Ponto de Cultura
Depoimento de Akinori Makio
Entrevistado por Mariana Caselatto e Marina Amália
São Paulo, 14/01/2010
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV222
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Seu Akinori, vamos começar. Eu queria que o senhor me falasse o seu nome ...Continuar leitura
Ponto de Cultura
Depoimento de Akinori Makio
Entrevistado por Mariana Caselatto e Marina Amália
São Paulo, 14/01/2010
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV222
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Seu Akinori, vamos começar. Eu queria que o senhor me falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R - Bom, eu nasci... O nome primeiro?
P/1 - O nome completo.
R - Meu nome é Akinori Makio, nasci em Catanduva em 1922.
P/1 - Agora, se o senhor puder falar pra mim, o nome dos seus avós.
R - Meus avós? Esses, eu não sei.
P/1 - É...
R - Não sei, nem... Porque meu pai já veio grande, casado.
P/1 - Então fale pra mim o nome dos seus pais.
R - Dos meus pais, eu sei: Tomotaro Makio e a mãe, Hatzuno Makio.
P/1 - Você quer me contar um pouco do seu pai e da sua mãe?
R - Meu pai… Tudo que eu posso contar é que ele veio pra cá e trabalhou muito na enxada, logo que chegou. A primeira coisa foi quando ele chegou em Santos - não pôde descer do navio porque ficou paralítico do corpo inteiro. Ficou sete meses no hospital. Meu cunhado - vieram dois cunhados, mais o irmão da minha mãe - falou: “Vamos deixar lá, vamos ver se melhora”. Ele ficou sete meses e sarou. Sarou e veio embora pra casa.
Chegou e falou: “Cadê o menino?” “O menino, já está com seis meses que morreu. Morreu logo que chegou”. O menino, depois desta irmã que tenho agora, era o primeiro e morreu.
P/1 - Onde seu pai morava?
R - Ele morava perto de Jaú. No sertão de Jaú, o lugar eu não sei. Tinha um nome de fazenda, mas eu não lembro mais.
P/1 - Eles vieram do Japão?
R - Quando vieram do Japão?
P/1 - O senhor sabe um pouco da vida do seu pai no Japão?
R - Hã?
P/1 - O senhor sabe um pouco da vida seu pai no Japão?
R - Não, de lá não sei nada. Ele veio já casado, com filho e... Com ele, não teve conversa nenhuma de Japão. Naquele tempo, tinha bastante rapaziada lá, mas eu mesmo não tenho nada. Eu falei: “Se um dia eu for entrevistado… Meu pai, de lá não tem nada”. De fato, não tinha mesmo e ele já morreu. Minha mãe morreu mais cedo. Ele sofreu bastante aqui. Quando minha mãe morreu, ela deixou uma carta escrita num papelzinho, um bilhete, que me fez andar 18 quilômetros de noite. Acabei de trabalhar às seis horas, jantei, peguei a estrada e vim. Tudo naquele tempo era mato, perto de Getulina.
Cheguei e precisava ir falar com a minha mãe, porque ela estava chamando à noite. Eu já sabia que ela estava ruim. Ela falou: “Olha, você vai fazer uma coisa que eu vou mandar e dessa você não escapa”. Eu falei: “Tá bom, pode falar”. “Você vai criar estes três irmãos seus todos doutores, eu quero todos doutores”. Eu falei: “Tá bom”. “E você não pôde estudar”. Nem eu e nem duas
irmãs que tinha, ou seja, três ficaram burros mesmo. “Mas vocês estão trabalhando. Vai trabalhando e vão estudar, os três filhos”. Eu falei: “Tudo bem”. Eu pus isso na cabeça.
Vim trabalhar junto com meu pai. Com sete anos, já comecei a puxar enxada. [Com] 13 anos, larguei da enxada e fui trabalhar mesmo, porque... Larguei da enxada não, larguei de estudar um pouquinho, mas eu não estudei quase nada, não deu; fiquei até o segundo ano. Depois eu estudava à noite, estudava a língua japonesa e a língua ‘brasileira’. Eu precisava da língua japonesa porque tinha muita gente pra conversar, aí eu aprendi. Também todo dia eu dormia uma hora, duas horas da noite [estudando], com seis meses... Não, com seis anos. Depois eu fiquei mais ou menos ‘coisa’. Até escrevi carta em japonês e mandei quando meu pai foi pra lá, pro Japão. Disseram: “Esse é seu filho nascido no Brasil, [ele] sabe escrever tanto assim?” Meu pai falou: “Ele aprendeu um pouco à noite, por si mesmo”. Até admiraram. “Está muito bom, demais”. A letra em japonês é muito difícil. Letra em português é fácil, né? É duro, eu estudei isso.
Depois fui crescendo, cheguei aos 13 anos e papai falou: “Agora você não pode mais ir à escola. Precisa puxar enxada, ajudar’. Comecei a puxar enxada. [Com] 13 anos, eu larguei [a escola] e comecei a puxar enxada. Quando cheguei aos 14 anos, larguei a enxada pra... Não larguei a enxada, não, larguei de estudar para pegar a enxada, ajudar meu pai. Meu pai precisava pôr estes meninos para estudar.
Três estudando. Formaram-se no Mackenzie. Pagava um bruta de um dinheiro e não aprendia quase nada, naquele tempo. Duro. Eles eram rapaziada e queriam só gastar. Sapato eu não podia pôr, porque não podia comprar. ‘Roupa de calça’ também. Era meu cunhado, que se casou com esta minha irmã, que veio ajudar a trabalhar em casa depois que se casou... A calça que eu vestia era a que ele já remendava, ficava curta e eu usava aquela lá. Não podia passear porque não tinha roupa.
Trabalhei até os 16, 17 anos ou mais, desse jeito. Falei: “Eu vou de qualquer jeito… São três doutores que eu quero também”. Aí eu [os] coloquei na escola, [se] formaram em (?), ginásio, depois vieram para São Paulo. Mandei os três, mas um não quis estudar muito. Falou: “Eu não estou gostando de estudar, não quero mais ir para a escola”. De três irmãos, o mais velho se formou, o do meio não se formou e o último se formou. O último é advogado, hoje, em São Paulo. Tem o mais velho, que é Engenheiro Civil, de fazer construção. Entrou na DER [Departamento de Estradas de Rodagem] e ficou parte da Diretoria. Agora ficou assim, [morando em] boa casa.
“Ajudar eu”? Nada. Eu paguei tudo e ajudei mais. Ainda queriam dividir a fazenda, vender. Eu vendi porque devia muito e não podia mais tocar.
Casei e falei “Vou dar ‘no touro’ mesmo”, porque ainda não tinha me casado. Falei pro meu pai: “Eu vou casar, mas vou trabalhar”. Comecei a trabalhar, até que chegou um dia [em que] eu falei: “Acho que esse negócio de fazendinha pequena não vai dar dinheiro”. O Bradesco tinha uma fazenda, que tomou de um político de Getulina. Tomou a fazenda e queria vender pra mim. Eu falava “Como eu vou comprar, sem dinheiro? Já devo bastante, como?” Ele [o gerente] falou: “Eu te ajudo. Você compra e depois vai pagando devagar.”
Falei pra meu pai: “Deixa por minha conta que agora eu vou quebrar o galho”. Comprei a fazenda. Três milhões e meio, que era [o preço da] fazenda. Nem valia isso, mas eu comprei pra... Primeiro fui ao banco e falei: ”Se eu comprar esta fazenda, quanto vocês me dão de adiantamento pra tocar isso?”. O [gerente do] banco Bradesco falou: “Até dois milhões eu te empresto, porque a fazenda vale mais, você com duas fazendas”. Eu falei: “O negócio é esse: quem tem bastante”...
Comprei uma casa, também em Getulina. Um homem chamado Agrião levantou, era a casa mais cara que tinha lá. Ele só vivia de juros, emprestava dinheiro. Não sei o que foi, gostou de mim. “Eu vendo a casa ‘procê’. Quanto você me dá? Por 500 contos eu te vendo”. Aí eu falei “Não, não posso. Não posso comprar. Tem um senhor, o João (?), querendo comprar a fazenda. Ele te dá 500 contos.” “Não. Pra ele eu não vendo nem por um bilhão. Eu vendo ‘procê’. Faz o preço aí.” Eu ofereci 400 contos, pagos em duas vezes; dois anos pra pagar. “Tá bom?” Dou 200 contos ‘na poleta’ e depois, no ano que vem, te dou 200.” Ele falou: “Tá feito o negócio.” Vendeu a fazenda pra mim por 400 contos, aí fui morar naquela casa. Falei: “ [A] Casa precisa pintar, precisa arrumar as coisas. E agora, o dinheiro? Onde eu vou achar?” Fui ao banco, pedi 50 contos, pintei a casa, arrumei direitinho e fiquei morando na casa. Fiquei dois, três anos só.
