Deixo no Museu da Pessoa lembranças de meus antepassados que deram origem à minha história. Devo dizer que foi violenta a minha descoberta, ainda na infância, que temos um tempo curto para interagir na história de vida da humanidade.
Ciclos Naturais da Vida – O Lado Paterno- O Patriarca.
...Continuar leitura
Deixo no Museu da Pessoa lembranças de meus antepassados que deram origem à minha história. Devo dizer que foi violenta a minha descoberta, ainda na infância, que temos um tempo curto para interagir na história de vida da humanidade.
Ciclos Naturais da Vida – O Lado Paterno- O Patriarca.
Romualdo Martins de Arruda saiu de São João Del Rei, MG, ainda muito jovem, lá pelo ano de 1860, a procura de melhores condições de vida. Começava no Estado de São Paulo o ciclo do café.
Tinha irmãos, contava meio sorrindo que andando pelos caminhos, em Minas, procuravam empurrar esse ou aquele na frente, para derrubar o orvalho. Mas para São Paulo veio só. Gostava das coisas boas, de comer bem, e apreciava mulheres bonitas com penteados sofisticados. Provavelmente, quando chegou, trabalhava em lavouras alheias. Bem aparentado e trabalhador, achava que a chave do bom negócio era o trabalho e a economia, que na época significava, economizar.
No Município de Santa Rita do Passa Quatro, veio a conhecer uma família com vários filhos em idade de constituir família. Romualdo casou-se com uma das filhas: Maria de Jesus (?). Consta que era pequenina e sem encantos, mas levou um dote de cinco alqueires de terras férteis, boas para o café.
Aí trabalhou e progrediu até chegar a cem alqueires, onde formou um enorme cafezal e outras culturas para a manutenção da família. Ficou muito respeitado, como ficavam os fazendeiros da região. Teve dez filhos e o primeiro morreu aos oito anos de idade, provavelmente de tétano. O pai amoroso nunca esqueceu essa perda e pediu para ser enterrado junto dele.
Mesmo tendo se enriquecido foi sempre sovina com a família, achava que os filhos tinham que aprender a lutar, mas nas doenças os socorria com médicos e hospitais.
Formou ao redor da casa um pomar invejável com grandes variações de árvores frutíferas como: laranjeiras, jabuticabeiras, amoreiras e mangueiras. Havia outras espécies também.
Com a cana de açúcar fazia-se melado, rapadura e todo o açúcar para o consumo e venda.
Como não havia escolas na zona rural, ele contratava um professor particular. Diz-se que em certa ocasião uma das crianças não soube dizer a tabuada de cor e o professor saiu correndo atrás do menino para castigá-lo, Romualdo deu o grito como chefe da tribo: “ Hei, tu ensina, eu induco” Não é preciso dizer que ele era iletrado, analfabeto, contudo muito inteligente.
Os filhos homens conforme iam crescendo acompanhavam o pai nos trabalhos da lavoura, às filhas cabiam os trabalhos domésticos. Em qualquer deslize de desobediência a mãe avisava: Vou falar para o seu pai. A ordem voltava a reinar.
Romualdo Martins de Arruda foi um homem admirável, de caráter reto, muito considerado na região. Seu nome está registrado nos livros da Prefeitura local como um dos principais agricultores cafeeiros. Tinha orgulho e amava o trabalho que fazia
Construiu uma enorme casa de fazenda, bastante confortável e colocou suas iniciais acima da porta de entrada, onde está até hoje, passando de cem anos: R M A. Assim ele viveu o seu ciclo de vida, e deixou um bom exemplo.
O Lado Materno – A Matriarca
A viga-mestra se chamava Herculana Delfina de Carvalho. Há pouquíssimos registros sobre ela, a não ser, os falados. Havia uma página de um livro de registro que se fazia domesticamente. Ali se lia o seu nascimento, ano (?), em São João Del Rei, MG e trazia o nome da mãe, na filiação. Não constava o nome do pai, nem de irmãos. Se o avô anotou esses dados, e hoje a página está perdida, ele sabia ler e escrever, a não ser que alguém tenha escrito por ele.
