandemia do COVID. Eu era enfermeira na UTI móvel do SAMU. Fiquei isolada da família, vi tantas pessoas morrerem. Depois trauma pós guerra, bebida, solidão, luto. Quase morri naquele momento. Já com os dois pés na cova, a mente anestesiada de álcool, alguns anos depois, muita saudade no peito dos meus dois amores, um morto e o outro ausente, decidi voltar. Subi do poço e recomecei a minha vida. Hoje com 50 anos, reconstrui minha vida profissional, trabalho com as violências da minha cidade, estou começando um núcleo de prevenção às violências e cultura da paz, faço trabalho voluntário fazendo marmitas para as pessoas em situação de rua, como o Beto e eu começamos juntos, lá atrás, dou aulas, escrevi quatro livros, publiquei dois até agora. Parei de beber, parei de chorar. Estou em paz! Solteira, já não creio mais que vá encontrar alguém. Talvez a vida ainda me surpreenda. Quem sabe. Essa é uma versão bem resumida da minha intensa vida. Cheia de altos, baixos, emoções e dores. Mas, uma deliciosa e incrível vida! Eu ri demais, eu sofri demais, eu amei demais. Eu vivi e vivo demais.
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