P/1 - Mas esta não é a casa que você me mostrou na foto?
R - Não, aquelas eram umas casas que eu tinha no sítio. Tudo de coqueiro, bem “coisado” e não tinha um metro para medir a casa para construir.
P/1 - Posso te pedir uma coisa então, seu Akinori?
R - Hã?
P/1 - O senhor disse que nasceu em Catanduva, não é?
R - É.
P/1 - O senhor morou em fazenda quando era pequeno? Como era o lugar que o senhor morava?
R - Era quase tudo cafezal. A fazenda que eu tinha, nós plantávamos café. Tinha 70 mil pés de café. Tinha 60 alqueires, que depois eu comprei do Bradesco. Tinha mais 70 alqueires. 70 mil pés de café, sem aqueles do Bradesco.
P/1 - Isso é mais pra frente?
R - Mais pra frente. Comprei e o meu veio criando desde mil novecentos e... Acho que 1950. Não, acho que 40, 42, 43… Vim trabalhando e plantando pouco a pouco o café, até que cheguei aos 70 mil pés. Depois minha irmã se casou e veio morar junto. Casou com japonês mesmo. [Ele era] Motorista, porque nós compramos um caminhão e não tinha quem o guiasse. Quando venceram os seis anos de fazenda, ele queria... Quando nós compramos outro sítio, ele queria metade dessa fazenda que nós tínhamos. Eram 60 alqueires, mas eu falei: “Quando eu pagar todas as dívidas, nós vamos dividir meio a meio”. Acabei de formar o café do Barbosa, que é um milionário. Nós formamos o café e ele queria a metade do sítio, meu cunhado. Falei: “Como é que vamos dar a metade se devemos 28 contos? Como é que vamos pagar ele?” “Não sei. Eu tratei com seu pai”. Eu falei: “Não tratou com ninguém. Tratou que depois que ficar livre é metade pra cada um”. Ele queria de qualquer jeito tentar, mas eu falei: “Eu não dou. Nós vamos brigar, mas eu não dou, não”. Entrou um japonês, sentou no meio e ele falou: “Então vamos fazer assim então, eu deixo por sua conta.” “E o que você vai ajudar a plantar? 20 mil pés de café?”
Eu larguei meu serviço para fazer o serviço para o meu cunhado. Depois fiz umas quatro casas pra ele. Casas de madeira, com forquilha e tudo, bem coberto com telha e (?). Formei 20 mil pés de café pra ele. Depois que acabou de formar, ele falou: “Eu fui para o Rio e voltei, agora vou plantar tomate. Como é que vou fazer este sítio?” Eu falei: “Eu não sei, mas acho que você vai ter que vender”. Tinha um italiano que queria comprar, dava 200 contos, por 20 mil de café. Eu pensei bem e falei: “[Por] 200 contos, você vai vender?” Ele falou: “É... vou, acho que vou vender porque preciso me mudar logo.” Eu falei: “Então eu fico com a fazenda, com seu sítio, 200 contos. Só que eu dou 100 agora e 100 no ano que vem, tá bom?” “Tá bom, porque se eu perder nos tomates tenho 100 contos pra receber de vocês”. Aí eu comprei, paguei para ele e fiquei tocando.
Depois de três ou quatro anos, eu comprei do Bradesco esta fazenda de 100 alqueires. “Agora vou tocar o barco.” No ano que comprei a fazenda, colhi 6 mil sacos de café. [Vendia o] Café a 700 cruzeiros, o saco. Era dinheirão! No fim, o café queimou; veio uma geada tão grande que não ficou um pé de café. Queimou tudo. Eu fiquei com este café colhido. Vendi, paguei a dívida e ainda ficou mais dívida para pagar. Falei: “E agora? Não tem mais café, porque agora vai levar três anos pra dar café”. Foi azar mesmo. Eu comprei e falei pro meu pai: “Eu vou brigar com o gerente do Bradesco, lá em São Paulo”.
Vim pra São Paulo e ‘peguei’ o gerente. Comecei a falar: “Você vai me dar uma prestação de um ano ou seis meses no mínimo”. Ele falou: “Não, nós não podemos dar isso. Quatro meses, no máximo”. Eu falei: “Então eu te devolvo a fazenda do jeito que está, porque a geada queimou e eu não tenho culpa. Me ‘volta’ o dinheiro que eu te dei. Eu tinha pagado dois milhões, você me dá um milhão de volta e fica por isso mesmo. Não tá bom?” Ele falou: “Não, nós não podemos ficar com a fazenda, o governo não aceita.” Falei: “Eu não sei, então vocês vão me dar um prazo para eu vender. Eu não posso virar café. Os pés de café ainda precisam dar café, pra eu dar o dinheiro pra vocês”. Ele entrou em acordo e falou: “Vamos fazer assim: vou te dar 120 dias de prazo e quando vencer, mais 120 dias e quando vencer esta letra, mais 120 dias.” Eu falei: “Assim é a mesma coisa que seis meses, um ano pra pagar. Concordei em pagar e fiquei. Vinha meio pesado pagando juros, mas paguei. Depois de três, quatro anos, paguei tudo. Fui vendendo... Reparti a fazenda em três partes, porque pra vender tudo era muito grande e ninguém comprava. Dividi em três e vendi tudo. Primeiro vendi as duas partes, fiquei com uma parte só e troquei por uma cerâmica em Pederneiras, tinha uma boa cerâmica lá. Falei: “Vou comprar, porque de café não vou mais atrás, não”. Achei que com café eu não devia trabalhar mais porque não dava mais dinheiro. Falei com meu pai e ele falou: “Você que sabe, eu não sei de nada. Você é que vai tomar conta.” Troquei a fazenda pela cerâmica. O homem começou a colher café, mas não tinha muita prática. Todo dia chovia. Dava pra colher mais ou menos quatro mil sacos de café nesse alqueire que eu vendia pra ele. No final das contas, acho que ele não colheu mil sacos, porque só chuva pro café é duro. Molhou todo o café e não pôde...
A cerâmica estava [cobrando] mil cruzeiros o milheiro e foi subindo. Depois, deu uma ventania em Santa Catarina e acabou com as telhas por lá. Começou a vir caminhão pra cá, pra comprar telha. Tinha dia que amanhecia e eu ia na cerâmica, que era fora da cidade. Tinha quatro, cinco caminhões: “Tem? É meu.” Eu falei: “Eu não posso fazer isso. Preciso vender pra aquele que veio primeiro.” “Então tá certo. Eu te dou mais tanto” e começaram a ‘suspender’ [subir] o preço da telha. Eles mesmos ‘suspenderam’. As telhas estavam a mil e quinhentos cruzeiros o milheiro. Pagaram três, quatro mil e no final estavam a cinco mil o milheiro. Eu falei: “Agora tá bom”. Paguei as dívidas e fiquei…
Formei meus irmãos. Dois se formaram. O advogado e o engenheiro estão… O engenheiro já aposentou e está numa boa. Formou o filho dele, o mais velho também, [como] engenheiro. Está ganhando um dinheirão em São José do Rio Preto. Boa casa, está folgado.
O outro é advogado. A mulher morreu, está viúvo, mas está trabalhando. O outro se casou com uma moça, cabeleireira, então está vivendo a vida; meio duro, mas vai indo (risos). Agora os dois estão folgados. Casa boa.
Não adiantei nada pra eles porque falei: “Bom, podem ficar aí”, quando eles se formaram. “[Por] Um ano, dois anos vocês podem comer aqui em casa e beber que tem comida pra vocês todos”.
P/1 - Então o senhor tem quatro irmãos, é isso?
R - Três irmãos. Três irmãos formados.
P/1 - E tinha uma irmã também?
R - Tem uma irmã também, mais velha. Entre esta irmã e eu tinha mais três. Nasciam e morriam. Morreram uma mulher e dois rapazes.
P/1 - O senhor se lembra como era a infância com seus irmãos na fazenda?
R - Nenhum deles puxou a enxada. Todos ficavam lá e iam estudar.
P/1 - Senhor Akinori, o senhor lembra da casa onde o senhor morava? Consegue descrever a casa pra mim? Onde o senhor cresceu, em Catanduva.