Jovenzinha bonita e cheia de dengos, alta, magra e elegante, casou-se com um senhor viúvo, bem situado economicamente e viveu muito bem com ele. Era apaixonada. Ganhou uma enteada com alguma deficiência visual que tinha o sobrenome de Laranjeira. Consta que ela não foi muito boa madrasta. Nessa fase chegou a ter quatro escravos. Sabia costurar com esmero (a máquina de costura dela, manual, está sob meus cuidados), Sabia receber, era bem relacionada e gostava de viver. Ela e o marido freqüentavam bailes e dançavam a famosa catira, cateretê e passavam noites no carteado, com amigos. Ela nunca esqueceu esse tempo feliz. Não teve filhos. Contudo enviuvou-se. E sua vida mudou. Era muito difícil para uma senhora sozinha sobreviver. Havia a mãe dela para cuidar. Voltou a se casar, mas não foi feliz. A vida toda ela se preocupou sobre qual dos dois maridos ela ficaria após a morte. Pretendia ficar com o primeiro.
Vieram para São Paulo, em uma caravana a cavalo. Paravam para comer, descansar e dormir. Chegaram a um povoado que ainda existe: Santa Cruz da Estrela, Município de Santa Rita do Passa Quatro, SP. Ali fixaram residência, adquirindo uma pequena casa.
Dona Herculana não teve filhos também dessa união. O marido quis continuar sua peregrinação a procura de melhor sobrevivência, mas a mãe de dona Herculana estava já acamada, onde ficou muitos anos e dona Herculana não acompanhou o marido.
Uma senhora doente, do povoado, veio a falecer por epilepsia, e deixou uma menina recém-nascida. Foi adotada por dona Herculana. Quando foram à cidade para o batismo, dona Herculana a cavalo em seu “sião” (montaria para senhora, onde se ficava com as duas pernas para o mesmo lado), a pastagem do caminho estava coberta de orvalho, na manhã brilhante. Estava tão linda que foi colocado na menina o nome de: Maria Orvalha de Carvalho. Dona Herculana, muito romântica, não foi insensível a esse detalhe da natureza.
Durante toda a vida dona Herculana dizia como a menina era bonitinha. Ficou conhecida como Marica. Marica, na juventude, contida e bela, brava de olhos verdes, casou-se aos 17 anos com o jovem Francisco Casemiro, arranjado por dona Herculana, que ninguém ousava desobedecer. Teve três filhos, antes de ficar viúva de repente: Iracema, com cinco anos, Mires, 4 anos e Américo, dois anos. Ficaram todos com a vó Herculana. Sob seu jugo e responsabilidade com muita pobreza e sofrimento. Dona Herculana costurava, Marica lavava roupas para ganhar.
É possível que dona Herculana e Seu Romualdo já se conhecessem em Minas, pois aqui tornaram-se bons amigos com grande respeito mútuo.
Iracema era colocada em famílias ricas e educadas para aprender os bons hábitos e costumes. Ficou colocada em várias casas, na época isso era normal. Aprendeu a receber, conversar assuntos diversos, conviver com todas as idades, vestir-se com bom gosto e tornou-se uma exímia quituteira.
Já adolescente houve para a época, uma tragédia familiar: a mãe, dona Marica, viúva muito jovem, engravidou-se. O jovem causador da tragédia era o sineiro da Matriz, adolescente ainda.
Dona Herculana fez o que a comunidade esperava: expulsou-a de casa, mas ficou com a guarda das três crianças. Os parentes do rapaz o mandaram para outra cidade, mas não abandonou a jovem viúva grávida, alugou uma casa para ela ter abrigo. As comadres se encarregavam do resto. Quando a criança nascesse seria dada para criar.
Havia um outro problema: Iracema, já adolescente tinha um namoradinho, o filho mais velho de seu Romualdo. Dona Herculana chamou o rapaz e disse chorando o que acontecera e que, diante disso, eles não deveriam continuar o namoro para proteger a menina de maledicências. O bom moço, Paulo Martins de Arruda disse que sendo assim, eles se casariam. Dona Herculana argumentou que em tais circunstâncias precisaria ter o consentimento do pai, Romualdo Martins de Arruda. Seu Romualdo, muito cavalheiro, foi até lá e deu seu consentimento. Assim, Iracema, nos seus dezesseis anos já casou devendo.
Dona Marica não foi ao casamento porque carregava sua barriga do pecado. Mas Iracema teve permissão de se despedir da mãe, que se debulhou em lágrimas ao ver aquela menininha vestida de noiva, e ela sendo a culpada.