R - Ah, no interior. Casa de madeira, redonda. Não tinha serrote, não tinha nada. Com machado foi feita. Levei quatro meses, com três camaradas e construí tudo.
P/1 - E a casa que o senhor nasceu? Como era?
R - A casa era uma casa comum. Na beirada era de coqueiro, barreado com barro. Pra quebrar aquela casa deu um trabalho, porque com machado não derrubava. Não foi usada nenhuma trena... como é que se chama? Metro, para fazer, nem a ‘coisa’ pra nivelação, não tinha nada disso; era a olho. Fiz e ficou bom. Todo mundo chega lá: “Como é que você construiu esta casa bonita assim?” Falei: “É de barro.” “É? Como de barro?” Cavucaram e era de barro mesmo. Deixei lá; o homem quebrou a casa, mas não precisou fazer nada. Aguentou muito tempo. Era grande, eram quatro quartos. E comecei a construir… Construí três casas para o meu cunhado e na minha fazenda construí três também. Tudo com madeira.
P/1 - O que mais tinha na fazenda?
R - Na fazenda era isso e terreiro de café. Precisava ser tudo com cimento, bem feitinho, pra poder secar o café. Eu tinha terreiro para secar café, tinha 1500 metros quadrados e secava o café ali.
P/1 - Como era o processo todo do café?
R - A plantação do café? A gente abre um buraco no chão, de 30 centímetros por 30 e 30 de fundura. Faz dois ‘reguinhos’ e derrama um pouco de semente de café e planta. Cobre e deixa. Depois põe a madeira e deixa. Com três, quatro meses, começa a nascer. Leva quatro anos pra dar o café.
P/1 - Depois, como é a fase da colheita? Você falou que tem que secar o café...
R - Vai tocando. Vai sempre carpindo, plantando os cereais dentro e vai tocando. Quando o café fica com três anos, começa a dar algum carocinho e a gente tira pra tomar café. Depois, no quinto ano, a gente faz colheita, mas é muito pouco. Café vai dar mesmo depois de seis, sete anos. Até isso não dá dinheiro.
P/1 - Quem trabalhava com o senhor na fazenda?
R - Eu e camaradas que eu tinha.
P/1 - O senhor lembra do processo de plantar e colher? Como era?
R - Tinha um tal de Jãojão, era João. Muito grande. Ele, Joaquim, Hortêncio e outro mais. Tinha mais umas 15 pessoas que trabalhavam comigo, mas quem ficou firme foram esses aí. [Eram] Muito bons trabalhadores. Quando estava na colheita, eu trabalhava com 150 homens pra colher café.
P/1 - Como era a rotina?
R - A rotina era colocar cada pessoa para colher café. Um saco de café a ‘tanto’. Depois pôr o saco de café na estrada. Naquele tempo, era 30 cruzeiros um saco de café, só mão de obra. E colocava a turma, porque quando ia começar a colheita, não ganhava nem pra boia. Pra apanhar na mão, sabe? Depois o café ficava seco e com um pedaço de vara pegava dez sacos de café por dia, sozinho. Por isso ganhava 30, 40 cruzeiros... 300 cruzeiros por dia. Precisa rastelar também, mas dá isso.
A japonesada da Santa América - no lugar que eu morava tinha bastante japonês - achava ruim porque eu pagava muito. Eu falei: “Eu preciso trabalhar com 100 homens. Vocês colocam duas, três pessoas e dá. Eu preciso urgente e preciso pagar mais’. Eu pagava mais: 30 cruzeiros por saco, eles pagavam 20. O pessoal corria de lá, vinha pra mim e eu ‘mandava pau’. Foi uma encrenca desgraçada com a japonesada. Esses japoneses que tinham lá eram mais ou menos 60, 70 famílias, todos trabalhando na mesma fazenda que nós trabalhamos, eu e meu pai. Porque meu pai saiu...
Vou começar daqui, porque algumas coisas vocês querem saber. Quando meu pai saiu de Jaú ele foi pra… Como é que se chama o lugar? Fazenda não sei o quê... Ele, em vez de sair do negócio de cana - cana não, ele plantava café. Trabalhava com café, foi tratar de cana, pois cana é mais fácil. Meu pai achou que era mais fácil. Veio para Mogiana e começou a trabalhar. Ele viu uma baixada que tem um rio grande até hoje. A gente olhava, [era um] lugar bonito, ‘baixadona’. A água correndo e a baixada toda molhada. Meu pai falou: “Vocês se importam se eu carpir e plantar um pouco de arroz?” “Ah, é muito bom pra nós, limpa o pasto”. Meu pai pôs um cunhado dele, um rapaz de 15 anos, outro de 18, que veio do Japão também, e minha mãe. Carpiu toda aquela baixada, tocou fogo, limpou tudo e plantou arroz. Deu arroz mais alto que uma pessoa (risos de satisfação) e ninguém plantava [antes]. Meu pai plantou este arroz porque estava acostumado no Japão e ganhou um pouco de dinheiro.
No outro ano, pediu para a pessoa que tomava conta: “Posso tirar mais um pouco?” “Pode plantar tudo aí”. Meu pai colocou gente e começou a trabalhar. No outro ano colheu bastante arroz, ganhou algum dinheiro. Ele falou: “Agora vou fazer meu tio, que veio do Japão solteiro, casar.” Acharam uma namorada lá mesmo, japonesa, e fizeram ele casar. Ele parece que tinha 18 anos ou estava com 22, 23. Casou-se e voltou para Cafelândia.
O outro rapazinho de 15 anos era muito inteligente, mas não queria trabalhar no negócio de cana. Ele foi embora pra São Paulo sozinho, se empregou numa casa de carpinteiro. Depois disso, ele sumiu. Foi lá para Pirajuí… Não, acho que era Argentina. Ele foi pra lá sem saber falar, mas já tinha aprendido falando em português. Depois minha mãe ficou aqui pensando em ver como ele estava -
foi quando mandou o irmão dele, que já estava casado e depois separado. Minha mãe o mandou pra ver se ele não tinha morrido. Foi fuçando em São Paulo que ele descobriu que ele estava em Pirajuí... Não, na Argentina. Estava bem, com boa casa, mulher… Uma coisa bonita de ser ver a mulher dele, só que estava doente, tuberculosa. Era uma moça muito bonita, mas estava doente. Quando meu tio foi lá, ela já estava nas últimas, mas tinha uma boa casa. Precisava vender - vendeu a casa para pagar o hospital e tratar dela. Depois de seis meses, ela morreu e ele ficou sozinho por aí. Um tempo depois ele também pegou a doença e morreu. Depois de dois anos, parece que ele morreu.
Ficou este meu tio mais velho em Cafelândia. Ele tocou 200 mil pés de café para plantar. Era louco pra fazer estas coisas, fez e ganhou dinheiro. Foi lá no interior, me chamou e falou: “Preciso construir uma casa em São Paulo”; me chamou para vir trabalhar na escola dele em Cafelândia. Falou: “Eu vou construir umas casas grandes aqui e você vai me ajudar lá na escola”. Ele tem três meninos também. Eu fui à escola e quando voltava, ajudava a mulher dele a trabalhar. Ele comprou acho que meia quadra de terreno e construiu uma ‘casona’ lá em cima. Dez contos [custou] pra ele. Foi tocando [por] dois, três anos. Ele tinha esta casa, depois comprou o melhor bar em Cafelândia. Tinha um armazém em Araçatuba e fez um rinque de patinação em Cafelândia, pra ganhar dinheiro também. Aí começou a vida.
Acabou que meu tio falou: “Você precisa ir embora porque precisa ajudar a mamãe a trabalhar.” “Preciso sim”. Eu vim embora, mas estava com 12 anos, ainda dava para trabalhar mais um pouco. Fui pra casa e depois de um ano e pouco, dois anos, fui ver meu tio no interior, onde nós tínhamos trabalhado. Não era um sítio, era uma empreiteira de formação de café. Ele chegava e falava: “Me arruma 500 contos porque já estou sem dinheiro”. Jogo... Perdeu tudo. Até hoje... (risos) Ele morreu jogando. Ele não tinha jeito, ele e o filho. Acabaram com o dinheiro. Estavam bem, puxa vida! Era carro novo, casa boa, de primeira, mas...
P/1 - O senhor se lembra da casa dele na fazenda?
R - Dele? Ele perdeu tudo, no jogo. De um dia pro outro, ele perdeu. Jogava bastante. Jogador é um problema, viu? Aqui, onde eu tinha fazenda, tinha uma família de turcos. Ele casou com uma hungaresa bonita, começou a trabalhar. Estavam bem; compraram três, quatro fazendas. “Homem, você está indo [bem]” Também foi pouco tempo. Acho que em três anos chegou o fim dele: dar um tiro na cabeça e morrer. No jogo de (?). Perdeu tudo.
P/1 - O senhor disse que foi à escola em Cafelândia. Como era a escola lá?
R - A escola? Era escola pequena.
P/1 - O senhor lembra das aulas, dos colegas da escola?
R - A escola é a aula, quem faz é a professorinha, ensinando, né? Até meio-dia era uma professora e do meio-dia pra tarde era outra. Eu só fiquei dois anos. Aprendi. Dá pra ler um pouquinho, qualquer coisa, mas eu voltei para o interior. Cheguei lá e me perguntaram: “Em que ano você está?” “Já passei para o terceiro. Agora preciso comprar livro para o terceiro.” “Ah, mas aqui o terceiro não pode. Você vai ter que voltar para o primeiro ano, porque tem uma menina que vai fazer o primeiro ano agora e você vai fazer o primeiro ano com ela” “Mas eu já estou no terceiro.” “Você repassa o que já aprendeu”. Que coisa! Escola no interior era isso.
A professora comprou o livro e mandou pra mim. O [autor do] livro, eu até sei, se chama... Antônio Firmino de Proença. A cartilha que eu comprei, comecei a estudar com ela, mas já sabia escrever tudo. A professora disse: “Vai acompanhando com a menina”.
Eu aprendi a lição em japonês também. Eu estava estudando um pouco de japonês e a professora falou: “No dia primeiro de janeiro vai ter uma festa aqui. Você vai ter que sair no público e conversar.” “Conversar?” “Conversar o que está escrito no livro”. Eu peguei aquele livro e... Puxa vida! Letra em japonês é duro de saber. Eu fui aprender. Pegava à noite, na casa do meu tio e pedia para ele me ensinar, até que eu consegui. Depois de um mês, pus tudo na cabeça. Quatro páginas, que eu ia falar em público sem olhar. Falei: “Vou fazer, porque ela mandou”, aí eu fiz. E não é que tirei primeiro lugar?
Conversar em japonês era duro, mas o que eu ia fazer? Meu tio disse: “Você está muito bom e tem que estudar japonês. Não perde isso, não”. Eu comecei, mas depois pensei: “Estou no Brasil. O Brasil é bom, eu não vou embora para o Japão. O que eu vou fazer com a língua japonesa?” Então fiquei estudando ‘brasileiro’. Depois que eu fiquei com 17, 18 anos, as moças não queriam dar confiança pra mim porque eu não conversava em japonês. Falei: “Vou até perder namorada! Vou voltar a estudar então.” Fui estudar à noite. Estudava e ganhei primeiro lugar, outra vez, na escola. Foi quando as meninas começaram a olhar e falar “Puxa! O homem é bom.” Meu tio perguntou se eu ia para o Japão e eu disse que não. Meu cunhado… Não, meu genro falou: “A nora já foi para o Japão e ficou um mês’. Perguntou se eu queria ir. Eu falei: “Não, Japão não. Eu tô aqui no Brasil, nasci aqui. Vou ficar no Brasil e vou morrer aqui.” “Nem a passeio?” “Eu posso ir para a Argentina. Na Argentina, eu posso conversar em português. É que o Japão... Eu sei, veio um japonês [para o Brasil] e conversei com ele, mas a língua é bem diferente.” “Ah, mas aquele fala japonês muito enrolado. Parece que ele quer gozar nas costas da gente.” Falaram para eu não ir porque eu ia passar vergonha. Porque todos sabem conversar, são de lá. Pus na minha cabeça que ia estudar alguma coisa de japonês, mas para o Japão eu não ia. Até hoje, nunca fui. Meu filho me chamou e disse: “Se quiser ir, dinheiro eu tenho”. Se for gastar este dinheiro eu fico aqui mesmo. Fiquei e não fui. Minha nora e o genro foram e ficaram um mês. Gastaram muito. Hotel é caro, né? Hotel bom lá é 1500 cruzeiros.
(pausa)
R - Eu já aposentei a carteira de motorista.
P/1 - Quando o senhor tirou a carteira, tinha um jeito de ligar o carro...
R - Agora eu não quero mais, porque tem horas que a cabeça atrapalha um pouco e eu vou na outra estrada sem saber. É duro, viu?
P/1 - É melhor não arriscar.
R - Eu falei: “Vou parar, antes que eu bata o carro”. Nunca tomei multa, nunca bati o carro. Trabalhei de motorista por 65 anos.
P/1 - O senhor falou que brigou com o professor e ele o tirou da autoescola?
R - Não. Brigar com o professor, não.
P/1 - Ele ficou bravo com você?
R - Não. Ele fez... E eu estudei lá... Agora ultimamente eu...
O rapaz disse: “Faça exame de vista. É [com] um médico, meu conhecido. Você não vai pagar nada”. Troquei a lente. “Está enxergando bem, né?”, ele falou. “De carro você entende tudo”. Fui mecânico [por] seis anos aqui em São Paulo. Comprava e vendia carro, mais de 100 carros eu comprei. Fui até Recife pra comprar carro. Saía daqui e ia até Recife de ônibus, comprava o carro e voltava guiando 3 mil quilômetros, sozinho.
P/1 - Antes de você me contar desta sua vida em São Paulo, a Fabiana me disse que quando você era pequeno tinha um amigo na fazenda. Como eram suas amizades quando você era pequeno?
R - Quando era pequeno? Eu tinha um amigo quando estava em Cafelândia, quando estava na escola. Era um rapazinho que era um ano mais novo que eu. Ele quase morreu uma vez, com aquelas bolas de ferro que a gente joga. Um rapaz jogou; quando ele passou na frente, pegou na barriga dele. Ele caiu, mas logo levaram ao médico e não teve nada. Eu sempre fui amigo dele, mas ficamos tão amigos que um dia eu fui passear com um caminhão novo… Eu estava fazendo uma mudança para o Paraná e fui encontrar com ele, pois achava que ele não estava muito bem. Estava numa situação ruim. Ele falou: “Não estou muito bem, mas dá para ir vivendo.” Eu falei: “Esta casa foi você que fez?” “Foi.” “Está muito mal feita. Não era para construir assim.” “Mas eu não tenho prática. O que eu tenho que fazer?” Fiquei lá uns três, quatro dias e ajudei a modificar. Modificamos e ele disse que ficou bom. Falou que viria aqui um dia em São Paulo, mas nunca veio. Depois eu fui outra vez e levei um aparelho de fazer massagem, pois ele estava se sentindo mal. Peguei daqui e levei para dar a ele de presente. Ele ficou contente e falou: “Eu não posso pagar.” “Eu não estou falando pra você me pagar. Vai usando e quando você se curar, me devolve”. Ficou até hoje. Coitado. Acho que ele morreu, não está mais vivo.
P/1 - Tem alguma brincadeira de criança que o senhor lembra?
R - Ah, brincadeira de criança tem pouca coisa. Fiquei só dois anos e pouco em Cafelândia. Brinquei muito com ele. Bom demais, viu? Quando eu brigava com algum moleque, ele era o primeiro que vinha ajudar. Era assim. Criança é assim na cidade. Meu primo queria me bater. “Ele é seu primo, mas eu vou te ajudar.” E dava nele. (risos)
P/1 - Me conta um pouco das suas namoradas.
R - Isso foi [por] pouco tempo. Sorte de namorada, eu tinha. Em Santa América, quando era rapaz, com 21, 22 anos, eu estava namorando uma japonesa. Eu gostava dela, desde a escola. Até que o pai dela a obrigou a esperar a irmã mais velha casar primeiro, pra depois nós [nos casarmos]. O pai dela gostava da gente também. Era um japonês gordo, até fotografia da família toda eu tenho. Só que ele não deixava a gente casar. Ele falava: “Você é candidato bom. Ela gosta de você e eu também gosto de você. Só que aqui em casa é a mãe que não deixa”. Eu falei: “Tá certo.”