Dona Herculana fez mais uma exigência: na velhice ficaria com eles. Assim garantiu a velhice.
Quando chegou a hora do nascimento do filho bastardo de Marica, as comadres estavam lá para ajudar. Veio uma menina. Uma das comadres alertou: olhe dona Marica, essa criança pode cuidar de você na velhice. A criança não foi dada. Chamou-se Albertina. O pai de Albertina casou-se, teve duas filhas e nunca quis conhecer essa menina. Albertina cuidou da mãe na velhice.
Meses depois Iracema deu à luz uma menina: Judith, em 1922. Moravam numa das casas da fazenda de Romualdo Martins de Arruda. As famílias estavam unidas através da união dos filhos.
Núcleo Familiar - Iracema e Paulo
Paulo Martins de Arruda era um homem gentil, bonito, sensível, inteligente, levemente exigente para os padrões da época. Era praticamente um solteirão, contava com 26 anos de idade, era o filho mais velho de Romualdo Martins de Arruda. Passara dois anos no Rio de Janeiro servindo o Governo. Aprendera muitas coisas e era músico da banda militar, seu instrumento era a flauta transversal. Era dado a fazer cursos por correspondência, como era possível, a única forma que havia, então.
Muitas moças casadoiras aguardavam a decisão do jovem Paulo, um excelente partido, filho de um fazendeiro bem sucedido, correto e respeitável. Surge então o caso da jovem Iracema, cuja mãe viúva engravidara. Como bom moço ele salvou a mocinha dos perigos e da maledicência. Ela tinha 16 anos, dez menos que ele. Se havia amor, é difícil saber. Mas depois, em mais de cinqüenta anos de casamento, ele foi um apaixonado. E ela se posicionou como filha, uma vez que fora criada sem pai e sentiu muito essa falta. Foi também por causa da diferença de idades.
Ela era miudinha, bonitinha, prendada e por demais sonhadora, conservando esse defeito para sempre. Logo percebeu que o príncipe não era príncipe 24 horas por dia. Na fazenda não havia luz elétrica, nem água enganada. A vizinhança era distante. Não era como no povoado, que à tardinha as jovens sentavam-se nas calçadas e falavam de suas esperanças e ilusões. Sonhavam com o príncipe. Ali, onde morava não tinha com quem conversar, segundo ela, se desse um grito, ninguém ouviria.
As cunhadas a olhavam com desconfiança, porque Iracema era mais bonita, delicadinha, bem arrumada, sabia combinar as roupas, não tinha o calcanhar rachado, usava cremes no rosto e sabia cozinhar com perfeição. Sabia costurar e bordar. Sabia conversar com homens, mulheres, crianças e velhos. Tinha um sorriso lindo e não o economizava, principalmente para os homens que se sentiam atraídos.
O marido confiava nela, um sorriso é só um sorriso. Talvez gostasse da situação ou talvez entendesse seu drama pessoal, ter pulado a adolescência.
Tiveram oito filhos, ninguém sabia como evitá-los, aqueles que aprendiam não ensinavam.
Os remédios para as crianças eram os chás caseiros, de conhecimento popular. Paulo tinha um livrão de Homeopatia que era sempre consultado. Havia os medicamentos homeopáticos, para febre, etc. Esse livro ainda existe e está devidamente restaurado.
Na lavoura as filhas mulheres não têm valor, é apenas mais uma boca para ser alimentada.
Iracema teve seu segundo filho, uma mulher que se chamou Maria Aurora. Todos tiveram pena de Paulo pela sua segunda filha mulher. Corria como certo que a mãe era determinante no sexo dos filhos. Quando as cunhadas a visitavam, conversavam assim: hoje pus a galinha carijó para chocar. Iracema quase tinha um chilique. Estava fora de seu contexto. Paulo era mais esclarecido que os outros, mas estava dentro de sua família e de sua propriedade. E nem sempre dava razão para as queixas da mulher, que resmungava quando falavam mal dela: são muito ignorantes...
O terceiro filho foi um homem e Iracema pode escolher o nome: Osvaldo Martins de Arruda, ela disse que escolheu esse nome para livrá-lo de se chamar Romualdo, como o avô. Ela era criticada pelas cunhadas por procurar boas amizades, ou seja, pessoas mais ricas, estudadas, educadas. Com essas ela emprestava ou trocava livros, revistas, informações.