Eu precisava me casar logo, pois tinha duas irmãs que precisavam se casar. Uma com dois anos de diferença da outra - uma com 18 e a outra com 20 anos. Eu estava com 22 anos. Fui para Lins, onde minha irmã estava aprendendo costura. Comecei a conversar com a costureira e a irmã da costureira, que era meio vesga de um dos olhos. Elas também tinham morado no interior e vieram para a cidade. Vieram falar que a fulana estava gostando de mim, mas eu não gostava dela, então eu desisti. Fui arrumar outra; ela era de Lins mesmo. ‘Firmei’ com ela e depois que ‘firmamos’ veio um bilhetinho. Era um menino da escola que trazia pra mim. Eu olhei e estava escrito: “Estou livre até agora” – porque a irmã [mais velha] fugiu com o gerente do banco. Ela falou: “E agora, como é que fazemos?” “Eu já ‘firmei’ e você não pode casar comigo. Não pode namorar nem casar, então você vai perder.” “Espero que você se dê bem.”
Deu três meses, eu me casei. Casei com 24 anos, fui até os 70 anos [casado] e minha mulher morreu. Ela tinha um negócio que... Não era pra morrer assim, fácil. Ela ficou dois dias vomitando e eu a levei ao médico. “É melhor”. Levei e o médico disse: ”Vamos deixar ela aí e amanhã você vem ver.” Deixei ela lá fazendo endoscopia, pois não estava aceitando a comida. Falei: “Bom, vocês que sabem.” Ela estava fazendo a endoscopia, nem deu tempo de acabar e morreu.
P/1 - O senhor se casou com a mesma namorada que tinha antes? Aquela que tinha a irmã mais velha? Ou não era a mesma?
R - Não era a mesma.
P/1 - Depois que a irmã fugiu, o senhor se casou com ela?
R - Essa que era namorada estava viúva, pois casou e o marido morreu. Eu encontrei ela em São Paulo por acaso e comecei a ir à casa dela. Eu já estava viúvo também. Ela disse: “Você é viúvo e eu gosto de você até hoje”. Eu queria… Mas ela também ficou doente e morreu. Fiquei eu. Fiquei com dó de me casar outra vez porque minha mulher foi muito boa pra mim.
P/1 - Como era a vida de casado, seu Akinori?
R - Eu nunca briguei, nem nada. Para ela também era muito boa. Se eu falava “não” pra ela, estava tudo certo. Era muito trabalhadeira. Nem empregada usamos em casa, pois ela não queria. Nós estávamos numa casa grande e alugada.
P/1 - Vocês se casaram no interior?
R - Não, eu trabalhava aqui, em São Paulo. Depois que estava aqui ela morreu.
P/1 - Vocês saíam? O que vocês faziam de lazer?
R - Com a mulher?
P/1 - Tanto solteiro quanto casado. O que o senhor fazia para se divertir?
R - Pra se divertir era quase nada. Baile, ela não ia, mas passear nós íamos muito. Íamos muito para Santos, [porque] eu tinha caminhão. Ia para o Rio de Janeiro duas vezes por ano, porque tinha um cunhado lá e no interior, a 500 quilômetros de onde eu morava, pois tinha muitos conhecidos e eu ia pra lá. [Para] Lins, né? E ela ficava toda contente.
P/1 - O senhor se lembra do dia do seu casamento?
R - Eu? Ah, eu me lembro. Foi muito bom. Veio bastante gente. Sei que abateram metade de um boi pra fazer assado, mais dois porcos. Comeram todo o porco e deixaram o boi; precisou jogar metade fora. Ninguém queria mais. Fiquei com ela [por] 20 anos, foi muito bom.
P/1 - Então me conta como foi, quando teve a geada na fazenda? Você veio para São Paulo?
R - A geada veio e queimou todo o cafezal, não tinha mais jeito de colher café. Eu comecei a vender, a cada dois anos, um pedaço do sítio, porque era 170 alqueires de terreno e 200 mil pés de café que precisava cortar, então eu vendia ‘cortado’. Vendi primeiro para um italiano que morava lá perto mesmo, muito amigo meu. Eu vendi - não tinha escritura, não tinha nada. Ele não pagava e ficava devendo. Eu nem fiz letra, depois pagou tudo direitinho. Não tinha este negócio de fazer letra, nem nada de fazer nota promissória. Vendi uma parte, vendi outra e fiquei com uma parte só; foi aí que eu troquei pela cerâmica e fui recebendo dois milhões e meio de volta. Toquei essa cerâmica e quando estava ficando mais ou menos boa eu pensei em vender. A DER [Departamento de Estradas de Rodagem] veio e falou para nós tirarmos todo o barro, porque iam cercar o Rio Tietê.
P/1 - A DER é o quê?
R - É parte do escritório... Eles vinham avisar, porque o barro a gente tirava de lá [da margem do rio]. Se cercassem o Rio Tietê, acabou: todo mundo que tinha barreira perdia tudo. Falaram: “Dentro de um ano vocês tiram. Daí pra frente eu não posso fazer nada, mas [em] até um ano vocês podem tirar toda a barreira”. Eu pensei: “Comprar dois caminhões novos para tirar barro? Acho que eu não vou fazer isso, não”. Falei pro meu pai: “Vou vender”. Combinei com a mulher também: “Vamos vender e vamos para São Paulo”. Já tinha dois filhos estudando...
P/1 - O senhor já tinha dois filhos na escola?
R - Dois filhos não, dois irmãos, que estavam na faculdade aqui e já estavam no último ano. No ano em que eles se formaram, que foi 1959… No meio de dezembro foi a formatura deles.
P/1 - Quando o senhor veio pra cá, já era casado?
R - Eu já era casado, vim com quatro filhos.
P/1 - Como foi a experiência de ter filhos?
R - Ah, filhos... Eu gostei muito. Minha mulher educou bem mesmo, muito bom. No cinema de Getulina não deixavam entrar crianças, porque elas choram. O meu foi umas duas, três vezes e não chorou. O homem falou: “Você pode trazer seus quatro filhos”. Colocava eles no meio, deixava ela lá e eu aqui. Eu tomava conta. Dois dormiam, mas os outros dois não dormiam. Quando a gente ia na casa de um patrício, na casa de qualquer pessoa, dos amigos, às vezes pegava umas balinhas e punham na mesa para as crianças chupar. Eles pegavam uma, mas enquanto o dono não falava para tirar, eles não tiravam. Bem educados.
Graças a Deus eu tenho dois homens e duas mulheres e eles são muito bons. Nunca precisei bater nem nada, mas a mulher pegava o chinelo e dava no bumbum deles. (risos) Hoje eu estava olhando o sobrinho deles. Já tem dois casados e os filhos deles também estão todos casados. Da filha mais velha, né? Dos filhos não tenho queixa nenhuma, eles já estão bem crescidos e nunca me deram trabalho. Não precisei bater porque todos são bem educados.
P/1 - Foi aí que o senhor veio para São Paulo com a esposa e os quatro filhos e vendeu a cerâmica?
R - Com os quatro filhos.
P/1 - O senhor veio morar onde?
R - Aluguei uma casa grande que tinha 16 cômodos, porque meu cunhado também vinha pra cá, depois de vender o sítio.
P/1 - O senhor se lembra pra qual região se mudou?
R - Eu mudei para perto do Hospital da Clínicas. A Rua Oscar Freire, afamada... perto de… Não sei o nome, era na primeira rua que tem... Perto do hospital que vai direto até Pinheiros.
P/1 - Teodoro Sampaio?
R - Essa, perto da [Rua] Teodoro Sampaio, na esquina. Eu fiquei lá, mas o aluguel era meio caro. Cinco ‘paus’. Eu falei: “Será que dá pra pagar? Vamos embora”. Por dois anos eu tinha certeza que pagava, porque eu tinha a prestação do ‘coisa’, né? Em vez de fazer dinheiro para receber, eu queria telha. Eu vi que telha ia subir [de preço]. “Você me dá 40 mil telhas, vende 10 mil no mês e o que restar você me deixa em dinheiro. E se não vender, pode amontoar tudo aí”. Eu notei isso, se não vender eu tiro de lá e guardo. Quando a telha subir, eu vou vender. Foi fogo. Nem deu tempo de fazer isso. Todo mundo vinha buscar telha e vendi tudo sem ter trabalho. Até que... (risos) acabou muito rápido. [Em] Três anos e meio eu recebi tudo.
Nesta época, eu já não tinha mais dinheiro e eu falei: “E agora?”. Aí eu pus uma casa de oficina, que eu trabalhei três anos. Destes três anos eu não almocei nenhuma vez. Almoçava um copo de leite e um pãozinho só. Esse era meu almoço, todo dia. Por seis anos e eu topei.
P/1 - Na oficina mecânica?
R - Era uma oficina mecânica. Eu não era mecânico, mas precisei aprender. Aprendi e estava bom. “Vou fazer isso”.
P/1 - E como o senhor aprendeu?
R - Aprendi fazendo e vendo os outros fazerem. Eu também guiava caminhão e sabia fazer mais ou menos as coisas. Aí acabou. Fui comprar carros; eu ia para Lins, Bauru e Mato Grosso. Lá eu comprava Chevrolet e trazia aqui. Pegava Ford aqui e levava pra lá. [Em carros da] Ford aqui eu pagava 200 ‘contos’, lá eu vendia por 250 na hora; [carros da] Chevrolet, comprava lá por 200 e aqui era 300. Teve carro que eu ganhei 300 contos, num carro só.
P/1 - Qual era o carro que o senhor mais gostava?
R - Era o Chevrolet, daqueles mais antigos. Eram os que vendiam mais aqui em São Paulo.
P/1 - Tinha algum carro específico que o senhor gostava?
R - Não tinha, pois carro você não pode ficar escolhendo muito para comprar. Eu comprava Chevrolet ou Dodge, porque vendia aqui em São Paulo, mas se levar Ford em Lins, São Paulo e Bauru, todo mundo compra. Era bom o Ford 47, 48, era o melhor carro que tinha.
P/1 - O senhor foi a outros lugares para vender carro? Para comprar carro?
R - Eu já sabia tudo, fazia uma procuração e mandava assinar. Pegava o carro com a procuração e ia lá vender. Vendia e depois eu podia assinar o certificado. Assinava e vinha embora. Agora não, procuração demora muito.
P/1 - Você disse que foi até o Recife comprar carro?
R - [Para o] Recife, eu fui três viagens em carreada. Fui daqui de ônibus. [Quando] Chegava lá, arrumava um hotel, depois pousava. No outro dia, saía para procurar o carro. Achava e comprava, já levava o dinheiro e pagava. Fazia toda a documentação e vinha embora. Montava no carro e vinha, mas é longe. 3 mil quilômetros guiando, é duro.
Na primeira viagem foi tudo bem; na segunda viagem, eu falei: “Vou experimentar levar num caminhão”, na ‘cegonha’ [caminhão cegonha, que transporta vários carros]. Aí ele falou: “Quanto você faz?” “Eu faço 100 ‘paus’ e levo daqui até São Paulo”. Eu falei: “Quer saber de uma coisa? Vou pôr no seu carro mesmo.” “Você vai deitado dentro do seu carro. Vai macio.” “É uma boa.” Comprei e comecei a rodar, mas dormir, nada, pois se o de baixo balanga o carro, só faltava sair fora. Tá louco! Sofri pra burro guiando este carro. Quando acabei de chegar em São Paulo, deu três dias, eu vendi esse carro e peguei outro ônibus para Recife outra vez. Fui lá, encontrei outro carro e comprei. Comprei, acho que por 12 contos; vim aqui e vendi por 18. Estava bom o carro.
Acho que vendi uns 100 carros. Eu tenho um livreto assim, que já rasgou bastante folha, mas tinha bastante carro. Cada carro eu comprava por ‘tanto’ e vendia. Aqui mesmo eu comprava e vendia, pois tem gente que está apertado e quer vender. Vende logo, porque a gente faz uma oferta e pega.
P/1 - O senhor deixou a oficina mecânica porque não estava dando certo e foi vender carros?
R - Na oficina, eu já estava comprando carro e vendendo. Comprava meio batido e consertava. Ia fazendo assim. Depois, não estava indo muito bem e parei. Comecei a construir casa. Construí umas 30 casas de tijolos. A última que construí era uma casa de um milhão para vender. Eu que fiz. Estava “prático”, né? Comecei a trabalhar com eletricidade primeiro. Isso eu aprendi com carro, fazendo instalação no carro. Falei: “Vou aprender a fazer a instalação da casa”. Construí bastantes casas, acho que umas 30 casas.
P/1 - O senhor continua morando na Oscar Freire?
R - Não. Fiquei cinco anos lá, depois saí e vim para a Vila Sônia. Morei 17 anos numa casa só. O aluguel era muito barato, era 10 reais só... Era o preço na época que eu aluguei. Fiquei 17 anos. O português não queria ‘suspender’ [aumentar o valor] e disse: “A hora que você der na telha, você pode sair”. Depois saí de lá e construí uma casa, porque entrou um ladrão que acabou com a casa e não deu mais para ficar lá. Vendi e comecei a trabalhar com casa mesmo. Construção de casa também não dava muito dinheiro.
P/1 - E os filhos, seu Akinori? Eles foram crescendo?
R - Os filhos, graças a Deus, foram crescendo e eu queria “estudar eles” [colocá-los para estudar]. Os irmãos, eu “estudei” para doutores, mas os filhos eu não tive dinheiro para fazer... O mais velho fez Científico, a filha mais velha não fez... A segunda é essa que veio me trazer aqui; essa se formou, mas não sei em quê, na faculdade. Ela agora não está trabalhando.
P/1 - Os filhos se casaram?
R - Casaram bem, [se] casou bem o rapaz. Agora meus filhos estão todos casados. Só o de Manaus, que a mulher morreu.
P/1 - Ele se mudou para Manaus?
R - A mulher [com] que ele [se] casou era empregada dele. Ele foi trabalhar em um escritório de relojoaria. De relógios grandes, de pedestal, aqueles que custa 25, 30 contos. Ele entrou para fiscalizar esta fábrica. Quando foi para Manaus, o dono disse que ele ia ser diretor de lá e a moça era contadora. Ele ficou namorando a contadora e [se] casou. Era brasileira e morena, muito boa a mulher, mas ela ficou doente e morreu. Ela já tinha uma menininha quando [se] casou e meu filho cuidou dela. A mulher, quando morreu, deixou três filhos, mais um rapaz e uma moça. Ele só teve dois filhos, mas a moça morreu numa trombada de carro. O outro namorado veio, bateu no carro e matou ela. Nós fomos lá... Eu não fui, estava cansado, mas os outros foram lá para ajudar pois o médico perguntou: “Você quer doar alguma coisa da sua filha?” e ele falou: “Ah, eu vou doar tudo. Pode tirar tudo”. Chamou o médico, pois o corpo não morria direito, ficou quatro dias e depois o coração parou. Agora não adianta mais; enterraram e vieram embora. O filho mais velho dele já [se] casou e tem um filho. Ele ficou um homem de dois metros (risos); meu filho também é bem alto, até mais alto que eu, mas o filho dele é bem mais alto e pesa 110 quilos. Eu falei: “Não vai engordar muito, hein?” “Eu vou fazer força para não engordar”, mas ele não engorda, não. O corpo dele está bom. Parece que já se formou na faculdade e a moça também, mas morreu com 23 anos. Este ano passado era para ele ter se formado e não deu para se formar. Morreu.
P/1 - O senhor me contou que trabalhou, depois, com construção de casa, não foi? E depois disso?
R - Depois da construção da casa, trabalhei um pouco com eletricidade, mas parei. No fim de minha vida, já estava com setenta e tantos anos. Meu filho falou: “Papai, não faz mais serviço, não. Fica descansando, que é melhor”. Ontem mesmo, eu estava conversando com a minha nora e disse que queria ir trabalhar na fábrica do meu filho. Lá é grande, tem 1400 metros. Só para fazer uma varrida, estas coisinhas, pra mim está bom. Ela falou: “Não, não pode ir, não.” (risos) Eles não me deixam trabalhar.
P/1 - O senhor tem vontade de voltar a trabalhar?
R - Eu gosto de trabalhar. Se alugasse um pedaço de terreno, iria plantar verdura pra nós comermos à vontade. Não custa nada. Aqui mesmo, nas duas casas que eu morei, ninguém comprava verdura. Eu fazia verdura pra meu filho, minha filha. No sábado eles vinham buscar as verduras. “O que der você leva, porque o que você não levar, perde”. E tomate... Todas as coisas: alface, berinjela, essas coisas, plantava tudo. Sempre sobra um terreno no fundo, não custa nada. É fácil.
P/1 - Agora me conte uma coisa. Eu soube que o senhor foi campeão de sumô, quando morava em Lins. Como foi que o senhor começou a lutar sumô?
R - Com 16, 17 anos comecei a lutar. Depois aprendi judô também. Olha a orelha: enrolou tudo com o sumô. Machuca a orelha, incha e fica assim, grande. Quando sara, diminui, mas não fica surdo, não.