A quarta filha chegou. Uma menina que se chamou Yolanda, a única de olhos verdes como a avó Marica. A família tentou fazer a vida fora dali Foram para o Paraná, onde Paulo foi administrar uma fazenda. Voltaram fracassados e com isso Iracema perdeu a máquina de bordar que levara ao casar-se. Paulo ficou muito doente, com uma infecção operatória. Todos pensavam que ele não sobreviveria. Ficou um ano sem poder trabalhar. Ela tinha um pouco mais de vinte anos e certamente pensou em sua própria infância sem pai e sem esperança. E ela e a avó Herculana, o que faria? Parentes e vizinhos marcaram um dia semanal e faziam mutirão na lavoura: arroz, feijão, milho. Iracema cuidava dos serviços cabíveis à mulher e tinha uma horta. Todos os dias oravam juntos pela saúde de Paulo. No dia de São José, 19 de Março, o corte cicatrizou. Depois disso, todos os anos no dia de São José, faziam dia Santo e se dedicavam às orações de agradecimento. A aveia para o fortalecimento do Paulo era fornecida por uma tia que herdara do marido, duas fazendas. As crianças raspavam a panelinha do mingau.
Às vezes a avó paterna levava um pão grande caseiro, escondido disfarçadamente no sovaco, com seus panos sobre os ombros. O avô talvez não aprovasse.
Quando tudo se normalizava houve outro acontecimento inesperado. Iracema, grávida de 6 meses foi picada por uma cobra venenosa, ao enfiar a mão no ninho de uma galinha dentro das palmas do diabo. Colocou a mão e sentiu uma fisgada, achou que era o espinho da palma. Enfiou novamente a mão e foi picada. Foi levada para a cidade, no carro da fazenda, mas tinha que percorrer 18 quilômetros de estrada de terra. No trajeto Iracema sentia choques no braço, a vista escurecia. Tomou a injeção na Santa Casa e deram o cavalo como pagamento. Quando Iracema retornou tinha a mão preta e os filhos tinham medo da mão preta. Fez promessa para Nossa Senhora Aparecida para salvar a criança que trazia no ventre. A criança chegou bem e se chamou Maria Aparecida. Era a que mais se parecia com a mãe e por isso foi muito amada por Paulo durante toda a vida. Diziam que ela era estereotipada, e era. Diziam: é o veneno da cobra.
No ano de 1935, Paulo perdeu a mãe, foi um golpe triste para ele que a amava muito. Dizem que chorou a noite toda. Nesse ano vim ao mundo e recebi o nome de Djanira, difícil para uma criança, e ganhei vários apelidos, como Diana e Bibi. Minha mãe deu-me para São José proteger-me, não havia muitas outras ilusões. A professora de minhas irmãs sabendo de meu nascimento, mandou um santinho de papel, colorido e bonito. Consegui conservá-lo até mais ou menos 10 anos. Depois perdeu-se.
Em 36 veio outra irmã: Neide. E depois a última: Eunice. As três irmãs menores viviam como se fossem únicas. Vovô Romualdo dizia: lá vêm as três cordeirinhas. Nos fins de semana as famílias consangüíneas se reuniam na casa do avô. Lá os adultos punham os assuntos em dia e as crianças, brincavam no terreiro de café. As tias de maior influência foram: tia Rita e tia Tita, as outras moravam mais retiradas. Vó Marica e seus três filhos foram para outra cidade. Os filhos foram ser ferroviários, na Sorocabana. A avó Herculana se encarregava de narrar lindas histórias de fadas do bem e do mal, príncipes e princesas, castelos inimagináveis, histórias de amores, madrastas e branca de neve. Nessa época ainda não havia eletricidade na zona rural. Nos Natais éramos privilegiadas, recebíamos a visita de Papai Noel. Até que alguma tia insensível nos contasse a verdade e derrubassem o castelo de cartas da infância. Vovô Romualdo representou o Patriarca e vovó Herculana, a matriarca.
Um dia o ciclo de vida do avô terminou. Morreu em casa, em seu próprio leito Foi um golpe para as cordeirinhas que o adoravam. Tudo mudaria. A fazenda foi vendida e todos se mudaram dali. Separaram-se dos parentes e tiveram outros contextos de vida.
Um dia nosso tempo também terá se cumprido e seremos vagas lembranças para a humanidade.Recolher