P/1 - Por que a orelha fica assim?
R - Porque esfrega com o outro. Esfrega na barriga do outro. Campeonato, eu tirei no Sumo, só. Tirei depois que estava casado, acho que estava com 28 anos. Ganhei a taça e falei: “Agora eu vou parar”. (risos)
P/1 - Quando o senhor ganhou a taça?
R - Sumiu a taça, não sei. Em Pederneiras, perdeu-se lá. A molecada, acho que pegou e jogou... Tá bom.
P/1 - Como é que o senhor começou a lutar sumô? De onde veio o interesse?
R - O pessoal falava: “Vamos lutar”, aí começamos a lutar.
P/1 - Era comum lá, porque tinha muitos japoneses?
R - Era sim. Tinha um regulamento e tudo, porque se triscar uma mão, um dedo no chão, já perdeu. Por isso que é bom. Judô não - judô tem que apertar o cara até ele pedir água.
P/1 - Tinha muita luta memorável?
R - [No] sumô tinha vezes que também ficava com outro igual... Acho que sumô era 5 minutos, tinha que largar e depois pegar outra vez. Judô também tem hora. Se apertar o pescoço e o outro bate nas costas da gente, aí solta.
P/1 - E você só lutou nesta época? Você voltou a lutar sumô ou judô depois?
R - Ah, pode fazer. Só que dá pouca diferença. [No] Judô, para se pegar com outro tem que estar com a perna bem mole e Sumô tem que ir firme, senão nego derruba a gente.
P/1 - Depois o senhor não teve mais interesse em lutar?
R - Não, isso é para moço. Que nem eu, com 70 anos, 90, não adianta.
P/1 - Tinha muito descendente de japonês onde era a fazenda? O senhor lutou sumô em Lins. E nesta região tinha muito descendente japonês?
R - Tinha. Por toda a cidade de Getulina, tinha bastante japonês e lugar de sumô. Lins também, tinha até mais lugares: Araçatuba, Cafelândia, Guaimbê, que era uma cidadezinha pequena. Todo lugar que havia japonês morando tinha sumo e judô.
P/1 - O senhor sabe um pouco de como sua família chegou aqui no Brasil?
R - Estas coisas a gente ouve falar, mas não pega jornal do Japão pra ficar lendo aquilo. Nunca fiz isso.
P/1 - Porque tinha a família da sua esposa também, né?
R - Ela era mais brasileira do que eu. O pai era o primeiro japonês que veio para o Brasil.
P/1 - Você sabe como foi esta vinda dele pra cá?
R - Dela?
P/1 - Do pai dela.
R - Dele eu soube pouco. Ficou solteiro muito tempo, depois trabalhou num hotel. Casou em Lins, teve sete, oito filhos e morreu logo depois do nosso casamento.
P/1 - Ele era japonês?
R - Era japonês. E a sogra também, veio mais ou menos na mesma época que meu pai veio. Veio muito solteirona, solteirinha.
Tem muitos que vem, não gostam daqui e voltam para o Japão. Um filho meu foi, o ano passado, retrasado, para o Japão. Foi lá pra passear. Trabalhou três meses. “É papai, eu gastei o dinheiro que ganhei lá e vim”, então foi passear de graça, né?
P/1 - O senhor tem mais alguma outra história que gostaria de nos contar desta sua trajetória?
R - História, quase não tinha. Eu quase nunca briguei. (risos) Briga de boca tinha, mas de conversa...
P/1 - Pode ser uma história de quando o senhor era pequeno, na fazenda. Ou mais velho, com a equipe que trabalhava com o senhor.
R - Tem empregado que trabalhou 18 anos comigo, acho que foram três pessoas. Um deles foi motorista meu. Eu que ensinei ele a guiar o carro. Ele guiava tão bem. Ele me falava: “O senhor não é meu patrão. O senhor é meu pai”. Nunca deixei faltar dinheiro, pois estas coisas... Eu não gostava de deixar [o empregado] sofrer. Às vezes vinha um coitado e me pedia 50 cruzeiros pra não sei o que e eu falava: “Pode levar. Se quiser 100 pode levar também”. Eu era assim, nunca neguei dinheiro. Mesmo quando eu estava duro, quando era dinheiro pra eles, eu tinha. Porque a gente não podia ficar duro de tudo.
Mas foi bom. Eu trabalhei e nunca briguei com ninguém. Meu filho é a mesma coisa, ele nunca encrencou com empregado. Ele tem 20 e poucos empregados. Todos gostam dele. Pagamento no dia certo e em janeiro, no ano novo, tem 15 dias de descanso. E ganha o ordenado, a mesma coisa, por isso que eles trabalham, fazem força. Puxa vida, são bons mesmo. Eu falei pro meu filho: “Nunca deve pegar empregado e espremer com a mão. É gente que está trabalhando. Nunca deve obrigar a fazer as coisas”. Ele está bem.
Eu também, quando tinha tempo de colheita, com cento e tantos homens que trabalhavam. No tempo que eu tinha estas três fazendas, ainda tomava conta de mais duas. Meu serviço era só andar mesmo, não tinha jeito. Neste que eu ‘entrava’ de patrão deles, eles falavam: “Agora nós estamos folgados, pois fulano chegou aqui e não nos deixa faltar nada”. Eu falei: “Para trabalhar, vocês têm que estar de barriga cheia, não ficar vazia”. Se precisavam de remédio, iam ao médico. Tudo, eu fazia. Não gostava de judiar, não. Em São Paulo tem umas famílias que trabalharam quase inteiras pra mim. Tem moças, mulher de idade; todas me cumprimentam e falam: “Olha, eu quero trabalhar pra você”, mas eu não tenho mais serviço...
Nestas coisas de serviço, você precisa ser... não é bancar o bobo, mas judiar não. Se a pessoa está precisando de 10, 20 cruzeiros no meio da semana, dava o dinheiro pra ela. Eu nunca neguei isso.
(pausa)
P/1 - Seu Akinori, conta mais sobre a lavoura. O senhor queria contar...
R - Lavoura é como eu falei: pra trabalhar é muito difícil, porque quando chove, pra carpir com enxada não dá. Tem que trabalhar em alguma coisa. Eu fazia assim, não tinha jeito. Trabalhar com colheita de café pra (?).
Pegava café pra abanar, qualquer coisa. Não tem domingo, não tem sábado. Tem que trabalhar todo dia pra ganhar dinheiro. Cortar arroz também é duro, não sei como é que eu aprendi. Um dia de serviço meu dava três dias de serviço, porque eu cortava arroz por três pessoas.
P/1 - Você era pequeno?
R - Não, já grande, com 15 anos. Neste tempo eu dava dois dias. Depois de 17 anos comecei a plantar e cortar arroz. Dava por três dias. Nem cinco pessoas cortavam o que eu cortava sozinho. Eu chegava e cortava um alqueire todo sozinho, em dois dias. E outra: [pra plantar] arroz, tem este segredo de plantar juntinho do pé de arroz. Tira com ferro, corta e vai colocando em cima dessa soca. Pra juntar leva o dobro do tempo, porque corta, seca e tem que amontoar para deixar guardado. Eles não sabiam colocar o arroz em cima da soca e eu “pum, pum, pum” e ia para o outro. Num cafezal, punha três carreiras de arroz. Tinham umas italianas - eram três moças que pegavam uma carreira cada uma. Eu, sozinho, pegava três carreiras e saía primeiro do que elas. Uma delas tinha dor na espinha e eu não tinha. Sabe por porque em mim não doía? Porque mandei fazer uma cinta de cobra, de jaracuçu. Matei uma cobra - aquilo já era grande, era jiboia - mandei tirar [a pele]. Deu pra fazer uma cinta, um suspensório e uma carteira. Com aquilo na cintura pode se abaixar o dia inteiro, que não sente nada.
P/1 - Por conta do suspensório, ou não?
R –O suspensório, não. Este era para passeio. Tem gente que pode fazer e faz a cinta bem-feita, pois se quebrar é prejuízo. Era assim que eu fazia, matava a cobra para mandar fazer duas cintas. Não doía nada. Todo mundo ia cortar arroz [e pensava]: “Como é que eu vou cortar?” Eles iam daqui até dez metros e já largavam o ferro, ficavam se (?) com as costas. Eu não. Começava com 50 pés de café e “chop, chop, chop”, cortava e ia arar lá em cima.
P/1 - O senhor estava contando que com 13 anos tinha que abanar o café?
R - A gente abanava e tinha que levar para a estrada.
P/1 - Conte como era isso.
R - Café tinha que abanar com a peneira e não era mole, precisava aprender. Eu aprendi e depois, de tarde, no primeiro dia, eu colhi quatro sacos e meio. Depois de uma semana, eu já estava barrando cinco sacos de café. Assim cheguei perto de um menino de 15 anos, só que no tempo bom. Quando tinha uns 17 anos, eu já abanava 20 sacos de café por dia. Aos sábados, tinha bastantes moças, que rastelavam café, ajuntavam e a gente pegava. Levava umas duas ou três ferroadas de lacraia e não estávamos nem aí. Dói um pouquinho, mas depois acostuma.
P/1 - Mas não é tranquila a ferroada da lacraia?
R - Dói e incha logo. É a mesma coisa que formiga grande. É o ferrão, [ela] tem um rabo com ferrão. Na cidade, quando criança leva ferroada de lacraia, tem que levar para o médico. A gente molhava a terra e não sofria, não. Até marimbondo podia ferroar, que não tinha problema. Lavrador precisa ter destas coisas. Eu não tinha medo de marimbondo, destas coisas, mas agora que parei tenho medo porque ferrão de marimbondo é duro.
P/1 - Lá em Lins tinha rio, perto da fazenda?
R - Lá? Fazenda não é bom, mas dá para trabalhar. Se chover, não dá para carpir. Tem que ter outro serviço para fazer ‘por fora’. A gente tem que plantar café, tratar de café ou limpar cova. Tem bastante terra caída, enquanto o café está novo tem que tirar aquela madeira, passar a mão e limpar tudo. Outro dia, nós fomos ajudar um fazendeiro a limpar o café. Plantados não sei quantos mil pés de café, notei que era bastante e nós fomos limpar a cova para ele, senão o café não cresce. Começamos a matar cobra, matamos 160 cobras no dia. Por isso que de cobra eu não tenho medo. Se tiver uma cobra assim, desta grossura, eu pego, “pumba” e mato, porque estou acostumado com cobra. Eu não pego com a mão. Colocamos em cima de um pau e todo mundo olhou e falou: “Essa é jibóia, pode tirar o couro e fazer cinta”. Cinta é bom.
P/1 - Tem mais alguma história que o senhor gostaria de contar pra nós?
R - História? Tem uma história engraçada... de ter filho. Posso contar?
P/1 - À vontade, por favor.
R - É que eu fiz uma experiência. Era eu, um que estava em Brasília -
ele morreu, mas a mulher está viva. As irmãs estão em São Paulo. Tem outro que foi para o Paraná, para o sertão do Paraná. Tem outro que está morando em São Paulo, este tem três filhas mulheres. Ele queria um homem, pelo menos, só que teve três filhas, nasceram todas mulheres. Eu e o outro que estava em Brasília falamos: ”Eu quero dois homens e duas mulheres”. O que foi para o Paraná tinha isso também, mas aumentou mais dois e ficou com seis, mais homens do que mulheres. Esse já não queria mais fazer isso. Eu já fui na casa dele duas vezes; morreu agora, coitado. Era mais velho do que eu.
Esse que mora em São Paulo pensou em fazer outro filho, mas fez as contas e viu que ia nascer mulher. Falou: “Daqui até o final do ano não posso deixar minha mulher engravidar, porque vai nascer mulher”, aí parou, com as três filhas mulheres. Eu parei com dois [homens] e dois [duas mulheres]. Isso é a gente que tem que contar, por isso que tem filho com diferença de mais de dois anos, dois anos e meio. Meu filho e minha filha têm diferença de 7 meses, a filha é mais velha que o filho. A gente estudou isso, os outros que ensinaram e dava certo. Fui eu e o de Brasília também. Eu tenho dois filhos homens e duas mulheres: a mais velha é mulher, a caçula é mulher e os do meio são homens. O de Brasília é mulher, homem, mulher e homem. Toda aquela gente no interior, toda a rapaziada contava em Getulina, quando eu mudei que tinha um filho só. À noite a gente bate papo e os mais educados ensinam.
P/1 - Seu Akinori, tem mais alguma história engatilhada?
R - Pode, pode começar...
P/1 - O senhor está completando 88 anos em junho. É uma idade importante na tradição japonesa ou não?
R - Pra quem já viveu bem, eles fazem uma festa. Eles dizem que tem que fazer uma festa. Isso são os filhos que querem fazer, então fazem. Eu não estou nem aí. (risos)
P/1 - O senhor gostaria de contar alguma lição de vida, ou alguma história marcante que ficou destes 88 anos, que nós resgatamos agora?
R - Coisa especial não tem, mas era puxar a enxada e trabalhar. Cortando arroz, que é um serviço que tem que ter prática, senão não corta. Tem muita gente que quer cortar, mas tem medo ou dor na espinha. Dói mesmo. Só que gente que nem eu já tinha com o que segurar, então não tinha problema. Isso também vale, é um instrumento da gente, porque com dor de espinha não dá para trabalhar, não.
P/1 - Como foi para o senhor contar sua história pra nós? O que o senhor achou?
R - O que eu vou contar? (risos) Depois que vim pra São Paulo o serviço era comprar carro, vender ou trabalhar de mecânico. Depois larguei de ser mecânico e comecei a construir casas. Construir casas demorou muito tempo. Por que quantas casas eu podia construir por ano? Essa casa grande, que eu construí por último, de um médico, levou dois anos. No último dia eu falei: “Vou acabar esta casa porque preciso tratar da mulher”. Antes de acabar de construir a casa, a [minha] mulher morreu. Depois fiz o enterro.
Trabalhei mais uma semana e acabei a casa. O médico que pediu a casa não morou lá, mas deu para os filhos. Esse médico trabalha num hospital perto daqui. Eu não sei como é que foi… Entrou uma médica que começou a gostar do médico e o roubou da esposa.
P/1 - Senhor Akinori, estamos encerrando a entrevista agora. Gostaria de saber o que senhor achou de ser entrevistado?
R - Muito bom, estou contente de poder falar. Pode ser que minha língua não seja 100%, mas se der para compreender está bom.
P/1 - Ótimo, gostaria de agradecer o senhor por ter vindo ao Museu da Pessoa contar a sua história.
R - A neta já tinha falado: “Vovô, vai lá fazer isso pra mim”. Faz tempo que ela estava falando. Eu falei “Pra fazer isso vai demorar muito, porque se eu for contar tudo, tintim por tintim, vai muitos dias. Tinha muito serviço pra fazer e muitas coisa, mas não adianta contar tanto serviço. Vai limpar cova de café, carpir com enxada… Não dá para ficar dizendo tudo, né? É duro, mas se as pessoas que estão escutando aprenderem com o que a gente fez, tá bom, acho que... Pelo menos aprender a fazer casa... Eu não sou engenheiro e levanto casa. Essa do médico que gastou 2 milhões e pouco, ele mesmo não estava pensando que ia gastar tanto assim. A casa tinha piscina boa... eu tenho piscina lá em casa, mas quem fez aquela piscina não sabia fazer. Faz um buraco no chão e se cai uma chuva, a água da beirada cai tudinho. Por que isso? Não pode.
Eu já tinha feito, acho que duas piscinas. Uma deste médico, com 8 de largura por 15 metros de comprimento. É grande de fundura, o lugar mais fundo tem um metro e 80. Fiz e deixei escorrer água da beirada. Podia chover o quanto quisesse porque a água corria na beira e caía. A água da piscina não enche.
P/1 - O senhor, que não é engenheiro, sabe fazer piscina?
R - Pois é. Esse que fez a casa mesmo, deve ter sido o dono que mandou fazer a casa assim porque o outro vizinho também não sabia fazer. Se soubesse, ele não deixava fazer a piscina. Não pode entrar água de chuva. A beirada eu fiz desta largura, mais ou menos, caído pra fora… Coloquei um tubo, a água corre aqui e vai lá pra rua. Não pode, senão enche a piscina e não dá para tomar banho.
P/1 - Seu Akinori, agora conhecemos um pouco da sua história. Se o senhor quiser contar outra coisa que ficou faltando é só ligar aqui. Vem contar mais, está bem?
R - Tá bom. Eu não sei o que vai precisar, mas precisando, estou às ordens. Não estou fazendo nada; é só vocês me chamarem, que eu venho. É pertinho.
P/1 - Muito obrigada.
R - Eu também, muito obrigado. Lá em casa não tem nada pra falar, né?Recolher